Museu da Pessoa

Sísifo do meio ambiente

autoria: Museu da Pessoa personagem: José Pedro de Oliveira Costa

Projeto SOS Mata Atlântica 18 Anos
Depoimento de José Pedro de Oliveira Costa
Entrevistado por Beth Quintino e Rodrigo Godoy
Realização Museu da Pessoa
São Paulo, 10/01/2005
Código do depoimento: SOS_HV020
Transcrito por Anabela Almeida Costa e Santos
Revisado por Ligia Furlan

P/1- José Pedro, boa tarde.

R- Boa tarde.

P/1- Obrigada por você ter vindo.

R- Obrigado do convite.

P/1- E eu gostaria que você se apresentasse, falasse seu nome completo, data e local de nascimento.

R- Bem, meu nome é José Pedro de Oliveira Costa, eu nasci em Taubaté, Vale do Paraíba, no dia 29 de setembro de 1945.

P/1- E seus pais, eles são de Taubaté?

R- Meu pai é de Taubaté, meu avô também − pai dele −, e minha mãe, a família é de Jacareí, mas ela nasceu em São José dos Campos.

P/1- E a sua família, eles faziam o que, os seus pais?

R- São originários do Vale do Paraíba, de antes do tempo do café. Depois veio o café, passou por eles, certo, deixou lá um monte de coisas no Vale do Paraíba e na família, problemas e soluções, e eles basicamente eram fazendeiros. Meu pai foi prefeito da cidade, político, enfim, pessoas que faziam várias coisas na cidade. Minha mãe, a família dela é de Jacareí, meu avô era fazendeiro, depois trabalhava com café também, morou em Santos e depois casou com meu pai e foi morar em Taubaté.

P/1- E a sua família é grande, assim? Você tem irmãos?

R- Eu tenho quatro irmãos, família grande.

P/1- Eles fazem... Eles moram em Taubaté, ainda?

R- Não, meu pai mudou-se para São Paulo quando eu tinha dois anos e meio. A cidade de São Paulo tinha um milhão e meio de habitantes, e hoje tem... A Grande São Paulo tem quase 20 milhões. Então eu vi tudo isso acontecer debaixo do meu nariz, certo? Todos eles moram em São Paulo, exceto um que foi... Tem uma fazenda em Piracicaba, foi morar em Piracicaba. Tenho primos que moram em Taubaté, um irmão tem uma casa em Jacareí, outro... Temos várias relações com o Vale do Paraíba, mas meus irmãos, todos, exceto esse que mora em Piracicaba, moram em São Paulo.

P/1- E vocês, quando vieram pra São Paulo, foram morar onde?

R- Nas Perdizes, perto do Parque da Água Branca.

P/1- E como é que era esse período, assim, da sua infância, o Parque da Água Branca, ali?

R- Olha... Bom, o meu pai arranjou uma casa lá, até porque tinha o parque, achou que era bom pra gente, nós éramos pequenos. E realmente, o Parque da Água Branca era um lugar muito gostoso de se passear, era um lugar sossegado. Aliás, toda a vizinhança da região ainda era metade ocupada, metade não ocupada. São Paulo era uma cidade ainda cheia de ocos, tinha vários terrenos vazios. E era uma infância de jogar futebol na rua, de andar de bicicleta, ir para o colégio. Enfim, coisas que todas as crianças fazem: férias em Taubaté, na casa da avó, passar o Natal com a avó, que tinha um quintalzão. Fazenda, praia, enfim, nada diferente de que normalmente as pessoas fazem por aí.

P/1- Quer dizer, então você sempre viveu muito próximo da natureza?

R- Sim e não. Quer dizer, morava em São Paulo, da minha janela eu via o Pico do Jaraguá, que hoje já não se enxerga mais por causa dos prédios. Então, do meu quarto, o pôr do sol era atrás do Pico do Jaraguá, eu via toda a Serra da Cantareira. A casa já não é mais nossa, depois que minha mãe faleceu ela foi vendida. Mas, enfim, no processo, muitos edifícios apareceram. Mas eu tive uma infância realmente privilegiada. Acho que essa coisa de estar, sabe, na beira do Rio Paraíba, na praia, no litoral norte antes das estradas, isso tudo são lembranças que não ficam... Assim, não passam rápido, ficam marcadas, não ficam assim de leve na cabeça de uma pessoa. Ubatuba antes da urbanização foi a coisa mais linda do mundo. A Ilha Bela, que ainda é belíssima, mas é um paraíso que está marcado pra sempre com a gente.

P/1- E assim, vocês iam muito ao Parque da Água Branca, assim?

R- Sim e não. Na verdade, quer dizer, é uma coisa que... Ia pra escola, de tarde jogava futebol, fim de semana eventualmente ia para o parque quando era mais criança. Quando era maior a nossa diversão era andar de bicicleta, tinha terrenos baldios perto de casa, jogava futebol na rua mesmo. Nada muito excepcional, assim. Mas ia sim, com bastante frequência, ao parque. Era a dois quarteirões de casa, então era um passeio, um passeio gostoso, ao menos... Até hoje é um parque muito bonito, era mais selvagem ainda. Mais ou menos a mesma coisa, não mudou muito, mas tinha menos gente, digamos assim, era menos usado no fim de semana.

P/1- E você estudava perto de casa?

R- A primeira escola que eu fui, o jardim de infância, era justamente uma escola que é no Parque da Água Branca, na rua Germaine Burchard; é uma escola municipal, eu frequentei lá durante um ano quando eu tinha seis anos de idade, fui no pré-primário. Depois eu estudei no Caetano de Campos, fiz o meu primário na escola da Praça da República, que é aquele prédio que hoje é a Secretaria da Educação. Eu fiz um pouco mais do pré-primário lá e depois fiz o primário todo lá.

P/1- E a faculdade, você fez...

R- Não, daí eu fiz o ginásio no Colégio Santa Cruz, que era no Alto de Pinheiros; então era uma viagem ir para lá. Pegava um ônibus na Avenida Francisco Matarazzo, ia até a Lapa, depois pegava outro ônibus, pegava a Estrada das Boiadas, depois andava pela várzea despovoada do Rio Pinheiros e chegava no colégio. Eu fiz a faculdade de Arquitetura no Mackenzie, de 1964 a 1968. Eu entrei na faculdade e uma semana depois veio o golpe de 64. Foi uma época muito turbulenta o primeiro ano de faculdade; e o último, que foi 68, que tinha aquela guerra do Mackenzie com USP [Universidade de São Paulo], etc. Mas a faculdade era ali onde ela está hoje, na Maria Antônia, e do lado tinha a FAU [Faculdade de Arquitetura e Urbanismo], que era ainda no prédio anterior, na Rua Maranhão, antes de mudar para a Cidade Universitária. Então a gente tinha uma relação muito grande dos alunos de arquitetura de uma escola e de outra, e foi um período muito importante.

P/1- E você podia contar um pouquinho, assim, como foi esse período, que você pegou um período maravilhoso, 64, 68...

R- Não...

P/1-... Estudando na Mackenzie.

R- Não tão maravilhoso. Na verdade, nós...

P/1- Não, eu digo maravilhoso de história.

R- Ah, bom, de história sim, rico de história.

P/1- É.

R- Bem, a gente entrou na faculdade, uma semana depois eu tive um irmão preso, que estudava no ITA [Instituto Tecnológico de Aeronáutica]. Vários alunos do Mackenzie foram presos, vários professores da USP foram presos. Mas isso era a fase light da dita revolução. E a gente, então, tinha que se mancar. A repressão começava, assim, às voltas, em casa, etc. e tal. Meu pai nos chamou a todos, disse: “Olha, faz favor, vocês se comportarem; um preso na família já está mais que bom, nós não estamos em condições de ninguém mais ser preso.” Depois meu irmão ficou uns três meses preso com o pessoal do ITA em Guarujá, num navio, depois foi solto e tal. Então as coisas foram se ajeitando. Depois eu tive outro irmão que foi preso por razões mais bucólicas, mas também por questões da revolução. Então a gente tinha que fazer o bonzinho da família pra não desestruturar muito a questão. Não era uma coisa fácil... Enfim, acho que não são esses detalhes que a gente vai ter que entrar agora, mas é a história da vida de todo mundo. Em 1968 eu já estava trabalhando, então a faculdade pra mim era segunda opção. Eu comecei a fazer um estágio, daí eu tinha muita curiosidade por aprender, e aprendi muita coisa na escola, mas muito mais como estagiário, porque na escola a gente aprende a teoria, tem os amigos e tal, mas, digamos, a minha vida profissional começou quando eu estava no terceiro ano da faculdade, que daí estava tendo uma guerra entre estudantes e eu estava no escritório onde eu estagiava, virando a noite, fazendo projeto, tudo isso interessado, mas não estava jogando coquetel molotov em ninguém, entendeu? Ia lá, assinava a lista, não tinha aula, ia-me embora e me interessava pelas coisas. Nós, do Mackenzie, Arquitetura, eram todos considerados adversários dos direitistas do Mackenzie, a gente também tinha que tomar um pouco de cuidado para não tomar umas bordoadas lá também, porque: “Ah, vocês são da arquitetura?” O Grêmio da Arquitetura foi invadido, destruíram uma exposição que a gente fazia lá de trabalhos... Nós éramos adversários dentro do campus do Mackenzie, naquela época.

P/1- E esse estágio foi o seu primeiro emprego?

R- Sim. Na verdade, o seguinte: eu arranjei, em uma época, três empregos. Coisas da juventude, até hoje ainda guardo um pouco dessa loucura. Mas eu cheguei ao terceiro ano, achei que eu não sabia nada, então, através de um primo de uma namorada minha, consegui um estágio, fui lá. E comecei a aprender a usar a caneta certa, a fazer desenho, a desenhar uma escada direito − as minhas escadas eram todas tortas e tal − e gostei muito, achei muito interessante, fiquei fascinado. A gente fazia concursos, ganhava prêmios, enfim, um escritório de arquitetos muito bons, que eu tive essa sorte e que até hoje estão atuando de forma muito eficiente e muito competente no mercado. Depois que eu formei, virei sócio deles. Assim, praticamente eles fizeram uma sociedade, eu tinha lá um percentual. De certa forma, quando eu era estagiário, também quando eu fui virando... De aprendiz em produtivo, também tinha um salário. E quando eu estava no quinto ano da faculdade, junto com uns colegas, nós fizemos um concurso, ganhamos um concurso de um pessoal que estava querendo fazer um... Na época era muito comum concurso de arquitetura, estava querendo fazer um conjunto habitacional, então a gente montou um escritoriozinho também, alugamos aí um lugar pra fazer esse projeto. E resolvemos abrir − uma proposta também de um desses amigos − uma loja de design de móveis de papelão. E abrimos uma loja de móveis de papelão que durou oito meses, nove meses, depois a coisa não teve... Não era o sucesso da temporada. A gente fazia móveis de papelão e móveis infláveis, de plástico. A gente inventava design, etc. e tal. A loja ficava na Rua Haddock Lobo. A Rua Haddock Lobo só tinha uma casa comercial até então, que era a Casa do Pão de Queijo. Hoje a Rua Haddock Lobo é inteira comercial. Isso foi 1900 e... No último ano da faculdade, 1968. E a nossa loja chamava-se “Ah, se eu pudesse arfar nos braços argentinos de Angelita”. Então isso era coisa de estudante, sabe? Depois a gente vendeu a loja, porque deu lá umas confusões. Enfim, não era propriamente a coisa que ia funcionar a vida toda. E eu continuei como arquiteto nesse período, durante um ano e meio, mais ou menos, com o pessoal com quem eu trabalhava, mais especificamente era o Luigi Vila Vecchia, que fez uma sociedade lá, que foi muito gostosa, muito honrosa, fizemos uma série de projetos. Depois, como havia dificuldade de projetos, de encontrar projetos, eu recebi uma possibilidade de uma oferta e fui trabalhar na Companhia do Metrô, como arquiteto. Depois trabalhei na parte de planejamento também, na Companhia do Metrô. Então a primeira linha do metrô eu fiz parte desse conjunto de arquitetos que trabalhou com ela também.

P/1- E você ficou até quando trabalhando no metrô?

R- Olha, eu trabalhei no metrô até 1974. Daí houve uma história muito engraçada, porque eu trabalhava nesse período com o Roberto Scaringella, que agora é novamente o diretor da CET [Companhia de Engenharia de Tráfego]. E o Roberto Scaringella foi convidado por um grupo de pessoas para fazer a proposta de transportes pro Estado, do governo Paulo Egydio. Paulo Egydio tinha sido designado governador e chamou um grupo de técnicos, um trabalhava em cada setor, e ele foi o responsável lá pra um grupo de pessoas que fazia a proposta de transporte. Ele me convidou, então, para ser o vice coordenador, enfim, o adjunto dele, digamos assim. Quando ele não estava, eu o representava. Tinha uma casa na Avenida Higienópolis que foi emprestada pra fazer esse plano de trabalho, antes de Paulo Egídio assumir, eu ficava lá nessa casa fazendo relatório, recebendo informação, enfim... Na época não existia Internet, não existia e-mail; então passava fax, recebia, selecionava, fazíamos reuniões, discutíamos. Um dia ele estava em Brasília e teve uma reunião de coordenação. Eu fui a essa reunião de coordenação e cada um apresentou o seu trabalho. No final do trabalho, eu apresentei transporte, outro apresentou educação, outro apresentou cultura, saúde, etc. Eu falei: “Escuta, ninguém está fazendo nada de proteção de florestas?” − isso era 1974 −. Falou: “Não.” Falei: “Puxa, eu acho que era importante, alguém deveria fazer.” Daí o coordenador geral disse: “Olha, nós também achamos. Então você vai coordenar a parte de florestas.” Eu falei: “Não, mas escuta, eu não sou um técnico nisso, eu estou aqui representando o transporte.” Falou: “Bom, mas ninguém é técnico nisso. Então você vai procurar o Paulo Nogueira Neto...”. Tinha acabado de ser criada a Secretaria Nacional do Meio Ambiente, e eu falei: “Bom, então vou, mas eu não sei que resultado vai dar.” Daí fui conversar com o Paulo Nogueira, ele me recebeu na casa dele, foi extremamente gentil, me deu uma aula inteira. Dizia: “Não, isso é muito importante, você precisa fazer, vá falar com tal pessoa, tal pessoa, leia isso, leia aquilo...”. Eu construí um relatoriozinho de que as florestas precisariam ser protegidas, a Serra do Mar... Na época não se falava, não existia ainda o conceito, assim, amplo, de Mata Atlântica. É claro que existia a Floresta Atlântica, mas não existia um movimento em proteção da Mata Atlântica. Então a gente fez uma proposta de proteção da Serra do Mar, e foi aceito pelo governo. Tinha proposta de proteger os hortos da Fepasa, etc. Quando o Paulo Egídio assumiu, eu fui convidado para ser Assessor de Meio Ambiente da Secretaria do Planejamento. Em 1975 − se não me falha a memória, acho que a data é essa − eu saí do Metrô e fui trabalhar na Secretaria do Planejamento como Assessor da Área de Meio Ambiente. Fiquei nisso até me aposentarem, até sair do governo, em 2002, agora no Governo Federal.

P/1- E nesse período, quando você começa na Secretaria do Meio Ambiente, depois do Planejamento, quem eram essas pessoas que estavam trabalhando?

R- Olha, basicamente você tinha algumas pessoas que trabalhavam mais assim, digamos, esporadicamente, falando sobre a questão e tal. Mas a questão era muito restrita. Em 1972 houve aquela reunião de Estocolmo, a primeira reunião, a primeira conferência das Nações Unidas pro Meio Ambiente, e o assunto começou a aparecer na imprensa com maior intensidade. A cidade de São Paulo tinha uma poluição absolutamente escandalosa, poluição de você não enxergar do outro lado da rua na década de 70. Então foi criada a CETESB [Companhia Ambiental do Estado de São Paulo] − isso também no governo Paulo Egídio −, juntando alguns setores que eram responsáveis por saúde pública, por saneamento, etc. E a CETESB é fruto dessa necessidade, quer dizer, morria muita gente... Como até hoje morre, mas morria mais gente, principalmente velhos e crianças, por questão da poluição. A gente “cof!”, sufocava, era realmente... O mês de agosto, que é péssimo em São Paulo, era absolutamente horrível. Isso é uma coisa inclusive cientificamente comprovável, é só pegar os dados. Aí começou essa coisa de controle da poluição. A área de meio ambiente não falava tanto de controle de desmatamento. Existia uma consciência em alguns, mas não era uma consciência generalizada. Nesse período havia algumas pessoas que começavam a mexer com isso, mas era pouca gente, tinha um pouco a imprensa que mexia... E, historicamente, nós temos o nosso decano, que é o Paulo Nogueira Neto. O Paulo Nogueira Neto, que hoje é vice-presidente da SOS Mata Atlântica, foi o primeiro secretário nacional da área de meio ambiente, que corresponderia hoje ao cargo de ministro. Ele era uma pessoa que já militava por isso dentro da Secretaria da Agricultura. A Secretaria da Agricultura tinha − como existe até hoje dentro da Secretaria do Meio Ambiente − o Instituto Florestal, então tinha o pessoal do Instituto Florestal, tinha o pessoal da universidade... Enfim, os geógrafos, os engenheiros florestais, o pessoal da Escola Luiz de Queiroz, que tinha essa consciência de que é preciso preservar as florestas, a Polícia Florestal... Mas era ainda um movimento... Enfim, com todas as competências, mas um movimento dentro dos seus determinados setores. Não era um movimento tão amplo quanto chegou a ser, digamos, na década de 80 e na década de 90. Eu conversava com esse pessoal e conversava com algumas pessoas, os meus amigos todos − nessa época eu tinha 20 e poucos anos, 27, 28 − eram preocupados com a questão do meio ambiente, a gente estava preocupado com a proteção do litoral, a gente estava vendo o litoral ser depauperado e começava aqui e ali a haver algumas pessoas falando na universidade e no Instituto Florestal.

P/2- E nesse período, quando foram criadas essas secretarias e que o movimento estava começando a tomar forma, como é que, na sua opinião, a população em geral encarava essa questão do meio ambiente, apesar da poluição ser algo que todo mundo pudesse notar?

R- Havia uma consciência. Quer dizer, a Secretaria Nacional, a Sema, Secretaria Especial do Meio Ambiente, que era o nome que ela tinha, foi criada, se não me falha a memória, em 1973. A Secretaria do Meio Ambiente seria criada só em 1987, quer dizer, 13 anos depois da Secretaria do Estado. Mas essa é uma história de outra década. Nessa década de 70, meados da década de 70, havia uma questão assim: a poluição atingiu picos. Não existia essa questão de estado de alerta, mas as pessoas sentiam que a coisa estava ruim. E o governo respondia através da busca do controle das empresas, das indústrias. Quando eu era moleque, tinha cinco, dez anos, estava na escola, a gente desenhava São Paulo com uma indústria, com uma chaminé, e era o orgulho da cidade. São Paulo era a cidade que não podia parar de crescer, e a indústria era algo que nós precisávamos e que dava emprego. A cidade, então, estava se firmando como uma capital. São Paulo era uma cidade caipira − como sob muitos aspectos ainda é, muitas mentalidades ainda provincianas dentro de uma metrópole –, mas

naquela época não era metrópole, era só provinciana. Tinha algumas lideranças que faziam a Bienal, faziam eventos culturais, mas a mentalidade geral era de uma cidade realmente restrita àquela vida interior, diferente do Rio [de Janeiro], que era uma cidade muito mais cosmopolita. Então a disputa de moleque que a gente brincava era: “São Paulo agora tem mais gente que o Rio de Janeiro.” Foi na década de 50 que a população de São Paulo ultrapassou a população do Rio de Janeiro. Coisa que, então, era entendida como muito interessante; depois nós viríamos ver os problemas que resultavam disso. Mas na década de 70, consolidou-se a preocupação de que nós estávamos, realmente, sufocados pela fumaça. Isso todo mundo sentia. Uma coisa que passou a ser uma obrigação funcional do governo, política do governo: controlar a poluição, e as culpadas eram as fábricas. Tinha a famosa Aliperti, que destruía a vegetação do Jardim Botânico do Parque do Estado, como é conhecido, onde está o Zoológico. E tudo isso funcionava. Do lado de casa tinha as Indústrias Matarazzo, que hoje não tem mais, mas que era uma fumaceira que não tinha tamanho, cheiro horrível na cidade. Todo o processo de fazer papel, celulose, que a gente raramente sente hoje, mas era assim. Toda noite, na cidade de São Paulo, no bairro onde eu morava, em todo o Vale do Tietê, digamos assim, se espirava aquele cheiro de celulose e um fedor horroroso. Isso foi uma coisa que foi saturando as pessoas. Não é que houve uma consciência, houve um desespero gerado pela situação. Aí começou essa coisa de controle da poluição, etc. E junto com ela falava-se da destruição da Amazônia; ninguém muito falava da destruição da Mata Atlântica, porque a Mata Atlântica era algo que já tinha sido considerado como destruído. Eu me lembro que eu era moleque, tinha dez, 15 anos, tinha um padrinho meu que tinha uma fazenda lá perto da barranca do Paraná, em Andradina, era um lugar onde a franja do desenvolvimento, digamos assim, a franja do desmatamento, na década de 50, estava ali, estava começando a atravessar a barranca do Paraná e indo pro sul do Mato Grosso. E a gente via queimadas grandes, varapaus, aquelas árvores imensas: ipês, perobas maravilhosas de 20 metros de altura, em esqueletos, todos chamuscados pelas chamas, e entrando o pasto, entrando o colonião. Eu vi tudo isso acontecer na década de 50. Concomitantemente, isso foi acontecendo com todo o oeste do Paraná também. Então a Mata Atlântica foi destruída, de fato, no século XX. Foi grandemente destruída no século XIX pelo café, mas a destruição consolidou-se no século XX. O sul da Bahia todo foi queimado na década de 60, 70, quando abriu a estrada; o Oeste do Paraná também foi nessa época, mas não se falava muito disso. Isso era o progresso inevitável, tínhamos que plantar, etc. e tal. Ninguém tinha critério, existia um código florestal que era desrespeitado. Em São Paulo ainda se protegia alguma coisa, quando se abriu a Rio-Santos, graças à Polícia Florestal de São Paulo, ainda se manteve uma coesão entre os remanescentes de floresta. O estado do Rio é muito mais depauperado do que São Paulo; como ele é mais estreito e está na Serra do Mar, parece que proporcionalmente tem mais floresta, mas a Serra do Mar em São Paulo está muito mais preservada que a do Rio. Agora, o oeste é uma lamentável situação que aconteceu na minha geração, digamos assim. Ou finalizou-se em São Paulo na minha geração, e aconteceu no Paraná nessa geração também.

P/2- E na década de 70, meados da década de 70, já existiam grupos organizados na questão ambiental?

R- Sim e não. Existiam alguns grupos. Na década de 70 eu trabalhava com esse pessoal, conversava com eles, assim, as pessoas com quem a gente trabalhava são as pessoas que até hoje estão aí militando: era o Paulo Nogueira Neto, o Zé Carlos Magalhães, o pessoal do Instituto Florestal, o Aziz Ab’Saber. Eram essas pessoas que estavam, digamos assim, mais preocupadas e discutindo essas questões. Já na década de 70 existia uma consciência, quer dizer, começou a batalha do Jornal da Tarde. O pessoal do Jornal da Tarde começou a falar de meio ambiente. Existia o jornalista Randau Marques, o Rodrigo Mesquita, que era o diretor do jornal, e eles começaram a ampliar o espaço. O Randau tem uma importância muito grande − o Randau e o Rodrigo − nesse trabalho. O Rodrigo por dar espaço e o Randau por escrever, era uma dupla que funcionava muito bem. O Rodrigo também escrevia, mas basicamente o Randau tinha espaços enormes e fazia matérias bastante profundas, bastante agressivas, o que também aumentava essa consciência. Eu, a primeira vez que vi a Estação Ecológica da Juréia foi uma vez num vôo de helicóptero que eu fiz para o litoral sul, em direção à Jacupiranga, que naquela época tinha problemas que a gente achava gravíssimos

− mal sabíamos nós que quase metade do parque iria desaparecer depois... −, mas eu sobrevoei uma área que era o paraíso terrestre, não podia imaginar que ali pudesse ser tão bem preservado. Um ano depois começou uma campanha feita pelo vereador Ernesto Zwarg, de Itanhaém, pela proteção da Juréia... Pela proteção do Rio Verde, na verdade, e essa campanha teve muito eco no Jornal da Tarde. Então isso já estava eclodindo na década de 70; se publicavam pesquisas, etc. e tal. Esses eram os trabalhos que estavam em andamento, digamos assim, na década de 70, 77, por aí. Que eu me lembre, começaram grandes matérias falando a respeito, primeiro de poluição, depois começaram a falar de proteção das florestas. Os Mesquitas sempre atuaram pela proteção do Lagamar, em Cananéia, Iguape, Peruíbe. Eles tinham uma casa, passavam verão lá. O Rodrigo tem uma casa de pescador lá, até hoje, no bairro de Ararapira. E isso foi muito importante, porque eles conheciam, então podiam falar, e davam espaço pra gente falar sobre essa questão do meio ambiente.

P/2- E aí, entrando na década de 80, no início da década de 80?

R- Dá para falar um pouquinho da década de 70, ainda. Na década de 70 eu pude participar de algumas coisas que talvez seja o momento de registrar. Uma era de que se pleiteava a criação de uma talvez Secretaria de Meio Ambiente, Secretaria do... Nós... Paulo Nogueira era amigo do Paulo Egídio, conversava com ele sempre que vinha a São Paulo, propôs a criação de que houvesse a Secretaria do Planejamento fosse Secretaria do Planejamento e Meio Ambiente. O Secretário, na época, o Jorge Wilheim, não aceitou a ideia. Mas o pessoal da Secretaria de Obras, à qual a CETESB estava afeita, não gostou muito; no fim acabou que a Secretaria de Obras ficou sendo chamada de Secretaria de Obras e Meio Ambiente. O meu trabalho ali foi mais de redigir coisas, levar documentos, porque era uma discussão entre o governador e o secretário nacional de meio ambiente... Mas enfim, eu já trabalhava nessa questão. E eu, como tinha feito uma proposta de um programa de florestas, tinha uma proposta de proteger a Serra do Mar, que eu fui caminhando e tinha proposta de fazer um parque que fosse pegar a Serra do Mar como um todo, que era um desvario, pra época. Aí me acalmaram um pouco, mas me deixaram fazer uma proposta de um parque que fosse de Peruíbe até Ubatuba. Eu tinha lá uma estagiária, e a gente comprou uns mapas que tinham acabado de serem impressos pelo IBGE [Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística] e fizemos a proposta do Parque da Serra do Mar. Nesse meio tempo... Eu não sei se eu estou indo muito em detalhe, mas enfim...

P/1- Não, está ótimo.

R- Se vocês quiserem mais detalhes também, tudo sempre pode... Nesse meio tempo eu estava lá no Palácio dos Bandeirantes, onde era a minha sala, onde era a Secretaria do Planejamento. Saiu uma página inteira do Jornal Estado de São Paulo dizendo do plano que tinha sido aprovado na câmara de Ilha Bela, de novo zoneamento, que ia à sanção do prefeito. Isso em 1976. E esse plano falava assim: da cota zero até a cota 200 pode construir tudo que você quiser; da cota 200 à cota 400 você só pode construir metade do terreno; da cota 400 à cota 800 você só pode construir... Algo assim, entendeu? Com terrenos de dois hectares, da cota 800 até em cima os terrenos têm que ter no mínimo 20 hectares. Enfim, um despropósito absurdo, porque, realmente, contrariando toda a legislação, Serra do Mar, contrariando a legislação do Código Florestal, etc... Eu fiquei muito alarmado com aquilo e fui falar com o secretário. O secretário falou assim: “Não, então faça uma proposta de um parque.” Falei: “Mas se o prefeito sancionar isso aqui, vai ficar complicado, porque vai dar um conflito com a prefeitura.” Ela falou: “Não, então você vai lá e procura o prefeito em meu nome.” Falei:“Quer que leve alguma carta?” Falou: “Não, pode só dizer, procurar em meu nome, e pede pra minha secretária ligar, marca uma audiência com você e você vai hoje.” Falei: “Mas já é meio-dia.” Ele falou assim: “Não, você pega o helicóptero do governador e vai lá.” Então a secretária marcou com o prefeito, eu peguei o helicóptero − foi a primeira vez que eu fiz um vôo na Ilha Bela de helicóptero −, desci na frente da prefeitura. O prefeito ficou absolutamente impressionado de chegar um emissário do governador de helicóptero. E eu conversei com ele, falei: “Olha, o secretário pediu pro senhor pra que não sancione essa lei, porque o governador tem a intenção de fazer um parque.” Isso era agosto, setembro, tal, tudo isso. E eu me sentindo muito heróico naquela missão especial. O prefeito respondeu: “Olha, pode dizer ao secretário e ao governador que a lei não será sancionada, nós vamos aguardar.” Eu fui correndo lá, comprei as plantas e demarquei o Parque da Ilha Bela; fiz o decreto, chamei lá o pessoal que entendia bastante dessas coisas, passamos pela consultoria jurídica e dei na mão do secretário. Ficamos aguardando pro dia seguinte ser publicado. Isso era final de agosto. Passou setembro, nada. Passou outubro, nada. Passou dezembro, falamos: “Bom, o governador não está tão interessado assim.” Pra nossa surpresa, no dia 21 ou 22 de janeiro, saiu o decreto. Nós festejamos muito criando o Parque Estadual da Ilha Bela, e teve que ajustar com o prefeito, etc. Eu só vim descobrir dois ou três anos depois que, como o parque chamava-se Parque Estadual de Ilha Bela, o governador queria que o parque chamasse Parque Estadual de São Sebastião, que é o nome oficial da ilha. A ilha chama-se Ilha de São Sebastião, mas o município chama-se Ilha Bela, então ele resolveu pactuar com o santo e resolveu criar o parque no dia de São Sebastião. Ele esperou o dia de São Sebastião, que é 21 ou 22 de janeiro, não me lembro exatamente, pra criar o parque. Deu um frenesi, todo mundo falou assim: “Ele quer criar parque, então vamos fazer o Parque da Serra...” Falei: “Bom, ainda não está pronto, mas está quase pronto.” Então a gente acabou a proposta do Parque Estadual da Serra do Mar, que vai de Peruíbe até Ubatuba, e que até hoje é o maior parque da Mata Atlântica; nós devemos ao governador Paulo Egídio. E criou esse parque, que realmente, à época a gente achava que era algo fora da escala, era o maior parque, é até hoje o parque mais importante da Serra do Mar e o maior deles. Mas essa foi uma conquista ainda, digamos assim, esporádica, uma conquista localizada graças a... Enfim, o Paulo Nogueira participou disso, eu fui pra Ubatuba com o Paulo Nogueira. Era um mapa, era um mapa enrolado que tinha uns cinco metros de comprimento... O Hélio Ogawa, do Instituto Florestal, trabalhou comigo depois que a proposta estava feita. A gente fez a delimitação juntos, então aconteceram esses fatos, mas eram fatos isolados, ainda. Depois o IBDF [Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal] começou a criar também umas áreas protegidas, tinha umas áreas protegidas criadas por eles. E a Sema [Secretaria de Estado do Meio Ambiente], do Paulo Nogueira, estava criando umas áreas protegidas também. Eu me desliguei desse processo porque eu estava sentindo que eu estava tomando muitas responsabilidades sem saber o que eu estava fazendo. Falei: “Bom, eu estou começando a tomar um monte de coisa.” E descobri que existia um mestrado em Planejamento Ambiental, muito interessante, na Califórnia, na Universidade da Califórnia, em Berkeley. Fui para lá de férias e descobri que estava na época de me inscrever, fiz correndo a inscrição por causa de uns amigos e acabei sendo aceito nesse mestrado. Então eu fiquei dois anos fazendo mestrado em Planejamento Ambiental. Saí da Secretaria do Planejamento, e quando eu voltei, em 1979, eu fui conversar com o Paulo Nogueira, que era uma das pessoas que tinha me dado uma carta de apresentação pra eu poder ser aceito nesse mestrado, e ele disse: “Olha, que bom que você chegou, porque estão querendo fazer umas usinas atômicas lá no litoral de São Paulo, e a gente quer ver se consegue evitar que isso aconteça. Então eu estou tentando ver se eu crio uma Estação Ecológica lá no Rio Verde e eu queria que você tomasse conta disso se você topar.” Falei: “Tudo bem, eu acho ótimo; será que a gente consegue?” Falou assim: “A gente tem que tentar.” Falei: “Então vamos tentar!”. Eu fui trabalhar na Sema como representante dessa Secretaria Especial do Meio Ambiente, e fiquei em São Paulo representando. Fui trabalhar no Condephaat [Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico], porque existia a proposta de tombamento da Juréia e não existia escritório aqui, então juntava as duas coisas. Fiquei lá, no fim acabei ficando representante pro Estado do Paraná também, pra criar não só a Estação Ecológica da Juréia, mas a Estação Ecológica de Guaraqueçaba, tudo isso vinculado com o governo federal, então foi esse movimento... E nesse momento já existia passeata nas ruas contra as usinas atômicas, tinha Cacilda Lanuza e vários outros. E em 1980, no dia cinco de janeiro, dia do meio ambiente, o Figueiredo decretou a desapropriação de 24 mil hectares na Juréia para criar o Parque Nuclear de São Paulo, porque era a região mais selvagem, que menos acesso tinha, que mais preservada estava, que menos população tinha, e tinha proposta de se construir, dentro do acordo Brasil-Alemanha, oito usinas atômicas ali. Então, dentro da minha Estação Ecológica, que eu estava construindo, carregando pau nas costas que não tinha como chegar lá − essa é outra epopéia que depois um dia a gente pode detalhar, mas enfim, foi tudo muito épico e muito gostoso naquela época − virou um pesadelo: de repente eu virei a galhofa dos meus adversários, o “primeiro ecologista atômico do mundo”. E o pessoal descia o pau no jornal, tinha campanha do Jornal da Tarde contra, tinha passeata nas ruas, tinha CPI [Comissão Parlamentar de Inquérito] da Assembleia. Eu era convocado a depor e o pessoal falava: “Meta o pau.” Eu não podia falar nada porque eu era funcionário, estava no regime militar. Mas, enfim, eu estava acertado com os meus críticos e dando informações. Falei: “Olha, eles estão lá, estão indo...” Então, a partir dessa data, comecei a participar e ampliou-se uma maior participação da sociedade. Até onde eu me lembro, eu saí do Brasil em 77 pra estudar na Califórnia; existia o Jornal da Tarde, essas coisas. Quando eu voltei, em 79, já existia uma coisa mais ampla, de mais lideranças, de ONGs atuando mais. Teve o movimento, ainda na década de 80, contra a instalação do aeroporto que hoje está em Cumbica, o Aeroporto Internacional de São Paulo, em Caucaia do Alto, que é hoje uma reserva também. Já era uma reserva do DAE [Departamento de Água e Esgoto] na época, reserva de abastecimento de água. E resolveram um dia botar o aeroporto lá. Enfim, o pessoal do DAC, responsável por questões de vôos, nada melhor achou do que encontrar uma terra barata, toda protegida por floresta. Falou: “Bom, vou colocar uma pista lá no meio, e está resolvido.” Isso foi 76 também, estava na Secretaria do Planejamento, e fui atrás dessas informações, comecei a trabalhar contra isso. Foi outra vitória que nós tivemos também. Então fui conversar com o diretor do Departamento Aeroviário que eu conhecia, ele tinha sido diretor do Metrô e eu tinha trabalhado com ele. Ele marcou comigo, mas depois cheguei lá e, a pretexto de outra reunião, ele não estava e tal, tudo isso. Nós ficávamos também brigando contra essa possibilidade, daí a Assembleia entrou nessa briga e virou uma briga política contra o aeroporto lá. E o governador resolveu que o aeroporto... O governador e as autoridades da Aeronáutica, que nessa época tinham um poder de mando quase que absoluto no país. E o movimento ambientalista nessa época era uma coisa muito inusitada, porque a repressão era muito grande desde o Ato Institucional Número Cinco, em 68; ninguém falava nada, o Congresso foi fechado em 77. Uma das razões pelas quais, também, eu quis ir embora, eu falei: “Bom, já está um pouco pesado demais o clima aqui, eu tenho a possibilidade de estudar.” O Geisel ainda me fecha o Congresso, eu falei: “Bom, deixa eu ir arejar um pouco.” Daí, chega na Califórnia, tudo paz e amor, bem mais relaxado, entendeu? Eles tinham outras paranóias, de que ia estourar uma bomba russa, ou outras coisas assim, mas pelo menos o clima de liberdade era geral, total e absoluto. E o movimento ambientalista, dentro disso, era um movimento que contestava o regime e era meio inusitado, porque nós não éramos comunistas, não estávamos propondo a derrubada do governo. Quer dizer, nós também não éramos santos, tínhamos, como a maioria dos ecologistas tem, uma visão social, uma visão socialista do mundo, uma visão bem mais generosa do que até hoje o Brasil oferece aos seus filhos. Mas, de qualquer forma, o movimento não era um movimento político no sentido de derrubada do poder, mas de solucionar o problema ambiental. “Nós queremos que pare a derrubada de floresta, que retire a poluição e que não construam usinas atômicas.” Bom, e aí tem todo outro processo. Nós viramos de década, a década de 80 tem muito mais coisa, mas eu não queria deixar de registrar esses episódios também para vocês, que também foram fortalecendo um pouco, porque nós éramos, assim, pessoas que estavam aprendendo no processo, trocando o pneu da bicicleta com a bicicleta andando. Eu voltei mestre em Planejamento Ambiental pela Universidade da Califórnia. Descobri que lá não tinha muita coisa pra gente aprender, exceto teoria e método, que a luta estava aqui mesmo, então também fiquei mais... Mais fortalecido. E foi essa coisa da Juréia... Eu estava lá, alguns queriam que a gente saísse, eu conversei com o Paulo Nogueira: “Olha, Doutor Paulo, eu acho que existe uma possibilidade dessas usinas não saírem, porque o movimento contra é grande, e é uma coisa que ainda não está decidida, não acho que já está aqui, acho que a gente devia ficar com a Estação Ecológica.” Daí o Paulo Nogueira fez um decreto dizendo que onde houvesse uma usina atômica, deveria haver uma Estação Ecológica. O Randau dava pulos − Randau Marques −, gritava: “Onde, então, agora é ambulância, é carrocinha! Agora nós estamos assim, então a Estação Ecológica é usina atômica; usina atômica é a morte, Estação Ecológica devia ser a vida.” Mas, em compensação, nós conseguimos que várias ilhas da baía de Angra dos Reis fossem declaradas, também, como Estação Ecológica. Eu fui lá um dia catar ilha, porque as ilhas que estivessem desabitadas, nós todas transformamos, o que ajudou um pouco a segurar. Quer dizer, Angra está longe de ser a proteção dos meus sonhos, mas ainda tem algum grau de proteção na baía, e uma das coisas que ajudou foi esse fato. E de fato, as usinas acabaram não saindo. Em 1990... Não, desculpe, em 1986, quando o governo federal desistiu das usinas atômicas, eu estava trabalhando com o Montoro. O João Sayad tinha sido secretário do Montoro, era Ministro do Planejamento do Sarney. Ligou pro Montoro e disse: “Olha, vamos devolver as terras, vocês querem criar uma Estação Ecológica, vocês querem proteger, querem criar um parque?” O Montoro perguntou: “Nós queremos criar um parque?” Falei: “Sim, governador, nós queremos criar um parque!” Daí criamos a Estação Ecológica da Juréia, que foi a última grande área protegida criada em São Paulo, com 80 mil hectares, no Estado de São Paulo.



P/1- Posso só interromper um pouquinho?

R- Por favor.

P/1- Nesse período, com a questão das usinas, de criação da Juréia, como que a população se posicionava? Isso era uma coisa muito nova?

R- Olha, por mais incrível que possa parecer, a censura, que existia e não existia, era genérica. Quer dizer, não é que a televisão podia ou não podia falar. A televisão falava até onde podia. Você ouviu falar da autocensura, né? Então, era a coisa, se ultrapassasse muito e falasse muito mal do governo, eles iam lá e tiravam os benefícios. Aliás, digamos que, eufemisticamente, as pessoas dizem que faz parte do jogo democrático. Eu acho que isso é uma questão que... “hay que estar sempre atento”, não é? Porém, nestas condições, o que acontecia era o seguinte: a população em geral era uma população amedrontada. Eu acho que a população brasileira até hoje, em grande parte, é uma população amedrontada por diversos contingentes históricos, e quando ela se desamedronta, às vezes se desamedronta pra violência, quando devia se amedrontar mais para reivindicações mais... Às quais ela tem direito pleno e mais objetivas. Mas enfim, isso não é o foco da nossa questão. Naquela época, todo mundo tinha muito receio de se manifestar muito publicamente, até porque a repressão − nós estávamos sob o impacto do Ato Institucional Número Cinco − tinha passado a grande vaga do 68, mas a década de 70 foram os anos de chumbo mais pesados, assim, o governo Médici e o governo Geisel foram muito pesados, mais o Médici do que o Geisel. O Geisel civilizava um pouco, mas o Congresso estava fechado. Quer dizer, quando se fecha o Congresso num país – 77, 76, não me lembro exatamente, mas acho que é 77 − todo mundo bota a viola no saco.

Então realmente, o pessoal se manifestava pouco, mas existia quase que um consenso; quer dizer, todo mundo tem um consenso em São Paulo de que não pode ter enchente. As enchentes continuavam a existir, agora estão cavando o Tietê até o inferno para que ela deixe de existir. Mas ela continuará a existir em vários pontos, porque precisa ser feita muita coisa. Havia uma consciência de que as pessoas estavam morrendo, as estatísticas mostravam. Anencefalia em Cubatão, Cubatão era um inferno vivo. Em Cubatão, as coisas que aconteciam... Você não via a Serra do Mar; quer dizer, a serra desabou uma época, como vocês sabem. Janeiro de 1985 a Serra do Mar, com uma chuva maior, veio a baixo. Não é que a serra caiu, mas enfim, teve os maiores deslizamentos que existiram na história do país numa floresta tropical. Então era um grau, digamos assim... Imprudência é uma palavra muito gentil. É um grau de safadeza, de sem-vergonhice, de falta de vergonha, de falta de visão. Era desconhecido da fantasia das pessoas a ideia de que o mundo podia ser não poluído. Você sabe que, em 72, quando teve... Isso eu estou contando de novo porque pra mim é tão simples e tão óbvio, porque eu vi, mas as pessoas hoje não conhecem. Em 1972, quando teve a Conferência de Estocolmo, o governo militar brasileiro foi lá com a posição de que dava as boas vindas à poluição e votou depois, meio no conjunto, de que todo mundo tem direito ao meio ambiente despoluído, etc., mas a contragosto. Em represália − ou mostrando a sua posição −, publicou em jornais, tanto da Europa quanto Estados Unidos, grandes anúncios, publicidade em inglês, dizendo “Brazil welcomes pollution”. Porque nós precisávamos do desenvolvimento, e esse movimento contra a poluição era um movimento dos grandes centros contra o desenvolvimento do Terceiro Mundo, esse era o discurso, e São Paulo sufocado de poluição. Cubatão sufocado de poluição. Suas Excelências instaladas em Brasília dizendo: “Isso aí é um movimento contra o desenvolvimento nosso.” Isso causou tamanha espécie no mundo civilizado de um país da importância do Brasil, e a pressão foi tão grande, digamos assim, a indignação mundial e interna possível foi tão grande, que se criou essa Secretaria do Meio Ambiente meio como uma espécie de, sabe, resposta; mas uma coisa muito fraquinha, que o Paulo Nogueira construiu sendo uma coisa mais forte com muita abnegação. Então o clima de São Paulo era o seguinte: todo mundo estava sufocado, mas se dizia muito menos, não se fazia grandes passeatas, porque grandes passeatas acabavam na cadeia. Mas existia um consenso que se formou, quer dizer, estava incomodando os ricos, digamos assim. Apesar de dizerem que a poluição é democrática, que incomoda ricos e pobres, na verdade ela não é democrática. Se você for hoje numa periferia de São Paulo, você vê que a poluição incomoda muito mais aos pobres do que no Jardim América. Mas a poluição do ar se democratizou, então os ricos, a classe dominante, se deu conta de que tinha que fazer alguma coisa. Nessas condições, a década de 70 foi o ápice da poluição do ar, digamos assim, e Cubatão continuou, porque não estava incomodando a cidade de São Paulo. Mas em São Paulo realmente houve o controle das indústrias, aí ficamos com o problema do controle dos carros, que é uma história pra década seguinte. E eu vou precisar de um copo de água.

P/1- (riso).

R- Eu pensei que não era pra falar tanto.



























P/1- É, mas está ótimo.

R- Você não ia perguntar? Vamos fazer um pouquinho de pergunta e resposta mais curta.

P/1- Olha, eu estou gostando tanto...

R- Continua? Então, está bom, então está bom.

P/1- Onde nós paramos?

R- Você me disse que ia me perguntar...

P/1- Ah, então, eu gostaria que você falasse um pouquinho como era a sua posição, porque você estava do lado do governo e se relacionava com pessoas que estavam fora. Como é que era essa relação? Você devia ser muito cobrado...

R- Não, na verdade é o seguinte: de certa forma, eu não era o único ecologista do governo. Eu era o único ecologista da Secretaria do Planejamento, e o pessoal que trabalhava comigo, que eram duas, três pessoas. Mas, quando eu fui trabalhar na Juréia, eu fiquei no foco deste furacão da questão das usinas atômicas. E eu sabia que tinha o respaldo do meu chefe – do Paulo Nogueira –, e eu também não tinha, propriamente, digamos assim, que meu emprego fosse a coisa mais importante do mundo, então eu podia correr alguns riscos. Ou seja, pra mim era mais importante a Mata Atlântica, a Serra do Mar ou a Juréia do que propriamente eu estar ou não no governo. Mas o meu chefe falava algumas coisas de público e falava outras, a gente conversava outras de privado, como essa: “Vamos ficar pra lá, porque pode ser que a gente consiga que essas usinas não venham. Ou, se vierem, usina atômica não é pra sempre, mas a floresta é pra ficar pra sempre.” Usina atômica tem uma vida de 30 anos, que no ciclo biológico não é nada, certo? Porém, a ideia era que não se tivesse as usinas, até porque não existia ainda o risco de Chernobyl. Mas nós advogávamos o risco que acabou acontecendo. Enfim, a gente era contra as usinas, mas não podia falar, mas os ecologistas podiam falar, então a gente conversava entre eles. E eu fiz grandes amizades nessa história, porque não existia nada de secreto lá, mas ninguém podia entrar lá, exceto eu. Eu dizia: “Olha, abriram a estrada; agora fizeram isto.” Às vezes um jornalista entrava, fazia alguma coisa, mas acho que a minha vida inteira, sem que eu considere que isso tenha qualquer aspecto de ser uma traição ou de algo de roubar a confiança de alguém... Depois eu fui Secretário do Meio Ambiente do Montoro, quando a gente criou a secretaria. O governador tinha plena consciência de que a minha função era dialogar ampla e abertamente com os ecologistas. Mas é diferente; o governo militar do Franco Montoro, que é a pessoa mais democrática que eu conheci, a pessoa mais aberta que eu conheci, dos políticos que operam em alto nível... Na verdade existia um perigo no ar, não apenas pelas minhas posições, existia um perigo no ar em geral. Quer dizer, o momento foi perigoso, a década foi toda perigosa, a repressão existia. Dentro dessa repressão eu dialogava com o pessoal, entrava nas reuniões e dizia: “Olha, meta o pau nisso, meta o pau naquilo, meta o pau naquilo.” Eu ficava lá respondendo: “Mas como é que é isso?” “Eu estou lá, cuidando do passarinho. O pica-pau veio, cortou uma folha da palmeira, nós levamos... Construímos uma casa, construímos uma casa de pesquisadores, tiveram sete pesquisadores...” E o pessoal rugia do lado: “O que adianta fazer pesquisa se vai ser tudo destruído pela hecatombe atômica?”. Falei: “Bom, mas eu estou cumprindo apenas as minhas funções; eu sou um mero funcionário público cumprindo as minhas funções.” Então o meu papel, nesse aspecto, era esse. Mais tarde, quando já no governo Montoro houve, por exemplo, a questão de Cubatão, o Montoro realmente deu início a um enorme programa de saneamento de Cubatão, que foi liderado pela Cetesb com o apoio de todos nós – meu, do governo como um todo –, que realmente não resolveu, mas diminuiu pela metade ou mais a poluição de Cubatão, que já é muita coisa; continua num outro nível de controle. Quando teve o escorregamento da Serra do Mar, nós negociamos com o Rodrigo e o Randau. O Rodrigo Mesquita arranjou uma manchete no Jornal da Tarde. Eu saí pra uma reunião no Palácio, peguei o carro, peguei o jornal, e estava andando na Avenida Nove de Julho; me lembro até hoje, eu olhei e falei assim: “A Serra do Mar está caindo!” Atravessava a manchete da primeira página do Jornal da Tarde. Falei: “Bom, vai ser um ótimo dia no Palácio pra eu ir.” Cheguei lá, todo mundo de olho em mim. Falei: “Está caindo, temos que fazer alguma coisa pra segurar.” Então a proposta era o tombamento da Serra do Mar, que já existia como Parque, já existia como APA [Área de Proteção Ambiental], já existia o corredor, que é uma coisa importante de falar também, de corredores, é algo que a gente construiu no decorrer desse processo, a ideia de que a mata tem que ser preservada em áreas contínuas. E o pessoal reivindicava o tombamento, nessa época, porque o Condephaat tinha, ao período, adquirido uma respeitabilidade muito grande. Na década de 70, quando todo mundo dizia “amém” para os governantes, o Médici – acho que foi o Médici – acabou, ‘com uma penada’, com o Parque Nacional de Sete Quedas pra construir Itaipu, e todo mundo ficou quieto. Fora umas reclamações aqui, na época ninguém podia reclamar. E o Condephaat era um foro de professores universitários onde existia uma voz clamando no deserto. O pessoal queria o tombamento, e eu conversei com o governador, falei: “Governador, só tem uma coisa: pra resolver um problema como esse, temos que fazer o tombamento da Serra do Mar.” Ele falou assim: “O senhor aceita?” Falei: “Aceito.” Falei com o Rodrigo: “Rodrigo, agora vamos trabalhar pro tombamento, daqui a seis meses temos o tombamento, mas nós vamos querer uma manchete do mesmo tamanho, você topa?” Ele falou: “Topo.” “Merece?” Ele falou: “Merece.” “É uma notícia tão importante pra você?” Ele falou: “É.” Então, seis meses depois tinha: “Serra do Mar está tombada!”, até apareceu o Montoro no alto da serra assinando, etc. e tal. Isso eu acho que faz parte do jogo político, não considero nenhuma, nenhum problema. Na década de 70, qualquer coisa que contrariasse ou qualquer voz que criticasse era uma voz que estava em perigo. Então eu não estava criticando de público, estava fazendo parte de um grupo. Mas, enfim, perigo existia? Existia. Mas também existia perigo tão, ou talvez maior, de quem estivesse vociferando contra. E durante todo o meu tempo, quando eu trabalhei agora no Governo Federal, o meu ministro sabia exatamente... Pelo contrário, ele pedia: “Liga pro jornal, para o seu amigo Rodrigo, e peça pra ele publicar um artigo.” Então era uma coisa feita em aberto. Mas eu sempre me entendi como um representante do movimento ambientalista que estava carregando as minhas pedras dentro da burocracia, porque alguém tinha que fazer. Não digo que seja esse trabalho sujo, mas esse trabalho difícil, digamos assim. Porque tem muita negociação, tem muita coisa que você tem que encontrar, criar uma alternativa. A gente propôs, ainda na década de 70, no governo do Paulo Egídio, a criação do Conselho do Meio Ambiente. Aí a burocracia foi... Quase saiu. Não saiu. Daí, quando o Montoro foi eleito, veio a ideia do Conselho do Meio Ambiente. Então o Consema [Conselho Estadual do Meio Ambiente] foi instalado, foi o primeiro conselho representativo de meio ambiente a ser colocado no país. Eu aprendi muito com o Montoro – isso eu já estou falando de 83, quando se criou o Conselho Estadual do Meio Ambiente, que está aí consolidado com “n” incumbências. O Montoro: “Vamos ouvir as pessoas, vamos ouvir todos os setores, vamos chamar os empresários, chamar isso...” Realmente foi a primeira vez que se formou um fórum para discutir essas coisas como um todo. E eu já estava lá com uma série de coisas pra fazer. “Vamos proteger a Mata Atlântica, vamos fazer a APA da Serra do Mar.” Fomos com essa ideia do corredor, etc. e tal, e o Conselho ajudando a gente... Quer dizer, o Conselho, uma vez que era formado, na maioria, por pessoas preocupadas com essa questão, teve um papel... Tem um papel muito importante até hoje, mas teve um papel muito importante nessa coisa da formação dessa organização interna do governo, que resultou na Secretaria do Meio Ambiente do Estado.

P/1- E quem fazia parte, nessa época, do Conselho?

R- Olha, eu queria te fazer uma cronologia, nós pulamos de 80 pra 83, né? Eu trabalhei na Juréia, depois fiquei o representante da Secretaria do Meio Ambiente em São Paulo; era eu, dois estagiários e mais uma secretária, porque realmente, a condição era muito pequena. E ainda acoplamos o Paraná pra ajudar essas questões do Lagamar. Houve uma época que nós estávamos sem apoio nenhum, o Paulo Nogueira arranjou uma sala emprestada da própria empresa dele. Eu trabalhava lá na empresa dele. Um dia ele me chamou na sala dele, ele tinha vindo de Brasília pra me apresentar uns ecologistas que estavam lá. Estava lá o Fábio Feldman, que eu conheci nesse momento, início da década de 80, reivindicando a proteção de uma área em Atibaia, Pedra Grande de Atibaia. Nós nos conhecemos, ficamos amigos e nos encontramos em outros embates. Na mesma época, um pouco antes, durante a campanha do Montoro, ele me chamou; quando o Montoro era senador, fui colega do filho dele no ginásio. Enfim, conhecia a família fazia tempo. E ele pedia sempre uma série de coisas. Quando eu estava trabalhando com Paulo Egídio, eu passava uma série de sugestões pra ele; ele fazia pronunciamentos no Congresso pedindo a proteção disso, a proteção daquilo, contra as usinas atômicas... Ele se posicionou contra as usinas atômicas. Eu virei uma espécie de assessor informal. Enfim, pelo contrário, eu estava muito gratificado de ter uma voz de um senador reconhecido, que falava dessas questões. E quando o Montoro foi fazer a campanha dele, ele criou também uns grupos de diversos setores para planejar o governo, fazer o plano de governo, e me chamou e perguntou se eu toparia – eu era funcionário do Governo Federal – fazer o plano do meio ambiente. Nós estávamos em 82, já era uma época bem mais suave do que a década de 70. Falei: “Claro, senador, com muito prazer.” Então fui recambiando. Ele falou: “Convide quem você quiser e quem você puder, nós queremos a maior quantidade, porque nós estamos fazendo campanha e plano de governo ao mesmo tempo.” Falei: “pois não.” Criamos um grupo e fomos convidando, quem chegasse... E ele ia mandando gente, mandava um cara da Polícia Florestal que ia falar com ele... Falava assim: “Procura o Zé Pedro.” O grupo começou com dois, terminou com 100 pessoas, ainda mais que ele estava quase ganhando, então tinha todos os tipos de pessoas. Eu procurei por todos os ecologistas e tal. E, nessa época, ele me apresentou o Robert Klabin, que hoje é o presidente da SOS Mata Atlântica, e o Roberto Klabin disse: “Não, eu estou muito preocupado lá, com a Ilha do Cardoso. Falei: “Claro, claro.” Nós marcamos uma conversa, conversamos muito, ficamos amigos. E então foi juntando. Quem eram as pessoas? Eram muitas pessoas, mas eu estou destacando mais aquelas que estão relacionadas à questão, digamos assim, da Mata Atlântica. Houve um determinado momento que existia uma latência de que se precisava fazer uma série de coisas e de que se precisava de uma posição mais eficiente da sociedade civil. Isso não era uma invenção nossa, era uma necessidade que aparecia. A gente estava trabalhando com o WWF, que vinha aqui pro Brasil preocupado com a proteção da Mata Atlântica. Começaram a falar: “Não, essa mata é muito importante, é preciso proteger os corredores.” A gente estava fazendo a proteção dessa mata muito importante nos corredores, juntou a fome com a vontade de comer. A gente começou a perceber que a nossa intenção não só era importante pra nós, como era importante pro mundo, e que tinha, realmente, uma ressonância e um significado que a gente desconfiava importante e que estava se consolidando. Não só em formação e apoio político, mas em algum recurso. Nunca suficiente, mas chegava dinheiro: “Ah, precisa construir duas casas na Juréia. Está aqui o dinheiro?” Falei: “Opa! Então vai dar pra fazer, certo?” Depois: “Precisa não sei o que lá? Precisa fazer um estudo? Precisamos publicar um plano de ação pra Mata Atlântica?” “Precisamos publicar um plano de ação pra Mata Atlântica!” Só estou encurtando uma longa história, porque aí passa vários outros assuntos. Existia um plano de ação que foi feito pelo WWF e pela UICN [União Internacional para a Conservação da Natureza], que era estratégia mundial da conservação. Essa instituição, a União Internacional de Conservação da Natureza e o Fundo Mundial da Natureza – a UICN e WWF – lançaram uma estratégia mundial pra conservação, e nós traduzimos essa estratégia e publicamos no Governo de São Paulo. Então a gente estava ligado. Aí foi lançada a ideia do desenvolvimento sustentável, que hoje é uma ideia consolidada, mas que à época era assim: meio ambiente contra a civilização. Quer dizer assim, a indústria versus os hippies – quer dizer, “o mundo é mau e toda a humanidade vai ser destruída pela indústria, então nós temos que voltar ao século XIX, vamos voltar pra terra, vamos fazer comunidades rurais...”. Somando e subtraindo, as pessoas mais preocupadas com isso conceituaram o seguinte: “Olha, a Revolução Industrial é irreversível. Você não pode parar as indústrias que todo mundo vai morrer de fome, porque hoje você tem um processamento que está lá. Mas a indústria que destrói não é desenvolvimento, é carnificina, é roubo, é... Enfim, você estar se locupletando dos bens naturais. A indústria tem que produzir água limpa, céu claro e produto que seja bom para a saúde. Não é ganhar dinheiro que é o fruto da indústria, mas é servir a humanidade.” Então surgiu o conceito de que havia uma indústria boa, a indústria dentro do desenvolvimento sustentável. E isto foi lançado nesta estratégia que foi publicada. Nós tivemos, através do convite do Paulo Nogueira, a honra de sediar em São Paulo a reunião da Comissão Brundtland, que foi criada pelas Nações Unidas para discutir essa questão para a América Latina. Então eu tive que carregar esta brincadeira de fazer a reunião da Comissão Brundtland, que foi feita na Cetesb em 1985. Essa Comissão pegou esse conceito do desenvolvimento sustentável e das relações comerciais entre países desenvolvidos e não desenvolvidos e colocou no seu relatório que foi aprovado pelo plenário das Nações Unidas. Quer dizer, houve, em 72, Estocolmo; todo mundo dizia: “Olha, está tudo resolvido, agora nós temos a Carta do Meio Ambiente e todo mundo tem direito a meio ambiente sadio, então vai se resolver.” Em 82, quando olharam para o mundo, estava bem pior. Daí criaram a comissão Brundtland, que disse: “Olha, não é dizer que tem que ter meio ambiente sadio, tem que dizer como é que esse meio ambiente vai ficar sadio.” E fez essa Comissão, que fez essas reuniões, essas audiências públicas. Teve audiência pública em São Paulo, tudo isso. Foi um verdadeiro calabadal de gritarias, tinha manifestação na rua, já estávamos em outra situação. Depois nós tivemos a reunião do Rio, que já foi uma reunião sobre meio ambiente e desenvolvimento sustentável, a Conferência do Rio, e que resultou em uma série de convênios: Convenção da Diversidade Biológica, a Convenção do Clima, que tem aí o Protocolo de Kyoto

– que também não resolveu as coisas... A poluição continua piorando, mas ela está mais objetivada nessas questões como um todo. E tinha várias pessoas que estavam trabalhando nisso, tinha o grupo da Oikos, onde estava o Klabin e o Fábio; tinha o pessoal do Jornal da Tarde, que estava o Rodrigo e o Randau; eu, que estava no governo com as pessoas que estavam trabalhando comigo, como o Clayton, a Adriana e vários outros que estão aí. Um belo dia surgiu a ideia de que tínhamos que criar uma Fundação. A mim coube juntar o Klabin – que não conhecia o Rodrigo – na minha casa pra oferecer um almoço para eles se conhecerem.

A gente começou a conversar: “Vamos fazer...”, foi juntando aquela força. Eu, como estava no governo, pra não contaminar, era o que menos fazia, porque era uma coisa de ONG. Se bem que o governo Montoro, nessa época, não contaminava muita coisa. Mas eu fiquei parte desse processo da criação da SOS desde o seu início, porque estava nesse processo das pessoas que estavam mexendo nisso. Eu estava criando a Estação Ecológica da Juréia, depois virei assessor do governador para meio ambiente. Todos eles já participavam dessa discussão do Consema, cada um tinha um papel lá: eu era o vice-presidente, o secretário adjunto, e o governador era o presidente. O governador não ia, eu ficava presidindo as reuniões. Daí a gente fazia uma pauta conjunta, a pauta era decidida. Vinha o representante das ONGs, metia o pau no governo, o representante do governo defendia; o Randau estava lá, noticiava no Jornal da Tarde... Então como toda a política tem o seu ritual, e cada um representa o seu papel. Com isso a gente discutia tudo, mandava carta pra Índia... O que estivesse na pauta, a gente ia liquidando. Agora, nessa história, juntaram-se esses protagonistas, e criou-se então a Fundação SOS Mata Atlântica. Na época eu tive a honra de ser fundador e ajudei nessa junção de coisas, coisa que nem faria hoje, porque hoje quem está no governo não pode, oficialmente, estar numa ONG, porque a ONG é uma entidade que é diferenciada. Tanto que eu estava no conselho da SOS quando eu fui trabalhar no Governo Federal, foi sugerido e eu saí do conselho do WWF que eu ajudei a criar também. Era uma época de criação de ONGs, então eu participei da criação da SOS, da criação da Funatura, da criação da Biodiversitas e umas dezenas de ONGs por aí. “Vamos criar uma ONG?” “Vamos!” Bom, eu criei umas duas, criamos essas coisas todas. Então essa é a história do início dos anos 80.

P/1- Assim, voltando um pouquinho, porque aconteceu antes da Fundação, eu queria que você falasse um pouquinho da Rio-Santos.

R- Hum... Eu queria falar das estradas em geral, mas em particular da Rio-Santos. Eu contei para vocês que, quando menino, eu ia pra Ubatuba, Caraguatatuba, São Sebastião, são as minhas lembranças de praia mais antigas. Existia uma estrada que saía da Dutra, que era uma faixa única, de São José dos Campos até Caraguatatuba, em terra, e uma estrada em terra de Caraguatatuba a São Sebastião; não existia estrada entre Caraguatatuba e Ubatuba nem entre Ubatuba e Paraty, nem entre Paraty e Angra dos Reis, nem entre Angra dos Reis e Mangaratiba. Então, no decorrer desses felizes 20 anos, eu me lembro que, quando eu era criança, a gente saía de Caraguatatuba e ia pra Ubatuba pelas praias, de jipe, não era carro comum. Parte a gente ia subindo e descendo por estradinhas e chegava até Ubatuba. Depois você subia pela velha estrada de Mulas do Café pra Taubaté, que também tinha uma estrada de terra, que levava horas, talvez dias, que às vezes você não passava. Foi reaberta uma estrada, no final da década de 50, entre Guaratinguetá e... Existia uma estrada até Cunha, de Cunha até Meio da Serra e depois foi reaberta uma estrada de Cunha até Paraty. Paraty só era acessível por barco de Mangaratiba, de Mangaratiba ao Rio de Janeiro por trem, ou, se você quisesse, subia, porque existia uma estrada de Angra, que foi transformado num porto importante, até a Dutra também. De paralelepípedos, em parte não asfaltada. E quando eu era moleque – me lembro disso – a gente ia pra Ubatuba, de repente chovia, o rio enchia, você não passava mais o rio, ficava preso. Tinha carro que ficava boiando. E isso também acontecia, até recentemente, entre São Sebastião e Santos, que essa estrada foi asfaltada na década de 80. Começaram a fazer a Rio-Santos lá também, e lá não fizeram. Mas essa Rio-Santos, que ia ser toda de Rio a Santos, na verdade foi feita de Ubatuba até o Rio. O resto ficou a estradinha velha, que foi asfaltada pelo Jânio Quadros em 1961. Aí realmente o asfalto chegou lá no litoral norte, com as suas maléficas consequências, porque sem planejamento nenhum, uma especulação imobiliária terrível. As praias mais bonitas do Brasil, que estão em Ubatuba... Há outras quase tão lindas quanto, mas enfim, existe praia mais bonita que a praia do Lázaro? Porque uma ocupação indevidíssima, poluída e tal... Recomendo a qualquer um de vocês que vão à praia do Lázaro, que não existe cenário mais bonito no Brasil. Talvez a parte de trás da Ilha Bela e alguns outros lugares tenham sobrado aonde a estrada não chegou. Mas eu, quando era moleque, – estava então contando – vi isto começar a acontecer. E entre Paraty e Ubatuba não tinha estrada, tanto que era um dos desafios da minha adolescência e juventude, os moleques tinham que fazer a pé esse trajeto. Eu fui acampar com o colégio na década de 50 ainda, 59, 60, em Camburi, em Picinguaba, que eram vilas isoladas do mundo, onde o presidente era o Getúlio Vargas. Outras informações – que são lembranças muito interessantes da vida caiçara, de participar –: eles usavam arco e flecha, ainda a molecada brincava com bodoque. Aprendi a usar bodoque... Eles não caçavam com arco e flecha, que eles não tinham muito mais caça, mas a molecada caçava passarinho com arco, que é uma flecha que você atira uma pedrinha e tal. E eu, pra minha surpresa, me desenvolvi como exímio atirador de bodoque. Não matava passarinho, mas ficava brincando de derrubar fruta e outras coisas assim. Aí, na década de 60, eu entrei na faculdade e meu pai armou uma excursão a Paraty de carro, que ele já tinha ido uma vez. Nós fomos em um carro com tração nas quatro rodas, e conseguimos chegar, uma epopeia; chegamos a Paraty, um paraíso na terra. Cidade muito parada, bastante destruída, bastante decadente, mas linda no sentido da pureza arquitetônica... Eu era estudante de arquitetura. E visitamos todos aqueles lugares onde tinha vida caiçara. Hoje tem mais mata no lugar, porque não tem mais roça de mandioca, mas enfim, era uma pureza no sentido da vida que lá se levava. Fizemos depois, de barco, pra Angra, pra Mangaratiba e pro Rio de Janeiro de trem. Eu fiz isso em janeiro de 65, já lá se vão 40 anos. Passava por Ilha Grande, tudo isso. Quando construíram a Rio-Santos, foi uma das maiores avalanches que se fez. É um teorema infelizmente irretrucável, que é válido para a Mata Atlântica, para a Amazônia e pra outros lugares. Abriu a estrada, em um país como o nosso, o lugar deteriora-se. Na época, em 71, se criou o Parque Nacional da Bocaina como uma contrapartida do Governo Federal à abertura da estrada que iria se fazer e que se fez. O Parque da Bocaina, 30% dele está perdido hoje, porque foi invadido, etc. e tal. Mas foi um grande mérito, e é uma maravilha que se tenha criado o Parque da Bocaina, que ainda sobrou 70% daqueles quase 100 mil hectares. Bom, eu tinha um sítio que meu pai comprou lá em Paraty... Tenho um sítio que é o lugar mais lindo de Paraty, chamado Boa Vista, que virou um barranco, simplesmente. Era um lugar paradisíaco, você via a cidade na sua frente. Fora o crescimento descontrolado. Quer dizer, Paraty hoje é uma cidade que está beirando os 50 mil habitantes. Na época tinha cinco, seis mil. E não é uma característica de Paraty, é uma característica do Brasil. Quer dizer, São Paulo, Paraty, Caraguatatuba, o que você pegar tem um crescimento explosivo e regiões que são extremamente importantes sob o aspecto turístico: extremamente valorosas, extremamente rentáveis e que podem trazer benefício para a população acabam sendo transformadas num turismo muito destrutivo; fica poluído, derruba mata, não se preocupa com a paisagem. Então, as mesmas coisas poderiam ser feitas... Aliás, é uma das coisas que têm que ser feitas hoje, ao longo dessas estradas: ser replantado. Porque parece que você atravessa um favelão, e é uma questão apenas de cuidar da paisagem. E não estão sendo feitas, mas um dia terão que ser feitas, porque a gente acredita, com o otimismo que nos move, que isso vai poder acontecer. Agora, a forma como a Rio-Santos foi construída – não apenas o fato de ela ser construída –, foi extremamente destrutiva. Praias foram arrasadas, a Praia da Boa Vista... Tinha lá um caiçara que morava, que um dia teve que sair correndo. A gente comprou do caiçara e o cara continuava morando lá, tomando conta, pescando como sempre pescou... Porque um dia começou a cair pedra em cima do telhado dele. Então foi realmente uma forma extremamente destrutiva. Quer dizer, 30 anos depois, você ainda vê grandes cicatrizes. Com o tempo, a mata vai se recuperando aqui, a coisa vai diminuindo, mas é uma estrada que não era necessária, sob o ponto de vista, digamos assim, da infraestrutura brasileira. A época que foi construída pesou bastante – talvez não seja a única razão, mas pesou bastante – a questão de que se queria construir a usina atômica de Angra. Então precisava ter um acesso, tanto que esse trecho foi o trecho que foi construído. E realmente, valorizou imensamente as áreas de propriedades que existiam por lá. Quer dizer, criou-se Laranjeiras, vários outros condomínios de alto gabarito, como Porto Belo e outros tantos em Angra, facilitou o acesso da vida de muita gente... Mas não teve planejamento, foi construída de uma forma extremamente destrutiva. E eu pude participar das tentativas, até hoje vitoriosas, de evitar que a gente tenha a mesma coisa acontecendo no litoral sul, porque vai lá um sujeitinho com um bulldozerzinho já juntando uma estrada entre São Paulo e Paraná, a qual, pelo menos eu e outros ecologistas, não somos contra, desde que haja, realmente, a implantação daqueles parques. Enquanto o Parque de Jacupiranga estiver sendo destruído – que é o segundo maior parque do país da Mata Atlântica – do jeito que está sendo, é realmente um absurdo botar uma estrada para acabar. Aliás, foi uma estrada que acabou com grande parte do Parque de Jacupiranga, que foi aberta na década de 70, entre a BR-116 e o município lá de Barra do Turvo. Realmente, a partir daí, a destruição foi gigantesca. E são estradas que estão destruindo a Amazônia também. Quer dizer, a Amazônia não é mais uma floresta, são vários pedaços grandes de uma floresta que até recentemente – até duas décadas atrás – foi contínua. Porque essas estradas já mostram, nas imagens de satélite, que são manchas de florestas isoladas por estrada, o que isola a circulação de animais, o ciclo gênico. E essa questão de manter esses corredores é absurdamente essencial. Então, só pra não deixar parado aí, eu advogo muito que haja um zoneamento ecológico e econômico da Amazônia, como a gente, de certa forma, quase atingiu – ou está perto de – na Mata Atlântica, através da Reserva da Biosfera, que foi um instrumento que a gente achou, de dizer: “Esses corredores não só têm que ser mantidos, como têm que ser recuperados”. Isso tudo é algo que ainda está no campo da retórica, mas está se sedimentando enquanto ideia. Já está sedimentando, digamos assim, mais ou menos São Paulo, Paraná, Rio de Janeiro, Santa Catarina. E está se sedimentando no Nordeste enquanto ideia de que você tem que replantar, não só proteger. Infelizmente a destruição continua, e a Rio-Santos é um exemplo da destruição. Eu, que fiz a pé entre Paraty e Ubatuba, conheci algo que, infelizmente, se perdeu e que era absolutamente maravilhoso. Mas não é maravilhosinho, não. Quer dizer, eu tive o privilégio de conhecer algumas paisagens notáveis, porque trabalho com isso. Falta conhecer uma paisagem lá no Vietnã, que é conhecida como lindíssima. Pukhet acaba de ser destruída por esse grande tsunami, por essa onda gigantesca. Mas eu fui à Indonésia, lugares maravilhosos. Eu estava trabalhando na Juréia, era o administrador da Juréia, tirei umas férias. Falei: “Puxa, morei na Califórnia, não conheci o Grand Canyon.” Fui pro Grand Canyon visitar meus amigos e tal, tudo isso. Falei: “Nossa, que lindo o Grand Canyon.” Daí estava lá, tinha um cara que tinha estudado comigo, grego, que falou assim: “Ah, vamos lá pra Grécia, minha família tem um arquipélago na Grécia.” Fui lá no arquipélago, uma coisa maravilhosa, tinha pertencido à Rainha Catarina da Rússia, coisa papa fina. Falei: “Nossa, que maravilha!” Voltei pra Juréia, olhei para aquilo tudo e falei: “Mas a Juréia é dez vezes mais maravilhosa!” Porque tem essa coisa da vida, da mata, essa coisa dessas águas. E não só mais importante biologicamente como paisagisticamente: nós temos as paisagens mais lindas do mundo nessa região do litoral, e nós não temos tanta consciência disso. Quer dizer, hoje as pessoas vão lá, gostam e tal. Mas isso não tem igual nem melhor no Taiti. É uma maravilha o Taiti, é uma maravilha a Indonésia, mas aqui estão coisas que valem fortunas no aspecto do turismo, que precisam ser transformadas em benefício pra população.

P/1- Zé Pedro, vamos voltar um pouquinho.

A gente começou a falar da fundação da SOS Mata Atlântica. Queria que você falasse um pouquinho dessa reunião que aconteceu na Ilha do Cardoso e se você participou.

R- Pois não. Participei sim. Foi bem engraçada... Bom, tinha essa latência, todo mundo queria fazer essa Fundação. E aí se armou, então, essa discussão, se armaram duas reuniões na Ilha do Cardoso: uma reunião que era pra fundamentar a SOS e uma reunião que era pra fundamentar a adesão do governo à proteção da Mata Atlântica. Antes da Ilha do Cardoso, o Randau chegou a publicar um dossiê Mata Atlântica – eu devo ter alguns, uns dois ou três exemplares ainda em casa –, e esse dossiê Mata Atlântica era uma reunião das informações a respeito da Mata Atlântica pra justificar a criação da SOS. Nessa reunião, então, se fez a discussão, nesse seminário, de como seria a Fundação e qual seria a política de governo. Existia a ideia de assinatura de um convênio São Paulo-Paraná pela proteção do Lagamar, Iguape, Cananéia, Guaraqueçaba, Paranaguá, que é, até hoje, a região mais importante de remanescentes de Mata Atlântica, que foi reconhecida agora, há dois anos, três anos, como patrimônio mundial, inclusive. Essa área, então, era a área que a gente queria preservar. Envolveu o Paraná... Já tinha a APA de Guaraqueçaba, Estação Ecológica de Guaraqueçaba, o Parque da Ilha do Cardoso, tudo isso. Mas precisava ter um compromisso maior dos governos, então a ideia era juntar o Montoro e o [Beto] Richa e assinarem o convênio de proteção do Lagamar. Tudo isso estava previsto para acontecer na mesma situação, e a minha função era, depois de ter feito todas as preparações, as discussões e tal, levar o Montoro. Eu era assessor especial do governador e a gente queria que ele criasse a Secretaria do Meio Ambiente. A reunião aconteceu e eu fiquei em São Paulo de estafeta para ir com o governador. No dia de ir pra lá, o governador me chamou: “Nós vamos?” “Vamos, governador?” “Mas o Richa vai?” Falei: “Acho que vai, governador; se o senhor for, o Richa vai” (riso). “Mas o Paulo Nogueira vai?” “Não, o Paulo Nogueira está pra vir...” Mas estava. “Mas o Rodrigo foi?” “Foi” “Mas eu tenho não sei que lá...” “Está bom, a gente espera, governador”. Fiquei esperando. Nove horas da manhã, dez, 11 horas, ele tinha um despacho. Quando chegou meio dia eu já comecei a ficar preocupado. Naquela época não existia celular, essas coisas, não se falava com a Ilha do Cardoso. “Então vamos.” “Ah, vamos, mas eu vou almoçar.” “Então está bom, então vamos almoçar.” Almoçamos. Daí a pouco, não sei que lá. Quando chegou duas e meia da tarde, eu falei: “Bom, agora vou me plantar aqui na sala do governador até ele sair”, tinha um despacho e outro despacho. “Mas é pra ir mesmo?” Falei: “Governador, é imprescindível que o senhor vá, vai ser uma decepção...” “Então vamos”, chamou não sei o que: “O senhor acha que eu devo ir?” “Ah, eu não sei...”. Um assessor de imprensa achava que não devia, outro que não, e eu lá, contando meus dedos: “Não, governador, tem que ir mesmo, de qualquer jeito.” “Então vamos. Tem que ir?” “Tem.” “Então vamos”. Pegamos o helicóptero, fomos lá. Chegamos lá, todo mundo ficou muito feliz, fizeram uma demonstração. Aí falou assim: “Então vamos mandar o Richa...” Mandou o helicóptero buscar o Richa, veio o governador do Paraná, assinaram o protocolo, foi uma festa retumbante, ele prometeu que ia criar a Secretaria do Meio Ambiente. Enfim, e nesta reunião, da qual a minha participação era a de carregar as pedras do governo, eu consegui cumprir a minha função, que era levar o governador, nessas peripécias que se fazia. Depois o governador foi embora, eu fiquei lá com eles acertando as questões. Mas eu participei da reunião, da parte oficial, porque era a minha função. A outra parte você vai ter que pegar os outros protagonistas pra te contarem, mas essa reunião é uma reunião muito importante, porque eu acho que dela resultou uma valorização do governo do estado do Paraná, e pela primeira vez a junção de dois estados que vai resultar depois num Consórcio Mata Atlântica e várias outras coisas... Na Reserva da Biosfera, no Patrimônio Mundial, que é uma história que a gente ainda pode depois enunciar pra você ou contar em detalhes. Mas essa reunião foi em 87, e foi, digamos assim, o pontapé final na SOS, foi a formalização final da criação da SOS, que depois foi questão de assinar ata, registro, tudo isso. Ata essa que parece que não se formalizou. Ou todo mundo assinou depois, não sei. Enfim...

P/1- Não, não vi.

R- Você tem essa ata aí com você? Porque eu tinha...

P/2- Comigo não.

R- Eu tinha essa ata, mas você sabe que pegou fogo na Secretaria do Meio Ambiente, né? E meu arquivo, boa parte dele se foi para os ares.

P/1- E essas pessoas que estavam na fundação, da SOS, eram as mesmas pessoas que participaram do Pró-Juréia?

R- Não. O Pró-Juréia foi criado pelo Capobianco e outros, e alguns sim, outros não, certo? Essa Pró-Juréia teve uma atuação muito importante na defesa da Juréia, que era o seu objetivo. A Juréia tinha sido criada pelo Montoro como uma Estação Ecológica, mas ele não havia declarado as áreas de utilidade pública para desapropriação. Tinha três movimentos, quer dizer assim, tinha o movimento do Zwarg, pela proteção do Rio Verde... Depois tem uma série de outros detalhes, inclusive uma empresa que queria fazer um grande empreendimento imobiliário no Rio Verde, tal. Tinha que discutir isso com o Condephaat, “n” questões aí. Mas, resumindo, no governo Montoro, existiam os 24 mil hectares que tinham sido desapropriados e não pagos pelo governo federal, que o governo federal queria dar de volta para os proprietários, e que nós queríamos que o Estado assumisse essa desapropriação. E aí estava a questão de criar logo a Estação Ecológica. Como eu conhecia bem a região, falei: “Não, não pode preservar só a Juréia, tem que preservar a Juréia e os Itatins, porque é uma coisa muito maior.” Quer dizer, na verdade eram cento e tantos mil hectares de mata que tinha lá, dos quais eu consegui amealhar 85 mil. Na época tinha um negócio de uma colonização lá, de uma reforma agrária, e os bons ensinamentos do Paulo Nogueira que dizia: “Não pegue tudo que dá confusão, deixe sempre um pouquinho pra fora, pra se alguém disser qualquer coisa, você tem lá ‘não, não estou pegando tudo, o que é isso? Tem lá tudo isso...’”. A gente pegou tudo o que podia, toda a vertente do Itatins, que são tão maravilhosas quanto a Juréia. Ou talvez mais importantes, porque maiores, sob o aspecto biológico, já que macaco não precisa de vista pro mar. Aliás, de lá também tem uma vista maravilhosa que você vê a Juréia na frente. E, na Assembléia, existia uma proposta de lei, do Lara, que hoje é o presidente da Cetesb, de proteção da Juréia, também. Só que não estava determinado; quer dizer assim, era um projeto: “Vamos proteger, vamos criar o Parque da Juréia.” Não sei se era Parque ou Estação Ecológica, o que fosse. E o Capobianco criou essa Pró-Juréia, junto com algumas pessoas. Essas pessoas, então, brigavam pela questão na Assembléia. Um dia nós tivemos uma reunião na Assembléia, eu, como assessor do governador, falei: “Não, não pode ser só a Juréia, tem que ser a Juréia e os Itatins.” “Não, porque só Juréia, Itatins...” Daí o Lara entrou assim: “Não, entre o menor e o maior, fiquemos com o maior.” Então o Paulo Nogueira brinca e diz: “O José Pedro é espaçoso”. “Eu não sou espaçoso, Doutor Paulo, a natureza que precisa, realmente, respirar, certo?” Aliás, a Juréia é um excelente exemplo de trabalho, porque ela começou com uma área pequena, tombada, depois ela virou uma Área de Proteção Ambiental, que é uma legislação que permite o uso. Mas, na verdade, restringe uma série de coisas, usos que sejam sustentáveis. Depois ela virou Estação Ecológica, que é uma proteção definitiva, então escalonamento no sentido de que ela foi sempre mostrando importância que ela merecia mais proteção. Depois ela virou Reserva da Biosfera, e depois virou Patrimônio Mundial, que é uma declaração ainda mais definitiva de proteção. Então ela tem cinco estratos de proteção, e algumas pessoas criticam, algumas criticam a mim: “Por que cria uma coisa em cima da outra?” Não é uma coisa em cima da outra, a gente vai avançado. Sabe, era possível o tombamento? Tombemos. Pode um pouquinho mais, vamos lá. Então, conforme vai abrindo a brecha, a gente vai entrando. Mas a Pró-Juréia teve um papel muito importante de brigar com o governador, no sentido de que queria não só o decreto criando a Estação, mas declarando as terras de utilidade pública para desapropriação. E não éramos desconhecidos, mas no grupo que criou a SOS, até onde a minha memória chega – e eu vou, lamentavelmente, cometer algumas injustiças –, estavam o Rodrigo Mesquita, o Randau, o Roberto Klabin, o Fábio Feldman, a Adriana Mattoso, eu também estava nessas reuniões, como um todo. E deve ter mais uma meia dúzia de pessoa aí, que se você me der o nome... Que assim, de supetão, você me perguntando... O Capobianco entrou depois, na segunda ou terceira reunião. Outras pessoas entraram depois também. Eu não sei se a Sílvia Macdowell estava nessa também, eu preciso me lembrar um pouco agora, forçar um pouco a memória aqui para me lembrar essas coisas, que já lá se vão 18 anos, está certo? Espero não ter cometido nenhuma grande injustiça. O Paulo Nogueira também veio já logo na segunda ou na terceira reunião, ele ficava em Brasília, fazia parte desse conjunto, como um todo. Mas a Pró-Juréia era uma coisa independente, era uma ONG que não sei se foi criada antes ou depois, mas no mesmo período, com o objetivo específico da Juréia. A Mata Atlântica, a SOS Mata Atlântica teve uma discussão uma época se era Floresta Atlântica ou Mata Atlântica. Eu defendia – fui voto vencido – que era Floresta Atlântica, porque eu achava que, internacionalmente, ia ficar mais, Forest, Floresta, são mais parentes. Mas o pessoal: “Não, tem que ser Mata Atlântica.” Falei: “Então, está bom, Mata Atlântica.” Mas depois a gente conseguiu pôr na Constituição a Serra do Mar, a Mata Atlântica, etc. Mas, quando foi criada a SOS, a ideia era ter uma visão ampla da Mata Atlântica no país, como um todo; quer dizer, a gente já estava com ambições, mas o nosso trabalho estava mais restrito, vamos dizer assim. O que era conhecido à época, o que tinha algo que estava em luta no momento era o Lagamar, São Paulo-Paraná, e um pouco da questão de Parati. O resto ainda eram horizontes longínquos que a gente não tinha ainda conseguido chegar. A gente sabia da existência, mas estava discutindo.

P/1- Zé Pedro, assim, várias pessoas denominam essa época de “tempos heroicos”, essa da Fundação da SOS, da Pró-Juréia. Como é que você vê isso?

R- Olha, eu acho que deve ser muito gostoso a gente ser herói. Eu não acho que a gente era herói, não, acho que a gente era batalhador, mesmo. Quer dizer assim, há algo de... A gente pode falar de heróico no sentido de que, realmente, tinha muito pouca estrutura. Era um começo, né? Eu não diria de tempos... Vamos baixar um pouco assim, tempos épicos, tempos assim, de construção. Aliás, toda época é de construção. Mas, na verdade, se você for olhar para trás teve gente que lutou durante... Eu, lá nas minhas pesquisas em Berkeley, achei um trabalho chamado “Mapa Florestal do Brasil”, publicado em 1911, do Luís Felipe Gonzaga de Campos, que é um exemplo maravilhoso de trabalho, em que ele, sem nenhuma estrutura, sem nenhuma imagem de satélite, faz um pré-mapeamento, inclusive juntando as informações que existia, com a intenção de criar um arcabouço para criação das áreas protegidas no Brasil. Quer dizer, o heroísmo retrocede bastante, não está na década de 70. Mas, enfim, acho que são construções que vão sendo colocadas. Era uma época muito triste, muito chata, quer dizer assim, você tem o primeiro Parque Nacional que é da década de 30. O Código Florestal teve gente lutando desde 1915, 1917. Eu encontrei documentos do pessoal propondo um código florestal, teve que esperar até 1934 pra isso acontecer. Então tem uma determinação aí de uns antecessores nossos, que eu nem sei o nome da maioria deles, mas que devem ser louvados também. Eu considero isso um processo. Na verdade, eu me sinto parte de um processo que começou muito antes de eu nascer, e espero que vá vencer muito mais depois de eu morrer, entendeu? Porque tem muita coisa a ser feita. Não é uma coisa assim... Um Parque Nacional não se implanta em cinco anos, é um processo de cinco, dez, 15 anos, dentro das nossas circunstâncias, da nossa verdade histórica, política e econômica. Quer dizer, alguns parques têm a sorte de a gente poder criar ele, eu tive o privilégio de participar da criação do Parque do Tumucumaque. Foi uma das piores lutas, das mais aguerridas lutas que eu tive, que faz três anos. Eu não sei se isso é menos heróico ou mais heróico do que aconteceu para a criação do Parque da Serra do Mar, que foi difícil, mas não tive que dialogar com as forças armadas brasileiras em peso no seu território. Foi uma discussão ampla, profunda e até amigável, sou amigo de todos eles. Mas eu acho que, se há heroísmo, há em todas as épocas. E eu acho que há muito de heroísmo e muito dessa luta, principalmente das pessoas se entregarem. Nesse aspecto eu acho que a gente pode dizer que é heróico, sabe? A pessoa colocar ou tudo ou nada, entendeu? “Vamos lá pra gente ver como é que acontece”. E o movimento ambientalista tem isso de beleza, de brilho, às vezes até de problema, porque as pessoas se colocam tão emocionalmente, que fica difícil recuar pra você fazer uma negociadinha aqui, outra ali. Uma pequena concessão, quer dizer, se você não pode o todo, consigamos os 85%. Quer dizer, a Juréia me ensinou muito nesse aspecto.

P/1- E quando começou a Fundação, que você começou a fazer parte, qual era a sua função? Você tinha um cargo?

R- Não, eu era Conselheiro. Eu continuava no governo, eu era Secretário de Estado. O Montoro tinha criado a Secretaria do Meio Ambiente, me convidou honrosamente, eu assumi a Secretaria do Meio Ambiente. A SOS é quase que gêmea em termos de período. A Secretaria foi criada em março de 87, eu não tenho o período da SOS exatamente, mas é aí, primeiro semestre de 87. Eu ia às reuniões, eu era conselheiro, dava palpites, e a gente tentava – eu pelo menos tentava – que com SOS a gente conseguisse não só uma abrangência mais ampla, do que apenas o estado de São Paulo, que precisava muitas coisas, mas a Mata Atlântica era mais do que isso, como que a gente pudesse fazer uma visão crítica, que dentro do estado você podia fazer limitadamente, visão crítica e aberta. Então surgiu a ideia de fazer o mapeamento da Mata Atlântica. Quer dizer, o que tinha sobrado da Mata Atlântica. Hoje a gente já sabe isso com quase que precisão. Ainda tem alguns vazios aí, mas enfim, isso é um processo também que há 18 anos está se aperfeiçoando. Então surgiu a ideia de que: “O que a Mata Atlântica, o que a SOS vai fazer?” Bom, a SOS precisa divulgar que é preciso salvar a Mata Atlântica. Então, denúncias, certo? Vamos fazer denúncias. Vamos fazer denúncia de uma forma científica, vamos fazer denúncia dizendo: “Olha, a Mata Atlântica...”. Existe esse mapa florestal, que o Instituto Florestal publicou na década de 80, que é muito importante também, mostra a Mata Atlântica do estado de São Paulo e como depois ela foi diminuindo. Você já deve ter visto isso, todos nós já vimos. E eu sempre quis que isso pudesse ser feito para o Brasil como um todo, e ainda não conseguimos. Já falei com “n” pessoas, com a SOS também, mas mapear o que sobrou da Mata Atlântica e como é que ela era antes, nós já chegamos a isto. Isso é uma informação importantíssima, que não se deve apenas à SOS Mata Atlântica, se deve a muitas instituições de pesquisa. Mas à SOS a gente deve a liderança. Então, definir o que a SOS devia fazer, é assim, a SOS – creio eu que esse é o principal objetivo dela até hoje – é proteger e recuperar o que sobrou da Mata Atlântica, dentro de uma visão socioeconômica, com respeito aos caiçaras, aos inúmeros moradores tradicionais e principalmente aos moradores mais antigos da Mata Atlântica, envolvendo indígenas, etc. e tal. Isso era uma visão que não existia na época, uma visão que hoje eu acho que está consolidada pra todo mundo que mexe com esse assunto. Então é uma visão vitoriosa, mas ainda é preciso muito heroísmo pra gente fazer, tem muita coisa pra fazer. A Mata Atlântica, no Nordeste... Aqui é uma desgraceira a situação da Mata Atlântica, no Nordeste é uma calamidade. Já existe, felizmente, uma consciência mais ampla, já existe até empresário civilizado que está falando em corredor de Mata Atlântica; mas refazer o corredor da Mata Atlântica, que eu acho que é inevitavelmente imprescindível, se a gente conseguir, é um processo de mais de uma geração.

P/2- Exatamente nesse ponto, na sua opinião, quais são as perspectivas pra Mata Atlântica?

R- Olha, eu não sabia se eu ia ver isto que esperava ver, mas eu tive duas notícias que me deixaram muito envaidecido, no aspecto não pessoal, mas no aspecto da luta do trabalho. Me deixaram muito comovido – pra usar o termo mais correto –, que foi uma que eu ouvi, há alguns anos atrás, de que a curva de destruição da Mata Atlântica no estado do Rio Grande do Sul tinha sido revertida. Então, em vez de estar sendo destruída, ela começou a recuperar-se em termos percentuais. Pode ser que isso não seja mérito do movimento ambientalista, pode ser que isso seja mérito, como dizem alguns, do fato de que a mecanização está abandonando as terras mais declivosas, então elas estão se recuperando. Possivelmente é um conjunto de fatores entre esses e outros que estão aí. E mais recentemente esse dado também foi atribuído ao estado de São Paulo, com alguma discussão política, mas eu acho que é um fato. Quando eu era moleque, a gente ia pra Santos, São Vicente, e a Serra do Mar estava muito depauperada. Ela já se recuperou muito. Grande parte do que a gente vê como floresta, hoje, achando que é floresta primária, já foi derrubada, totalmente ou em parte. Como a famosa Floresta da Tijuca, enfim, que ancorou a gloriosa cidade do Rio de Janeiro. Mas eu vi fotografias quando foi construído todo esse sistema com campos na Serra do Mar que hoje são floresta. Eu me lembro, quando eu era moleque, a minha mãe achava lindo que a Serra do Mar ficava inteira forrada daquela flor, que chamam manacá da serra, aquela quaresmeira de duas cores, que é característica de floresta em estágio inicial de recuperação. Hoje você vê menos dessas flores. Outro dia alguém estava reclamando: “Poxa, era tão bonita a serra antes.” Falei: “Não, não; está bonita agora, entendeu?” Quando para de ter a florada do manacá e ela está se recuperando, ao longo da Anchieta – não estou falando lá pro lado de Cubatão –, significa que a floresta já está num estágio superior de recuperação. Agora, nada se iguala à floresta primária, e nós continuamos a perder floresta primária. Esse dado de reversão da curva não é pra gente festejar não, é pra gente ir com muita cautela. Mas é um indicador de esperança, certo? O que vejo de perspectiva pra Mata Atlântica é a gente conseguir que essa consciência, aliada à repressão, no sentido de... Realmente, alcançamos a Lei de Crimes Ambientais. Hoje você pode ter consequências de cortar a mata, antigamente você cortava simplesmente, como uma fatalidade histórica, não estava nem na preocupação das pessoas. Mas a perspectiva é de realmente preservar o que está aí pelo aspecto fundamental que ela tem de vida. Quer dizer assim, eu acho que o que a Mata Atlântica significa... Por que, afinal das contas, a gente vai se abalar pra brigar tanto por proteger a Mata Atlântica? Porque é uma briga pela nossa sobrevivência; eu acho que é uma briga das mais distintas e das mais humanitárias, se a gente pode falar assim. Assim como alguns se comovem com as vítimas do grande maremoto, agora, da Ásia, do Oceano Índico, eu acho que a Mata Atlântica é uma situação mais grave do que a do maremoto. Porque, com todo o respeito, as 150 mil vidas humanas ou mais, que é realmente uma coisa absolutamente lamentável...

Alguns autores estão citando, inclusive, a definição de Kant de sublime; quer dizer, quando uma coisa ultrapassa o razoável vira o sublime, sublime no sentido do terrível ou no sentido do que te escapa à compreensão. Eu acho que a destruição da Mata Atlântica tem esse aspecto de terrível, de as pessoas não entenderam que nós estamos destruindo a fonte da vida, nossa, dos animais, etc. E aí está a água, está a biodiversidade, está uma série de coisas. A minha perspectiva, a minha luta toda, que eu continuo a fazer parte, é de proteção, realmente, desses corredores. Nós temos depois ainda, em 1985, o tombamento da Mata Atlântica; 1886 o tombamento da Serra do Mar no Paraná; depois a luta pela proteção desse corredor e a Reserva da Biosfera. Mas estamos muito longe... O ideal é o equilíbrio, recuperar a Mata Atlântica da região oeste de São Paulo, fazer com que os corredores juntem a Mata Atlântica, o Cerrado e a Amazônia. E as pessoas dizem: “Você é louco.” Falo assim: “Eu sou louco, felizmente.” Porque acho que isso é tão razoavelmente necessário pra mim, entendeu? Acho que não apenas pra mim, pra todos esses malucos que nós estamos mencionando aqui. Acredito que pra vocês também, entendeu? Coisa assim. Sem isso nós simplesmente estamos fadados àquela destruição histórica que estamos verificando acontecer, e eu acho que essa questão de mudanças climáticas, a questão da poluição, a questão das florestas, é uma luta apenas... É uma luta que está junta e que tem que... Acho que a consciência já se formou nas pessoas. Assim, essa época heroica – que alguns a chamam assim – foi uma época de conscientização. As novas gerações já têm isso embutido dentro da cabeça deles. Mas são dessas coisas, você toma... Quase que parece uma insignificância. Eu recebi uns amigos franceses e a gente estava passeando ali pelos Jardins. De repente o cara olhou pra cima, e viu assim, sabe um monte de fio saindo de um poste? Mas tinha assim, uns 200 fios saindo do poste, uma poluição, uma paisagem poluída. Ele falou: “Mas que coisa incrível.” Falei: “Pois é, você vê?” Falou: “Mas ninguém toma conta disso?” Falei assim: “As pessoas dizem que tem coisa mais importante que isso.” Parece um nada, né? Mas é o estágio de civilização. É tão melhor você morar numa cidade limpa, numa cidade bonita. Isso existe, só que em São Paulo a gente não tem consciência disso. A gente, de repente, mora numa cidade que é um caos, e se conforma com isso. Se você for... Não precisa ir pro Primeiro Mundo, ‘mundíssimo’, mas se você for pra uma cidade mais civilizada, existem meios melhores de morar que são passíveis de serem construídos. Nós temos que construir isso. Eu acho que a questão que você me perguntou é uma pergunta que não é pra mim, é pra todo mundo. Quais são as perspectivas de futuro? Se o mundo se civilizar, coisa que é difícil, mas parece que lentamente vem acontecendo... Ou seja, eu acredito numa evolução otimista e positiva. A Mata Atlântica está dentro desse processo civilizatório, a proteção, a recuperação da Mata Atlântica. Quer dizer, não só não deixar destruir, tanta coisa por fazer para a burguesia... Todo esse litoral norte, cheio de morros ainda pelados que é só você encher ele de ipês e... ‘Baratíssimamente’, sabe? Vai proteger pra todo mundo. Vai ficar uma florada maravilhosa, enche aquilo como fazem em Johanesburgo, que é um país muito açodado por problemas de manacás, de jacarandás, fica tudo florido. Vai valorizar, duplicar o valor dos seus terrenos, do próprio pessoal que vai fazer lá a custo de nada. Vamos, desde essas maquiagens paisagísticas, até cuidar da nossa ainda insuficientemente cuidada nação indígena. Você vai ver o que está acontecendo com os índios do sul da Bahia, é absolutamente deprimente. Estão lá, lutando por uma sobrevivência, num estágio de abandono. Não estou advogando no sentido de você fazer ato de caridade, é no sentido de dar dignidade pra esse pessoal. Eles são parte da mata, a mata é parte deles, são os primeiros a chegarem aqui, e poderiam – e podem – desfrutar disso como um benefício para eles, inclusive.

P/2- E Zé Pedro, assim, um ontem e hoje, né?









R- Ontem há quanto tempo, cara pálida?



P/2- Ontem na Fundação.

R- Sim.

P/2- Como é que você olha, assim, que as pessoas, o público, vê a Fundação SOS Mata Atlântica? Ela continua com o mesmo peso, as pessoas a reconhecem?

R- Primeiro eu queria fazer uma distinção, que é o seguinte: eu estive quatro anos em Brasília. Por incrível que pareça, São Paulo mudou bastante. Parece que não, vocês que estavam aqui esse tempo todo. Quer dizer, eu saí de São Paulo, voltei pra cá, é uma cidade que tem uma dinâmica... É a mesma cidade, os prédios estavam a maior parte nos mesmos lugares, as pessoas são as mesmas, mas há uma evolução. Eu acho que o mundo tomou uma dinâmica, como um todo, nesses últimos 18 anos, em que a SOS já ocupou um lugar mais importante no sentido de informação, divulgação, etc. Não no sentido apenas de ONG. Há muitas outras ONGs, felizmente, que foram criadas, que não existiam, e que assumiram essa luta pela Mata Atlântica em diversos locais. Dezenas de ONGs, certo? Então, com isso, a SOS, que era uma ONG mais distinta, também teve, digamos assim, a companhia... Não digo nem que é a disputa ou que seja qualquer coisa nesse sentido, mas a companhia. Tanto que existe hoje uma rede de ONGs de Mata Atlântica que são mais de 150, se não ultrapassou os 200 já. Agora, isso também é um produto positivo, não apenas da SOS, mas desse movimento no qual a SOS... Também o fato de ela ter brilhado, ou brilhar, também ajuda. Mas eu acho que a SOS tem mais espaço pra ocupar, certo? E também acho que o movimento ambientalista, neste momento, janeiro de 2005, está mundialmente um pouco alquebrado. Não sei se mundialmente pelas posições da presidência dos Estados Unidos tão conservadoras ou retrógradas ou, enfim, involutivas, né? Algumas andanças melhores na Europa, tudo isso. Mas eu acho que o movimento ambientalista também sofreu um pouco até com as posições do governo brasileiro, com essa questão do transgênico, o pessoal anda meio desanimado, sabe? A luta, ultimamente, as questões não estão prosperando como deveriam, como se imaginava e como se queria. Então eu acho que é uma hora excelente de um pouco de reflexão, de renovação e no sentido de ampliação também. As necessidades ambientalistas são vorazes, elas são intermináveis, quando você termina uma coisa, tem outra. Vorazes no sentido positivo. No dia que a gente conseguir fazer a estabilidade da Mata Atlântica, a gente terá mil outras coisas pra fazer, e isso é um processo absolutamente natural de qualquer ser vivo. Pesquisas científicas que faltam imensamente, etc. Eu acho que a SOS tem condições de assumir uma liderança maior do que aquela que está assumindo, se puder, também. Eu queria dizer que não é nenhuma crítica ao que está acontecendo. Eu acho que a SOS cresceu, tem um movimento fantástico, que é esse de filiação de sócios, mas movimento ambientalista quererá sempre mais. Se for possível fazer mais e a gente puder ajudar, temos que... Acho que o simples fato de que a gente está fazendo aqui, essa reflexão e essa discussão, já é uma grande questão positiva.

P/2- E das campanhas da SOS?

R- Olha, eu acho que todas elas são positivas. Na verdade, das campanhas da SOS, a que eu considero a mais importante acho que foi a primeira delas, e que continua até hoje, que é a campanha do mapa, da carta da Mata Atlântica. Até acho que a gente tinha que dar mais divulgação a isso. Quer dizer, isso já teve mais divulgação do que tem hoje, porque quando aparece uma novidade, é razoável você imaginar, todo mundo presta atenção. No segundo ano, no terceiro ano, no quarto ano, ela vira um pouco de rotina. Mas essa coisa do mapa da Mata Atlântica é básico, é uma informação que nós devemos à SOS. Repito, como já disse, o fato de ter convergido pra essa discussão. Agora é preciso que ela seja batida. Há uma série de outras campanhas, inclusive publicitárias, que eu acho todas elas muito boas. Essa campanha do Rio Tietê também é muito boa e tal, tudo isso. Agora há que se definir uma estratégia; a minha grande preocupação sempre foi, e eu acho que a SOS contribuiu muito pra isso, de você ter uma visão ampla e integral da Mata Atlântica. Porque cada um tem uma visão, você, eu, quem frequenta o litoral norte tem uma visão... A Mata Atlântica é a Barra do Saí, é Maresias, é isso. “É?” É. É muito bom que as pessoas tenham essa consciência e lutem por ela. Mas a Mata Atlântica também é Ubatuba, também é o Lagamar, também é a Ilha de Santa Catarina, também é o Norte do Rio Grande do Sul, também é o Ceará. E é preciso que isto seja visto como um todo. Quer dizer, a gente conseguiu isso, tem uma lei tramitando no Congresso, precisa bater bumbo. Para se aprovar a lei contra as baleias, eu me lembro que a gente subiu no alto do Senado e jogou papel recortado pintado de vermelho pra fazer o sangue das baleias. Foi aprovada a lei contra a pesca das baleias. Nós precisamos motivar o governo e o Congresso de que precisa aprovar a lei da Mata Atlântica. As negociações últimas estão falando: “Não, transgênicos...”, são todas adversas. Está na hora de ser um pouco mais agressivo, creio eu, se for possível, também. A gente consegue ser agressivo quando tem apoio da imprensa, porque ninguém é capaz de fazer tudo. Mas eu não sei, parece que é um sentimento não apenas meu, mas de várias pessoas, de que o momento é de bater o sapato na mesa de novo, como o Kruschev fazia lá nas Nações Unidas.

P/2- E como você vê a Fundação SOS Mata Atlântica daqui a dez anos?

R- Olha, eu acho que a Fundação tem milhares de coisas para fazer. São tantos os caminhos que é difícil fazer uma previsão de futurólogo, ou de cigana da bola de cristal. Mas eu acho que a Fundação tem um caminho muito importante. Quer dizer, teve, está tendo e terá um caminho muito importante, no sentido de ser uma referência. Ela tem que lutar pra continuar sendo uma referência, numa competição saudável com as demais ONGs, de manter a liderança que ela sempre teve. Ela é uma líder, ela nasceu

talvez um pouco mais tarde, poderia ter nascido um pouco mais cedo. Mas, enfim, alguns meses de atraso, certo? Não acho que a gente possa contar isso em anos. Mas chegou uma hora: “Vamos fazer? Então vamos fazer.” Então vamos fazer logo essa Fundação e vamos sair. Daí teve a famosa reunião da Ilha do Cardoso e “vamos fazer”. Mas eu acho que daqui a dez anos a Mata Atlântica, a SOS Mata Atlântica poderia estar toda aparelhada, com todos os... Como hoje o Ibama já está com todos os instrumentos necessários pra online poder acessar a Mata Atlântica através de satélite. Eu digo Mata Atlântica do Piauí até o Rio Grande do Sul, etc. e tal. E sendo um centro de referência de informação, um centro de ciência também, sob esse aspecto da cartografia, digamos, sob o aspecto das campanhas, eu acho que enquanto a Mata Atlântica estiver no estágio que está – e o estágio continua a ser extremamente preocupante – tem o que fazer, e muito. Acho que a SOS tem que estar na liderança de guerreira, da guerrilheira que ela sempre foi.

P/1- Zé Pedro, você falou já em várias falas, mas eu queria retomar isso. Nestes 18 anos de SOS Mata Atlântica, eu gostaria que você fizesse um balanço.

R- Olha, você está com cara de final de discussão. Eu queria completar, já que nós estamos no Museu da Pessoa, completar um pouquinho...

P/1- Lógico.

R-... Pelo menos uma cronologia, porque nós paramos em 1985, tem 20 anos daí pra frente.

P/1- Ah, não, pode...

R- E a gente faria esse balanço, porque esses 18 anos estão dentro desses 20. Quer dizer, o governo Montoro criou a Estação Ecológica da Juréia, criou a nossa Secretaria do Meio Ambiente, que está aí hoje, consolidada, e sempre com muitas coisas pra fazer, tanto quanto a SOS. A SOS Nasceu nesse período. Terminado o governo Montoro, a pessoa aqui que vos fala... Eu fui trabalhar na ideia que já nasceu no embrionário do governo Montoro de tombamento da Mata Atlântica. A gente falava em Serra do Mar do estado do Espírito Santo até o Rio Grande do Sul, que foi um processo que resultou numa união desses estados, informal, mas através de assinatura dos secretários de estado, de formalização de um Consórcio Mata Atlântica. Esse Consórcio Mata Atlântica, que eu ajudei a carregar... Foi a minha principal função depois do governo Montoro, além de assessorar o Ministério da Cultura pro tombamento federal da Mata Atlântica, que nunca aconteceu pelo IPHAN, porque eles não conseguem entender que natureza é cultura, entendeu? Além do Barroco e do Renascimento ainda tem essa dificuldade. Mas, além disso, nós alcançamos, com essa criação do Consórcio Mata Atlântica, depois o reconhecimento da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica, que acho que vocês já têm informações por aqui. Foi um processo também construído etapa por etapa, da qual a SOS ajudou muito; a SOS participou também apoiando, porque toda a vez que precisava de uma carta pra tombar a Mata Atlântica a gente ia à SOS. Eu era conselheiro, e saía carta do Klabin, saía carta do Antonio Cândido, saía carta de quem a gente pudesse... Do Jorge Amado, do Caetano Veloso. Tudo isso faz parte de uma estratégia que continuou, e a Reserva da Biosfera foi feita por segmentos: o setor um, setor dois, setor três... O setor quatro abrangeu o Nordeste, e o setor cinco agora chegou até o Pantanal. E é um desejo ainda de consolidação, que vem se consolidando positivamente, mas num ritmo ainda menor do que o necessário, acho que a SOS está dentro desse processo. Depois a gente ainda conseguiu, quando eu estava no Governo Federal, que se fizessem aí algumas áreas protegidas essenciais. Algumas delas no Nordeste – menos do que o necessário, mas enfim, mais do que se vinha fazendo –, e eu acho que isso precisa continuar, precisa de mais áreas protegidas. Conseguimos reconhecimento da área do norte do Espírito Santo, sul da Bahia e dessa região São Paulo-Paraná no litoral como patrimônio mundial, que é um mito, que não é nada e é tudo. Porque agora existe o compromisso mundial de proteger essas questões. E eu lembro que a Floresta do Iguaçu, que é muito importante, foi cortado por uma estrada que lá estaria não fosse o Parque Nacional do Iguaçu patrimônio mundial, porque daí começa a haver repercussão internacional dessas destruições. Então todo esse processo é um processo em que a SOS participou, é um processo de construção, de vinda de recursos, etc. Nesse balanço eu diria pra você o seguinte: pra que a gente não seja otimista em excesso, que é talvez o pior defeito – pior do que ser pessimista – eu acho que a SOS fez muita coisa. Poderia ter feito mais? Poderia. De zero a dez, pra dar um balanço, assim, eu daria 7,5 a 8 para a SOS, que eu acho uma nota muito boa. Quando um aluno meu tem oito na faculdade, significa que ele está lá. Agora tem muito o que fazer, é preciso fazer muita coisa. Eu diria que tem méritos enormes, tem questões que alguns criticam dizendo: “Ah, a SOS precisava já ter uma abrangência internacional.” Eu não acho que a SOS deva ter uma abrangência internacional, mas acho que ela não tem ainda abrangência nacional e, ao ter uma abrangência nacional, ela terá um diálogo internacional. Acho que nós podemos e devemos fazer campanha a respeito da Mata Atlântica acima do Equador, porque eu acho que lá inclusive tem recursos e tem possibilidades. Essas coisas precisam ser pensadas e verificar se elas são possíveis. Sendo possíveis, executá-las. Agora é trabalho, é trabalhoso, e tem que ser feito.

P/1- Eu gostaria que você falasse alguma coisa que você acha que é muito importante e que nós não dissemos até agora.

R- Olha, eu falei, meio quicando por cima, da questão dos corredores ecológicos. Isso é muito importante quando a gente fala de Mata Atlântica ou quando a gente fala de proteção de floresta tropical ou de natureza. Eu acho que o Brasil é um dos poucos países que ainda tem condição de, ou recuperar ou de proteger esses corredores. Esse zoneamento de Mata Atlântica, de fato, no papel, oficial, reconhecido por lei, a aprovação da Lei da Mata Atlântica... Por exemplo, a gente não falou do decreto Mata Atlântica. Houve um momento que o Ministério do Meio Ambiente lançou a ideia de que a Mata Atlântica era apenas a floresta ombrófila densa. Isso foi 96, que causou uma indignação entre os ambientalistas e foi talvez um dos momentos de maior confluência de forças contra a posição do Governo Federal, que causou inclusive a queda do presidente do Ibama e depois a troca de Ministro do Meio Ambiente. Então essa ideia da Mata Atlântica ser uma integridade que vai desde o fundo do mar – pra usar um termo poético –, das pradarias submersas e todos os plânctons que lá estão, pros manguezais, pro Jundu, pra fazer parte também do conjunto que faz a restinga, e todas as vegetações costeiras até ela se transformar em mata ombrófila plena, que ou adentra pela Serra do Mar, ou vai mais para o fundo nos pouquíssimos lugares que isso sobrou, mais para o Norte. Esse conjunto de coisas que se transforma depois em floresta sazonal, em serradão, em serrado, e que depois vira serrado. No alto tem campos de altitude, e tem pinheirais, e tem a floresta ombrófila mista, isso é inseparável. Então há uma luta de dizer: “Não, a floresta de pinheiral não é a Floresta Mata Atlântica; então a araucária é a floresta de araucária.” Falei: “Olha, che me ne frega”, pra usar um termo paulistano, certo? “Tanto faz”, o importante é que a Floresta Atlântica é... A biodiversidade é esse conjunto interligado. Quando você esgarça esse conjunto, você danificou a possibilidade pra sempre da proteção dessa biodiversidade. Então a ideia da proteção, da visão integrada, eu acho que é um grande mérito da SOS. Não é uma luta apenas da SOS, mas é que a SOS tomou uma liderança nesse momento para lutar pela Mata Atlântica. Isso resultou no decreto 750, que é uma luta muito importante também, de todos junto com a SOS, com liderança da SOS, e que está, nesse momento, precisando de uma liderança que é a aprovação dessa lei no Congresso. Eu estive quatro anos no governo, tentei isso e não consegui. Consegui aprovar a Lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação, que foi uma guerra maior do que parece fora, foi uma luta muito grande, fratricida muitas vezes, de ecologistas versus ecologistas, mas principalmente com nossos adversários conseguimos regularizar e aprovar a Lei de Crimes Ambientais, que é fundamental. A Lei do Sistema de Unidades de Conservação hoje está dando a possibilidade de implantar as áreas protegidas através da compensação que ela viabilizou, mas sem a Lei da Mata Atlântica nós não vamos conseguir fazer, realmente, a proteção dessa floresta. Não é que chegou aí, resolveu, este é o próximo estágio de luta pra que a gente chegue no seguinte, e no seguinte, e no seguinte. Quer dizer, uma vez aprovada a lei, há que ter sua implantação, que são muitos anos, muitas décadas depois. Então, eu acho que se eu pudesse ressaltar três coisas, além de elogiar e agradecer a todos os companheiros que trabalharam e trabalham nessa questão. Nós não falamos, por exemplo, do Almirante Ibsen Câmara, que não participou da fundação da SOS, mas que realizou um trabalho brilhante através da SOS – modéstia à parte por minha sugestão –, que é a Estratégia de Conservação da Mata Atlântica, que eu acho que é uma bíblia pouco valorizada, em que ele conta tudo; conta o óbvio, mas é o óbvio pela primeira vez organizado e sistematizado. Eu acho que desse documento a gente não falou, e a SOS devia brandir isso em todos os campos, a Estratégia de Conservação da Mata Atlântica inspirada... E por isso eu comecei a falar aqui da Estratégia Mundial da Conservação e escorreguei, os pensamentos foram pra outro campo. Mas aí está a ideia de proteger tudo o que sobrou, refazer os corredores... E a ideia que nasceu com a SOS também, que era inovadora, e que ainda é, mas hoje já é mais universal, de que não existe a proteção da Mata Atlântica, ela não será protegida se não houver a participação da população e a adesão das comunidades que nela vivem. E que essas comunidades sejam beneficiárias desta proteção e que por isso sejam, então, protetoras. Tem muita gente, ainda, que pensa que é pra proteger a natureza, que o homem é o mal. O homem é o mal, sem dúvida, no sentido da proteção, a estrada é o mal que traz o homem. Mas é preciso que o homem se convença, porque o homem é o agente. Então não dá pra você imaginar a proteção pura sem o homem, por mais que eu gostasse. Aliás, eu advogo, e como a maioria dos ecologistas, de que há áreas que tem que ser impenetráveis, de fato. Quanto mais área primária você tiver impenetrável, que você só entre pra fazer pesquisa, não tire nada, nem pra visitar, certo? Pra fazer visita, como também advogo que existam os Parques Nacionais e que você vá visitar, para as pessoas conhecerem e poderem de fato apreciar, conhecendo a natureza e lutar pela sua preservação. E advogo que existam áreas que sejam cinturões disso tudo, e que não acabe como em Cubatão, o parque dentro de uma petroquímica, dentro de uma refinaria de petróleo. Essas questões eu acho que são questões que a gente não falou com a distinção que ela merecia. Se esse cordão que ainda existe na Serra do Mar continuar a ser rompido e não for recuperado, nós estamos cada vez mais longe do sonho da proteção da biodiversidade da Mata Atlântica, que é bela, que é linda, que é fundamental pra água, mas cuja função precípua, principal, primordial, é de garantir a proteção dessa biodiversidade.

P/1- E Zé Pedro, eu queria te perguntar uma coisa: nesses 18 anos que você está na SOS, qual foi o projeto que a SOS desenvolveu que mais te marcou?

R- Eu vou repetir o que eu já disse, eu acho que o projeto mais importante da SOS é o projeto do mapeamento da Mata Atlântica.

P/1- Da Mata Atlântica. E você queria falar mais alguma coisa?

R- Olha, o processo é infinito; eu acho que as pessoas têm que falar durante um determinado período. Sobre a história da minha vida vinculada à questão da Mata Atlântica, a gente já falou bastante, principalmente dos primórdios, que eu acho que é a região mais vazia. A outra parte, que é uma luta constante também, tem muita gente que está contando histórias, mas eu queria falar que eu acho que é muito importante registrar essa história. Não pra registrar o que a gente fez. É muito gostoso registrar o que a gente fez, se sentir valorizado, que não foi fácil de fazer e que pra minha agradabilíssima surpresa é mais bem sucedida do que eu imaginava, eu achei que era uma luta mais perdida, mais quixotesca. Ela continua sendo quixotesca, mas eu achei que era mais. Acho que é muito importante pra que a gente não repita erros, pra que a gente continue na mesma direção. Sabe, não reinvente a roda. É preciso mostrar, é preciso escrever essas coisas, é preciso, realmente, por todos os meios possíveis, fazer com que as pessoas conheçam o que se passou até agora e até antes desse processo. Eu estava dizendo pra você do Gonzaga de Campos e seu mapa florestal. É a melhor descrição da Mata Atlântica, mais bonita e a mais precisa que eu conheço até hoje, vai festejar 100 anos e pouca gente conhece. Então eu acho que é preciso a gente rever tudo isso e estar sempre renovando essa visão do que aconteceu pra que a gente planeje o futuro, que é o que interessa, que é o que é importante. Planeje o presente que vai acontecer, certo? O presente que vai avançando sobre o futuro, de uma forma a que a gente seja o mais eficiente que a gente possa, porque são muitas coisas pra fazer.

P/1- Agora pra gente terminar.

R- Pois não.

P/1- São 18 anos de SOS Mata Atlântica. Eu queria que você dissesse qual é a importância que tem a Fundação na sua vida.

R- Olha, muito grande. Como eu já depus aqui, eu sou um burocrata do meio ambiente. E outro dia me perguntaram: “O que você fez?” Falei: “Eu empurrei uma pedra a vida toda no sentido de repor ela lá no alto da Serra do Mar. Ela escorrega e depois a gente a pôs de novo lá em cima, pra ver se ela fica lá.” E pra quem está de dentro do governo, trabalhando sem o apoio de quem está fora, e trabalhar depois com o apoio de quem está fora, é a mudança da água pro vinho, porque é uma outra perspectiva. Quer dizer, uma coisa é você convencer um bando de burocratas mais ou menos esclarecidos, outros esclarecidíssimos, outros minimamente esclarecidos, de que é importante fazer isso. Você luta dentro de uma engrenagem que tem que atender a “n” funções. Outra coisa é você fazer isso, como eu tive a oportunidade de ver essa mudança, com o apoio da sociedade, com o jornal gritando. Você simplesmente ganha milhões de anos-luz em possibilidade, a partir do momento em que você não está criando uma consciência apenas interna, mas, além disso, você está atendendo a uma reivindicação da sociedade, está dando uma resposta política a algo que é necessário. Aliás, a intenção de criar a SOS sempre foi essa, e eu acho que ela sempre cumpriu essa função, com maior ou menor brilho, mas sempre de forma muito determinada e muito específica... Livres!

P/1- Obrigada.

R- Eu que agradeço a vocês essa oportunidade. Como eu falei, todas as ordens, eu estou devendo uma foto muito mais bacana...