Museu da Pessoa

Ser médico: o exercício de se colocar no lugar do outro

autoria: Museu da Pessoa personagem: Caio César Silva de Castro

Programa Conte a sua História
Depoimento de Caio de Castro
Entrevistado por Carol Margiotte e Denise Cooke
Curitiba, 23 de agosto de 2018
Entrevista número PCSH_HV657
Realização: Museu da Pessoa
Revisado e editado por Bruno Pinho

P/1 - Doutor, bom dia.

R - Bom dia.

P/1 - Obrigada por receber a gente aqui hoje e para começar, por gentileza seu nome completo.

R - Caio César Silva de Castro.

P/1 - Local e data de nascimento?

R - Jacarezinho, Paraná. 25 de fevereiro de 1967.

P/1 - E o senhor sabe porque os seus pais te deram esse nome, Caio César?

R - Meu pai é Júlio César, meu irmão é Marco Antônio. Minha mãe era professora de história, ela gostava bastante. Provavelmente isso, mas eu não sei se pela sonoridade. César também é da minha família. Do meu avô é José César. César era um nome de família. É da cidade Cerqueira César, lá do lado de Avaré. Então, a família César. E o César do meu pai, meu, veio de enfeito, mas não é mais sobrenome, mas acabou vindo de roldão na família.

P/1 - E os seus pais contavam a história de como foi o dia do seu nascimento?

R - Não. Eu só sei que eu nasci de fórceps e naquela época não se sabia o sexo da criança, então, eles não sabiam, compravam o enxoval unissex. A única coisa que eu lembro é que eu nasci de fórceps. Não queria sair, já está muito bom lá dentro.

P/1 - E falando dos seus pais, qual o nome deles?

R - Júlio César Lolli de Castro. Meu pai foi comerciante e agricultor. Minha mãe, Brasilina Glória da Silva de Castro, professora, fez história e foi professora primária.

P/1 - E falando um pouco da história deles, o senhor sabe como eles se conheceram?

R - Meu pai conheceu minha mãe, eles têm seis anos de diferença, minha mãe tinha 16, meu pai tinha 22. Meu pai adora a contar a história que estava andando na rua, minha mãe estava passando do outro lado, ele falou para o amigo dele “eu vou casar com essa moça” e casou mesmo. Nunca tinha visto a minha mãe. Eles adoram contar essa história.

P/1 - Como é que ele se aproximou dela?

R - Não sei, acho que ele a achou bonita, alguma coisa assim, depois foi, cidade pequena, a cidade deveria ter uns 40 mil habitantes na época, e casou.

P/1 - E aí, quando eles se casaram, eles foram morar onde?

R - Continuaram em Jacarezinho. Minha mãe é nascida em Santo Antônio da Platina, é uma cidade do lado. E meu pai é nascido em Avaré. A família do meu pai, meu avô, mudou de Avaré para Ourinhos, de Ourinhos eles foram para Nova Dantzig, que é a atual Cambé. E depois de Cambé eles foram para Jacarezinho, se instalaram em Jacarezinho. Meu avô trabalhava de contador, era contador de uma empresa, e eles também eram agricultores, tinham uma fazenda em Avaré, mas eu não sei, além de agricultor ele devia viver de alguma renda, de aluguel, de agricultura lá de Avaré, de renda, mas eu não sei exatamente.

P/1 - Isso por parte de pai?

R - De pai. Meu avô também, da minha mãe, era agricultor e a minha avó também era dona de terra e dona de casa.

P/1 - Só para a gente deixar registrado, fala o nome dos seus avós.

R - Avô, José César de Castro, do meu pai, Olívia Lolli de Castro, a minha avó. A minha avó, da minha mãe, era Júlia Maria da Conceição, e meu avô esqueci. Ele morreu há tantos anos já, me pegou de surpresa.

P/1 - Quando vier, o senhor fala.

R - Ele morreu, eu era muito criança. Minha mãe vai ficar brava disso, vai me matar.

P/1 - Quando lembrar a gente põe, não tem problema.

R - É que eu não conheci ele, mas eu já lembro.

P/1 - E os outros o senhor conheceu?

R - Sobrenome Silva.

P/1 - Os outros avós o senhor conheceu?

R - Sim.

P/1 - O senhor frequentava a casa deles? Como que era a sua relação com os avós?

R - Da minha avó, sim. Mais da família do meu pai, eu sempre fui ligado mais à família do meu pai do que da minha mãe. Minhas avós, ambas, moravam em Jacarezinho e a mãe do meu pai depois de um certo tempo foi para São Paulo, voltaram para São Paulo, para a cidade de São Paulo, foram morar lá na Santa Cecília. Mas eu fui criado muito dentro da casa da minha avó. Minha avó é Lolli, ela é bem italiana, ela é filha de italiano, então, a minha cultura, eu sou italianófilo até hoje, estou tentando tirar até a cidadania. Agora eu vou tentar a cidadania italiana porque sempre fui criado, aquele jeitão de italiano, de exagerado, chorão.

P/1 - E em que momentos que o senhor ia para a casa da sua avó?

R - Eu ia a pé direto, cidade pequena a gente andava a pé, então, era comum. A gente não tinha essa história de ficar com medo. Teve uma vez que eu me perdi, meu pai foi me achar alguns quilômetros atrás porque eu tinha andado atrás do circo. Eu fui atrás do circo, ficou todo mundo desesperado e eu estava lá, quase na saída da cidade, atrás do circo. Então, a gente andava assim. A minha cidade é muito de altitude, então, não tem planalto e planície, é muito alta a cidade, irregular. Teve uma época que teve o meu aniversário, eu lembro que eu vim convidando o leiteiro, o padeiro, todo mundo até chegar na casa da minha avó. Que na época, o leite entregava em vidro, então, carne também, tinha carroceiro com carne, eles vendiam carne na carroça. Claro que tinha açougue, tudo isso, mas para o povo mais simples eles vendiam assim. Eu lembro o carroceiro, muito bacana isso.

P/1 - E no dia do aniversário, como foi receber as pessoas?

R - Não, não foram. Não foram. Isso eu lembro bem. Minha mãe falou: “como pode isso, você convidar todo mundo?”

P/1 - E eu queria saber um pouco mais sobre esse circo que o senhor foi acompanhando. O senhor se lembra o que atraiu o senhor para ir acompanhando? O que passava na sua cabeça?

R - Não sei, era muito jovem, cinco ou seis anos. Então, a gente vai atrás. É porque na época tinham animais, tinha elefante, um palhaço, então, eles iam em carreata na cidade. Eles entravam de uma cidade para outra e iam em carreata até chegar na outra cidade, ou até onde eles iam instalar o circo. A gente era criada solto. Eu andava sem camisa, sem sapato. Eu lembro, eu trabalhava, ajudava meu pai como frentista. Meu pai tinha um posto de gasolina, eu ajudava ele sempre quando podia, e a gente vendia lá de tênis, sem camisa. E muitas vezes eu levava o dinheiro do caixa, às vezes é um bolo de dinheiro desse tamanho, levava na mão assim, normal, nunca fui assaltado. Ia para o Banco do Brasil, eu lembro, e eu tentei entrar uma vez sem camisa, não deixaram, tive que emprestar a camisa de um amigo, ele ficou esperando sem camisa do lado de fora do banco porque não podia entrar. Então, a vida era outra.

P/1 - E ainda, voltando, que a gente tinha falado dos seus avós, que lembranças que o senhor tem da sua avó na cozinha, pensando nesse lado italiano?

R - O melhor bife que eu comi na minha vida, eu sinto até hoje o cheiro do bife da minha avó. Eu lembro até o dia, exatamente, quando eu fui lá ver minha avó cozinhando, minha avó cozinhava muito bem, me lembro até hoje o cheiro do bife, é uma coisa impressionante. Mas muito mais que isso eu não lembro. Depois, logo em seguida, eles mudaram para São Paulo, eu não lembro. Eles foram bem cedo para São Paulo, devem ter ido no comecinho da década de 80, final de 70.

P/1 - E o senhor conhece essa história de imigração dos seus avós?

R - Sim. Meu tataravô era Olívio Lolli, ele veio da Foligno, uma comuna da Itália, mudou para o interior de São Paulo e ele morreu por um raio. Um raio caiu e ele morreu por um raio. O meu avô por parte de avó, o Gaspari Lolli, esse que nós estamos tentando conseguir a ascendência, a cidadania. Ele foi agricultor e minha bisavó morreu muito cedo, morreu de tifo. Aida Brandi Lolli, morreu de tifo muito cedo. Minha avó ficou órfão com uns três anos e a minha tia-avó com um ano mais ou menos e a minha tia-avó chamava a minha avó de mãe o tempo inteiro, tadinha.

P/2 - E quem criou elas?

R - A minha tataravó, a mãe do meu bisavô, Filomena Miti. Você vê que eu gosto de Itália, dos italianos conheço tudo, do lado italiano. Do Castro eu conheço bastante também.

foi minha tataravó. Minha tataravó tinha um hotel em Avaré, que cuidou da minha avó, porque meu avô casou de novo e os Lolli dispersaram e eu não sei muito mais.

P/1 - E nessa convivência com os seus avós, nesse lado italiano, tinha alguma coisa que a sua avó falava, que o senhor lembra?

R - Muita expressão idiomática que eu tento descobrir e eu não consigo. Ela chamava a gente, quando mal arrumado, de (inint) [00:13:07]. Eu tentei descobrir e não conseguia, deve ser algumas expressões idiomáticas do dialeto ali da Úmbria. Várias expressões. Até hoje eu uso bastante, a família toda usa umas expressões idiomáticas, a gente não sabe.

P/1 - Tem mais alguma que o senhor pode falar para a gente?

R - Poxa, agora eu não consigo lembrar. Mas direto a gente falava, às vezes até alguns palavrões. Eu lembro mais o (inint) [00:13:47], (inint) [00:13:49] ela falava direto. Eu tentei procurar no Google, de tudo que é modo. Só indo para a Úmbria para tentar descobrir algumas expressões. A gente tem anotado algumas expressões, mas eu não me lembro de cabeça agora.

P/1 - E o senhor tem irmãos?

R - Tenho. Tenho um irmão que mora em Ourinho. Ele é professor da FATEC de Ourinhos. Meu irmão fez administração de empresas na Getúlio Vargas, em São Paulo, mestrado em economia na USP e é professor lá de administração da FATEC.

P/1 - O nome dele?

R - Marco Antônio Silva de Casto, outro romano.

P/1 - Doutor, falando ainda na infância, eu queria que o senhor descrevesse a casa onde vocês moravam em Jacarezinho.

R - Primeiro nós morávamos numa casa bem pequena, que não tinha quintal, eu lembro que tinha um corredor muito estreito, mas a gente vivia na rua. Até uns cinco anos, depois a minha avó deve ter ido por 1975 ou 1976 para São Paulo já, porque eu lembro que depois nós mudamos para a casa da minha avó. Uma dessas fotos que estão ali, que está minha mãe e eu, foi na casa da minha avó.

já tinha um quintal maior, tinha churrasqueira. Não era uma coisa muito comum, ninguém fazia churrasco na época. Mas tinha churrasqueira, árvore, abacateiro, essas coisas. A gente subia na árvore, ficava o tempo inteiro subindo em árvore, atirando em passarinho, que hoje eu morro de dó, não faria mais. Mas era normal da época, com chumbinho e bodoque, mas hoje eu já não faria.

P/1 - Como era esse preparo para matar passarinho? Como que era isso.

R - Só que eu não comia. A primeira vez que eu matei um passarinho, pegou no pescoço dele e o pescoço ficou pendurado, nunca mais matei. Nunca mais atirei.

P/2 - Então, foi a primeira e única?

R - Que eu acertei, que eu vi, sim, e nunca mais, então, é uma coisa assim que você fica chocado. Tanto que hoje eu adoro animais, nunca mais faria isso. Então, eu sou conservacionista total. Tem muita gente que é contra zoológico, mas eu adoro, eu vou sempre em zoológico. A gente sabe que tem que ter reprodução. Eu conheço raças de algumas espécies de rinocerontes, leões, então, conheço de cor e salteado. Então, eu sei que algumas raças têm que estar em zoológico porque senão vão matar tudo. Os rinocerontes lá. Eu vi agora um chifre de rinoceronte baby assim, eles matam os filhotes, é um absurdo, não é? Então, nunca ia fazer isso, acho que foi o choque da infância.

P/1 - Sim. E quais outras brincadeiras da infância?

R - Era tudo radical, não sei como a gente não perdeu mão. Eu fazia pólvora em casa, meu pai ensinou a fazer pólvora com salita. Não vou falar a fórmula. Eu sei a fórmula de fazer a pólvora até hoje.

P/1 - Não precisa falar a fórmula, mas pode falar como era esse momento de fazer.

R - A gente fazia bombinha, fazia pólvora, ensinava os amigos a fazer pólvora, a gente colocava na lata e a lata saía explodindo. Eu não sei como não vinha no rosto, podia ter perdido mão, o rosto. Então, eu sabia a fórmula e passava para os elementos. Então, era a vida assim, a gente foi criado solto, vivia na natureza. Vivia nos rios, nadando em rios, vivia no meio do mato. Um amigo meu morreu de picada de abelha, então, a gente nem viu o corpo porque foi uma coisa horrorosa, um enxame de abelhas. Então, a gente vivia no meio do mato, a gente não sabia, no meio da árvore, podia acontecer esses desastres.

P/1 - E em casa tinha divisão de tarefas?

R - Não, era uma sociedade bem, apesar de a minha mãe trabalhar, tinha empregada doméstica. Geralmente a empregada doméstica é que era a babá, então, a gente era criado muito por babá. Claro, a mãe ficava em casa, mas a mãe também, em meio período ela trabalhava. É uma coisa que hoje em dia não tem, a gente tinha muito contato com negros, hoje em dia essa sociedade muito estratificada, os colégios só brancos. Não, eu estudava em colégio público, então, eu tinha amigo de todas as classes sociais, isso era bom. Então, era o filho da empregada ou o filho do juiz. E a gente vivia na casa da empregada, do pedreiro. Então, era uma convivência maravilhosa que a gente tinha de entender como era vida dos mais pobres. Hoje em dia não tem, as crianças vivem nos prédios, nas casas, nos condomínios, e no interior a gente tinha essa convivência muito boa. Eu sou muito grato, até hoje, respeitar. Eu atendo no SUS há anos, então, eu falo para os meus alunos, os meus pacientes do SUS eu quero que saiam mais bem atendidos do que os pacientes particulares. E eles saem, saem felizes. A maioria das vezes eles falam: “nunca fui atendido tão bem na minha vida”. Pelo residente ele faz a consulta, eu só faço a supervisão, mas a maioria dos pacientes saem muito feliz, porque os problemas maiores do SUS são resolvidos nos hospitais-escola. Eu sou de um hospital-escola e, então, vem os maiores problemas e eles saem muito bem atendidos.

P/1 - E já que a gente tocou no tema de escola, queria que o senhor contasse as primeiras lembranças de estar na escola que o senhor tem, talvez ainda em Jacarezinho, não é?

R - É, Jacarezinho. Estudei no colégio estadual José de Anchieta em Jacarezinho. Cada sala tinha duas professoras, a gente era apaixonado pelas professoras, como sempre. Apaixonado, a professora é a mais linda do mundo, sempre. Fiz até o quarto ano primário no José de Anchieta. As professoras até hoje, várias eu tenho contato. Eu tenho 51, então, tem professora que era nova, tem professora que tem 80, 70 anos. A segunda professora, professora auxiliar, então, tenho várias professoras até hoje. Então, a gente era apaixonado por elas, até hoje ainda tenho contato com algumas.

P/1 - E o senhor lembra de algum momento o começo na escola, bem nesse início mesmo?

R - A minha casa era a menos de uma quadra da escola, então, eu ia a pé e a maioria dos colegas moravam todos próximos. Como eu disse, todo mundo estudava junto, então, não tinha essa divisão de classes, então, isso que era bonito. Pena que não é mais assim. Então, a gente estudava, como eu disse, desde o filho do juiz, o filho da empregada, o filho do pedreiro, o filho do barbeiro, então, a gente tem essa convivência até hoje. Nós temos um grupo oitava série, da quinta a oitava série, que e no Cristo Rei, então, era um pouquinho mais elitizado porque era um colégio particular. Os mais pobres já foram para o estadual, que era o colégio Rui Barbosa, que era um colégio melhor, os melhores alunos, e os com melhor condição foram para o Cristo Rei que era um colégio de padres, que antigamente era um internato. Meu avô foi professor lá também, de contabilidade. Me perdi. O que você perguntou mesmo? Tanta coisa para falar.

P/1 - Eu estava falando da lembrança da escola.

R - Eu morava perto, eu morava muito próximo da escola, então, ia e voltava, ninguém me levava, nem precisava.

P/1 - E como é que era o Caio estudante?

R - Eu sempre fui bom aluno desde infância, nunca tive muitas pendências para matemática e física, mas sempre tive que me esforçar, porque eu estudei em uns colégios difíceis, lá no Mackenzie em São Paulo. Para entrar em medicina não é fácil, não é? Mas eu tive que aprender matemática mesmo na raça. Eu lembro que eu passei em medicina por causa do terceirão que eu fiz, que foram professores muito bons, que eu agradeço até hoje, que conseguiram me ensinar matemática, então, eu nunca tive muitos pendores matemáticos e físicos. Mas sempre gostei de história, geografia, de português, de literatura, de inglês, então, eu acho que eu consegui entrar em medicina porque eu fui muito bem em algumas matérias e matemática e física eu fui na tampa, o suficiente para passar.

P/2 - Como é que começou o seu gosto pela poesia?

R - Desde pequeno eu tive muito livro em casa, minha mãe é uma biblioteca enorme, então, eu sempre fui rato de livro, de biblioteca. Minha mãe tinha uma biblioteca, tem ainda em jacarezinho, uma biblioteca enorme. Era muito caro ter essas Barsa, ter a Larousse, as enciclopédias. Eu lembro que eu emprestava para os amigos em casa para a gente estudar nas enciclopédias que a gente tinha. Minha mãe tinha a Larousse, na minha época tinha os que defendia o Estado, e a Folha de São Paulo. Eu aprendia a ler na Folha de São Paulo, na folhinha da Folha de São Paulo, praticamente. E tinha os que defendiam a Barsa e outros que defendiam a Larousse, a Barsa era inglesa e a Larousse era francesa; nós tínhamos a Larousse. Nós íamos estudar. Tive mãe também, minha mãe tinha discos que ninguém tinha na época. Eu conheci o Bob Dylan na infância, Pink Floyd, os Carpenters também, da década de 70. E uma vantagem que a gente tinha na época, no LPs, Long Plays, tinha letra, então, a pronúncia da gente era boa e a gente conhecia bastante palavras em inglês. A gente não tinha uma formação boa de inglês na cidade, mas a gente tinha uma noção boa porque a gente lia bastante, eu via a pronúncia deles cantando e ninguém tinha, pouca gente tinha na cidade.
P/2 - Teve algum LP que te marcou, que foi o primeiro da sua vida que ficou?
R - Aquele, um disco mais famoso do Bob Dylan, do Blowin the wind. Dos Carpenters tinha bastante as letras, tinha do Pink Floyd, Captain Fantastic do Elton John, que é um dos melhores discos dele, da década de 70, 74, 75.
P/2 - E como é que era? Você chamava os amigos em casa, se reuniam para ouvir música?
P/1 - Geralmente emprestava. Emprestava Led Zeppelin. Cada um tinha mais um gosto. Era difícil, não era tão fácil comprar LP, então, era caro. Depois que vieram as fitas, fitas cassete, aquela coisa horrorosa que elas quebravam, enroscavam tudo. Sempre fui mais LP. Sim, chamava os amigos. Sempre ia um na casa do outro ouvir os LPs, a gente não gostava muito de emprestar, não, eu lembro, ainda mais que era da mãe, muitos eram da mãe.
P/1 - O senhor chegou a ter aula com a sua mãe?
R - Não, com a minha mãe não. Tive de piano com a minha tia, mas não tinha dom. Minha tia era pianista clássica, era dona de conservatório em Jacarezinho e essa tia que foi sucessora do Nei Braga, quando ele era ministro da educação, lá em Brasília. Tive aula de piano, eu e meu irmão, não tivemos o mínimo jeito. A gente tinha que ir a pé para o piano e voltava emburrado, a minha tia viu que eu não tinha o menor jeito e eu desisti, graças a Deus.
P/1 - E para encerrar essa parte da infância, o que o menino Caio queria ser quando crescesse?
R - Eu? Eu sempre queria ser astronauta. Eu sempre gostei muito da conquista do espaço, sempre li bastante da conquista do espaço. Queria ser presidente também. Sempre fui muito ligado com política, gostava dessa parte estudantil. Na época era o governo, então, a gente não sabia o que estava acontecendo, a gente achava o máximo, sabia todos os ministros de cor e salteado, eu sempre gostei de decorar, de ler bastante, então, eu sempre tive uma facilidade. Eu tenho memória fotográfica, então, na faculdade eu lembro que às vezes eu tinha prova que eu ficava até com vergonha, eu lembrava a página virando. Acho que de tanto ler, é só a única vantagem que eu vou contar disso, é na memória fotográfica que eu tenho. Eu lembro que alguns livros eu conseguia lembrar a página virando, o caderno virando também. É um tipo de memória, cada um tem um tipo de memória, eu tenho essa fotográfica. Mas de número eu já não tenho nenhuma, não consigo guardar números, de telefone é uma desgraça.
P/1 - E como que o senhor foi correndo atrás desse sonho de ser astronauta ou presidente? Como que isso foi sendo na adolescência.
R - Na conquista do espaço eu digo que não, não tinha o menor jeito, nunca gostei muito de velocidade, nunca fui muito ligado a isso. Mas até hoje, eu fui no Cabo Canaveral, fiquei louco, fui tirar foto com astronauta, conhecia todas as Apolo, 15, Apolo 13, quem que era o astronauta, Neil Armstrong, o Eugene Cernan, que foi o último homem a pisar no espaço. Tanto que na minha tese de doutorado está uma, agora lembrei isso. A minha tese de doutorado tem uma citação do Eugene Cernan. Perguntaram para ele como ele tinha conseguido chegar no espaço, como ele tinha conseguido fazer tudo o que ele fez, ele falou: “maybe have a little more passion than other people”, talvez ter mais paixão que as outras pessoas. Ter uma paixão maior do que as outras pessoas para fazer a coisa, você tem que ter uma paixão, se você não tiver paixão você não faz as coisas bem, não é? Então, tudo o que eu fiz foi com paixão, tudo que eu vi que eu não tinha paixão eu abandonei porque nunca ia conseguir fazer bem. Eu sempre tentei pautar a minha vida, pegar os meus pontos fortes, estudar o máximo possível os meus pontos fortes porque eu sabia dos meus pontos fracos, que eu não ia ter muita chance.
P/2 - E quais você diria que são os seus pontos fortes?
R - Eu gosto de estudar, eu tenho ideias. Uma das áreas que eu queria fazer também, publicidade, tanto que eu estava dividido entre medicina e Escola Paulista de Publicidade, que eu sempre gostei dessa parte. Poesia, lia bastante, então, fiquei dividido. Pontos fortes? Paixão. Quando eu gosto de uma coisa eu estudo, estudo muito a área e tento antever o que não foi feito ainda, então, no nosso doutorado foi assim, eu fui estudar genética, porque quase ninguém estudava genética. Eu fui estudar genética do vitiligo, então, eu cheguei para o meu orientador, eu falei assim: “eu gosto dessa doença”, eu gosto de tratar a doença, ninguém gosta a doença, “e eu tenho uma população enorme e eu queria fazer mestrado com você”. E ele tentou me demover de todo que é jeito, porque ele lida com os alunos assim, ele tenta fazer o aluno desistir antes de começar, para ver se ele tem estofo, culhão. E eu não desisti, eu falei: “eu quero, eu quero, eu quero”. “Então, está bom”. Então, a gente conseguiu aí uma população de umas mil pessoas, é uma das maiores populações, até hoje, já coletada em vitiligo no mundo, em genética, e nós conseguimos publicar na revista número um em dermatologia, tanto que eu sou um dos únicos brasileiros que tem essa publicação nessa número um, chama Journal of Investigative Dermatology, que é difícil, tanto que eu tenho um só, até hoje nunca consegui colocar mais. Mas foi a ideia. Quando eu estava no doutorado, eu vi na internet uma bolsa da Roche, do laboratório Roche, da Suíça, para fazer um estágio, um fellowship que se chama, em genômica funcional, como funciona o genômica, no Roche Center for Medical Genomics, que é em Basel.

Eu concorri, fomos eu e uma bióloga de Ribeirão Preto para lá.

Eu fiquei aproximadamente um ano lá na Suíça, em Basel, deixei a minha família que eu tinha aqui, os meus filhos e a minha ex-esposa, e fui para lá. Fui sozinho para lá e lá eu tive o insight, estudando bastante, estudando melanoma, de um gene, que o problema do vitiligo é que a gente sabe que onde o paciente se machuca, a pele se destaca muito fácil. E eu falei que eu queria pesquisar aquele gene, que eu achei que aquele gene é que tinha mutação, convenci meu orientador, convenci a Roche, porque a Roche me ajudou, ela ia financiar minha pesquisa do gene, sou grato a eles até hoje, me financiaram. E e, por sorte, era o gene que estava mutado mesmo, acertamos. Mas foi um tiro em 21 mil, então, foi um tiro no escuro. Isso que nós conseguimos colocar nessa revista número um em dermatologia no mundo. Fomos bem, nós publicamos mais um estudo epidemiológico e e eu apresentei e foi a melhor tese de doutorado em dermatologia no Brasil, porque é difícil colocar nessa revista. Eu pensei que eu não ia falar nada disso, mas agora foi. Isso aqui que eu não queria falar àquela hora lá. E em 2011, com esse estudo, esse paper que a gente colocou nessa revista número um, eu ganhei o prêmio La Roche-Posay de melhor artigo científico da América Latina de 2011. Por sorte, eu sempre falo para os meus alunos, a gente tem que sempre tentar escolher o melhor orientador e para mim o melhor orientador era o Marcelo Mira, que é da PUC, era um bioquímico geneticista, que tinha voltado da McGill no Canadá, a McGill é a Harvard lá do Canadá. E consegui convencer ele e foi difícil, porque eu tinha que trabalhar meio período. Porque ele queria que eu fizesse o doutorado bem feito, então, não é um doutorado de fim de semana, mestrado de fim de semana. Eu só podia trabalhar meio período, eu me quebrei financeiramente, mas cheguei lá. Quando eu fui para a Suíça também, foi muito difícil, financeiramente muito difícil. Meu pai ajudou porque tive que abandonar tudo.
P/1 - E quando o senhor foi recebendo esse reconhecimento, principalmente em relação ao prêmio, como que você compartilhava isso com a sua família, como era receber esse reconhecimento?
R - Eu sempre queria passar para o meu pai e para minha mãe e para os meus tios. Eu lembro, na formatura, que todo mundo chorou na formatura e eu era o único que não chorei. Eu falei: “o que você tem? O que eu tenho de diferente?” Porque todo mundo chorando na formatura. Isso aí, todo mundo chorando, na hora que eu vi o meu pai, desabei de chorar. Então, eu acho que eu estava guardando para ele. É o herói da gente, até hoje. Meu pai sempre foi muito arrumadinho, janota. Janota é uma palavra que fala também. Era comerciante, agricultor, mas era difícil porque era no interior, ele não tinha herança da família que ele teve, então, foi difícil batalhar, ele pagava para mim medicina aqui na PUC e para o meu irmão na GV em São Paulo, então, era difícil, então, eles penaram muito, trabalhou muito. Então, eu sabia o quanto ele trabalhou para isso. Minha mãe também, minha mãe é uma professora, ajudou na herança dela, ajudou a pagar, em aluguel para o meu pai, essas coisas assim para ajudar na nossa formação. Então, eu acho que eu estava guardando para o meu pai, guardando o choro para ele.
P/2 - Agora, em que momento entre querer ser astronauta e presidente surgiu essa paixão, obviamente, tão forte pela medicina? Como que se deu isso?
R - Foi professor do Objetivo, porque eu fiz o cursinho no Objetivo, lá em São Paulo, no terceirão, e professores de biologia muito bons. Eu vi assim, eu gostava muito de história, propaganda, minha avó queria que eu fizesse agronomia. Eu estava entre história, propaganda e biológicas. Eu via, história eu gosto de ler, não vou querer ser historiador; astronauta nem pensar, já passou. Publicitário eu sempre quis, eu sempre gostei. Também era um hobby, eu via que era, história, publicidade e propaganda e literatura para mim, ia ser um hobby. E a medicina eu vi que ia ser a minha profissão. É um estalo que você dá. Mas só foi no terceirão, não foi uma coisa desde a infância, não, foi só no terceiro mesmo.
P/1 - E como que a sua família reagiu quando o senhor disse dessa escolha?
R - Era o primeiro médico da família, a maioria é agricultor, comerciante, alguns engenheiros, economista. Todo mundo ficou orgulhoso que ia ter um médico. No interior, quem que não quer ter um filho médico? Então, na década de 80 que eu fiz, eu fiz em 86 na medicina. Então, ficaram orgulhosos, ainda mais quando eu entrei.
P/1 - Pois é, conta para a gente como foi esse dia de sair o resultado?
R - Eu lembro que eu não estava esperando muito. Eu estava tirando férias com o meu pai na praia e naquela época era por jornal, não era internet. E e eu vi no jornal que eu passei, todo mundo ficou muito feliz, claro, os pais ficam muito felizes, ficam orgulhosos, mas eu não lembro muito bem dessa data mesmo. Eu lembro depois, a gente fica preocupado, “será que é isso que eu quero fazer mesmo?”. Na hora que você entra, e você vê que é aquilo mesmo. Eu lembro que a primeira nota que eu tirei, porque como eu disse eu tenho memória boa, memória fotográfica, não tanto para outras, mas memória eu tenho. Eu lembro a primeira nota que eu tirei em medicina foi em anatomia. Eu lembro que o professor começava em ordem alfabética: “Caio, quem é Caio?”. Ele: “um, nota um”. Eu quase caí da cadeira. Ele: “ah não, o zero vale, não é? O zero atrás vale, dez”.

eu e outro colega meu, Fabiano Lago, daqui de Curitiba também, ele também tirou 10, eu lembro. Claro, na medicina não foi assim, foi o primeiro dez só. A gente chega no primeiro ano, a gente vai bem melhor, chega super animado, depois a gente dá umas boas decaídas. Eu fui sempre bem, eu nunca fiquei em dependência, que eu tinha na cabeça que se eu ficasse em dependência eu não ia conseguir acompanhar, eu ia me sentir humilhado. Eu não ia conseguir acompanhar meus colegas depois e graças a Deus nunca fiquei, sempre passei, nunca fiquei em dependência. E eu tenho certeza, se eu ficasse eu não ia conseguir acompanhar depois, então, foi uma coisa (inint) [00:42:24]. Que eu me esforcei para não ficar porque eu psicologicamente sabia que eu não ia conseguir acompanhar depois.
P/1 - E teve algum momento durante a graduação que o senhor deixou de ter essa incerteza para falar “de fato é isso que eu quero”? Teve algum momento que falou “é isso”?
R - Não, eu entrei, eu já sabia. Eu entrei e medicina e já fiquei, não tirei minhas dúvidas. Continuei lendo muita biografia, literatura, poesia. Filme antigo eu sempre gostei, Orson Welles, os faroestes antigos eu conhecia todos, Rodolfo Valentino e tudo mais. Mas isso, desde quando eu entrei, eu sempre gostei, já sabia. Eu comecei a gostar da dermatologia porque na minha cidade tinha muita hanseníase, a lepra. Então, quando eu ia para Jacarezinho, eu ia acompanhar um médico e a gente ia na casa do pessoal com lepra, com hanseníase. A gente não usa mais a palavra lepra porque é muito pesada, pejorativa, a gente usa hanseníase hoje. E eu lembro a primeira vez que a gente ia entregar o remédio na casa dos pacientes, para mim era uma casa normal, era uma casa até rica, vamos dizer assim, até não imaginava, mas era um paciente com uma hanseníase muito intensa, eles não saiam de casa, e e o médico entrou e eu entrei junto e a mulher saiu correndo, assustada com medo. Ele falou: “não, esse é dos nossos”. Porque eles têm deformidades, a ponta dos dedos eles perdem porque vai tendo atrofia da parte muscular, óssea, eles tinham deformidades como úlcera, às vezes eles perdem o nariz, e eu fiquei chocado, eu falei: “opa, o que é isso aqui?”. E quando eu entrei na dermatologia, eu queria, romanticamente, curar a lepra. A hanseníase, desculpa. É que em inglês é leprosy. O meu orientador, ele fez o doutorado em leprosy na McGill. Ele começou o vitiligo, ele me aceitou no vitiligo, ele nunca tinha trabalhado com o vitiligo. Ele me aceitou, uma nova linha de pesquisa dele, é porque ele gostou do número de pacientes que eu tinha e eu acho que da determinação que eu tinha na época. E ele trabalhava com leprosy, com hanseníase, e por coincidência, depois eu fui trabalhar com o orientador que era especialista em hanseníase, então, acho que foi o destino, não é? Mas eu não fui trabalhar com hanseníase, eu fui trabalhar com vitiligo, hanseníase eu abandonei, não me chamou tanto a atenção durante a residência quanto eu tinha na graduação, não me extraiu tanta atenção trabalhar com. Eu não sei por que, talvez porque eu descobri que a hanseníase já tinha cura, ela já tratava e tudo, não foi um desafio, vamos dizer assim.
P/1 - Mas eu queria que o senhor contasse qual era a sua participação quando o senhor acompanhava esse médico nessas casas de quem tinha hanseníase?
R - Eu ia entregar remédio, eu ia de carro com ele. A gente entrava no carro e a gente ia entregar remédio para as pessoas. Tem pessoa que não sai de casa, eles não podiam sair de casa porque a deformidade é tanta que o estigma social. E como nós não tínhamos medo, a gente sabia que não era contagioso, porque a hanseníase tem que coabitar há anos para você adquirir. Então, não tinha medo, a gente ia visitar. Várias casas e eu fui, mas a que mais me marcou foi essa casa, porque era uma casa de nível socioeconômico mais alto e com uma hanseníase muito grave. Estava no escuro, a pessoa começou a se afastar e eu fiquei chocado, era um medo dele, ela teve um pânico, ela um ataque de pânico, porque eu vi que era uma pessoa diferente, então, eles têm medo, é muito triste. Eu nem lembrava disso. É bom, vocês começam a puxar as coisas que eu nem lembrava.
P/1 - O senhor está bem? Podemos seguir?
R - Estou bem, eu só preciso ir no banheiro.
P/1 - Claro.
R - Eu já volto.
P/1 - Voltando. Entrevista número PCSH HV657, doutor Caio de Castro. Doutor, então, voltando, a gente estava falando das suas experiências ainda na graduação. Além dessa experiência em Jacarezinho, nas casas das pessoas que tinham hanseníase, o senhor passou por alguma outra experiência ainda na graduação que tenha sido marcante? Alguma outra residência?
R - A gente frequentava um hospital, como eu gostava, hospital de hanseniano, chama-se São Roque aqui, onde os pacientes eram internados, então, às vezes as famílias deixavam eles lá. E tinham pacientes com todo que é tipo de sequela causada pela hanseníase, então, eles ficavam internados. Então, tinha paciente que não tinha ninguém, ninguém ia visita-los, eles ficam com medo de contágio, e eu ia bastante para lá. Mas as piores experiências para nós, como médicos, é pronto socorro, você ver as pessoas morrendo não é nada fácil, é marcante. Geralmente, a gente tem no final do curso, então, ver pessoa morrer é a pior coisa do mundo. Já chegar morto, ou chegar ali e morrer logo em seguida, pós-ressuscitação, porque tem as salas específicas para a ressuscitação, então, era muito difícil para a gente. A gente chega assim, do nada, é por isso que tem muitos estudantes de medicina com depressão. Primeiro que é muito estudo e lidar com a vida das pessoas não é muito fácil, principalmente em pronto socorro. Pronto socorro é a pior escola que a gente tem nessa parte psicológica, mas depois a gente aprende, é lógico. E tem que virar a noite, o cérebro da gente foi feito para dormir à noite, então, você ter que atender à noite, de madrugada, a pessoa morrendo não é muito fácil, é bem difícil. Então, são os heróis mesmo quem trabalha com isso, não é fácil.
P/1 - Tem alguma experiência que o senhor queira compartilhar de algum atendimento?
R - É muito triste. Do pronto socorro, a pior foi de um acidente que veio a família de um médico que estava lá, acho que era cunhada ou coisa assim. Cunhada, os filhos de um dos médicos que estava de plantão. E um deles faleceu, uma senhora eu lembro que faleceu. E foi assim, veio o hospital inteiro, porque aí a comoção é maior. Então, desce o anestesista do pronto socorro, larga tudo, porque tem alguns especialistas mais em ressuscitação, tem mais experiência. Então, eu lembro que desceu o melhor anestesista, especialista em ressuscitação do pronto socorro. Não que seja especial, mas é alguém dali, então, todo mundo fica comovido, aquele zum-zum-zum, porque é o dia inteiro atendendo pacientes nesse nível. Mas é uma comoção, e vem criança, então, não é fácil.
P/1 - E como que o senhor processava tudo isso? Nem pensando na parte profissional mesmo.
R - Depois a gente acostuma e esquece agora, mas eu não teria cabeça para trabalhar com isso, somente que eu não sou um animal noturno, eu sou diurno, não conseguiria trabalhar em plantão, o meu cérebro não funciona à noite, não adianta que não. É difícil, mas passa, depois a gente esquece. Tudo de ruim a gente esquece. A memória é seletiva da gente, graças a Deus. Acho que o sonho serve para isso, desintoxicar.
P/1 - E entrando já na especialidade do senhor, o senhor contou que foi uma trajetória até chegar na dermatologia, mas teve algum estalo?
R - Assim, como eu não era filho de médico, não tinha nada, tive que começar do zero, então, eu tive que começar num consultório, um consultório aqui mesmo, um consultório pequeno aqui nesse prédio e meu pai ajudou a comprar bastante.

eu comecei, tinha que me virar, tinha que atender. Atendia nos bairros, aqui na Cidade Industrial, então, tinha que correr para todo lugar, para as cidades da região metropolitana, então, tinha que me virar, tem que trabalhar. Só que eu estava insatisfeito, eu fiquei alguns anos só trabalhando em consultório e não estava satisfeito, porque eu sempre gostei dessa parte de pesquisa, catalogação, então, eu queria fazer mestrado, não estava satisfeito, estava bem “deprê” nessa parte, insatisfeito. Então, eu sabia, eu queria fazer mestrado, eu queria dar aula, eu queria ser professor, e eu falei: “eu tenho que fazer alguma coisa”. Então, eu fui vendo as doenças que eu gostava mais de trabalhar, que eu atendia mais aqui, porque eu trabalho com fototerapia. Fototerapia é um tratamento com luz ultravioleta. Então, um dia eu descobri essas máquinas de fototerapia, gostei, falei: “acho que isso é o que eu gosto de trabalhar”. Porque eu não gosto de trabalhar com estética, eu sou um dermatologista que trabalho zero com estética, eu só trabalho com doenças. E isso aí, em 1994, 1995, por aí, eu descobri a fototerapia que é um tratamento muito bom para psoríase, vitiligo, dermatite atópica, e vi que era o que eu queria fazer mesmo.

Eu vi que eu tinha um N muito bom de pacientes com vitiligo, eu gostei bastante do estudo da doença, e que eu fui oferecer para esse meu orientador essa população grande que eu tinha para ver se a gente ia fazer um estudo genético. Eu fiz um estudo de trios, que você coleta o sangue do pai, da mãe e do filho, ou dos filhos. E a gente fez um estudo caso-controle também, que a gente pegava só uma pessoa com vitiligo e um controle, sem vitiligo, sem história de vitiligo, com a mesma idade, do mesmo sexo. Então, nós tínhamos uma população grande, então, a gente fez dois estudos genéticos: esse baseado em famílias e esse de caso-controle, que a gente chama. Que um replica o outro, você faz um achado, eu achei o meu gene, o DDR1, nessa população de trios, depois a gente replicou nessa população caso-controle. Esqueci onde estava, a gente fala, fala, fala.
P/1 - Estava falando do começo do senhor com a dermatologia, do consultório, que o senhor estava insatisfeito.
R -

quando eu comecei a trabalhar com fototerapia, eu vi que eu gostava, e um amigo meu, o Roberto Tarle, me convidou para ser preceptor da residência médica e cuidar das máquinas de fototerapia da Santa Casa de Curitiba, da residência, isso foi em 2001. Eu falei: “olha, eu não tenho experiência nenhuma, mas eu tenho vontade”. Não tinha mestrado, não tinha nada. Então, eu fui ser preceptor. E lá fui me inteirando mais das doenças, dessas que eu gostava mais, mais do vitiligo, da psoríase, da dermatite atópica que eu trabalho bastante. E e que eu fui tendo um know-how melhor da doença, conhecendo mais, e e eu fui oferecer para eu fazer o doutorado, fui atrás do meu orientador.

que eu fiz o doutorado e depois do doutorado eu entrei na PUC, hoje eu sou professor da PUC, professor adjunto de dermatologia da PUC.
P/1 - E doutor, tudo bem se a gente entrar agora no bloco de perguntar em relação a dermatite? Tudo bem? A primeira coisa, quando foi a primeira vez que o senhor ouviu falar em dermatite atópica?
R - Dermatite atópica a gente via muito em crianças já, desde a graduação a gente já conhecia bastante da dermatite atópica, mas a gente não via os casos graves, eu só fui ver casos graves mesmo na residência médica.

você toma um choque, porque não tem muita medicação, não tinha. Eu sou da época que não tinha ainda a ciclosporina. A ciclosporina hoje é a droga mais forte que tem para tratamento da dermatite atópica. Está para sair agora o Dupilumabe, que é um primeiro biológico para dermatite atópica, mas até hoje é a ciclosporina que é utilizada. O problema da ciclosporina é que a gente só pode usar no máximo dois anos para o paciente ainda intermitente, ou um ano, em tese. Tem alguns pacientes que a gente tem que passar, tem que usar mais tempo, porque não tem o que fazer, tem alguns casos gravíssimos. E eu fui do tempo que não existia, não tinha fototerapia, não tinha a ciclosporina, a gente só usava cortisona, via oral, eles ficavam cushingóides, com o rosto edemaciado, com estrias porque não tinha o que fazer.

quando eu entrei na residência que nós começamos a usar a ciclosporina, isso 1992, mais ou menos, só que chegou a ciclosporina. E era difícil, até hoje é difícil. Hoje nós estamos muito preocupados porque o Dupilumabe só vai ser utilizado para adultos e ele está agora em fase de teste nos Estados Unidos para criança, mas a gente fica desesperado porque eu tenho criança de 12, 13, 14 anos precisando, e não está mais respondendo a ciclosporina, e a gente está torcendo para que chegue alguns trials, alguns estudos clínicos, para crianças para o Brasil, para a gente colocar esses pacientes mais graves, para eles poderem ser beneficiados pelo Dupilumabe.

P/1 - O senhor falou que no início foi um choque começar a receber esses pacientes com dermatite, o senhor poderia contar por que ou descrever essas sensações?

R - Não menosprezando as outras doenças que eu trabalho, provavelmente a dermatite atópica, das doenças prevalentes, é a mais grave de todas. Porque além desse problema estético que tem, o paciente, a pele fica toda ressecada, fica partida, eles têm muito prurido, muita coceira, então, eles não conseguem dormir, eles ficam muito irritados, eles ficam nervosos, perde a paciência por qualquer coisa. Lógico, não dorme, ficam coçando o tempo inteiro. Tem uns que são heróis. Então, eles choram muito aqui no consultório, desabam quando vêm aqui, porque eles sentem muito mal-estar. Às vezes quando a gente entra com o (inint) [00:59:53], com a ciclosporina, e ele melhora, às vezes eu olho para ele, quase vou falar assim, “não melhorou, não é?”, e ele fala para mim feliz: “como eu melhorei, doutor”. Porque a gente não sabe o que ele está sentindo. O pior da dermatite atópica não é o visual, é o que ele sente. É que a gente não consegue sentir o que eles sentem. Então, eles sentem um mal-estar, um calor, um prurido, a coceira, essa insônia, irritabilidade, então, a gente fica feliz da vida. Porque a gente, como médico, a gente quer ver 100%. Então, eu sempre falo para os meus residentes: “calma, a gente não vai conseguir 100% nos pacientes, a gente tem que perguntar o que eles estão sentindo. Se eles estão se sentindo melhores, não é o que a gente sente, é o que eles sentem. Não é o que a gente vê, é o que eles estão contando para a gente”. Então, às vezes eles não estão tão melhores esteticamente, mas eles estão felizes da vida porque eles estão se sentindo bem, dormindo bem, sem coceira, a pele não tão seca.

P/2 - E na dermatite, o psicológico é muito importante. A gente constatou isso, o emocional, então, eu acho que acabam tendo que ser dois tratamentos paralelos: o físico e o emocional. Como é que, como médico, você consegue abranger essas duas?

R - Essa parte psicológica, com certeza, o problema é que eles têm um problema imunológico, essa desregulação imunológica. Essa desregulação imunológica que leva ao prurido, leva às lesões de pele, e eles ficam instabilizados por causa do que eles sentem e, claro, quem quiser dormir não vai ficar nervoso, não vai ficar deprimido, perder a esperança. Eles perdem, tem muitos pacientes que perdem a esperança, então, a gente sempre tem que dar. Eu sempre falo para os meus alunos, para os meus pacientes, que a gente tem que sempre dar esperança para os pacientes. Todo mundo vive de esperança, se você não tiver esperança, a gente não faz nada na vida, então, eu sempre digo que tem um ponto além para eles chegarem. Eu nunca falo para eles: “não tem o que fazer”. Eu nunca falo que a doença deles não tem cura, nunca. Quem sou eu para dizer que não tem cura? Não existe milagres? Eu como católico, tenho milagre, então, existem e saem remédios sempre. Para dermatite atópica tem uns cinco ou seis remédios para saírem, está no pipeline das empresas, no portfólio das empresas para sair, então, tem que sempre dar esperança para os pacientes. Às vezes mudam de cidade, porque eles pioram com o suor, então, quando eles suam muito, eles têm muito prurido. Então, a gente pede para eles fazerem algum tipo de esporte que eles não suem muito, então, tem um equilíbrio de não suar muito. A natação é um deles, mas o problema é que a natação resseca a pele. Eu prefiro que eles façam a natação, mas não fiquem muito tempo na água, não tomem banho muito quente e hidrate bastante a pele. Mas é difícil, lidar com o paciente de dermatite atópica é bem terrível.
P/1 - Ainda nessa parte da consulta, por essas características que são tão particulares do paciente que tem dermatite atópica, o senhor já falou um pouco, mas se o senhor puder detalhar um pouco mais como que é receber no consultório, como é uma consulta.
R - Assim, aqueles pacientes graves, eles já chegam muito eritrodermos, eles chegam vermelhos, descamando, eles já chegam de capuz no consultório, vários, principalmente os guris e as meninas. Então, eles já chegam de capuz. Geralmente eles têm uma irritabilidade maior com os familiares, eu noto, com o médico não, mas eles já vêm bem irritados. Tem muitos que não demonstram, tem uns que são guerreiros, eu tenho alguns guris aí que você não percebe. Às vezes você percebe a irritação no relacionamento pai e filho, ou filho e mãe. Então, teve um caso, isso eu posso contar, caso bom, ele, a gente via, o guri estava irritado, não dormia direito. Eu tratei ele por anos e durante o tratamento, que ele estava fazendo aqui comigo, ele estava fazendo vestibular. A gente sabe que geralmente o paciente de dermatite atópica vai mal na escola, porque não dorme, fica irritado. Eu passando de carro numa rua de Curitiba vejo a foto dele naqueles outdoors de rua, “primeiro lugar no vestibular”. Eu falei: “uau, que bom”. Você viu que aqui a dermatite atópica não atrapalhou. Então, foi assim, para tirar primeiro lugar no vestibular, quando os cursinhos, as escolas, colocam ele lá em primeiro lugar. Eu fiquei super orgulhoso, já liguei para a mãe para falar dele. Fiquei muito feliz porque a gente sempre pensa o contrário, a dermatite atópica, vai mal na escola. Ele tirou em primeiro, me surpreendi, porque a gente não sabe, a gente não pergunta, nesse caso, especificamente, nunca perguntei para ele como ele ia na escola, porque a gente sabe, que eles têm dificuldade de concentração, ficam com prurido, coceira, e esse caso foi sui generis.
P/1 - E já que o senhor está falando desse seu envolvimento com pacientes e com a família também, como que é esse relacionamento com esses pacientes que tem dermatite?
R - Tem várias histórias. Tem uma história, tem um rapaz que ele manda e-mail direto para mim, ele é o marido; ela vem na consulta, mas ele manda e-mail para mim, porque ele está preocupado, ele sempre está preocupado com ela. Manda e-mail direto, perguntando de remédio e tudo, então, se nota que os maridos ficam preocupados.

eles contam a história enorme lá da esposa, porque às vezes a esposa não quer que venha, ou vem e não consegue externar o que está sentindo, então, nesse caso, especificamente, o marido que sempre me manda mensagem. A gente tenta ser positivo, dizer: “olha, está chegando”. Que nem o Dupilumabe agora, está para sair essas medicações, (inint) [01:06:46] está para sair, então, como eu disse, tem que dar esperança. E os pacientes dizem, “quando vai chegar, doutor?”. Porque tem pacientes que já não tem o que fazer, eles estão esperando essa medicação nova que está para sair.
P/2 - E no caso de classe social, as pessoas de baixa renda tem menos acesso e medicação, segundo a sua experiência?
R - Eu tenho meus dois lados, eu trato aqui no meu consultório, pacientes particulares, alguns convênios, e trato no SUS também, então, vai ser a mesma coisa. Essa medicação nós vamos ter que entrar contra o estado provavelmente, aqui no Paraná, e pedir para a promotoria pública, a defensoria pública, que é o nome certo, uns laudos para mandar para mandar para o juízo. Eu já tenho feito isso em alguns pacientes, porque eu sei que já não tem o que fazer, até chegar, então, demora os trâmites. Então, já estou mandando para o defensor público o laudo, que eu sei que vai sair em um ou dois meses a medicação, para eles já irem vendo e já mandar para o juiz. Então, pode ser que a gente receba ou não, mas eles já estão sabendo que é uma doença que está sendo necessária, nós estamos precisando disso. Vão ter que entrar contra os convênios, os convênios no começo não vão querer liberar, mas eu falo para os pacientes que vão, de um modo ou outro eles vão liberar, porque não tem outra solução.
P/2 - E como médico, como você encara os tratamentos naturais, alternativos? Porque nós ouvimos histórias de muitos pacientes que conseguiram um certo alívio através de outros tratamentos alternativos. Como é que você encara isso? Chás, ervas, cremes caseiros, um monte de coisas.
R - Assim, tem muitos remédios que foram feitos à base de fitoterápicos, então, tem alguns fitoterápicos que funcionam, mas é difícil eu te dizer qual fitoterápico que teve um efeito neles. Pode ter o efeito placebo também, da fé, a fé cura. Então, a gente não sabe, efeito placebo ou não. Então, o principal para eles é hidratar bastante e às vezes é a evolução natural de doença, existe a marcha atópica, que a gente diz. Tem paciente que começa com dermatite, depois vai para rinite e vai para a asma, vai que é a época da dermatite atópica dele arrefecer, desaparecer, então, é difícil a gente dizer. Tudo que não seja baseado em evidências, a gente não pode comprovar. Não estando fazendo mal para o meu paciente, eu deixo ele usar. Agora eu vejo que alguma coisa, que é picaretagem, que estão tentando explorá-lo, a boa-fé dos pacientes, e eu intervenho; a hora que eu vejo que não tem má-fé, eu não me meto, que não está fazendo mal.
P/1 - O senhor tem algum ritual pessoal antes de começar alguma consulta, que o senhor sabe que é algum paciente que está em crise?
R - Respirar, olhar a ficha antes e dar uma olhada na ficha antes para ver o que eu posso fazer a mais, para dar um pouquinho mais de esperança em alguns casos, que alguns casos você sabe. “O que eu vou fazer?”, “que coelho eu vou tirar da cartola?”. Às vezes, a gente consegue tirar, mas nem sempre. Você lembra: “eu poderia ter feito isso”, mas nem sempre, é uma coisa que a gente não tem muito o que fazer.
P/1 - E teve algum caso que o senhor conseguiu fazer esse mais? E se sim, o que foi?
R - A gente não pode fazer a ciclosporina, que é uma medicação mais forte para dermatite atópica com luz, que é perigoso o câncer de pele, então, em alguns casos, antes de começar, a gente faz a ultravioleta A, que é luz. Então, eles não podem, principalmente, aqui em Curitiba, tomar sol. Não tem sol, então, a gente faz um pouco de ultravioleta para eles. Isso melhora para eles, mas não melhora todos. A gente sabe que não pode ficar muito tempo dentro da máquina, porque você começa a suar. Isso eu descobri com o tempo, então, certas coisas a gente vai vendo. A gente não precisa deixar eles tanto tempo dentro da máquina. Eu vi que alguns pacientes que a gente deixava muito tempo dentro da máquina, eles começavam a suar, por isso que eu mando as secretárias ligarem os ventiladores, deixar o ar-condicionado, para eles não suarem. Então, algumas coisas, a gente vai aprendendo com o tempo e com o paciente. É que os pacientes, eles acham que vão ficar dentro da máquina, quanto mais tempo eles ficarem melhor eles vão ficar, então, eles se trancam, se trancaram dentro e não queriam sair, eu tive que bater. Eu falei: “por favor, saia e”. Ele: “não, foi muito pouco”. Começava a gritar de dentro da máquina, se trancou dentro. Eles acham que quanto mais, não, se ficar dentro da máquina a pele vai ressecar. A mesma coisa, você toma muito sol você, vulgarmente falando, esturrica a pele, então, não dá para ficar muito tempo dentro da máquina.
P/1 - Pensando nesses cuidados, que nem o senhor falou do ar-condicionado, tem alguns outros detalhes que o senhor pensa, que a princípio, podem ser pequenos, mas que fazem a diferença? Quando o senhor pensa nessa agenda de atendimentos com quem tem dermatite, ou tempo de atendimento durante a consulta, tem alguma coisa que o senhor faz para amenizar esse impacto da dermatite aqui no consultório?
R - Tem que ver o histórico do paciente, às vezes a gente vê o histórico ao vivo. Tinha um caso de um rapaz que o rapaz era muito castrador, não deixava ele falar. Eu via que o menino era um menino dedicado, trabalhador, estudando. Às vezes, essa relação pai e filho também é complicada, de exigir demais do filho, já o filho já sendo bom, não é esse caso em primeiro lugar, é outro caso. Então, tem caso de falecimento de familiar, que precipita, que piora a doença, de filhos que são ligados, de crianças que o pai falece, estão numa fase de aceitação. Porque às vezes elas se coçam tanto que ficam manchas escuras na pele e às vezes elas querem, “preciso tirar uma foto para baile de debutante”, “preciso tirar foto para não sei o que”, então, é difícil. E às vezes a gente quer dar um clareador para a pele da paciente e o clareador mesmo irrita. Então, a gente anda, pisa em ovos e brasas para tentar melhorar.
P/2 - Como médico, você também tem um cuidado especial com os cuidadores também? Porque a gente notou alguns casos, a mãe ou algum membro da família, essa coisa da relação difícil, tem pacientes que falaram para a gente: “eu às vezes estou ótimo, aí minha mãe começa a ficar estressada e aí, por causa dela, eu começo a me coçar”. Você sente também a necessidade de lidar com o cuidador?
R - É porque quando a gente fica nervoso, a gente tem uma descarga de estamina, então, pode ter prurido, coceira, só pelo stress. Então, quando dá, a gente vê, tem alguns casos que a gente não consegue, a gente preferiria que o viesse a mãe, mas vem o pai. Alguns casos, a gente vê que a mãe é ausente, o pai é presente, mas é muito castrador. Alguns casos, a gente não consegue lidar com isso. Tem gente que eu não vou falar “olha, você vai em psicólogo?”, ele vai falar: “psicólogo é coisa de louco”. A gente vê que precisa, quando está em depressão. Eu noto que está em depressão, precisa de medicação, precisa de cuidados psicológicos, psiquiátricos. Mas tem alguns casos que você não tem como intervir, então, você não tem como intervir na vida alheia. E a gente não está aqui para ficar fazendo consideração de juízo o tempo inteiro, está aqui para tratar. A gente não fala: “você é assim”, “o senhor é um castrador”, “a senhora é não sei o quê”. Ele pega e vai embora, ele quer saber de que eu trate o filho dele, ele não quer que eu analise o pai ou a mãe.
P/1 - Como médico, quais os aprendizados que o senhor vem tendo com esse contato com o paciente de dermatite atópica?
R - A gente aprende que eles são mais irritadiços, eles são mais depressivos, são mais carentes, a vida deles não é nenhum pouco normal, eles não podem sair de casa. Esses mais graves que eu estou falando. A pele deles é muito mais ressecada, eles têm maior tendência de ter vírus, verrugas, molusco contagioso. A vida deles não é nada normal, não é normal. Eu atendi um caso esses dias de uma médica que teve vários outros problemas, mas a pior dela é a dermatite, ela chorou que o problema dela é a dermatite. Ela tem mil e um problemas na vida, mas a dermatite é o pior. Então, a gente vê que tem uma escala, tem aqueles dicionários de qualidade de vida, a dermatite atópica é muito séria. Das que eu atendo, a mais prevalente, eu acho que é a pior. E às vezes os pacientes de outras doenças, de vitiligo, de psoríase, vão falar “doutor, você está menosprezando a minha doença”. Não, não estou, estou quantificando. Às vezes eu dou o primeiro diagnóstico. Às vezes o pessoal vem com vitiligo aqui, que eu trabalho muito com vitiligo, às vezes eles vem para eu tirar a última palavra final, eu falo “não, é vitiligo”, aí desabam a chorar. Então, não é fácil, a gente já sabe.

eu deixo: “chorem aqui porque eu não quero que você saia com a garganta presa lá fora, vai chorar lá fora, não, aproveite e chore aqui”. Tem que ser uma catarse, deixa até ele acalmar. Então, depois que acalmou, a gente começa a falar de novo. Então, eu deixo o quanto quiser. Não adianta eu querer parar ele durante o choro, tem que deixar à vontade. Parou de chorar? Está em condições? Agora vamos continuar. Uma coisa que a gente aprende com o tempo.
P/1 - E em relação a dermatite atópica, eu queria que o senhor falasse esse começo, esse início do diagnóstico, como que é o senhor falar para a pessoa o que ela tem e a pessoa receber? Conhece ou não conhece?
R - A maioria dos pacientes que vem aqui já sabe que tem a dermatite atópica, porque ele vem desde a infância. Eu não sou dermatologista pediátrico, eu sou dermatologista de adulto, eu atendo adolescentes também. Então, eu já atendo eles com todo o diagnóstico. Então, eu acho que o pior já veio na infância porque o primeiro diagnóstico é o pediatra que faz, é o dermatopediatra que faz. Eu atendo muita criança, eu tenho paciência, mas eu não sou especialista em dermatologia pediátrica, então, eu acabo já pegando os casos mais graves. O caso da fototerapia por causa da minha experiência com biológicos, com imunossupressor. Eu trabalho muito com psoríase também, os biológicos vieram para a psoríase, agora que está vindo para a dermatite atópica. Tanto que os médicos que mais atendem hoje dermatite atópica são, e vão ser, os médicos que atendem psoríase, que são os que tem mais experiências com os imunobiológicos e com os imunossupressores, que é o (inint) [01:20:08], a ciclosporina, a azatioprina é outra medicação também.
P/1 - E eu perguntei como médico, mas agora como pessoa, pensando nesse lado pessoal, quais são esses aprendizados colhidos pensando esse contato que o senhor tem com pessoas com dermatite atópica?
R - É difícil de separar a vida da gente, a gente passa tanto tempo no consultório que eu nunca imaginei assim, qual aprendizado que eu tirei. Mas a gente tira, a gente aprende a lidar com as pessoas, como eu disse, essa história do choro, de sentir o que o outro sente, saber o que o outro está sentindo, porque a gente tem que se botar no lugar da pessoa e médico a gente tem essa tendência já, desde o começo. A gente sabe, acaba sabendo, os sintomas das pessoas, tem que perguntar o que eles sentem, então, a gente imagina o que eles sentem. Às vezes a gente sonha, eu sonho, muitas vezes eu sonho que eu estou com vitiligo, então, são tantos pacientes. E às vezes eu mostro para eles, eu tenho que mostrar o paciente de vitiligo com uma lâmpada de wood, é uma lâmpada que destaca mais o vitiligo. E eu tenho que mostrar para ele onde ele tem, na hora que ele vê na lâmpada, ele não imaginava que ele tinha tanto, então, ele toma um choque, então, a gente sempre viu o choque que o paciente tem. Eu já imaginei, no espelho mesmo, sonhei que eu estava algumas vezes que eu estava com vitiligo olhando no espelho, então, indiretamente isso vai passando para a gente. Claro, muitos casos, a gente leva para casa, muitos e muitos, mas médico, a gente tem que saber sempre separar, tem que ter outra vida.
P/1 - Ainda da dermatite, tem alguma pergunta, Dê?
P/2 - Não.
P/1 - O senhor quer contar mais alguma experiência em relação a dermatite?
R - Deixa eu ver se eu tenho mais alguma história. É mal-estar, morte, pai castrador, choro, insônia, irritabilidade, (inint) [01:22:28], todos os dados aqui, eu coloquei quase tudo. Tem gente que tem dermatite atópica grave em mãos, às vezes ele não tem aquela sintomatologia toda que tem os pacientes do corpo inteiro, mas o problema dele, quando é só em mão, ele não consegue trabalhar. Tem aqueles casos que eles não conseguem tomar banho direito, tem que lavar o cabelo no cabeleireiro, aí tem mulheres que tem filho pequeno, aí tem que lavar a roupa, lavar a louça e dar banho, e a mão, não há mão que aguente, mesmo com hidratantes. Então, esse é um grande problema, eu não sei como que vai estar na liberação da medicação nova, se eles vão estar liberando, se vai ter uma área grande. Eu vou ter que chegar para o juiz e falar: “olha, ela não tem uma área grande afetada, mas ela tem uma desabilidade, ela não consegue trabalhar, ela tem dor”, porque parte, dói muito, “então, ela tem uma área pequena, mas afeta muito a vida pessoal dela”. Isso ainda nós não sabemos como nós vamos nos portar. Eu vou colocar lá, nesse caso. Eu estou pensando já numa senhora já aqui, que tem, e eu vou colocar lá para a defensoria pública, para o senhor juiz que ela não tem uma grande área, mas ela não tem a qualidade de vida dela. E ela já usou tudo, ciclosporina, usou tudo. Tem vários, eu tenho aqui a fila dos pacientes aguardando o Dupilumabe, então, todo mundo fica ligando, vendo, “quando chega?”, “já chegou?”. Vem todo mês aqui, porque tem paciente que está desesperado mesmo. Graças a Deus, ainda nós temos uma ciência, temos a indústria farmacêutica, porque quem investe mesmo é a indústria farmacêutica. Eu trabalhei no meu doutorado, que eu fiz o meu fellow lá na Suíça, eu trabalhei dentro de um laboratório farmacêutico, na Roche, eu sei o quanto eles gastam. Eles gastam 1 bilhão de dólares para desenvolver um remédio. É que a indústria farmacêutica ficou assim, virou um vilão, mas eles têm lá, eu trabalhei lá dentro, eles têm que pagar o porteiro, têm que pagar a faxineira, têm que pagar todo mundo. O quanto eles lucram? Eu não sei, isso não é problema meu, eu sei o quanto eles investem. Eu tinha um chefe meu que ele falou assim, ele chegou chateado lá: “Caio, nós investimos 1 bilhão num remédio que foi jogado fora, não funcionou”. 1 bilhão de dólares, então, tem o que eles perdem também. Eu não estou fazendo apologia, defesa. Então, a gente tem que ver todos os lados, é como eu disse, é que nem faz a Folha de São Paulo agora, com o Otavinho que morreu, ele sempre colocou um lado e o outro lado, sempre tem que ver o lado. Quanto lucra eu não sei, eu sei o quanto eles investem e o quanto eles melhoram a vida das pessoas, então, eu não sou especialista em saúde pública para responder isso, mas eu sei o quanto eles ajudam as pessoas e quantas pessoas são empregadas nisso.
P/1 - E como ficou o lado poeta dentro da medicina?
R - Tentar ser poeta, não é? Assim, eu lembro do Drummond, eu nunca falo que eu sou poeta porque é um absurdo eu falar isso, que o Drummond falava que é um absurdo a pessoa, só porque ela teve uma inspiração repentina falar que é poeta. E quem é poeta amador, tem de vez em quando, tanto que antigamente eu usava canetinha, usava o bloco de notas, hoje uso o Notes, e eu digito no celular a poesia. E às vezes vem, vem um quarteto na cabeça, vem pronto, dois quartetos de um soneto, eu gosto muito de soneto, sempre gostei muito, tanto que eu acho para soneto, em português, para mim é o Vinicius, antes do Drummond, de quem for, pessoa para mim é o Vinicius. É que o Vinicius, ele foi diminuindo um pouco a poesia dele por ele fazer música popular. O João Cabral mesmo falava, falou para o Vinicius: “Vinicius, se você não fosse músico, você ia ser muito mais famoso, eles te diminuem por você ser músico”. E depois você tem que montar, vai vir os dois outros tercetos que você tem que fazer. Depois é muito trabalho, eu sempre lembro, quando eu vou fazer alguma coisa eu lembro do Drummond, tem que fazer alguma coisa direito. É por isso que quando eu faço, eu faço um por ano, se é bom ou não, não sei, mas eu tento fazer um soneto ou alguma coisa por ano no máximo, que eu consigo fazer, que aí tem que ficar batalhando, moldando ali para não ficar ridículo, tentar não ficar ridículo. Infelizmente, a gente acaba sendo fazendo poesia, acaba passando ridículo algumas vezes, mas a gente tenta não ser. Eu sempre lembro do Drummond falando: “poeta é profissional, não é amador”.
P/2 - E você tinha uma banda de música na juventude, você já chegou a escrever música também?
R - Eu era o letrista, eu que escrevia as letras, então, eu fui aprimorando com o tempo. Hoje eu vejo as minhas letras, eu não faria nada do que eu fiz, ou faria um pouco diferente. É que música é diferente, então, é muito difícil você musicar um soneto. O Toquinho conseguiu musicar soneto do Vinicius, mas é muito difícil.
P/2 - E de onde vem essa inspiração, como é que era naquela época?
R - Na época, principalmente, vinha da medicina, a gente tinha uma banda que era meio punk, meio heavy, heavy-punk, era um pouco down, acho que é por causa da época que eu fazia medicina. Faz medicina, você começa a ver morte, ver suicídio, ver não sei o quê, então, você fica meio... As letras não são muito ternas, românticas, não. E com o tempo a gente vai aprendendo a escrever, a ser menos ridículo e tentar escrever alguma coisa que alguém consiga ler.
P/1 - E nessas poesias, sonetos que o senhor escreve, tem uma inspiração? O que vem?
R - Baixa o santo. Às vezes vem a estrofe inteirA na cabeça, você já começa assim: “afiei a faca na ponta da língua”, um soneto que eu fiz agora. Então, veio: “afiei a faca na ponta da língua”, e vem o segundo verso, terceiro, quarto, vai assim, mas aí empaquei nos dois quartetos.

eu fiquei seis meses, um ano para fazer os dois tercetos, porque não vai. O que eu vou escrever? Vai ser ridículo o que eu estou querendo falar, e às vezes, não. Eu fiz um desses sonetos que vocês vão colocar aí, esse da pele. Veio assim, baixou na inteiro. Eu fui falando, geralmente é no banho. Geralmente é no banho que você está mais relaxado com a água caindo. E vem, ele vem.
P/2 - E tem alguma coisa a ver com a especialidade?
R - Não, eu acho que de leitura, de ler. É por isso que artista lê muito, vai muito em filme.
P/2 - Mas a pele, a coisa de falar de pele, tem alguma coisa a ver? Ou inconscientemente?
R - Dá também para ver uma frase. Eu nunca tinha lido nada disso aí de um soneto sobre a pele. E, acho que eu não lembro exatamente, eu lembro que veio o primeiro verso e encadeia. É uma coisa assim que o cérebro vai rimando, porque eu gosto muito de rima. Então, eu gosto muito de verso livre, existem alguns poemas com versos livres, mas sempre com rima que eu gosto. Esses poetas concretos, eu leio, mas não é tanto a minha especialidade. Eu gosto mais do antigo, eu gosto mais do soneto. Não adianta, eu acabo voltando para o soneto. Já li Shakespeare, já vi alguns italianos lá, mas o entendimento da língua nossa não é tão bom para alguns poetas ingleses (inint) [01:31:49], mas é em português mesmo que eu gosto mais, que a gente consegue se inspirar mais. É coisas da natureza. Tem um poeta, Domingos Pelegrini, aqui de Londrina. Não sei se você já ouviu falar. Ele escrevia na folha da Gazeta do Povo daqui. E eu desencavei um livro de poesia dele, principalmente sonetos. Ele fazia uns sonetos mais formais, outros mais modernos. E não tanto ligado as rimas e a métrica, mas ele escrevia sobre Londrina. Ele conseguia coisa que eu não conseguia fazer. Eu não conseguia escrever sobre Jacarezinho. Eu tenho um soneto sobre jacarezinho que não está tão bom assim, que eu vou melhorar bastante ainda. Eu mostrei para uns amigos e depois me arrependi, porque eu quero voltar a reescrever. Eu escrevi isso por causa dele, porque eu vi ele falando de Londrina, conseguia escrever sobre a terra vermelha, sobre o ônibus chegando na rodoviária antiga. É uma coisa assim, que sabe? A galinha, o vizinho. Coisa que eu não consigo fazer isso lembrando Jacarezinho. E ele conseguia. Falar da área dele ali. Então, é coisa assim maravilhosa. Escrever sobre fruta, ele escreveu sobre abacateiro. Já o Vinícius escreveu sobre o cajueiro, é um poema meio impróprio para menores. Mas ele escreveu sobre o cajueiro. Ele consegue falar sobre uma fruta. É uma coisa maravilhosa.
P/2 - Eu posso pedir para o senhor ler?
R - O quê?
P/2 - Eu queria que o senhor lesse o seu. Se puder ler aqueles dois. E se o senhor se sentir à vontade. Depois que o senhor ler um, o senhor fala um pouco de como foi criar, o senhor já falou um pouco, mas só para ter essa sequência de como foi criar um, aí depois se o senhor ler o outro, que foi o que eu mais gostei
R - Esse processo de criação é complicado como eu falei. Às vezes, ele sai do nada. É esse livro mesmo?
P/2 - É página 90, 91 ou 91, 92. Eu lembro que era 90 e alguma coisa.
R - Então, esse aqui é um concurso literário da Médicos no Paraná. Todo eu participo, eu tento participar, quando tem alguma coisa interessante. Quando não tem, eu não quero passar muito ridículo. , são três sonetos, São três poemas sobre a pele. Um que eu vou falar aqui, que é um soneto. É o soneto que me rodeia. “A pele que em tudo me rodeia nunca permite desplantes de monta, quando agredida expõe, alardeia, ressentida, sempre apresenta a conta. A cútis em poema devaneia em fantasia que nada lhe afronta, basta um toque em desguarnecida ameia, desmorona desprotegida tonta. Até, então, incólume a teus permeia. As intemperes do mar, areia. Um designo que a natureza apronta. Quando todo teu argumento incendeia, a mesma que entorpece, pavoneia. Fênix, surge regenerada pronta”. Então, o que eu quis dizer aqui é que o soneto me rodea, a pele que rodeia a gente, que é o nosso maior órgão do corpo humano. E querendo dizer do sofrimento que a pele sofre, a pele nunca permite desmonte. Então, toma sol, fuma e tudo mais. Quando agredida, exposta, ela alardeia, a gente envelhece. Vai apresentar o câncer de pele, envelhecimento. A cútis em poema devaneia na fantasia que nada lhe afronta. A gente acha que a gente pode tomar sol a vontade. Mas basta um toque em desguarnecida ameia. Ameia é aquela parte da torre. Que eles atiravam as flechas, chama ameia. Então, nos castelos têm as ameias. Basta um toque desguarnecida ameia, desmorona, desprotegida, tonta. Até, então, incólume, a teus permeia. E a deixa penetrar. As intemperes do mar areia. Que ele sofre, é um designo que a natureza apronta, mas eu quis fazer ela virar fênix. Quando todo o teu argumento incendeia, eu imaginei um paciente queimado. Você viu que usei várias palavras, eu não repeti. Eu usei pele, cútis, teus, segmento. Para realmente não se repetir. A mesma que entorpece. Pavoneia, fênix regenerada pronta. Para que dá um final feliz. Um finalzinho feliz. Porque sempre tem que ter o desfecho. No poema.

Fiz um quarteto aqui. No futuro, talvez ele vire um soneto, tem gente que não vai entender, porque é genética. Meu traçado curvas triformes, minha reta segue as linhas de blástico, minha quimera é toda uniforme, ideia concretas, nasce um mosaico. Zosteriforme, só médico vai entender, porque trabalha com genética. Zosteriforme é uma distribuição das lesões da pele. Blástico são umas linhas da pele que são invisíveis, nessas, se depositam algumas doenças genéticas são linhas de blástico. Minha quimera, quimera você já ouviu falar. Então, às vezes, tem umas pessoas que a gente não sabe. A gente é feito de células anormais, uma quimera. Então, às vezes, teve dois óvulos que se juntaram e a gente é uma mistura de dois óvulos. O mosaico que eu falei aqui depois. Ideias concretas nascem de um mosaico, eu quis dizer que a gente acha que está tudo na cabeça, mas a gente é um pedaço de várias coisas. De ideias concretas nasce um mosaico. A gente acha que sabe tudo, mas aí o mosaico, tem algumas doenças, tem o vitiligo segmentar, o vitiligo segmentar é uma doença que tem um depósito de melanócitos anormais, ele tem o ataque autoimune, então, ele vai despigmentar só uma área, isso é um mosaico. Ele tem umas áreas anormais da pele, que ele pode aparecer pintas anormais, pode aparecer doenças autoimunes como vitiligo. É por isso que esse aqui ninguém vai entender.
P/2 - Agora a gente entendeu, gostei.
R - Como?
P/2 - A gente entendeu agora bastante.
R - Agora deu para entender. A grande parte das pessoas, ninguém deve ter entendido isso aqui. Bom, mas vamos lá. O pai de todas as dores, é sobre dor, sobre o que a gente vê no dia a dia. E com rimas. Cara esse cara que me acaricia. Chegada a chaga que me aconchega. Prezada praga que me apraz. Camarada cancro que me acarinha. Estimado estigma que me estabelece. Querido queloide que me queda. Então, a cara desse cara que me acaricia. Então, eu tenho uma dor, mas eu tenho que saber lidar com ela, cara esse cara que me acaricia. Chegada a chaga que me aconchega. Chaga é uma ferida, a mesma coisa. Eu tenho que pensar alguma coisa de boa nela. Que me aconchegas. Ela é minha. Prezada praga que me apraz. Mais ou menos a mesma coisa. Continuando na mesma linha, camarada cancro que me acarinha. Cancro é uma úlcera. Estimado estigma. De Jesus, estigma que me estabelece. E querido, para finalizar, querido queloide que me queda. Queloide é o que sobra da cicatriz. Quando você tem uma cicatriz, em machucados, tudo. Eu quis dar um desfecho. O queloide é aquela cicatriz grande, aquela cicatriz que me queda. Queda é me resta. Para rimar o queloide; você viu que é tudo rimado? C com C, E com E, Q com Q. Queloide com queda. Então, eu meio me bati aqui para lembrar a queda. Ninguém sabe essa palavra. Queda. Quedar é restar. Que me queda. Eu caí? Não, é que me resta. É por isso que tem que ficar batendo em cima. Gostando ou não, pelo menos teve bastante trabalho em cima.
P/2 - Sim.
R - Se a pessoa gosta, se ela entende. Não sei, mas pelo menos eu posso dizer que eu trabalhei bastante. Ficou ruim, ficou bom, mas teve trabalho. Pelo menos eu lembro do Drummond na minha cabeça. ‘’Vai, vagabundo, faça, vai trabalhar.... Pelo menos... quer publicar alguma coisa, pelo menos tenta. Vai ficar bom, vai ficar ruim, pelo menos tem trabalho em cima’’.
P/2 - É interessante agora como leitora e ouvinte. Porque a gente conversou e o senhor trouxe muito pouco sobre... muito pouco, olha eu fazendo avaliação.
R - Não tem problema.
P/2 - Mas é que pelo texto, parece que acaba sendo um desabafo de coisas que são difíceis de serem vistas.
R - Sim. Então, é como eu disse, a gente sente as dores, a gente vê muita coisa nova, doenças graves. Eu atendo muito; dou aula para aluno de graduação e pós-graduação, os residentes. E às vezes eu vejo uma coisa muito séria, às vezes, um melanoma desse tamanho e até eu me choco. Eu já chego para eles aqui: “Eu não quero: Oh, uh, nossa, nunca vi”. Porque fazem. Não é por mal, é porque eles acham interessante, eles estão em um processo de aprendizagem. Então, eu sei que não é por mal. Eles não querem. Então, eu já aviso antes: “vocês vão ver uma coisa muito séria, muito grave, que eu nunca vi. Mas se controlem.”. Então, eu já falo para eles que nada de ponto de exclamação. Senão o paciente se sente um ET. E já vai falar: “morri”. Em alguns casos, infelizmente havia um melanoma desse tamanho, então, eu já aviso antes para não ter reações. A gente se controla. Eu já me controlo. Às vezes, eu não controlo. Vem mãe, às vezes, aqui. Uma mãe chegou aqui que o filho dela era paciente meu de muitos anos morreu. E eu desabei, “pum”. Então, não consegui. Mas eu tenho que estar bem. O paciente é o lado fraco. A gente aprende lá nos conselhos de medicina que a gente nunca pode brigar com o paciente. O paciente pode brigar com a gente, mas a gente não briga com o paciente, porque ele é o lado fraco. Até em problemas de processos. Se eu brigar com ele ou se eu xingar ele, eu não tenho razão, porque eu sou o lado forte e ele é o lado fraco. Então, eu tenho que estar; eu sempre fico impassível. Eu tento, pelo menos, podem me contar o que for. Vida sexual, vida do que for. Eu não faço consideração de juízo. Eu escuto e tento não demonstrar, mexer um músculo do rosto. Eu não estou aqui para julgar ninguém. É como você disse agora aí. Sem julgamento, não estou aqui para julgar ninguém. Mas muitas vezes a gente desaba. Eu já chorei algumas vezes. Mas geralmente é com morte. Acho que foi umas duas ou três. A mãe chegar, de paciente meu antigo, que eu já vi criança que virou adulto e já teve filho. Então, às vezes a gente vê a morte que me choca mais. De vez em quando eu desabo, mas mais é com morte. Com doença, a gente não, porque, eu tenho que ser positivo para ele. Eu não posso, é como eu disse, eu tenho que ser o lado forte, tenho que ser o lado positivo da vida deles. Então, eles têm que ter uma segurança. Se o médico vai falar para ele que ele jeito, que não cura, eu não. O que ele vai falar? Para quem que ele vai recorrer. Não que eu queira enganar, nada disso, mas se eu não tenho, eu tenho que achar, eu tenho que procurar, ou se eu não tenho, eu tenho que encaminhar. Então, eu acho que como todo médico sério que preza pelo paciente, ele encaminha o paciente, ele não segura o paciente. Ele tem que saber a hora de ele não ter mais o que fazer com o paciente. Tem que saber a hora de: acabou minhas forças. Eu vou procurar, vai em São Paulo, vai no Rio ou vai em algum colega que atenda mais psicossomática. Que talvez veja um lado que eu não consiga ver, que eu não consiga ajudar esse paciente. Porque. Às vezes um colega consegue, às vezes, eu posso tecnicamente saber mais que um colega, mas ele, pelo jeito de falar com o paciente, ele vai conseguir empatia, que a gente aprende em medicina é empatia. Às vezes eu não tive empática com o paciente, ele não gostou da minha cara. Como eu falava, o pediatra não gostou da minha fuça. Então, pode. Não gosta.
P/2 - E o senhora já recebeu alguma devolutiva de algum paciente em relação a esse trato que o senhor tem de não demonstrar reações? Pensando físico mesmo.
R - Sim, eu tenho, principalmente com os pacientes gays. Porque eu tive vários pacientes gays em uma época que não era comum. Eles falavam para mim. “Ah, eu tenho HIV, eu tenho... E me contavam coisas pessoais. Eu não demonstro, não sou nada. Eu sou médico aqui, estou aqui para o paciente, então. Atendo bastante por causa disso, porque tem respeito. Então, eu não menosprezo, não faço nenhuma consideração. Ele está aí, para contar o que está acontecendo. Se está acontecendo isso, é isso e acabou. Eu espero que eu seja assim. Eu tento ser assim pelo menos. Eu tento, pelo menos eu tento. Eu acho que eu nunca tive esses problemas de gêneros pelo menos eu nunca tive, por tentar ser impassível.
P/2 - E pensando os pacientes que vem com, pensando nessa parte física, vitiligo, dermatite atópica. Tem alguma coisa que o senhor faz, seja em toque, seja em jeito de olhar, que eles falam: “nossa”. O senhor não tem medo? Tem esse histórico?
R - A gente tem que pegar neles. O paciente de vitiligo, psoríase, dermatite atópica, as pessoas têm medo de pegar neles. Que seja contagioso. Então, eles gostam. Pega, segura neles, eles gostam. Então, tem caso de paciente com vitiligo que uma vez ele falou que ele era dono de um barco pirata. Ele ia puxar os clientes, as pessoas do barco e as pessoas tiravam a mão dele, tiravam a mão, porque ele tinha vitiligo. Ele estava estressado. É mais o toque, o medo, ou o contágio. Ainda tem aquela cultura bíblica da hanseníase. Então, de pegar e não sei o que, de isolar. Eu vou dar uma aula para eles na medicina de história do vitiligo. Então, eu estou vendo que desde quatro mil antes de Cristo, já começa. Na Pérsia e vai. Então, na bíblia a gente vê bastante. Então, eles isolavam os pacientes com doenças de pele. Então, o problema é que a pele é visível. Então, nós temos esse problema da estética e do contágio. É o nosso maior problema. Então, é por isso, o paciente não quer sair de casa com.
R - Eu atendi, esses tempos, uma moça que veio de capuz.

eu entrei com isotretinoina, para a acne, para ela e ela já começou a vir toda maquiada, sem capuz, porque ela tinha muita acne. Então, é o isolamento social que é o problema na dermatologia. Estética e contágio que são os principais.
P/1 - E como é para o senhor receber esse paciente que veio a primeira consulta com capuz e começou a tirar?
R - É muito bom. Eu tento não enrolar o paciente. A gente vê, “eu vou fazer um creme, vou fazer um peeling”. Eu vejo assim: no caso da acne: “teu caso não adianta”. Às vezes mesmo o jovem fala: “pai, não tem jeito, nós vamos ter que fazer uma medicação via oral”. “Eu sou contra, eu sou natureba, eu sou homeopatia”. “Pai, é assim, a tua filha não sai de casa, tua filha está se sentindo discriminada, essa é a medicação, é isso”. Se o pai vai querer fazer ou não, eu não sei, mas às vezes o filho quer, porque ele está se sentindo isolado. “Quero fazer homeopatia junto”, faça, pode fazer. “Quero tomar erva”, não sendo uma erva que tenha fotossensibilidade, tem algumas ervas que são fotossensíveis. O limão mesmo, você vai no sol e passa o limão e faz queimadura. Tanto que um remédio para vitiligo, é um psoralênico, é um fotossensibilizante. Se o paciente tomar o remédio de vitiligo, for no sol, na praia, ele faz queimaduras, bolhas. Então, tem remédios fitoterápicos que são fotossensibilizantes. A fitoterapia não é assim, a erva de São João, tem algumas ervas perigosas, de tomar e ir para o sol. Tem alguns remédios que você toma e vai para o sol que faz queimadura.
P/1 - A gente está quase finalizando, doutor. Para fazer um encerramento, o senhor casou?
R - Casei, fiquei treze anos casado, tive dois filhos, moram em São Paulo. O Felipe, que vai fazer engenharia de produção, estuda no Porto Seguro, colégio alemão; o Pedro, também mora com a mãe, está fazendo o terceiro ano de engenharia mecânica. Fiquei seis meses casado, conheci a minha esposa, apaixonei e já casei em seis meses, fiquei só seis meses solteiro. Já estou casado há seis anos, mas namoro ela há uns sete anos já, tem uma filha, a Giulia Petrelia de Castro, tem cinco anos. Estou muito feliz, a família superunida; eu, minha filha e minha esposa não desgrudamos, eles vão em todo o lugar comigo, toda viagem, para o exterior, todo o lugar que eu vou vão junto. A minha filha, em todo congresso de dermatologia ela tem foto com todos os presidentes do congresso, desde de meses até hoje, que o congresso brasileiro vai ser aqui agora, daqui a duas semanas vai ser o congresso brasileiro.
P/1 - E como o senhor se sentiu hoje contando a sua história para a gente?
R - Eu não queria falar, sabe, quem me convenceu foi a minha esposa, não queria falar mesmo. Eu já falei para vocês, já (inint) [01:52:27] memórias (Paraná) [01:52:28], que eu estou fugindo, e eu não queria, mas depois que eu comecei a falar, fala, não é, vai. A minha esposa que quis, a minha esposa separou as fotos, ela falou: “você vai, isso é bom para os teus filhos, para mim, para família”. Mas eu não queria. Já não sinto mais necessidade de falar, meu ego já foi amaciado há muito tempo já. A gente tenta sublimar, de ficar contando, mas a gente acaba tendo que contar mesmo, não adianta. Vocês perguntam da formação, a gente acaba tendo que contar, mas não é mais a minha intenção.
P/1 - Mas como o senhor se sentiu?
R - É bom lembrar algumas coisas do passado, é que nem a história da hanseníase, me veio a memória assim, eu entrando na casa da paciente, lá em Jacarezinho, e ela se afastando. Eu lembro que ela deu meio que um grito, ela gritou, ela gritou de susto de mim chegando ali. Ela gritou, se afastou, foi para o escuro e o outro médico falou: “ele é dos nossos”. Eu lembro até hoje. Lembrar da infância. É bom lembrar, lembrar da infância, algumas coisas assim que eu não conseguia lembrar, a fórmula pólvora, que eu vou ficar quieto agora.
P/1 - E para encerrar, doutor, quais são os seus sonhos?
R - A minha área de pesquisa mesmo é vitiligo, quero continuar publicando, não muito porque eu não tenho mais saúde, paciência e tempo para isso, eu tenho três filhos para cuidar, não é muito fácil. O que a gente vê agora é esperança para os pacientes. Na psoríase, a psoríase não tinha o que fazer, chegado os biológicos, agora eles têm muito remédio. Para a dermatite atópica vai ter remédio, para o vitiligo não tem remédio, é só fototerapia. Então, a gente sabe que no futuro, o futuro é maravilhoso para os pacientes. Eu falo assim: “você está preocupado com o teu filho de cinco anos”. A mãe tem vitiligo e o filho tem vitiligo. Eu falei: “para você, eu sei, é chato, vai demorar um pouco, mas para o teu filho o futuro vai ser maravilhoso, a medicina ela está avançando”. Para o câncer, então, a medicina é uma das maiores esperanças nossas, então, a gente vê que muita gente que morria não morre mais, então, na área de medicina eu fico tranquilo. Eu fico um pouco desesperançoso porque tem médico demais. Tem médico demais. Agora nós somos o país que tem mais faculdade de medicina no mundo, passamos china, passamos (Índia) [01:55:35] e Estados Unidos. O que acontece é que é mal concentrado. Talvez, no futuro, eu tenho esperança que talvez tenha carreira de médico do estado, como tinha antigamente, como faz o exército, começo de carreira, vai lá para o Oiapoque, começa trabalhando mais lá no Oiapoque e vai subindo, depois ele vai para Londrina, depois ele chega para Curitiba, no final da carreira, como acontece com juiz. Nós temos que assentar esses médicos em algum lugar, isso aí tem que ser política de estado, iniciativa privada não vai fazer isso. E na época do regime militar, ainda na época do Sarney, ainda tinha os médicos do SUS e agora acabou, aposentou. Se tem dinheiro para isso, não sei, não sou eu que vou falar isso, mas tem que ter médico assentado nas cidades, senão todo mundo quer ficar na capital. Todo mundo quer teatro, todo mundo quer cinema, shopping, escola boa para os filhos. Para a minha especialidade, então, é uma maravilha. Eu vou ficar mais alguns anos, trabalhar, eu adoro isso, eu vou continuar porque eu gosto de trabalhar com essas doenças, vitiligo, psoríase, dermatite atópica. Eu vou ficar, espero ficar até ficar bem velhinho. Meus filhos já estão maiores, eu espero que eles se deem bem na vida, espero ter saúde para criar a minha filha mais nova, que tem cinco anos, que os meus, um já vai se formar, o outro está entrando na faculdade. Ter saúde e poder vela bem formada e, de preferência, casada, mas com uma pessoa boa. Minha esposa fica brava comigo, “ela tem que ter profissão”. Claro que ela tem que ter profissão, mas eu, como pai, eu quero que alguém cuide dela, cuide da minha filha como eu cuidei. Claro, ela tem que ser independente, minha esposa é independente. Ela fala, “machismo”. Não, eu quero que alguém cuide dela como eu te cuido, como o meu pai cuidou da minha mãe, até hoje, eles estão velhinhos, eu tenho 50, tem o companheirismo, então, eu queria poder ver isso, não sei se eu vou conseguir.
P/1 - Qual é o nome da sua esposa, doutor?
R - Karen.
P/1 - Então, doutor, eu quero agradecer a Karen, por ter convencido o senhor a topar fazer essa conversa com a gente hoje e também agradecer o senhor por receber a gente nessa manhã inteira e poder compartilhar a sua história que foi incrível de ouvir.
R - Obrigado.
P/1 - Então, em nome do Museu da Pessoa, muito obrigada por essa manhã, doutor.
P/2 - Muito obrigada.
R - Obrigado. Eu que agradeço. Eu disse que não queria falar, mas falei.
P/1 - E foi ótimo ouvir, doutor. Muito obrigada.
P/2 - E pena que a gente não tem mais tempo, porque tem muito mais para contar, obviamente.
[01:58:43]