Museu da Pessoa

Samba e Religião

autoria: Museu da Pessoa personagem: Amélia Oliveira da Silva

Memória dos Brasileiros
Depoimento de Amélia Oliveira
Entrevistada por Tiago Majolo e Antônia Domingues
São Francisco, 09/12/2007
Realização: Museu da Pessoa
MB_HV094
Transcrito por Ana Lúcia Queiroz
Revisado por Paulo Ricardo Gomides Abe


P/1 – Vamos começar, dona Amélia. Pra começar queria que você falasse seu nome completo.

R – Amélia Oliveira da Silva.

P/1 – A senhora nasceu onde?

R – Aqui, Bahia do ____.

P/1 – Que dia?

R – Dia 12 de julho de 1936.

P/1 – Qual o nome dos seus pais?

R – Manuel José de Oliveira e Helena Celestino dos Santos.

P/1 – O que eles faziam?

R – Meu pai era remeiro antigamente. Minha mãe era ____ de roça. Vendia verdura.

P/1 – O que é remeiro?

R – Daquelas barcas que tem aquelas figuronas. Isso é coisa antiga, acho que vocês não conheceram.

P/1 – Como que é? Conta pra gente.

R – Aquelas barcas que tem aquelas figuronas, eles carregavam de carga, iam pra Santa Maria da Vitória levar mercadoria. Iam vender e voltavam com rapadura, o que tinha de compra pra trazer pra cá. A profissão dele era esta.

P/1 – E tinha muito remeiro naquela época?

R – Eram muitos. Agora ___ eu só sei dizer do meu pai, porque minha mãe contava pra mim.

P/1 – E aqui no rio, aqui na frente, a senhora via muito?

R – Viu. As barcas grandes.

P/1 – E a senhora conheceu seus avós?

R – Só conheci da parte de mãe vó, que era a vó Celestina. Da parte de pai nem meu pai eu conheci.

P/1 – O que fazia a Celestina?

R – Era trabalhadora também, de roça.

P/1 – São daqui?

P/1 – A senhora tem irmãos? Quantos?

R – Tenho. Agora só tem uma. Eram seis, mas Deus levou quatro, ficamos nós duas.

P/1 – Como era a ilha quando a senhora era pequena?

R – Era muito menor que isso, muito. Morador era muito pouco. Agora com o tempo aumentou muito, as famílias foram rendendo, foram fazendo casa. E hoje já está quase uma cidade.

P/1 – Mas como eram as casas na época?

R – Tudo de taipa, barro. Agora estão fazendo tudo de bloco.

P/1 – E quem viva aqui viva do quê? De agricultura?

R – Era. Só de roça mesmo.

P/1 – Como era uma casa com seis irmãos? Muita festa, muita brincadeira, muita travessura?

R – É, violão que não tinha viola. Fazia festa.

P/1 – Quem tocava violão?

R – Ah, tudo já foi. Meu irmão mesmo tocava. Os outros todos já levaram tudo. E os de hoje não querem nem aprender a tocar violão.

P/1 –Quem ensinou ele a tocar? Aprendeu a tocar sozinho?

R – Ah, o mundo e a boa vontade. Ele aprendeu tocar.

P/1 – E vocês brincavam por aqui? Muito no rio também?

R – Era, brincava mais aqui, no lugar.

P/1 – No rio não?

R – Não.

P/1 – Não tomava banho de rio, nada?

R – Não, a gente nesse tempo não tinha essa de tomar de rio, não. Tomava banho no rio e voltava pra casa. E hoje o povo mora dentro d´água. Tomando banho de praia. Nesse tempo não tinha praia, e hoje tem.

P/1 – Tinha mais árvores? Como era aqui, era igual?

R – Era, mais árvores.

P/1 – Tinha muita fruta aqui?

R – Pelos menos goiaba, goiabeira, mangueira, ___. Tem muita goiabeira.

P/1 – Conta uma coisa: tinha muito barco esse rio antes?

R – Tinha, mas agora está mais. Tem muita canoa a motor, tem barco a remo. E está seguindo pra frente. Até onde eu não sei onde vai.

P/2 – Quando a senhora tinha que atravessar, como fazia?

R – A gente, quando não tinha canoa a motor, ia a remo. Não sabe desse barco que rema de um lado e rema do outro? A gente atravessava por aqui, Pernambuco era assim. Quando botava o pano, ventava grosso, o vento levava. E a gente nem tinha medo. Mas hoje tem canoa a motor. Com o motor vai-se embora, fica melhor. Já tem uns carros na pista pra levar a gente pra Petrolina. A gente encosta e chega lá na pista e pega as bestas, e a gente vai e vem. É rápido. Pois é.

P/1 – Quanto tempo demorava pra atravessar a remo?

R – Demorava muito. __ por força dos outros. Demorava. E agora não.

P/1 – Vocês iam lá fazer o quê? Iam comprar coisas?

R – Era. Tinha que ir na rua comprar as coisas, o alimento. Vender as coisas. Era sim.

P/1 – Ia muito pra lá então?

R – Ia sim. Vender verdura no mercado. Negociar as coisas que tinha de roça.

P/1 – E como era aqui na ilha? Tinha muita festa religiosa?

R – Religiosa tem. Do padroeirão, mês de junho. E depois de tudo ainda tem a penitência.

P/1 – Conta o quê é a penitência.

R – (Alimentadeira?). Na quaresma a gente faz. Tudo isso tem.

P/1 – Mas como é que é?

R – A gente ______ almas quando a gente morre não se veste. Assim mesmo é a _____. A gente se veste num pano branco, mas o cordão de São Francisco, e sai fazendo serviço pra santa. Fazendo as estações e rezando. Até a sexta-feira da paixão. Agora esses dias aqui é muito religioso. A gente tem grande respeito por essa semana santa.

P/1 – E fora as festas religiosas. Tinha outro tipo de festas?

R – Que eu conheço, não. Só os forrós. E agora tem os barcos. E os caboclos vão beber, e ladrão.

P/1 – Quando a senhora era pequena não tinha isso?

R – Não, não tinha, não.

P/1 – Como fazia pra se divertir?

R – No dia, quando eles queriam tocar violão, a gente se divertia. Batia palmas. É assim. Mas não tinha.

P/1 – Era na rua, em casa, na praça?

R – Era em casa mesmo. Tinha aquela casa pra pessoa brincar. Dia de sábado, por exemplo: “Dia de sábado tem uma brincadeira na casa de fulano. Vamos, vamos!”. A gente ia pra se divertir. Era assim. Mas hoje valorizou muito. Tem muita coisa pra frente.

P/1 – Como era a educação na época?

R – Pouca. Não tinha colégio. Quem ensinava era nas casas de família. Já hoje em dia tem colégio. Tinha até uma creche, mas acabou. Tem até um posto que não tinha. Já tem. E está aumentando. Eu confio em Deus de ir mais pra frente.

P/1 – Mas a senhora aprendeu as coisas em casa? Tudo.

R – Foi. Era em casa. Casa mesmo.

P/1 – E essa educação dos pais? Respeito aos mais velhos. Como que era?

R – Ah, tinha. Hoje não tem. Hoje não tem; eu posso dizer que não tem. Antes pra trás todo mundo respeitava. Pai, mãe, avó, mais velhos. Mas hoje nem os pais eles querem respeitar.

P/1 – O que as meninas aprendiam era diferente dos meninos ou era igual?

R – (risos). Era igual. Pois é.

P/1 – E as brincadeiras com os irmãos? Brincavam do quê?

R – De nada. (risos). Não tinha brincadeira. Brincava com nada.

P/1 –Mas trabalhava?

R – Trabalhava. A gente ficava dentro de casa fazendo as coisas. Quando chegamos estava tudo cansada. Depois que estava rapaz. Tinha o horário de chegar e o horário de sair. E nós ficávamos dentro de casa com mamãe. E assim ia vivendo. Mas acho que hoje tem muita diversão pro povo se divertir.

P/1 – O que tem de diversão agora?

R – Ah, é só o bar. É a diversão que tem. E só vive brincando.

P/2 – _____________.

R – Ah, sim. Tinha uma festa, mas já...

P/2 – ________.

R – Tinha a festa de Joana D´Arc, era um negócio de centro. Era muito animada, muito boa. Mas só que o dono agora adoeceu, não pode mais seguir a festa dela.

P/2 – _____________

R – Eram as mulheres vestidas de traje de índio, de penacho, de flecha. De arco na mão, outras com espadas. Era muito animado. Todos meses de novembro tinha essa obrigação a fazer. Mas ele adoeceu, não deu mais pra fazer e não teve quem se responsabilizasse pra tomar conta. É muito funda essa festa de Joana D´Arc, só ele mesmo que podia entender.

P/2 – _____

R – É.

P/1 – Tinha marujada? Como era a marujada.

R – Os homens, os marinheiros de branco. Boné de marinheiro, farda de marinheiro. Vocês conhecem os marinheiros de ___. A capitania. Tudo de branco, bonezinho. Soltava o barco no rio. Barco grande, enfeitado, cheio de flores, perfume. E soltava os barcos assim no rio. O barco descia, não sabia pra onde ele ia, cheio de presentes. Os marinheiros voltavam pra casa e iam brincar. Aquele giro. Acho que vocês ouviram falar, não? No giro do ____.

P/1 – Não. Conta pra gente.

R – Coisa que tinha. Tinha hoje acabou.

P/1 – Conta pra gente como que era?

R – É isso que estou lhe falando. Era assim.

P/1 – Giro?

R – É giro. Quando voltava pra brincar dentro dos centro. Era aquele giro, aquela roda de gente brincando. E a gente brincava.

P/1 – __________

R – É, a festa do ___ que a gente chamava de irmão. Os irmãos de luz.

P/1 – Quem participava?

R – Era meu cunhado. Mas ele não pode mais.

P/1 – Era só de homens? De mulheres?

R – Eram todos. As duas partes. Homens e mulheres. Tudo brincava.

P/1 – E a senhora trabalha desde que idade?

R – Ah, eu comecei a trabalhar desde novinha, pra ajudar a mamãe. Eu não reconheci pai, não. Mamãe ficou viúva. Eu fiquei com a idade de dois anos. Quando deu dos dez anos em diante eu comecei a trabalhar na roça. Na vazante. Plantar canteiro de coentro, alface, cebola, pimentão. A convivência da gente era isso. Assim que nem eu era todos. Assim.

P/2 – _________ festa de São Francisco?

R – Sim, ainda tem a festa de São Francisco. Parte de outubro, a gente saía nos barcos fazendo uma procissão no rio. Muita gente, quando a procissão volta, encosta aqui, tem a missa na beira do rio. O padre vem fazer celebração lá mesmo no rio, não vem aqui pra igreja. Lá mesmo faz a celebração. E tudo isso a gente vai se animando, tendo fé. E a gente vai andando. Era assim.

P/1 – Como eram as comidas aqui?

R – Feijão, arroz, (risos). como sempre é. Macarrão, peixe. Agora peixe está difícil. Os que vão pescar não pegam peixe.

P/1 – Ah, é?

R – É, depois do Sobradinho. Meu filho, os peixes estão tudo na área de cima. Aqui é difícil. Hoje pra gente comer um peixe melhor tem que ir na cidade comprar. Porque aqui não tem.

P/1 – Que peixes que tinha aqui antes?

R – Tudo. Foi peixe, era ___, camatá, piau, ___, ___, curvina, traíra. Tudo tinha. A gente comia do que queria. Mas hoje, não. Se nós não tivéssemos aproveitado. (risos). Hoje ___ não tinha. Era assim.

P/1 – E a senhora cozinhava desde pequenina?

R – Era o jeito. Cozinhar a panela de feijão. (risos)

P/1 – O que a senhora gostava de cozinhar mais?

R – Homem, eu gostava era de tudo. Porque, se não cozinhasse, a gente não comia. O jeito era fazer tudo. Minha mãe trabalhava, que era o homem e a mulher. E a gente ficava dentro de casa. Tinha que fazer as comidas para quando os irmãos chegassem pra estar pronto. É isso.

P/1 – Os irmãos trabalhavam onde?

R – Alugado. Trabalhando fora.

P/1 – Fora daqui, pegava o barco e ia?

R – Era. Trabalhava lá, em Pernambuco.

P/2 – Fazia farinha, rapadura?

R – Não, rapadura não. Agora a farinha. Hoje aqui onde tem essa igreja era a casa de farinha. Era a casa de farinha da minha avó. Amassava muita mandioca. Mas agora não plantaram nem mais, pra quê? Nas vazantes quem quiser plantar agora está plantando aqui pra trás. ___ dessa _____, ficou tudo difícil. Pouca gente está plantando mandioca agora. Mas tem uma casa de farinha lá embaixo da dona Raimunda.

R/2 – Planta, até hoje eles plantam.

R – Agora baixou muito a plantação de mandioca. Aqui antigamente era tudo plantado. Nessa época mesmo estava desmanchando farinha. Puxando no rodo. Os homens. puxando no rodo. Agora é a motor. (risos)

P/2 – E dividia assim, entre a comunidade?

R – Não, dava a ___ casa de farinha. Quando tirava aquela porção de farinha e dividia com a dona da casa de farinha. Dava um pouco. Também, os outros moradores tudo tinha. Nem precisava.

P/2 – Cachaça fazia, ou não?

R – Ai, ai, ai. Agora cachaça! (risos) Cachaça hoje está mais do que o que era. Agora as cachaças aumentaram, menina. Que só os bares! É cheio de cachaça, cerveja, refrigerante e os cambau, tudo tem. Que antes, pra trás não tinha.

P/1 – Amélia, morando tão perto do rio vocês tinham alguma história do rio: assombração, lenda, alguma coisa assim?

R – De bicho d’água?

P/1 – Conta pra gente.

R – Eu não sei essa, não. (risos) A gente nunca viu isso, não! Vem dizer que tem. Tem um nego d´água, que é um nego preto gordo, musculoso. Mas nós nunca vimos aqui, não.

P/2 – E seu pai?

R – Eu não sei, dona Raimunda, eu não conheci ele. Não sei. Mas de ter, tem.

P/1 – O que os mais velhos diziam da história?

R – Que tinha esse.

P/1 – O que eles faziam?

R – Que a gente não podia ver ele. Que ele corria atrás da gente. Não sei dizer. Tinha a cabeça pelada. (risos) E gordo. Diz que é um toquinho assim. Eu nunca vi! E nem quero ver. Diz que com mais gente. Aqui ele nunca veio, não.

P/1 – Mas vocês tinham medo quando eram pequenos?

R – Oh, se a gente tinha. A gente ouvia dizer; a gente tinha até medo de se perder no rio. Porque ele corria atrás. A mãe da gente fazia medo, pra gente não brincar no rio. E agente não ia. Esse tipo de nego d´água a gente não reconhece, não.

P/1 – Tinha mais alguma história?

R – E eu sei mais histórias, menino?

P/1 – Mas tinha mais lendas dessas?

R – Do padroeiro, Santo Antônio. Santo Antônio, ele está no meio de nós, mas ele não era daqui.

Porque a gente tinha ___, é irmão de meu avô. Chamava-se Antônio também. Mas vocês não ouvem falar – que nenhum de nós alcançou esse negóco de guerra dos Canudos. Tinha uma guerra dos Canudos pra fora. E meu tio era polícia e foi, chamava pra ir brigar lá na guerra. Ele foi. Ele era polícia, ele foi chamado pra essa guerra e foi. E lá o pessoal tudo correndo com medo de morrer nos tiros. Ele vinha. Acho que ainda hoje tem bornal, não tem? De botar as boalas dentro, revolver. Então, ele vem correndo, de medo de ser atingido por um tiro. Quando ele avistou, viu aquele no chão. Ele abaixou e disse: é um santo. Botou no bornal. Quando acabou a guerra – Deus ajudou que ele não morreu –, ele veio embora. Chegou, deu pra minha avó, que era cunhada dele. “Toma, Celestina, esse santo que eu achei correndo, encontrei o santo. Acho que deve ter me ajudado”. Ela ficou com o santo. Rezava terço. E com a continuação de terço passou pra novena. Era numa casinha de taipa, casa de barro. E depois, com o tempo foi passando; hoje em dia ele está em uma igreja. Com o ajuda de Deus, e dos políticos que estão aí; hoje está nessa igrejinha aí pra gente orar.

P/1 – E a padroeira daqui?

R – Santa mulher? Ele é padroeiro de tudo. Ele é padroeiro de homem e mulher. Dia 13 de junho é a festa.

P/1 – Como é a festa?

R – Tem procissão quatro horas da tarde. Tem a missa, a novena termina no dia 12. Dia 13 não tem mais novena, é só missa e procissão. Agora depois de tudo tem casamento, batizado. Tudo isso na festa. Tem muita gente, graças a Deus. Quando realiza isso tudo da igreja, vamos pro forró?

R/2 – Apresentação de quadrilha, ___.

R –Ah, é mesmo dona Raimunda? Eu esqueço.

R – Samba de veio ele não quer mais que ele já ouviu.

P/1 – Não, a gente vai perguntar depois. Como era o rio antes. Ele era igual agora, ele era mais cheio?

R – Não, ele era mais cheio. Realmente agora no mês de dezembro, no festejo de natal. Hoje em dia é mato – se eu disser parece que estou mentindo – aqui era cheio de mandioca. Aqui não tinha esses matos, não. Era planta, era mandioca, batata. O povo ia pra missa de natal na cidade e voltava no mesmo dia. Você sabe que a missa é 12 horas, não é? Quando terminava a missa, o pessoal voltava pra vir arrancar as mandiocas. O rio era cheio, nunca chegou a esse ponto, não. Mas agora ele está muito baixo, depois da barragem de Sobradinho. Oh, abaixou muito. Ele enchia tanto que tinha gente aqui na ilha que se mudava. Ele entrava na ilha.

P/1 – Vinha até aqui em cima?

R – Vinha. Aqui por detrás. Agora aqui ele ficava aqui nesse barranco. Nós chegávamos aí. Não tinha medo de nada. O rio ficava bem aqui. Cheio, bonito! E por aqui por detrás, ele ficava aqui, nesses pés de ___. Nós aqui nunca nos mudamos, não. Mas gente que mora naquela área ali pra baixo se mudava. Mas agora não se muda mais porque não tem mais rio. O rio ficou lá mesmo.

R/2 – Conte depois da festa de Santo Antônio qual a outra festa que vocês fazem aqui, por tradição no mês de janeiro?

R – Ah, é o Reis. Nesse mês que entra, se Deus quiser.

P/1 – Como que é?

R – A gente sai nas casas cantando reis e fazendo samba. Cantando reis e fazendo samba. Vai o mês todinho pra poder acabar as casas. Um dia sim, outro dia, não. Antes pra trás a gente terminava no dia seis. Porque era pouca casa. Mas hoje não tem condições. Vai o mês todo brincando samba, e cantando reis, bebendo cachaça. Até o dia 30.

R/2 – Mas no dia seis tem o quê?

R – A missa na casa dela. Lá. Ela faz a missa de dia seis de janeiro no ____, na casa dela.

P/1 – Amélia, as histórias do lugar, dos santos, a senhora aprendeu com quem? Quem te contou?



R – É porque eu ouvia minha avó dizer. Minha avó passava pra nós. Naquele tempo a gente era menina, tinha mais ouvido pra ouvir e aprender. Mas hoje não tem mais, não. Acabou. A gente lembra mais do passado do que os novos.

P/1 – Como que era? Ela contava quando ia trabalhar? Na cozinha?

R – É, ela contava pra nós, nós víamos ela fazer também. Minha avó morreu com 105 anos. E ela contava as histórias. E nós ficávamos todos assistindo. Não tinha outra coisa. Ia assistir o que ela dizia e ficou na memória.

P/1 – Ela morava com vocês?

R – Não, ela morava na casa dela mais os outros filhos. Era viúva também.

P/1 – Vocês iam pra lá ouvir histórias.

R – De noite, não tinha televisão, não tinha rádio. A gente ia ouvir ela dizer as coisas e a gente escutar. Por isso que a gente sabe. Mas se hoje, como eu já estou idosa, se a gente contar pra esses novatos eles não ligam, não. Amanhã vai procurar o que foi que passou na vida deles ver se eles sabem. Quando chegar certa idade. Não sabe. Porque não liga. E a gente voltava pensando nas coisas.

P/1 – A senhora começou a aprender o samba de véio quando? Quando a senhora pela primeira vez viu isso?

R – Ah, isso aí depois que eu fiquei com entendimento, de 12 anos, eu via meu pai sair em reis, saía de noite já, às dez horas da noite. Dando tempo pra gurizada dormir. Então ele saía. Eu não saía, eu não saía não porque eu era pequena. Fui crescendo, quando eu fiquei de certa idade ele já tinha morrido. Mas ficaram os outros. Continuando a mesma coisa que ele fazia. Eu segui mais os outros, aprendendo também. Quando ele morreu, não alcancei mais ele cantando reis. Mas ele deixou. Os outros amigos dele, que saíram com ele, não deixaram. Ficou aquela história de pai pra filho, de amigo pra amigo. Que o samba ___ não era reconhecido como está hoje. Hoje quem está reconhecendo o samba pelo mundo, ela que é vereadora; quis morar aqui, comprou uma roça. Fez uma casa se engajou no samba e está levando o samba aonde ela quer. Foi pra Recife, Paulo Afonso, foi pra ___ aqui perto de Petrolina, Salvador. Petrolina quase não____. Porque quase todo mês a gente está indo. A festa da lavandeira, lá em Recife. A gente vai com ela. Agora aqui é eu mesmo. Mês de janeiro é conosco mesmo.

P/1 – Que idade a senhora tinha quando foi a primeira vez?

R – Ah, eu já estava com meus quinze anos, que comprava dos outros. Mas o reis nunca acabou. Eram os mais velhos, que eram meus irmãos. Morreram meus tios e ficamos nós. Sustentando. Agora não sei até quando nós vamos, Deus é quem sabe.

P/1 – E era de noite, sempre?

R – É à noite. A gente janta, dorme um sono pra ficar até tarde da noite. Dando um tempo pro povo dormir pra acordar no zoar do tambor. Agora já ela está fazendo um samba mirim, de criança. (risos) Porque quando os velhos acabarem os mirins já estão sabendo o que vai fazer. Não é assim?

P/1 – Mas que horas começa o samba?

R – A gente começa umas dez horas.

P/1 – Vai até quando?

R – Vai até quando a gente aguenta. Quando a gente cansa, vai embora. Porque samba puxa muito a gente. E o povo já está mais fraco, não aguenta mais.

P/1 – Carnaval aqui que época que é? Carnaval mesmo, fevereiro?

R – É, em fevereiro. Mas eu não estou mais brincando, não. Já brinquei. Agora estou velha me encostei.

P/1 – Quais os instrumentos que tocam no carnaval?

R – É surdo, é pandeiro, é violão. Sai aí cantando na rua, nos bares, se adivertindo. É assim, pulando. Como o carnaval mesmo, se fantasiam aí. Eu brincava muito. Saía muito com meu irmão. Mas ele morreu e perdi o gosto.

P/1 – A senhora toca o quê?

R – Tamborete.

P/1 – E canta? Todo mundo canta?

R – Todo mundo canta. Mas a festa de ___ é eu. Todo mundo canta.

P/1 – A senhora podia cantar um pouquinho pra gente?

R – Não que sozinha eu não canto. Sozinha eu não canto, não. Vá assistir o CD. Você não viu ali?

P/1 – Mas é só pra te ver ao vivo?

R – Ai, ai, ai. O CD não é ao vivo? Sozinha fica feio. Ele tem o CD. É a mesma coisa. Ficar cantando sozinha!

P/1 – Como é a batida?

R – Assim, como você está batendo palmas. Pois é, e a gente canta o reis. Depois do Reis canta o samba. Chega na sua casa, se você quiser o samba a gente pergunta: “Pode entrar?”

Então quem ___, se você disser: “Pode sambar”. Nós entramos. Se disser: “Não, só quero reis”. Nós ficamos ___ pra outro caso. Se disser: “Pode entrar?” “Pode entrar!” Nós entramos, cantamos samba, bebe cachaça quem bebe. Eu que não bebo.

P/1 – E quem está em casa oferece comida?

R – Não. Bebida. Comida só se for um Reis de Rancharia. Rancharia fica numa casa só. Por exemplo: se dona Raimunda diz: “Quero o Reis lá em casa”. Nós vamos, é só a casa dela. Ela tem obrigação de dar comida. Sempre dá comida. Dá bebida. Porque é só na casa dela. Mas a não ser, quando é de porta em porta, de casa em casa são só as bebidas.

P/1 – E a roupa?

R – São todas roupas. Essa aqui é a roupa da viagem dela.

P/1 – Quem faz as roupas?

R – Eu não sei, não. Ela manda fazer. Ela, a Raimunda, tem a costureira que ela manda fazer a roupa da gente. Pra gente viajar. Viaja com a gente então não sei pra onde. Agora vamos pra onde? Pro Rio de Janeiro?

P/1 – Quando você era pequena, tinha alguma roupa especial?

R – Não, não tinha, não. A roupa era comum. Toda roupa. Essa roupa é novata, dona Raimunda quando vai pra Recife ela inventa uma roupa; vai pra Paulo Afonso ela inventa outra roupa. Vai pra Savador – roupa. Teve um lugar que ela foi que eu não fui. Aqui pro lado de Pernambuco, eu não fui, não. E ela está pondo a gente pra andar. Pelo menos a gente está conhecendo outro lugar. Parado só poste.

P/1 – O que a senhora sente quando canta e dança?

R – A gente se sente bem. Não sei dizer quem canta seus males espanta. Está animando, está brincando o povo sapateia, e bebe cana, e dá viva. E se anima. E assim a gente vai. Quando chega aquela alegria: “Chegou reis! Dá o nome de reis”. E a gente fica toda animada. Pra mim é melhor que forró. Porque forró a gente espera que o cavalheiro venha tirar. E o samba a gente cai dentro sem ninguém tirar. Chega ver o samba dá vontade de sapatear. E sapateia, brinca, dá umbigada no outro. Aquele outro sai dá umbigada naquele outro. E vai indo. E está brincando. Não tem isso, não. Seja veio, seja novo. Chama samba de veio __ porque, __ é. Mas o samba é de todos nós. Ainda tem um que dança com a garrafa na cabeça. Mas essa garrafa na cabeça não teve mais.

P/1 – Como era isso?

R – Brincava com uma garrafa na cabeça. Sapateava, rodava, brincava e a garrafa não caía. Mas só que eu não faço isso. E ela desistiu.

P/1 – A senhora não sabe porque chama samba de “véio”?

R – Eu não sei. Não sei por que botaram samba de “véio”. Todo tempo dançava todo mundo. Ainda hoje dança. Todo mundo é velho ou novo sempre gosta da diversão. Todo mundo brinca. Botaram nome de samba de “véio”. Não sei por que, diacho.

P/1 – Mas quando a senhora era pequena, só gente mais velha que sambava ou era todo mundo?

R – Não, tinha mocidade também. Tinha muita moça. Só que essas moças casaram tudo. A maior parte já morreu. E os outros estão vivos aí brincando. É porque vocês não andam aqui no mês de janeiro pra vocês verem. Vocês vão embora.

P/1 – Só acontece em janeiro? Acontece sempre.

R – Acontece em janeiro. Reis direto é em janeiro. Se sair hoje amanhã não sai, vai descansar. Vai sair depois.

P/1 – Dia sim, dia não.

R – É, um dia sim, um dia não. Dia primeiro de janeiro. Dia primeiro de janeiro é o dia, nós saíamos. No dia dois não sai, vai sair no dia três. Senão a gente morre de tanto sapatear e cantar. (risos)

P/1 – Como é que foi quando a senhora subiu ao palco a primeira vez?

R – Ah, tudo tem a primeira vez. A gente toma um choquinho, mas acostuma. Perde vergonha, perde tudo. E ficar sem dizer nada, como que é? Eu não estava aqui falando com vocês! Eu não sabia nem falar, como não sei, vão desculpando a minha palestra. Mas se a gente acomodar, é pior. “Eu não sei, eu não sei!”. Como é que aprende?

P/1 – A senhora estava contando quando pisou no palco pela primeira vez. Conta como é que foi essa história?

R – Lá no parque da lavadeira a primeira vez? Foi bom! A gente tem que cantar, sambar, o povo aplaudia a nossa apresentação. Foi ótimo. Pela primeira vez a gente se libertou. A gente ficou muito bem, todo mundo alegre, cantando, dançando em cima do parque lá. Foi em Recife.

P/1 – Você estava com medo de ir? Estava com vergonha?

R – É. A gente tem que estar com vergonha que a gente nunca fez. Ué, se a gente não andar não aprende, não é, não? E a gente foi, cantamos lá. Brincamos, o pessoal gostou muito como ainda estão gostando. Esse ano a gente não foi, o pessoal está sentindo a nossa falta. (risos). Mas é assim mesmo. Outro dia voltarei de novo lá.

P/1 – A primeira vez foi na festa das lavadeiras, é isso?

R – Sim. Foi.

P/1 – Que festa é essa?
.
R/2 – É no bairro do Cabo de Santo Agostinho. Lá em Recife. É uma festa cultural.

P/1 – E, quando vocês vão se apresentar; vocês ensaiam antes?

R – Não, a gente já sabe tudo de cor. Está tudo na cabeça. E a gente canta, não precisa mais ensaiar. Já está tudo decorado; o que vai fazer, o que vai cantar.

P/1 – Quantas músicas vocês têm? Tem muita música?

R – Não sei contar, não. É o que vem na memória que a gente canta.

P/1 – E tem música nova que vai surgindo?

R – Não. Quanto mais elas vierem, melhor é.

P/1 – E a senhora conhece todas?

R – Um pouco. A gente vai lembrando, vai dizendo. Vai cantando. Com isso nós estamos cantando nosso samba.

P/1 – A senhora é a mais velha do grupo?

R – Sobre o que ficou, é. Tem mais velha do que eu, mas não é filho da terra. E eu sou.

P/1 – A senhora ficou pra ensinar os mais novos?

R – Tem uma pessoa que está ensinando os mais novos. É Francisco. Eu não quero saber de ensinar menino, não. Eu ensino meus velhos mesmo que já são sabidos.

P/1 – Por quê?

R – Menino dá muito trabalho. Menino é uma escola. E meus velhos já sabem. Os menininhos já estão. Muitos já sabem.

P/1 – Quantos são hoje em dia?

R – Ah, é muito. Passa aí 40 pessoas pra viajar com elas. E pra nós brincarmos aqui no mês de janeiro são várias. São muitas pessoas. Isso é quantidade; é a vontade.

P/1 – E todo mundo da cidade vem participar.

R – É, aqueles que sabem e gostam vêm. Não brincam, mas vêm assistir. Acompanhar a gente a cantar samba.

P/1 – Gente de fora também vem?

R – Vem da cidade, vem do ___ ali. De todo canto, acompanhar nós. Só pra ver a ___ brincar.

P/2 – Fernando ___ ?

R – Sim, o professor Fernando Mendonça de Recife vem. Traz os alunos dele. E assim nós vamos andando.

P/1 – O que a senhora espera do samba daqui pra frente? Que fique sempre vivo?

R – Ah, espero boa coisa do samba. Eu espero muita coisa boa do samba. E agora esperei tanto, que vocês vieram. (risos). Vieram me tirar pra uma palestra.

P/1 – Uma coisa, Amélia. E pro São Francisco, esse rio que está ficando mais seco? O que a senhora espera dele?

R – Não sei, espero que volte as águas. Confiar em Deus. Porque se for como está a programação aí dos homens; querer tirar o rio, vai ficar ruim. Se o rio secar nós morremos. Porque é a riqueza da gente, o rio São Francisco. Não tem um padre aí passando fome em benefício do rio? Pois é. Nós sem água não somos ninguém. Sem comida é ruim, sem a água é pior ainda. Olha o tanto que ele diminuiu. Pedronas aí, tudo aí de fora. As ___ tudo aí rasa. Ontem mesmo a gente foi à missa ali no baiano; que a gente trata o baiano; a barca vinha encalhando nas coroas, eu ficquei com medo de ser até uma pedra. O motorista foi o jeito botar mais pra fora. O rio secando. A gente não quer que ele seque. Se ele secar o que será de nós aqui? Quem é que faz isso? Os ricos. Tirando o rio, mas não pros pobres, pra eles mesmo. E a gente não quero que aconteça. Primeiramente Deus, Deus não vai deixar que eles tirem essa água.

P/1 – A senhora não quer cantar pra gente um pedacinho, não?

R – Não. Eu sozinha fica feio pra cantar.

P/1 – Então, o que a senhora achou da entrevista?

R – Não, agora quem responde sou eu. Pelo menos eu, pela palestra que nós temos, estou achando muito bem. Agora não sei vocês aí, o que acharam de mim. Se estou falando certo ou se estou falando errado.

P/1 – Está ótimo.

P/2 – A senhora que sabe o certo. A gente está aqui só para escutar.

R – E vocês pra ouvir.

P/2 – E a música do CD seu? ___ música como é?

R – Eles ouviram ___. No primeiro campo do CD? Não sei não, dona Raimunda, só veio depois. Só ___ porque primeiro a gente canta o reis. Depois que vem uns batuques. Dá o nome de batuque. Eu não sei qual foi o primeiro. Se foi Joana.

R /2 – A Joana. Canta aí só duas músicas pra ela ouvir, mulher! Vamos que eu lhe acompanho. Ela só canta se bater palmas.

R – “Vamos embora, vamos embora, ô Joana. Com ___ não venho cá, Joana minha nega, ô, ia. Se quiser me ver, ô Joana, bota o seu navio no mar, ô Joana, Joana minha nega ô ia. Pra te ajudar, só Deus, pra te amar, só eu, pra te querer Joana, samba mais eu, ô ia”. Então o povo sabe bater, e roda. É assim que a gente vai.

P/1 – Obrigada, Amélia, por falar com a gente. Foi ótimo.

R – Aí é samba. E tem muita coisa. Muita coisa. Tem toada. Tudo a gente canta. Pela rua só dizendo coisas.