Museu da Pessoa

Rua Oscar Freire: a vida de uma moradora de longa data

autoria: Museu da Pessoa personagem: Maria do Carmo Giordano

Projeto Museu Aberto
Depoimento de Maria do Carmo
Entrevistada por Ari Meneghini e Olívia Araújo
São Paulo, 2 de outubro de 1999
Realização: Museu da Pessoa
MA_EA_HV139_Maria do Carmo Giordano
Transcrito por: Marcília Ursini
Revisado por Erick Vinicius de Araujo Borges

P/1 - Ari Meneghini

P/2 - Olívia Araújo

R - Maria do Carmo

P/1 - A gente queria primeiramente que a senhora dissesse o nome, data de nascimento e o local da cidade.

R - Eu nasci aqui em São Paulo, na capital, em 16 de julho de 1938, sempre morei aqui na região de Pinheiros que depois ficou sendo Cerqueira César. Moro na Rua Oscar Freire, atualmente 1518, mas nasci no 1429. Lá vivi até 22 anos quando me casei e passei a morar no mesmo local, mas atrás da casa dos meus pais onde sempre vivi. Fiquei até 1974 lá e agora estou no 1518, na mesma rua.

P/1 - Então, vamos começar pela infância. Queria que a senhora contasse como é que era a casa que a senhora morava, a casa da infância que a senhora tenha lembrança, aquela infância pré-escolar.

R - Era uma casa térrea na frente, atrás era assobradada. Não era tão larga, era mais comprida. Meu terreno tem 60 metros de fundo, então, era bem comprida. Tinha uma área muito grande onde a gente brincava muito. Minha mãe era costureira, então ela tinha muito retalho de tecido. A gente brincava de fazer roupinha para criança, ela ajudava a costurar, aquela coisa toda. Era muito agradável, a rua era muito tranquila. Quando maiorzinha, com 9, 10 anos, a gente andava de bicicleta pela rua tranquilamente, a Oscar Freire tinha duas mãos de direção, jardim com flores na frente, foi um período bom, uma infância gostosa, alegre.

P/1 - Detalha mais como era a casa, quantos cômodos tinham. Tinha quintal no fundo, como era?

R - Eu tinha um cachorrinho muito lindo no fundo, um quadradinho, o canilzinho dele, bem, a casa era assim: eram quatro quartos, depois tinha sala, uma sala imensa que vi muitos bailinhos lá que eram uma delícia, na época de adolescente... Uma sala muito grande que pegava os 7 metros, acho que tinha outros 7 de largura, um banheiro imenso, muito grande, uma cozinha também muito grande, depois tinha o quartinho que a mamãe costurava, onde ela costurava eu estudava, onde tinha o rádio que a gente ouvia as novelas da Rádio São Paulo. Não tinha televisão naquele tempo, a gente ouvia muito novela a tarde pelo rádio, mamãe ficava costurando. Quando eu estudava de manhã, à tarde eu estava em casa, então ouvia as novelas.

P/1 - Qual é a lembrança que a senhora tem mais atrás, falo da idade pré-escolar?

R - Pré-escolar? Bem, pré-escolar, tenho sim! Tem, ham, morou na parte de baixo da casa - eu falei que em baixo era habitável, assobradado -, uma família, Dona Lourdes de Assis, que depois eles foram morar no Itaim. Ela era babá na casa dos donos do jornal O Estado de São Paulo e tinha um filho, tem um filho, Sérgio bem mais velhinho que eu. Talvez ele tivesse uns 9 anos, 9, 10 anos, e eu devia ter uns 2, 3 que vagamente me lembro. A gente brincava muito de esconde-esconde, coisa assim. Isso é uma coisa que... Me lembro que entrava debaixo da máquina da minha mãe; atrapalhava ela, coitadinha! (risos) Ela não podia trabalhar, isso me lembro perfeitamente, eu era bem pequena. Logo depois, devia ter uns 5, 6 anos, ganhei um cachorrinho Luluzinho chamada Lili. Meu pai trouxe no bolso do paletó, ele falou: “Olha, vai lá na sala que tem uma coisa no bolso do meu paletó para você.” E era a cachorrinha. Tinha um quintal grande, que não era propriamente um quintal de terra. Ele era todo assim: era uma laje muito grande, tinha a parte da lavanderia, aquilo tudo e depois o fundo todo era meu. Meu pai fez, ele era bem habilidoso, um quadradinho onde ficava a cachorrinha, coberto, com telhadinho, tudo e brincava muito por ali, era muito gostoso. Eu tinha uns caixotinhos onde nós semeávamos sementinhas de salsa, planestava cenoura, rabanete, depois acabava por terra abaixo porque era só na caixinha e nós não tínhamos terra, parte de hortinha mesmo. Foi uma infância boa, muito alegre. Essa parte também era pequena, bem pequena, 5 a 7 anos, depois começou o primário que eu fiz no Alfredo Furtado, na João Moura, colégio do Estado, escola do Estado. Foi um período bom também, uma coisa muito engraçada, num aniversário - aniversário nas férias nunca podia ter festinha com os amigos -, como a diferença entre a minha irmã e eu era de 17 anos ela mimava muito, me paparicava muito, então, foi numa época em que a Estrela lançou a primeira boneca de louça. O corpinho era de tecido recheado com palha, mas os bracinhos, perninhas e cabecinha era de uma loucinha. Não chegava a ser porcelana, era uma louça e eu fui toda feliz para a escola, com a boneca e não pude mostrar para ninguém porque a diretora deixou presa na sala dela. “Não pode entrar com a boneca na escola.” Eu passei a aula inteira angustiada de medo de perder a minha boneca, foi uma coisa também que tinha 7 anos, marcou bastante. Eu voltei toda alegre com a minha boneca que mais tinha assim de pequenininha...

P/1 - Quais que eram as brincadeiras de pequeninha?

R - Teve uma coisa muito interessante nesse período pequeno, devia ter mais ou menos 7 anos, 6, por aí. Meu pai foi um homem muito alegre, ele me levava num circo, acho que era Circo do Peolim, no Anhangabaú, não me lembro exatamente onde que era, mas devia ser por ali, pelo Anhangabaú, porque o que me lembro muito bem é que quando terminava o circo, de domingo a tarde, nós íamos na Rua do São Bento. Mas, o pai estacionava o carro na porta de uma confeitaria chamada Viena, era linda, tinha ventilador de teto, aquele negócio todo charmoso e logo que veio o sorvete Spumoni para o Brasil foi essa confeitaria que lançou. Segundo o garçom, para agradar talvez: “Olha, vocês estão sendo um dos primeiros clientes a provar esse sorvete que veio da Itália.” Isso me marcou muito, devia ter 7 anos, por aí. As brincadeiras eram brincadeiras bem ingênuas, bem puras, de brincar mesmo com panelinhas, de fazer comida, costurar as roupinhas das bonecas, bicicleta, muita bicicleta.

P/1 - Quem é que fazia as bonecas, as roupinhas?

R - A minha mãe, por ser costureira, costurava as roupinhas. Nós éramos umas quatro ou cinco meninas. Até fizemos Primeira Comunhão juntas aqui na Igreja do Calvário, que era completamente diferente também, era um pátio enorme onde tem agora estacionamento, aquele negócio todo. Porque não tinha aquela rampa onde tem o estacionamento, aquela rampa onde os carros entram. Era tudo reto, altão, na altura da Sacristia, sei lá como é que chama. Era tudo alto, tinha o Padre Rafael que era muito animado, fazia sempre quermesses. Quando a gente ia, eu adorava e era aquele São Paulo da garoa, sim, porque me lembro que quando meu pai ia me buscar, que tinha reza, aquela coisa toda, o carro vinha com a meninada toda. Ele ia despejando aos poucos pelas casas, mas 20:30 era tardíssimo. 20:30 a meninada na rua era uma coisa terrível. Então, ele ia entregando cada uma na sua casa e o carro ficava todo orvalhado, todo úmido, no mês de maio que era o mês de Maria, que agora a gente não vê mais isso. Infelizmente a poluição tirou toda essa beleza. Brincadeiras eram essas: brincar de panelinha, de comadre. Como a minha irmã era muito boa, a gente usava bijuterias dela; brincos, echarpe, bolsa, sapato, coitada, uma vez ela comprou um sapato de verniz caro na época, ela sempre trabalhou, mas não deu outra. Ela deixava a gente usar alguma coisa, mas toda criança é desobediente, eu usei o sapato e pus os saltos para trás. Claro, meu pé era pequeno e o dela era grande, pé de adulto. E estraguei todo o sapato dela, coitada. Uma coisa que ficou marcada. Ai, ela ficou muito triste, chorou, chorou, meu pai deu dinheiro, ela comprou outro, mas foi uma das artes.

P/2 - Dona Maria do Carmo, a senhora estava falando com relação a sua entrada na escola. O que mais marcou a sua vida nesse início escolar, no ciclo básico?

R - Me marcou estas amizades que foram perpetuando até hoje, acho que foi isso. Tive professoras, que me lembro ainda, uma senhora, Dona Izolina, foi do quarto ano. Ela morava por perto de casa, não me recordo se na Capote Valente, por ali. Eu me lembro que gostava, vinha com ela, carregava a sacolinha dela, mas eu acho que foi as amizades mesmo que são até hoje; da Maria do Carmo, da Maria Helena, o ginásio, escola normal, sempre juntas.

P/1 - A Senhora sentiu muito, quando entrou na escola, a mudança de ritmo de vida?

R - Ah, bastante, muito porque sempre fui, não acomodada, mas tranquila. Então, qualquer mudança me deixava ansiosa, mas depois logo me acomodei. Houve sim porque estava acostumada com aquela vidinha pacata, principalmente quando fui para o Ginásio. Aí, então, nossa! Porque fiquei longe, né? Antes, no Godofredo Furtado, era pertinho, era algumas quadras, não precisava de condução, nem tinha condução, mas pro Ginásio já precisava de condução, na Pedroso de Moraes não tinha como.

P/1 - Qual era o Ginásio?

R - Chama-se Colégio Estadual Escola Normal Fernão Dias Paes, que é estadual de Pinheiros, da Pedroso de Moraes. Aí, sim, foi uma mudança radical, fica longe, eu achava que estava sozinha, no começo, embora com as amigas. Sentia falta, me sentia mais isolada, mas foi um período muito bom, a gente fazia muita festinha para conseguir fundos para Formatura, para aquela coisa toda. Como lá em casa a sala era muito grande, a minha mãe preferia que a bagunça fosse em casa do que tá indo para cá e para lá. Então, a gente fazia muita festinha lá em casa. Era muito interessante. Tinha um terraço muito grande na frente onde dava perfeitamente para guardar três carros. Então, lá também a meninada dançava, era ótimo, foi muito bom.

P/1 - E no Primário como é que era a escola, a carteira...

R - Era cadeirinha e aquelas de abrir um tampo, duas lousas grandes, uma na frente e um do lado, tablado para o professor e todo aquele ritual. O professor entrava na classe, bom, isso já foi mais no Ginásio, mas, no Primário a gente entrava na fila com a professora do lado. O pátio era cheio de colunas, várias colunas que tinham uma marquisesinha. Então, nós formávamos as filas, cada classe tinha o seu poste determinado e a professora ficava no meio das duas filinhas e a gente entrava para a classe em silêncio, em ordem. Tanto que quando voltei, bem depois, para a escola, para a faculdade estranhei horrores, estava acostumada a no Ginásio o professor entrar e a gente ficava de pé, cumprimentar e “senhor”. Depois vi uma coisa tão diferente que eu estranhei demais, mas no Primário era gostoso. Apesar de que depois, com os meus filhos e com os meus netos eu vejo que, embora hoje às vezes tenha um pouco de liberdade a mais, é mais interessante o relacionamento agora do que o que eu tive. Por exemplo, a mamãe - tinha muito respeito, amor por ela -, não foi uma mãe amiga. Ela foi a mãe, aquela figura respeitável, ali, eu tinha a minha irmã que era 17 anos a mais que eu. Então, com ela eu falava, mas a gente não tinha a liberdade de conversar como hoje, ser amigo, bem amigo mesmo. Tinha todo aquele ritual de senhor, senhora. Um relacionamento diferente, meio distante, embora carinhoso, meu pai era muito carinhoso, minha mãe. Eu me lembro, eu era grande, chegava do Ginásio, acho que segunda ou terceira série, a gente brincava ainda com as bonecas, aquilo tudo, eu sentava no colo dela, contava as coisas da escola, mas não assim como hoje. Hoje eu vejo os meus netos, o relacionamento deles, mesmo comigo. Eu não cheguei a conhecer meus avós, vim muitos anos depois, mas o relacionamento era mais distante. Não falta de carinho, não, mas com distância, não tão íntimo como agora. Eu vejo a minha neta de 11 anos, ela conta para a mãe que o menino paquerou, falou que ela é bonita, tem o cabelo muito sedoso, coisa que jamais a gente faria isso. Nossa, mas de jeito nenhum!

P/1 - Era muito rígido.

R - Muito rígido, havia muita distância. Sempre a mesa foi o lugar onde a gente conversava, no jantar estávamos todos reunidos. Foi gostoso, foi uma época boa. Eu tive, assim, uma infância muito boa, graças a Deus, tranquila. Tinha, na medida do possível, tudo que eu podia, fui sempre muito tranquila, calma, muito conformada. Conformada não porque eu não tinha nada para me conformar, graças a Deus tive uma boa vidinha, mas, tranquila. Ia muito ao cinema, tinha na Rua Augusta uma coisa que eu adorava, na Augusta quase esquina da Oscar Freire tinha o Cine Paulista. Então, aos domingos a tarde tinha, de 14:30 até às 18:00, matinê. Eu voltava sozinha, ai, que maravilha! Para ir meu pai levava, eu e a meninada. Era o único que tinha paciência de estar indo atrás da macacadinha toda, então, nós íamos e tomávamos um lanche. Depois abriu o Frevinho, na época em que abriu o Frevinho, lá na Augusta, que foi famosíssimo, foi, então uma casa de diversão. Era mais para a meninada, tinha aqueles refrescos diferentes, salgadinhos, aquela coisa toda, a gente achava, assim, excelente. Também aproveitei muito.

P/2 - Dona Maria do Carmo, a senhora estava nos dizendo a questão das festinhas que eram realizadas na sua casa. Conte um pouquinho, descreva para nós como que eram as festinhas, o tipo de música, a relação com os meninos naquela época?

R - Quanto aos meninos era meio difícil porque era separado. Ginásio e Colegial masculino era de manhã e o nosso, feminino, era a tarde, mas como tanto menino quanto menina iam se formar, então tinha comissão de formatura, os meninos convidavam os amigos e as meninas as amigas, sem ser as do colégio. A gente fazia convitezinhos todo com purpurina, coraçãozinho, era todo delicado, bem feitinho. Não era assim, só convidar “Vamos lá”, não, tinha o convitezinho, a gente recolhia para ver quem realmente era convidado mesmo para que não houvesse estranhos que atrapalhassem e os meninos providenciavam refresco, refrigerante. Cerveja nem pensar, a Coca-Cola tinha acabado de surgir, eu vi o nascimento da Coca-Cola. (risos) Então, os meninos providenciavam os refrigerantes e as meninas, salgadinhos e doces. Era muito gostoso. Músicas tinha muita música americana dos filmes, era disco tocado em vitrola, nem tinha LP nessa época, foi depois que surgiu. Foi na época da Escola Normal, mas da época do Ginásio eram aqueles discos 75 rotações, sei lá, pesadão...

P/1 - 78.

R - 78, é. Então, tinha muita música americana e muito sambinha. Sambinha, não, não pode falar que o Ary Barroso se mexe na cova. Muito samba, muito chorinho. (pequena pausa) Cantava Isaura Garcia, Aracy de Almeida...

P/1 - Você sabe mais ou menos que ano que era isso?

R - 54. A Hebe Camargo. Tinha...

P/1 - Você ouvia Elvis Presley nessa época, ou ainda não?

R - Não, não, foi bem depois, ele começou no fim de 58, 57. Foi quando quase eu estava saindo da Escola Normal que apareceu o Rock and Roll, mas antes era mais samba, tinha muito fox. A gente dançava muito fox, bolero. Tinha aquele Luchio Gatica, Gregório Barrios, muito bolero. Era muito gostoso, muito romântico, né?

P/1 - Você se lembra de alguma música que todo mundo gostava, que a senhora gostasse mais?

R - Que eu gostava? Ah, sim, as músicas de Glenn Miller. Moonlight Serenade era lindíssima. Tinha... Não me lembro mais qual. Gozado, tinha um chorinho muito simpático, não sei se é Jacó do Bandolim que tocava, não me recordo direito. Chamava Flor de Abacate. Era muito engraçadinho, uma música muito brejeirinha, muito bonita. Sim, tinha Dick Farney que eu amava de paixão, que tocava piano, então ele cantava: “Alguém como tu...” (risos) Lindo! Dick Farney, o pai da Nana Caynmi, Dorival Caynmi, nossa, ele cantava Marina. (Pausa) Não me lembro mais, ele cantava Marina... Ele tinha uma voz belíssima, músicas lindas.

P/1 - E como eram as roupas?

R - Charmosa, muito charmosa, eu era magra, bem magra até. Então, com uma mãe costurando, tinha muita roupa, saias muito largas, muito fartas e as anáguas, a mamãe fazia muito bonita. Ela fazia o corpinho simples, meio justinho porque usava vestido armado. A cinturinha e aquela saia imensa, ela fazia babados de tule colorido, azulzinho, amarelo, rosa, branco e ficava tudo degrade. Então, era linda, a gente fazia de propósito para levantar e para alguém ver. Eu sentava, puxava sempre um pouquinho para poder mostrar um pouco a anágua, eram vestidos lindos. Decote, algum, mas não muito, mas as saias sempre amplas, grandes. Depois apareceu mini-saia, mas mini-saia para acima do joelho só. Não como agora que é invisível, mas a mini-saia foi bem depois.

P/1 - E os meninos usavam o que? Qual que era a moda?

R - Era camisa esporte, camiseta era pouco. Engraçado, tênis, vocês não podem imaginar, tênis, mamãe dizia: “Nossa, pipoqueiro!” Porque ninguém usava tênis, existia um tipo de tênis que seria Conga, aquele conguinha, que ninguém usava. Era atleta, a gente tinha tênis para fazer ginástica e, coitado dos pipoqueiros, e os pipoqueiros usavam. Não sei por que, mas acho que era porque ficava muito tempo de pé, porque não tinha cachorro quente pela rua, só tinha pipoca e sorvete. Então, eles usavam tênis, ninguém usava tênis, era depreciativo usar tênis. Há uma inversão de valores. era calça sempre de sarja, de brim, tinha lã, gabardine, sempre social e outra, os meninos não usavam calça comprida desde pequenininho. Eu me lembro que na quinta série... Terminou a quarta série, então havia aquele período de transição entre quarto ano primário para primeira série ginasial. Então, não sabia se ia haver uma quinta série, ou o que ia acontecer. Eu sei que no meu período houve exame de admissão, então, os três últimos meses tive um acompanhamento escolar com um professor catedrático em português, professor Vicente Peixoto. Ele e Dona Ludovina, a esposa dele, moravam na Rua Humaitá, perto da Augusta, Caio Prado, por ali, tinha um menino, Rafael, que era grande, coitado, alto, grande, ele já tinha a perna bem peluda e usava a calça curta ainda. A calça em cima do joelho, ele odiava, tinha desespero, mas, coitadinho, o que ele podia fazer? Ele tinha 11 anos, 12 anos, mas ele já era grandão. Ele tinha suspensório, aquele espartilho na frente e ficava muito danada da vida, mas o que podia fazer. Calça comprida, quando ele foi para o Ginásio que o uniforme era caqui, parecia Carteiro, na época também chamava de Carteiro. Era caqui, um jalequinho e a calça comprida, ai que alegria porque tapava as pernas dele, uma coisa que ficou gravada também.

P/1 - Também peguei um pouco essa época.

R - Ah, você chegou a pegar?

P/1 - Peguei. Todo mundo queria passar para o Ginásio para poder parar de usar calça curta, não era mais menino.

R - Agora pequenininho já tem calça comprida, antigamente não tinha, tinha meia três quartos. Mesmo para fazer Primeira Comunhão era calça curta, uniforme, muito uniforme nas escolas, sempre saia azul marinho, blusa branca. Os meninos do Fernão Dias usavam caqui, cor caqui, calça e um jalequinho, uma blusinha, uma jaquetinha.

P/1 - Como é que a senhora entrou para a Igreja?

R - Foi assim, naturalmente, minha família sempre foi Católica, então acompanhava minha mãe, minha irmã aos domingos, meu pai. Meu pai ficava pouco na Igreja, ele nos levava e fica esperando, tudo mais, mas sempre a mamãe foi muito católica, minha irmã muito católica. Elas faziam muita coisa para mãe solteira, mãe pobre, tinha grupos de oração, de terços, tudo mais. Então, a gente ia, ela sempre levava um enxovalzinho, fazia muito tricô e levava para as organizadoras para distribuir, tudo mais. Então foi uma coisa assim natural, nós passamos isso para os filhos, passei para os meus filhos, para os meus netos. Todo mundo batizou muito cedo, meus filhos foram batizados ainda no Hospital, na Promater. Foi um padre, Padre Lourenço, da Igreja Imaculada Conceição que foi no quarto, fez um altarzinho e batizou os dois. Primeiro a Rebeca e, depois, quando o Augusto nasceu, o Augusto, já saíram do Hospital batizados e até hoje somos católicos, estamos sempre ali.

P/1 - Durante a Missa de domingo não era ponto de encontro?

R - Era sim, peguei ainda a Missa em latim, bastante tempo, claro, muito tempo. Então, a gente quase não acompanhava nada, ia na Igreja para ver os amigos. Tinha os namoradinhos, namoradinhos não, era só flertizinho porque era difícil ter namorado naquele tempo. Muito difícil.

P/1 - Tinha troca de bilhetinho?

R - Bilhetinho, meu Deus do céu, como tinha bilhetinho! Bilhetinho tinha muito. Isso tinha bastante, troca de bilhetinho e mesmo quando tinha os bailinhos, já tinha o _______, uma agendinha que você já sabia por foto que você ia dançar com não sei quem. Já tinha tudo ali esquematizadinho, então, era difícil a menina que não dançasse, que ficava sobrando lá, sentadinha. Porque já ia com tudo esquematizado, era gostoso.

P/1 - Quem organizava a festa já sabia quem ia ficar...

R - Não, não. Entre nós mesmas cada uma... Os meninos diziam: “Olha, eu vou dançar com você tal música, olha a tal música.” Ou então: “A quinta música é minha”, era muito gostoso. A gente marcava lá, tinha um carnezinho, a gente fazia com florzinha, tudo com purpurina, lindo. (risos)

P/1 - E qual que era o horário dessas festas? Ia até que hora?

R - Chegava 1 hora, estava até o chão encerado novamente. Até 00:00, por aí, no máximo 00:30, não passava disso. Começava por volta de 20:00 e o auge mesmo era 22:00. Nossa, que maravilha! Chegava 23:00, eta nois, que beleza, porque, imagina, 22:00 todo mundo dentro de casa. Difícil, muito difícil uma menina... A não ser quando tinha, assim, no Paulistano, no Club Homs, eu fui a muitos bailes de formatura lá. Porque perto da minha casa tinha uma pensão e nessa pensão morava só estudantes de medicina e geralmente sul-americanos, é que eles ganhavam bolsa de estudo e moravam nessa pensão. Então, a gente era amigos, nós acabávamos ficando amigos e a gente fazia por ser amigo, eles nos convidavam nos bailes que tinha da Medicina, Mackmed. Nossa, Mackmed, a gente ia muito, costumava ser no Pacaembu, na concha acústica. Era uma delícia, minha irmã era quem nos acompanhava, ela sempre teve carro, acho que ela foi uma das primeiras mulheres a dirigir assim, para lá e para cá, nos levava, também ela gostava e a gente assistia. Ela casou bem tarde, com bastante idade, ela foi muito amiga, muito companheira. Nos levava assistir Mackmed, depois tinha baile de Mackmed, então era muito bom, tanto no Club Homs, como no Clube Pinheiros, no Paulistano. A gente se divertia muito, eram festas tranquilas, não havia brigas de gangue prá cá, gangue prá lá. Não tinha essas coisas. Pelo menos na minha turminha não tinha. Então, era bem tranquilo, muito gostoso, muito amigo.

P/1 - E como era o bairro? Me fale um pouquinho sobre o bairro, descreva as coisas que marcaram, o que as pessoas frequentavam.

R - A Teodoro Sampaio tinha duas mãos, também, de direção, trilhos de bonde, tinha um bonde que ia até a Fradique Coutinho e aí subia para a Vila Madalena. O outro que seguia reto e ia até o Largo de Pinheiros, não tinha muita casa noturna. Sabe, não lembro de ter. Bem, em frente a minha casa, na Oscar Freire, teve um restaurante muito famoso, Húngaro, chamado Hungária. Tocavam violinos ciganos, os músicos usavam roupa cigana e era muito movimentado, era uma coisa muito fina. Muitos anos ficaram lá, aí eles passaram para a Joaquim Eugênio de Lima e depois acabou fechando, os donos foram falecendo e os filhos não quiseram continuar. Era, assim, muito tradicional, muito bem frequentado, uma vez veio um chanceler da China parece, não sei, mas fecharam... A meninada toda alvoroçada para ver. Fecharam toda a rua com cordões de isolamento, aquilo tudo para o chinês chegar e comer a comida Húngara, aquilo tudo. Tinha um porteiro muito engraçado, um senhorzinho, ele usava uma capa, que era típico deles, a gente chamava, que pecado, de O Manto Sagrado. (risos) Quando O Manto Sagrado aparecia a gente já sabia: 21:00. Então, todo mundo entrava, se despedia, “até amanhã, até amanhã” porque não passava de 21:00 brinacando. A gente andava a noite também de bicicleta e a gente brincava de caracol, na rua, na calçada, com giz, fazia um caracol grande e ficava brincando, como amarelinha. Até um oftalmologista famoso, Dr. Otacílio Lopes, o filho dele, Otacilinho, a gente brincava. A filha do professor Solon Borges dos Reis, a Raquel que é minha amiga até hoje. Professor Solon a gente conhece há muitos anos, a gente brincava na rua de pular amarelinha, andava de bicicleta a tarde, brincava de mocinha, era muito engraçado, muito gostoso.

P/1 - Como era a Rua Augusta?

R - Ela sempre foi sofisticada. Engraçado, ela continuou naquela largurinha mesmo dela, com as duas mãos de direção. Ah, tinha... Isso foi em 60. 60 não que casei! 58, 59. Um restaurante muito fino na Rua Augusta chamado Flamingo era mais para cozinha Árabe. Não era totalmente Árabe, mas tinha uma cozinha Árabe muito boa e tinha uns sorvetes com nomes de artistas. Sabe, você chegou a conhecer? Tinha a Lollobrigida, eu vi a inauguração do Flamingo. (risos) Depois, não sei mais que fim levou.

P/1 - Tinha um sorvete muito famoso.

R - O Lollobrigida que era muito gostoso. Com chocolate, nossa! A gente ia muito lá.

P/1 - Era chocolate, farofa.

R - Uma farofa... Estava surgindo essas coisas, não tinha, era muito gostoso. Foi como o Spumone, até hoje eu acho divino o sorvete.

P/1 - Quais os tipos de loja que tinha na Rua Augusta, na época?

R - Sempre teve a Casa Moisés. (Pausa) Casas de calçados. Tinha tecidos, muito tecido, roupa pronta não tinha muita, roupa feita, né. Essas boutiques, essas coisas não tinha. Tinha casas de moda, tinha costureira, as modistas, aquelas coisas. Alfaiates finos, camiseiros. Casas de calçados; Brasília, como chamava aquela outra casa que tinha também na cidade? Casa Polar, era Polar que chamava. Não me lembro, era Polar sim, o símbolo era um ursinho branco. Caríssimo! Eram sapatos caríssimos, todos de cromo alemão, de crocodilo. Lembro, a mamãe teve um sapato de crocodilo tão lindo que queria a todo custo, só que meu pé era maior do que o dela. Então, os dedos ficavam assim, não dava para usar, mas achava lindo, com um laçarotinho, casas de aviamento. Não tinha muita bijuteria, muita coisa. Ou era joalheria mesmo que vendiam jóias, tecidos sempre muito finos. Só não tinha como agora...

P/1 - Além de ter o Flamingo e o Frevinho, tinha mais algum bar, alguma casa?

R - De destaque, que eu me lembre, não..

P/2 - Entre essas lojas da Rua Augusta que a senhora está nos contando, já existia a Casas Pernambucanas?

R - Já, já existia a Pernambucanas. A Firense que também já tinha, que eu me lembre, sempre existiu ali.

P/1 - Nessa época já era uma rua de badalação?

R - Já era. Sempre. Sempre a Augusta foi uma rua famosa, tida como a rua dos ricos, de coisas caras, porque tinha muita casa de moda, muito modista.

P/2 - E a senhora chegou a frequentar a Rua Augusta nessa época da badalação?

R - Não porque já estava quase me casando e meu marido era muito ciumento. Sei lá, tinha um gênio meio estranho. Então, respeitava.

P/2 - Voltando para a sua vida escolar, quando a senhora se decidiu em fazer a Escola Normal, tinha interesse de ser Professora, de lecionar?

R - É porque eu tinha interesse, gostava, tinha mesmo ideia de fazer uma Faculdade depois, como comecei, mas, quando que começou essa vontade, né? Acho que desde sempre porque naquela época a mulher, ou era secretária, ou professora, enfermeira. Enfermeira jamais porque eu patifona com sangue não ia conseguir nunca, secretária, não sei. Eu sou, como digo, menos arrojada, então, optei pela professora e tinha vontade. Aliás, fiquei um ano numa escolinha na Dr. Arnaldo, chamava Externato La Fontelle. Eram tão poucos alunos que na mesma sala tinha terceiro e quarto ano. Terceiro ano acho que tinha uns três ou quatro alunos e no quarto ano, também uns três ou quatro. Nesses do terceiro ano, tem esse poeta Cassiano Ricardo. Então, eu tive três netos dele, Rubens e os dois primos, que eram gêmios, Jurema e Jurandir Cassiano Ricardo. Sobrenome só Ricardo, né? O Jurandir era muito tímido e o Rubens puxava as tendências literárias do avô, escrevia poesia, eu tenho ainda uma, agora estou lembrando... Na Páscoa, ele me deu uma coelha que as costas era um ovinho pela metade com umas florzinhas, ainda tenho essa coelha lá em casa guardada. Linda. Isso foi em 1958, foi em 58 porque em 59 teve a formatura deles, em 60 eu casei, pronto, não lecionei mais, fiquei dondoca, dentro de casa, cuidando das crianças, três anos cuidando do marido e depois das crianças.

P/2 - Falando dessa questão do casamento, como se deu, ou como que a senhora conheceu o seu marido?

R - Eu conheci na minha casa, dentro de casa. Como se diz, o namorado não vai bater na porta, o meu bateu. (risos) Porque, o meu marido era irmão de um cunhado da minha irmã, meu cunhado, Dirceu, tem uma irmã, Violeta, que era casada com o Ari, que também já faleceu, e tinha mais irmãos. O Toninho que era solteiro, mas como ele tinha sofrido um acidente com a mão, tinha cortado um tendão, teve que tirar tendão do pé para pôr na mão, a mãe, Dona Helena, minha sogra só tinha uma das vistas, por causa de diabetes perdeu um dos olhos, não tinha boa visão, então a Violeta que cuidava do cunhado. Em 1957, foi o ano em que minha irmã casou, usava naquele tempo convidar os padrinhos... Eles foram padrinhos do casamento, mas eram só dois padrinhos que tinham. Não tinha esse bando como agora. Então, convidou a Violeta, com o Ari, tinha o filhinho Washington, que já tá um veterinário monstro, enorme, lá em Caraguatatuba, muito conceituado, Graças a Deus. Convidou para almoçar em casa, como era o ritual. Aí o Ari falou: “Olha, mas o meu irmão está em casa, foi operado...” Eu falei, “Tudo bem, pode vir.” e foi assim que nos conhecemos, num Natal, no dia 22/12/1958, no dia 06/01/1959, saímos para o cinema pela primeira vez, nós fomos... Tinha um restaurante, acho que o Guanabara. Guanabara não. O Guanabara é lá na São João, isso foi na época da Faculdade. Como que não me lembro o nome? No Largo do Ouvidor, ali perto do Largo São Francisco, era um restaurante fino. Eu me lembro que nós fomos ao cinema, não me lembro qual cinema, mas nós fomos jantar nesta casa. Eu estava angustiadíssima porque via a hora passar, já estava quase nove e pouco, tinha que estar em casa às 22:00, eu estava angustiada. Até que consegui chegar às 22:10, minha mãe já me olhou com aquele olho enorme. Meu pai, tadinho, ele nem prestou atenção na hora e a minha irmã: “Imagina, a primeira vez que sai com o rapaz, 22:10 chegando em casa.” O que eu podia fazer, né? (risos) E assim foi. Conheci assim, em casa, num almoço e no dia 6 de janeiro começamos a namorar, de 1958, 1959. Em junho de 60 nós casamos. 29/09/1972 ele morreu.

P/1 - Nessa época, íasse muito para o Centro da Cidade?

R - Ia porque Pinheiros não tinha todo este comércio que tem. Não tinha, era tudo na Cidade. A Rua Direita, nossa, era famosíssima. Teve a Casa Sloper, famosa. Ahhh,...

P/1 - Casa Sloper era do que?

R - Ela era uma loja de modas, bem americanizada, tinha sapato, bolsa. Seria, um shopping não porque era uma loja só, mas uma loja que tinha tudo. Sabe, você encontrava vestidos, bijuterias, perfumaria, sapato, bolsa, lingerie. Tinha tudo lá dentro da Sloper, tinha depois, também, a Casa Henrique também na Rua Direita, que era muito famosa. Ela tinha tanto tecidos como a parte de bijuteria, de acessórios, eram duas lojas muito famosas e tinha já a Lojas Pernambucanas, a Casa Fortes, onde a minha mãe comprava os tecidos. Seu Fernando chamava o rapaz da Casa, que me dava os chocolates.

P/1 - Tinha o Mappin, também?

R - O Mappin! Sim, tinha o Mappin, mas só ali na Xavier de Toledo.

P/1 - O Veado D’Ouro.

R - O Veado D’Ouro. Tinha no Largo de Santa Cecília...

P/1 - Sua mãe comprava coisas?

R - Comprava as coisas lá. Comprava desodorante, coisas assim. Os primeiros foram feitos lá. A gente comprava, se eu não me engano, uma latinha assim porque não tinha Sal de Frutas, né? Então, qualquer mal estar de estômago, numa latinha beginha assim que tomava aquele negócio tinha gosto de anis, ai horrível. Acho que eu não gosto de anisete, essas coisas por causa disso, até hoje. A gente comprava na Veado D’Ouro. A Casa Fretém, inclusive ela deixava as tesouras de costura para eles levarem para amolar e tinha também, no Largo de Santa Cecília, a Cliper. E aí, foi mais para adiante, levava meus filhos para cortar o cabelo lá, era uma loja muito boa também. Foi uma pena e a Cliper tinha, no Patriarca, a loja exposição, a casa de artigos masculinos. Já tinha a loja Colombo, camisaria Colombo. Finíssima, caríssima. Tinha a Casa São Nicolau. A gente comprava muito também, tirando a Augusta que era tecidos muito caros, Pinheiros não tinha muito comércio. Tinha outra lojinha, aqueles armarinhos, coisinhas simplesinhas.

P/1 - Frequentava 25 de Março, também?

R - Nossa a 25 de Março sempre. Ia muito ao mercado grande, da Cantareira, fazer compras, ai adorava a época que a gente ia lá.

P/1 - Ia com a mãe?

R - Ia com a minha mãe, meu pai e era engraçado porque você podia estacionar o carro em qualquer lugar. Ia, punha lá a sacola, tudo tranquilo, não tinha problema nenhum. Depois passamos a vir aqui no Mercado de Pinheiros. Depois, na Cooperativa de Cotia. Aí já foi bem mais para cá.

P/1 - Você fala que frequentava muito teatro com seu pai...

R - É, nós íamos muito a teatro, íamos ver muito a Bibi Ferreira, Cacilda Beker por conta da minha mãe que costurava para eles, Dr. Alfredo Mesquita. Íamos ao Municipal, tinha o Cine Teatro Ópera, na Rua do São Bento, eu devia ser muito pequena, não me lembro a época que nós fomos ver Madame Buterfly. Na minha frente tinha uma senhora com chapéu e umas plumas. Ao invés de falar para o meu pai “eu não estou enxergando”, como sabia que era numerada, eu não vi quase nada. Eu pequena, sentadinha e uma senhora com umas pumas, que usava. Então, não enxerguei quase nada, depois meu pai falou: “Você gostou?” Falei: “Eu quase não vi nada.” Ele falou: “Mas, como não viu?” Então contei, ele falou: “Mas por que você não me falou? A gente trocava de lugar, fazia qualquer coisa.” “Mas tinha número!” (risos) Hoje, imagina, “eu não enxergo pai!” Não sei se era Teatro Cine Ópera, ou Cine Teatro Ópera, mas era muito famoso também.

P/2 - E qual a peça, naquela época, que...

R - A Margem da Vida. Meu Deus! Lembro até hoje. Isso marcou demais. Foi com a Nídia Lícia e Sérgio Cardoso. Marcou muito, muito, muito, muito, a moça tinha, não me lembro o nome dela na peça, um defeito na perna e ela fazia coleção de bichinhos de cristas. Aparece o marinheiro, aquela negócio todo, aquela tristeza toda do amor dela. Então, isso marcou muito, a Margem da Vida foi uma coisa que eu queria ser como ela, apaixonada, romântica. Teve uma outra que foi com Abílio Pereira de Almeida e não me lembro quem era ela, não me lembro agora. Eu tenho a fisionomia, mas não lembro o nome, chama a Mão do Macaco. Era meia mística, não me lembro bem, mas isso ficou muito gravado. Eu sei que tinha uma mãozinha seca de macaco que era um talismã e quando a mãozinha mexia era um presságio. Eu sei que no fim o rapaz morre, aí ela joga a mãozinha do macaco na lareira que está apagada e de repente “brummm”, ascende. Também ficou muito marcado, mas A Margem da Vida... Teve outra peça também, Pick-nick. Irina Greco e, ele, que já faleceu também, fez aquela novela da Grabriela. Ele era o turco, como é o nome dele?

P/1 - Armando Bogus.

R - Armando Bogus. Irina Greco e Aramando Bogus porque eles dançam durante a peça. Tem uma dança e achei uma coisa mais linda do mundo, um romantismo, um olhando para o outro, aquele amor. A meninada hoje, se assistir, não vai gostar, mas de jeito nenhum. Muda os valores, os conceitos todos, ela usava uma sapatilhinha, uma saia rodada e rodopiava. Ai, meu Deus, que coisa mais linda! Aquele amor maravilhoso. Pick-nick. As três peças que gravaram muito. A Mão do Macaco, quem que era? Não me lembro. Eu sei que teve aquela Arsênica Alfazema que essa mesma atriz... Não me lembro, não sei quem era, mas vi a Tônia Carrero mocinha, conheci a Tônia Carrero moça. Gordinha, ela ia lá em casa para provar roupa. Ela, Sérgio Cardoso, Cacilda Becker, a Cleide Yaconis não era atriz. Ela coordenava o grupo com o Dr. Alfredo Mesquita.

P/1 - Todos esses artistas frequentavam a sua casa?

R - Ah, sim, lá em casa. Foi engraçado porque teve uma peça chamada Os Bichos, foi no Municipal, eu não me lembro bem o por quê dessa peça, mas sei que eram só bichos, uns bichos enormes e era passado na Grécia. Não me lembro do enredo, não me lembro nada. Tinha piano, estudava piano como toda a menina, então, um dos rapazes, Caio Caiubi, era bem meu amiguinho, ele chegava, sentava no colo dele, ele tocava piano. Era meu amigão, devia ter uns 6, 7 anos, bem, eu queria ver eles fantasiados, vi eles lá em casa provando a roupa, mas prontos, maquiados, nunca tinha visto. Dr. Alfredo falou para a minha mãe, Rosa, a chamavam de Rosita “Olha, Rosita, Carmo não pode ir porque menor não vai poder entrar, mas leva ela e Gessy no ensaio geral. O ensaio geral é tanto quanto completinho” inclusive ia imprensa. Aquele negócio todo para lançar nos noticiários. Bem, lá fomos nós, eu estava acostumada a ver Caio Caiubi com a carinha dele limpa, como sempre. Jamais podia imaginar que ele ia estar de cabelo comprido, barba, bigode e, nós estávamos ali, sentadinhas, eu e minha irmã,, de repente aparece alguém de barba, de bigode, com os cabelos assim e fala: “Oh, Maria do Carmo.” Por pouco que eu não desmaio, fiquei apavorada, assustadíssima, parecia um monstro, para mim era um monstro aquilo. Ai comecei a chorar, sei lá o escândalo que fiz, ele: “Mas sou eu, sou eu o Caio.” “Não, não é Caio nenhum. Você é o monstro.” Até que ele tirou o bigode e disse “sou eu sim”, eu estava na dúvida, mas foi uma coisa que ficou gravado dessas andanças, foi lá no Municipal.

P/1 - Vamos falar um pouquinho da sua atividade profissional. Quando a senhora começou, qual foi o primeiro trabalho?

R - O meu primeiro trabalho foi na Secretaria da Justiça, comecei a trabalhar em março de 1973. Como não tinha experiência nenhuma, foi até o Professor Solon que me arranjou esse emprego, fui conversar com a diretora administrativa, tudo mais.

P/1 - Isso foi depois que seu marido...

R - Faleceu. Ele faleceu em 1972...

P/1 - Antes a senhora não teve nenhuma experiência, nem como professora?

R - Nunca, nenhuma, nada, tirando este um aninho só que eu lecionei. Foi numa escola particular, Externato Le Fontelle não teve grande repercussão, mas a Secretaria da Justiça, lá fui eu, não tinha noção de nada, não sabia nada, não conhecia nada. Aí fui trabalhar com o Instituto de Planejamento. Ajudava na sessão de reformas de cadeia, essas coisas, ampliação de cadeia e como não sabia datilografar, não sabia nada, meu trabalho era mesmo bem manual, umas fichinhas tudo bonitinhas, sempre gostei. Eu fui uma pessoa ordeira, as fichinhas sempre bem atualizadas porque tinham as medições. Eu acompanhava o contrato da obra até o término, tudo com fichinhas individuais e tudo, aí fiquei de 1973 até 1980. Então, como eu era contratada, depois apareceu em 1974, um decreto, que teve a lei 500, tinha um pouco mais de estabilidade mas não era efetiva, não tinha concurso que pudesse prestar. Então, a minha diretora Dona Irmênia de Santos Cruz, uma mulher maravilhosa, aprendi muito com ela: "Olha faça administração pública que é um meio de você se efetivar aqui na Secretaria.” Aí fui com ela e Deus porque eu, imagina, saí da Escola Normal em 1958, nunca mais tinha estudado, acompanhava assim as crianças, mas os meus filhos estavam ainda no terceiro primário, ginásio. Então, por exemplo, não conhecia logaritmo, monte de coisarada, não sabia de nada, bom, mas a Virgem Maria sentou do meu lado, fez o vestibular, eu consegui entrar. Entrei pelos méritos e fiz o curso de administração pública.

P/1 - Aonde?

R - Na Faculdade Tibiriçá, no Largo de São Bento, Doutor Hilário Torloni. Fiz, eu gosto muito de escrever, então terminei o curso, não aparecia concurso nenhum de repente a Raquel, filha do Professor Sólon me ligou e falou: “Carmo, tem um concurso para você. Estão querendo administradores na Sutaco, pertinho de casa.” Imagina onde é agora o Objetivo da Rebouças. Objetivo não, Universitário, saia da minha casa, andava 50 metros e já sentava na minha mesa. Então fui fazer inscrição, tudo mais e fui aprovada em quarto lugar como administradora, então comecei em 1980, não, isso foi em dezembro de 1980, comecei em 1981, dia 06/10/1981 comecei a trabalhar na Sutaco com artesanato, como administradora.

P/1 - Sutaco é Superintendência do...

R - Trabalho Artesanal nas Comunidades e eu estava na parte administrativa, ajudando Doutor Luís que era diretor na época porque era ainda Governo Maluf , os dois últimos anos do Maluf. Aí teve uma grande feira que o Maluf fez chamado, segunda que ele estava fazendo, FENACT. Era Feira Nacional de Artesanato e Comidas Típicas. Então foi uma feira enorme na Marquise do Ibirapuera, veio o Brasil inteiro, comida, dança, artesanato e tudo mais. Como estava acostumada na Secretaria da Justiça, muito criteriosa, rígida, tão rígida que as meninas não podiam usar calça comprida. Só saia, depois apareceu a bota, não podia trabalhar com bota. Na Justiça era muito rígido, então eu estava acostumado. Tudo que fazíamos tinha que fazer relatório. Então houve a feira, terminou a feira e fiz o relatório e entreguei para o Diretor, o Doutor Faia só ficou lá, leu, achou estranho. Engraçado, uma coisa que para mim era normal, ele achou estranho em todo caso... Aí passou mais para diante, em setembro, houve uma exposição na Roselândia durante a primavera. Eles cederam o espaço para nós, era de sábado e domingo só que funcionava, sábado era ponte para um feriado, não me lembro qual, talvez 7 de Setembro, porque era setembro. Não tinha quem fosse, as meninas todas tinham namorado, uma ia viajar, a outra o marido ia não sei para onde, a única avulsa era eu que estava sem compromisso nenhum. Então, o Roberto Neves, que era o diretor técnico veio me convidar, veio pedir: “Dona Maria do Carmo, você não pode ajudar, ir no domingo, no sábado, o motorista vai te buscar, te traz. Você sabe, tem almoço, tarará.” "Mas, puxa Doutor Neves, não tenho tempo com os meus filhos.” “Mas leva as crianças, lá tem divertimento não sei o que...” Então, o Augusto não quis ir, fui com a Rebeca. Adoramos, imagina, estava no meio do artesanato, coisa que eu amo porque a gente tem uma idéia estranha de artesanato. Da mesma forma que naquela época tinha os hippies na Augusta, aquilo tudo, falava em artesanato, se pensava numa pessoa muito suja, mal cheirosa, fazendo araminho torcido com miçangas, que não é nada disso. Aí nós temos coisas belíssimas, inclusive exportadas. Terminou aquele final de semana, fiz um relatório no primeiro dia depois do feriado, fui com o meu relatorinho entregar para o Doutor Neves sempre cheguei cedo no trabalho, quando era mais ou menos umas 10:00, uma convocação, uma reunião estava o Doutor Neves, baixinho com o olhão azul e usava uns óculos. Quando ele olhava, morria de medo porque ele era muito bravo, mas um amor de pessoa, uma pessoa muito inteligente, muito culta. Ele falou que estava na Sutaco há 6 anos que nunca, nunca ele havia recebido um relatório de uma prestação de serviços e que estava em mãos, o relatório, o fechamento das vendas, o canhoto do depósito bancário, não sei o que e que ele nunca tinha visto isso. É porque ele queria me convidar para trabalhar com ele, o Doutor Faia falou: "Pois é, tenho também aqui. Ela me deu um relatório da FENACT que eu não entendi o porquê e nunca comentei nada com ninguém.” Aí o Doutor Neves me convidou para ir trabalhar na equipe dele, fiquei muito feliz porque gosto e gostava muito de artesanato. Fiquei até agora, até o ano passado, até agosto do ano passado, na parte técnica. Nós fazíamos exposições, cadastro, analisávamos o trabalho. Nós fizemos muito curso, muita coisa, é pena porque é uma autarquia, infelizmente um cabide político. Então nós tivemos excelentes...

P/1 - Agora está na Duque de Caxias...

R- Não meu bem, de lá ela foi para Augusta, da Augusta foi para a Angélica. Ela teve uns 3 anos na Augusta, perto da Marquês de Paranaguá., agora tá na Angélica, bem perto da Maceió, perto daquela Blue Life.

P/2 - Quer dizer que hoje não se desenvolve mais esse tipo de trabalho que a senhora fazia lá, nessa autarquia?

R- Olha, desenvolvia, até desenvolve, mas é assim a cada 4 anos muda a direção, então, quando você está engrenando. Porque existe uma rejeição de passado, nós tivemos superintendentes que diziam: "Passado não existe." Como que passado não existe? Se a gente vive do passado, não é? Imagina, você não tem o seu passado? Só o falar da gente, aprendemos do passado. Então nós tivemos um período do Franco Montoro, do Maluf, foi ótimo, nosso superintendente Doutor Gérson Munhoz, imagina, professor de odontologia de São José dos Campos, era nosso superintendente. Depois foi uma pessoa muito calma, muito tranquila, teve essas feiras com o Maluf e tudo mais, foi um bom período, depois veio o período do Montoro, o Maluf saiu e veio o Montoro, cada um tem uma coisa, era toda voltada para a Pastoral do Menor, para FEBEM. Eram duas religiosas que cuidavam, eram superintendentes, Dona Ruth Fistore, uma pessoa muito boa, muito humana, uma pessoa maravilhosa e irmã Maria do Rosário. Quando dizia que elas eram boas, tudo mundo, imagina: "você é uma louca, uma demente, são duas jararacas". Não, não são duas jararacas, são duas pessoas maravilhosas, elas eram assim enérgicas. Então elas exigiam horário, serviço, um monte de coisas. Sim, eu acho que quando você está para trabalhar, você tem que cumprir aquelas coisas, estava acostumado mais folgado, mas foi um período muito bom, a Sutaco fez trabalhos belíssimos. Inclusive junto ao manicômio judiciário e eu fui várias vezes lá, depois não fui mais porque passava mal, nossa! Via coisas assim sabe, terríveis e os coitadinhos com toda aquela demência, fazendo artesanato, sem ferramenta nenhuma, trançando corda, mas dementes mesmo de não ter fechaduras nas portas. As enfermeiras com as maçanetas no bolso, não tem fechadura, não tem maçaneta nas portas, para eles não fugirem. De comer só com a colher, ou então eles só comiam com as mãos, completamente alucinados, pessoas de bom coração, sei lá, coisas da vida, né? Então passava muito mal, nesse período passava muito mal, então não fui mais, não me deixaram mais ir, a gente fazia muita viagem pelo estado de São Paulo, conhecendo o artesanato, então foi um período muito bom. Depois nós tivemos um pequeno período com uma mulher maravilhosa, Dona Suzana Cruz Sampaio, voltada para as artes porque ela já era do Museu Histórico da Prefeitura, uma mulher muito culta, conhecia o mundo inteiro, nós tivemos um período muito rico, com um artesanato mais sofisticado, inclusive tivemos uma senhora que trabalhava com prata, Dona Lívia, uma senhora italiana, muito fina. Ela pegava pedra, ela e mais duas amigas e achavam: "Esta pedra parece um corpo de uma Ema", a pedra era o corpo e o restante, o corpo, o pescoço, a calda, as pernas eram tudo em prata. Então faziam aquelas figuras e tudo feito a mão, coisas lindíssimas, muita pintura em tecido, em seda, muita porcelana pintada, crochê, aqueles crochês finos, tear manual. Coisas belíssimas em tear manual, nós tivemos uma exposição de tear manual... Antes, quando era Secretaria da Cultura, não, Secretaria do Interior, na Consolação, quase esquina da Paulista onde agora é Procom foi a Secretaria do Interior. Lá nós tivemos uma exposição que era para ficar uma semana, só em tear manual; peças em tear manual e, por coincidência, teve aqui um Monsiur Maurice, um Ministro acho que do Senegal. Ele foi nos visitar, nossa, mas ficou apaixonado com nosso artesanato. Levou uma porção de coisas, toalhas individual de jogo americano, tudo mais. Era assim um artesanato muito fino, muito sofisticado na época da Dona Suzana, depois nós tivemos Dr. Francisco, começou a degringolar a Sutaco. Depois do Dr. Francisco teve um período médio, aí parece que levantou um pouco com o Dr. Albert Gauss, irmão deste operador plástico, Dr. Albert. Foi muito bom, nós temos uma exposição de presépios que é tradicional, acho que é a 17ª... Não, fiquei lá 18, deve ser a 19ª. Esse ano deve ser a 20ª exposição de presépio, tem presépio do que você possa imaginar, coisas incríveis. (Pausa) Ahhh, a exposição de presépios... Então, aí teve Dr. Albert, depois teve a Stefane e depois Dona Sonia. Essa foi um caos total, foi por causa dela que eu resolvi me aposentar rápido. Senão, eu não me aposentaria, continuaria, mas foi uma administração tão feia, sabe, tão feia, tão contra os princípios da Sutaco.

P/1 - Isso foi em qual governo?

R - Agora, nesse último do Covas. Agora tem uma senhora, a Dona Sonia, graças a Deus, foi embora. Tem Dona Iara, Dra. Iara, que é uma arquiteta, foi pena que não tive muito contato com ela porque estava entrando e eu estava saindo. Não deu para a gente se sentir bem no trabalho, mas ela é uma pessoa interessada, pelo que sinto agora acompanhando. Uma pessoa voltada para as artes, então, acho que ela vai fazer uma boa gestão e eu saí de lá e ia ficar em casa, mas não dá, ficar parada... Então, fui para a Acerte que a diretoria é minha amiga já de muitos anos, é da Secretaria do Trabalho, presidente, faço as minhas exposições. São cinco por ano: Criança, Natal, Páscoa, Dia das Mães, Dia dos Namorados, Dia dos Pais, são seis por ano, aí começa a Criança novamente e tô lá, feliz.

P/1 - No meio desse trabalho na Sutaco a Senhora fazia alguma outra atividade?

R - Não, só lá porque era muito diversificado o trabalho. A gente viajava muito, eu ia muito para Interior e a gente organizava muita exposição. Sabe, tinha que procurar espaço, empresas, nós fizemos numa de processamento de dados... Não é Prodam, nem Prodesp, em Socorro, lá pelo lado de Santo Amaro, não me lembro o nome.

P/1 - Proceda?

R - Como?

P/1 - Proceda.

R - Perto lá do Centro Empresarial, por ali. Nessa a gente não conseguia montar os standesinhos porque a gente abria as caixas para tentar montar, o pessoal comprava tudo. Tanto que teve uma vez que a gente ficou dois dias e acabou o material que nós tínhamos e o artesão não tinha condições de fazer mais porque é feito um a um. Não dava tempo, sabe, a gente estava muito voltada para eles. Até que eu fiz sim... Teve um periodozinho que ia dar apoio para um primo na Igreja de Pinheiros, lá na Montsserrat, num grupo de Alcóolicos Anônimos. Não é bem Alcóolicos Anônimos, é Associação Antialcoólica do Estado de São Paulo. Então eu ia, conversava, falava, mas aquilo me fazia muito mal também, sabe, tudo que mexe com a sensibilidade me afeta muito. Passava três, quatro dias com aqueles depoimentos todos, né? Quando ia começando a esquecer já ia chegando a segunda-feira outra vez. Começava tudo de novo. Então, ficava difícil, acabei deixando também, mas o meu forte mesmo é artesanato.

P/1 - O que a senhora gostava nessa coisa de ver o artesanato, de organizar?

R - De organizar, de ficar conhecendo o artesão, porque é muito interessante, tinha dias que analisava quatro artesãos porque a gente marcava horário. Geralmente eram quatro: dois de manhã e dois a tarde. Então, num dia você tinha quatro tipos de pessoas totalmente diferente uma da outra, às vezes, até mãe e filha, mãe e filho, pai, sei lá. Completamente diferente a sensibilidade de um para o outro, conceitos e tudo mais. Então, você fica conhecendo muita gente, fica adquirindo muita experiência de vida, nossa, nós conhecemos uma Senhora, Dona Maria Helena Caldeira, em Poá, paraibana. Uma mulher de uma fibra tremenda, ela teve, parece, que 12, ou 13 filhos, dentre elas, uma excepcional. Amassando barro com o pé, argila com o pé, fazendo miniaturas de panelinhas, de bulezinhos, vazinhos, esses negócios, ela construiu a casa, ela educou, fez todos os filhos estudarem, encaminhou todas elas. A maioria era menina, construiu a casa com grade, com proteção, com tudo, tudo com artesanato. Então, a garra dela, sempre alegre, morrendo de dores... Imagina, com o pé naquele barro frio, ela ia ao rio pegar argila, não comprava argila como aqui na Capital. Ela ia lá na ribanceira pegar porque ela dizia que não tinha dinheiro para pagar, o pouco que ela conseguia era para manter os filhos, construir a casa. Quando ela pôs telha, telha mesmo porque eram folhas de zinco no começo, nossa! Ela dizia que aquela casa era fruto do trabalho da Sutaco. Então, é gostoso, a gente recebe assim aquelas palavras que não há o que pague. O olhar, assim... Até tenho uma fotografia em casa do José Caçador. São coisas tocantes que ele escreveu, tem um rapaz em Cunha, Leí César Galvão, conheci o Leí garotão, acho que tinha 18 anos, estava me alfabetizando. Ele era pedreiro, um ceramista maravilhoso, tem uma técnica todo especial e hoje ele dá aula, imagina, de matemática em uma Faculdade. Ele foi se aperfeiçoando, foi estudando, estudando, o conheci em 81 e hoje ele já é casado, tem filhos, dois filhos e dá aula. Ele fez Escola de Belas Artes, fez Faculdade de Matemática, a gente tem essas forças, essas garras todas. É interessante, é um trabalho muito bom. E sempre eu acompanhei os meus queridos, sempre a minha filha me acompanhava. Ela sempre gostou também, meu filho, não, meu filho é mais voltado para a música. Ele com o violãozinho dele ia longe. (risos)

P/1 - Vontando um pouco, como é que foi o casamento da senhora?

R - Meu casamento foi romântico, meu marido era muito romântico. Então, todo dia seis a gente tinha comemoração. Nós começamos a namorar no dia 06/01/1959. Então, sempre tinha um jantarzinho especial, eu ganhava sempre uma flor, um bombom. Toninho foi uma pessoa muito romântica, muito boa. Muito ciumento, tinha as coisas dele, o gênio meio forte, mas como sempre fui muito pacata, então uma coisa contrabalança a outra, foi bom. Foi um relacionamento bom, tranquilo. Ahh, meio apagada, não falaria tanto quanto eu falo agora, acho que é por isso que falo tanto. (risos) Eu era bem fechada, tinha medo que gerasse alguma discussão, alguma coisa, sabe? Como ele era muito ciumento. Então, procurava me aquietar, mas foi bom, foi um período bom. As crianças tiveram tudo, Rebeca desde sempre estudou balé que ela gostava, o Augusto tinha as músicas, o futebol dele, tinha tudo. Nós tivemos uma vida boa, mas era aquele negócio, não era como agora que todo mundo é registrado. Também tem os cambalachos, mas naquela época existia uma folha confidencial onde o grosso do salário saía de lá. Então, na época que ele faleceu a aposentadoria era nada, praticamente nada, mínima, porque a grande a empresa não deu. Só o que é de direito nos documentos então fui trabalhar. Mudou totalmente a minha vida, minha sorte é que minha irmã... Nós morávamos num apartamento, eu no 35 e ela, com meu cunhado e meu sobrinho, no 38. A mamãe era viva, morava comigo, mamãe me ajudou muito, a vida inteira, minha irmã também. Eu saia para trabalhar, era ela que cuidava das crianças. Levava Rebeca para Balé, Augusto pro Judô, ficava naquela andança toda. Eu ganhava pouco, então o que ganhava na Secretaria da Justiça não dava para pagar a prestação do apartamento, tinha financiado em 15 anos até que, em 85, eu consegui usar o meu fundo de garantia da Sutaco. Aí foi bom, né? Foram 4 anos mais, até 89.

P/2 - E a senhora conseguiu quitar o apartamento?

R - Ah, consegui. Em abril de 1989, graças a Deus.

P/2 - O relacionamento da senhora com os seus filhos? Na infância eles eram obedientes, a senhora era uma mãe enérgica?

R - Enérgica não, nunca fui, falava muito, berrava muito, mas o que meu filho tinha muito medo é que eu dizia para ele que ia pendurá-lo no varal pelas orelhas e ele ia secar como as fraldas, quando ele não obedecia. Era o castigo, ele morria de medo e tentava obedecer um pouquinho, mas sempre foi muito levadinho, a menina não. A menina foi sempre tranquila, muito nervosa, agitada, mas obediente, muito caseira, muito organizada. O nosso relacionamento foi bom, foi e continua sendo bem amigo, a gente é muito unido, Graças a Deus. Uma coisa que sempre pedi a Deus tem este meu sobrinho Ricardo, filho da minha irmã, ela faleceu em 1990. Sinto uma falta incrível dela, nós somos muito amigos. Todo dia a gente se fala nem que é só para dizer “Tudo bem, tudo bem”. Sempre, o Augusto é meio desobediente na questão de horário, ele dizia: “Vou sair.” “Sim, meu filho, onde vai, que horas mais ou menos volta.” “Eu não sei mãe, nem fui como vou saber a hora que eu volto.” Eu tinha muito medo, estava começando negócio de drogas, aquele negócio. Ele fez colegial profissionalizante no Senai, lá no Socorro, muitas vezes ele ia de bicicleta pela Marginal, eu ficava apavorada. Quando acordava ele já tinha ido para a escola, tinha aula das 7:00 da manhã às 17:00 da tarde. Então, ele saia cedinho, já deixava a marmitinha pronta e ele saia. Quando entrava no quarto e não via a bicicleta pendurada meu coração chegava no pé. Enquanto ele não voltava às 18:00 o anjo da guarda estava com as asonas abertas. A Rebeca não, a Rebeca foi mais tranquila, muito caseira, sempre juntas. A gente ia muito ao cinema, fazer compra, muito para o shopping que eu gosto demais do Faria Lima, do Iguatemi. Aquele shopping é o meu predileto que eu vi nascer, né? Foi o primeirão. Primeiro shopping que teve, a gente usava muito ele, ia muito lá. Sempre fomos muito amigos, meu genro, Graças a Deus, é de uma família muito boa, italiana. Também assim muito voltada para a família. Minha nora, os pais são do interior, a Dona Amália, sogra do meu filho, é baiana, seu Afonso viveu pouco tempo, logo faleceu, viveu pouco tempo depois que a Nair casou. Nós não tivemos muito contato com ele, mas a Dona Amália é uma pessoa agradável.

P/1 - A origem da sua família é...

R - Italiana.

P/1 - Quem foi o primeiro a chegar aqui?

R - Entre meu pai e minha mãe?

P/1 - Que chegou no Brasil; da família?

R - Então, meu pai quase que nasce no navio, vieram três tias, minha tia Nanina, que era Ana, minha tia Brasilina, que chamou Brasilina porque vinha vindo pro Brasil e meu tio Afonso, que era mais velho que meu pai também. Os três mais velhos, meu pai foi o primeiro a nascer aqui.

P/1 - Então veio primeiro o seu avô.

R - Meu avô, foi meu avô e da parte da minha mãe também. Da parte da minha mãe, meu avô, Francisco, tinha uma mercearia, uma vendinha, sei lá como é que era naquele tempo, um empório onde agora tem a bomba de gasolina, o posto de gasolina. Ainda tem, não tem? Na Oscar Freire com Consolação? Ou não tem mais? Acho que não tem mais, mas teve até pouco tempo.

P/1 - Não tem mais. É um bar agora.

R - Não sei se tem umas casinhas... Agora não deve ter mais, mas tinha até um tempo atrás tinha as casinhas deles lá. Umas portas enormes, uns degraus. Acho que não tem mais.

P/1 - Eles vieram direto da Itália e montaram a mercearia, ou foram fazer outra coisa?

R - Já montaram direto, a minha mãe contava que ela nasceu na Rua Benjamin Constant. Quando eles vieram da Itália eles foram morar bem lá no Centro da cidade. Não sei como que vieram para a Consolação porque compraram o terreno, a casa, não sei, aí vieram morar aqui e montaram a mercearia. A minha mãe, menina, começou a costurar, ela era aprendiz, como ela dizia, ia a pé até a Praça da República. Ia ela e mais outras moças, uma delas depois ficou sendo minha tia, minha tia Albina que casou-se com o irmão do meu pai, meu tio Afonso, que era italiano. A Dona Carolina que ficou sendo comadre, até as crianças eram pequenas e chamavam ela de Vó Carolina. Ficou amiga para o resto da vida, tinha o Seu Atílio que era o marido dela. Não me lembro o que ele fazia. A Dona Carolina fazia o que hoje a gente chama de modelador, chamava de corpinho. Aqueles sutiãs até o estômago, até a cintura e a minha mãe fazia... Não me lembro o que, acho que fazia blusas, ajudava naqueles bouasinhos, naquelas coisas. Até que depois ela começou a trabalhar sozinha, não sei como que ela conheceu a Família Mesquita e começou a trabalhar para eles, inclusive, a Maria Cecília Mesquita, que foi a diretora do Suplemento Feminino, a minha mãe fez o vestido de Primeira Comunhão dela.

P/1 - E de onde a sua mãe aprendeu essa...

R - A costurar?

P/1 - É.

R - Aprendeu sozinha. A força, a necessidade porque eram muitas irmãs, ela era a mais velha, uma das mais velhas e tinha a minha tia Ana que eu não cheguei a conhecer. Eu nasci, logo depois ela faleceu, tinha 9 para 10 meses quando meu avó, pai dela, faleceu. A minha vó já tinha falecido, minha vó Joana e tinha meu tio Antônio, a minha mãe, minha tia Genoveva, Beatriz, a tia Luiza e o tio Miguel. Seis filhos, faleceram todos. Meu tio Miguel dia 29 de setembro foi aniversário dele, seria o aniversário dele. Ele foi o último a falecer, todos eles falecidos.

P/2 - De que região da Itália veio a sua família?

R - A minha mãe era mais para o Sul da Itália. Meus avós eram perto da Sicília, eles são bem morenos. Minha mãe parecia Síria, bem morena, já meu pai era do Norte. Meu avô, pai dele, avô Vicente, tinha olhos azuis, meu pai tinha olhos claros, minha irmã era loira. Bem loira, bem clara, de olhos azuis, até a gente brincava, dizia que ela era alemã. Quando era pequena, minha mãe dizia, não sei quem era, que tinha nascido dentro de um repolho porque ela era alemã. Ela veio da Alemanha dentro de um repolho. Eu chorava, chorava. Não me lembro dessa época porque quando me lembro dela ela já tinha 18, 19 anos, quando eu nasci, em julho, dia 21 de setembro ela fez 17 anos. Ela nasceu em 21, eu nasci em 38, são 17 anos de diferença. Na Rua Augusta passava bonde, eu amava de paixão, o bonde ia até a Praça das Bandeiras. Não sei que caminho ele fazia porque era pequena, mas adorava, achava lindo, maravilhoso. A gente ia no Cine Metro, descia perto do Mappin, no Cine Metro, era muito fino, tinha sessão de matinê.

P/1 - Como é que as pessoas iam para o cinema? Era de gravata?

R - Terno, gravata. Tem uma foto que tem eu e a minha irmã de boina, fazia frio. Luvas. Terno imagina. Mulher de calça comprida, homem de uma calça mais esporte, uma camisa esporte era mesmo assim para um pick-nick, férias na praia. Maio de corpo inteiro. Maio de homem era como uma cuecona antiga. Não chegava a ser samba canção, as cuecas de malha, as primeiras, era como os maios dos homens.

P/1 - Senhora se lembra a primeira vez que foi a praia?

R - Fui desde sempre, desde pequenininha. Sabe o que eu lembro de praia? Eu devia ter uns 10, 12 anos, meu pai tinha um chalezinho, uma casa muito simples na Praia Grande. Eu assistia pesca de Cação feita por bois, a rede era puxada por bois, por parelhas de bois. Praia Grande não tinha nada, para começar, não tinha nem estrada, a gente ia numa picada, acabava de passar pela Ponte Pencil e entrava assim num mato, um matinho e tinha uma trilha. Você tinha que ir seguindo aquela trilha. Uma vez nós tivemos que dormir lá porque tinha aqueles riachinhos, acho que eram esgotos, não sei o que era, uns riosinhos que desaguavam ali e com a maré aquilo tudo encheu e meu pai não pôde tirar o carro. Ficamos lá na casa, ficamos apavorados, né? Escuro como breu!

P/1 - Que carro que era?

R - Tinha Morris, esse carro Morris era um carro inglês, ele era todo sofisticado. Abria as portinhas... A seta, achava lindo, eram umas bananinhas que apareciam assim do lado. Você mexia num botão, ao invés de piscar farol, coisa assim, subia aqui, fup, como se fosse uma bananinha entre a porta da frente e a de trás, porque era sempre tudo quatro portas. Na coluninha, assim, aparecia uma bananinha, parecia uma bananinha, coloridinha que dava sinal, ou você entra para a direita, ou para a esquerda. Então, meu pai teve esse Morris, teve Nash, teve um carro chamado Hillman que ele achava lindo de morrer, só que ele não cabia lá dentro, meu pai era muito grande e o carro era muito pequeno, ele mal cabia lá dentro. Ele era alto e a cabeça roçava no...

P/1 - Hillman era inglês também.

R - Era inglês, né? Cinza e azul. Ele achava lindo, meu pai sempre gostou de... Não usava, assim, conjunto de terno. Calça cinza e o paletó de outra cor, azul marinho. Imagina. Eu já era mocinha, tinha acho que 17 anos, quando começou aparecer calça cinza e paletó azul marinho. Muito difícil roupa assim e meu pai sempre gostou de roupa diferente. De botar calça de um, com paletó de outro. Então, o carro tinha duas cores era cinza e azul, ele adorava o carro. Minha mãe dizia: “Fiorino? você não cabe nesse carro!” Gessi, minha irmã, chamavam de Pizinha. “Ah, fica para Pizinha”, ele dizia. Aí ele teve, depois, um Ford, teve Nash. Nash ele teve vários. Até um dos últimos era de duas portas, ele teve, esse não sei a marca, uma baratinha, chamava de baratinha, não sei, que atrás você abria como se fosse o porta-malas, o capô e tinha banquinhos. Você podia sentar lá. Então, tinha três lugares para passageiro.

P/1 - E essa viagem?

R - Ah, essa viagem. Então, a gente ia assim: passava a Ponte Pencil, passava por um curtume que tinha um cheiro horroroso. Corvo demais, urubu demais porque era onde acho que eles descarnavam os porcos, bois, sei lá o que quê era. Devia de ser boi mesmo que tirava o couro e punha o couro ali para curtir, mas era um cheiro horroroso. A gente ia, ia, andava, andava, andava até que chegava na prainha, não tinha nada. Tinha uma, ou outra casa de caiçara, coisa assim e a gente assistia a pesca do Cação, eu adorava porque de manhã, muito cedo, ainda bem escurinho... Eles jogavam a rede a noite e, de manhã, começavam pares de bois, eram seis, sempre seis, eles começavam... De onde a gente estava nem via os bois, o começo deles, depois é que ia vendo. Eles iam fechando, fechando até que os dois lados da rede se encontrava. Eles iam puxando, cada vez eles iam mudando os ganchos dos bois nas malhas da rede e vinha aqueles Cações enormes. Eles punham todos na praia, nesse meio vinha um monte de camarão, vinha lula, vinha peixes outros, vinha arraia. Eu me lembro que tinha aquelas arraia com o olho feio, uma cara feita, vinha um monte de peixe, um monte de coisarada. Era gostoso e a gente levava as postas de Cação para casa, muito camarão. Era uma delícia.

P/1 - A senhora se lembra de alguma outra viagem para outros lugares?

R - Sim. Eu fui para Poços de Caldas, passei muito tempo lá. Tinha a Bica dos Macacos, a única onde tinha água sulfurosa, nós fomos para Caraguatatuba, mas chegou na metade do caminho não deu para ir porque não tinha estrada. Não tinha estrada, não; tinha estrada, mas era uma ribanceira de um lado e a picadinha do outro. Choveu, então carro nenhum subia. Quer dizer, nós fomos até um pedaço. Aí nós tivemos que voltar de ré um bom trecho. Não só nós, mas muita gente que estava. Umas quatro, cinco pessoas, uns quatro, cinco carros. Já era, assim, congestionamento. Voltamos para poder depois manobrar e voltar para... Nós estávamos em Caraguatatuba, nós íamos para São Sebastião, ou para Ubatuba, não me lembro. Para Ubatuba! Não foi possível porque tinha chovido. Isso foi também... Não me lembro o ano, acho que eu devia ter 12 anos. Deve ter sido em 40, 42, mas, Poços de Caldas inclusive eu tenho fotos de Poços de Caldas.

P/1 - Bom, a gente estava falando das viagem. Tem mais alguma viagem para contar?

R - Tem. Isso já com o meu marido, antes das crianças nascerem. Nós fizemos uma volta a América do Sul. Foi lindo, de Vapor, nós saímos de Santos, descemos, contornamos ali o restinho do Atlântico, subimos o Pacífico todo, passamos pelo Canal e descemos novamente até Santos. Nós fizemos isso em 25 dias, foi uma viagem maravilhosa. Depois, pelo Brasil, conhecemos o Brasil. Para fora do Brasil não saí, a não ser essa volta. Sim, depois fomos uma vez para a Argentina, mas sempre aqui na América do Sul. Sair da América eu não saí. Gostaria de conhecer Itália, gostaria de ir para Jerusalém. É um sonho. Gostaria muito, mas... Tudo a seu tempo. Como ainda eu vou viver até 90 anos, tenho mais 29 pela frente. (risos)

P/1 - Eu queria que a senhora falasse um pouquinho sobre a transformação da cidade de São Paulo. Quais os momentos que a senhora sentiu que a cidade mudou?

R - Bem, senti quando, por exemplo... A minha filha fazia balé com a professora Lina Bienarca na Rua Minas Gerais, perto da Angélica. Agora tem aquela lâmpada, em frente ao Cine Belas Artes, por ali, naquela pracinha. A rua era por ali; a Rua Minas Gerais. Mudou. Aquilo mudou radicalmente tudo e de repente. Foi um choque, a abertura da Consolação que era uma via só, ia bonde por ali, tudo. De repente, alargam e recuam o Cemitério. Foi uma mexida total.

P/1 - E como é que foi essa mexida mesmo?

R - Então, a Rua da Consolação era uma via só, uma via de rolamento. Quer dizer, vinha e vinha, duas mãos de trânsito, mas era uma via só.

P/1 - Ela era mais estreita?

R - Bem mais estreita. Ela era, acho que, como é a Augusta agora. A Augusta sempre foi assim. Não foi mexida, foi preservada. Agora, a Consolação tinha de um lado todo o cemitério, então, ele foi recuado porque ele encostava aqui na... Eu não me lembro, acho que ele passou para trás, cresceu lá para trás. Então, foi uma mudança grande e demorada. Me lembro que tiraram os trilhos do bonde, aí começou só ônibus, todo mundo tinha muita coisa: “Imagina, vai mexer no cemitério.” Então, sempre teve aquelas polêmicas de superstição, aquele negócio todo, mas Graças a Deus não houve nada. Aumentou, mas tinha bonde que ia e que vinha, isso eu vi, acompanhei com a Rebouças também. A Rebouças era pequenininha, estreitinha, a Faria Lima era a Rua Iguatemi que saía da Rebouças e ia até a Brigadeiro Luís Antônio, onde tem o Instituto Biológico. Era tudo matinho por ali. Mato, mato. Tinha um bonde que ia para Santo Amaro, um bonde aberto. Meu pai, tadinho, um Santo! A gente ia de casa até o Instituto Biológico, aí ele deixava o carrinho Santo lá parado... Ah, ele teve um Ford inglês também, pequenininho, um fordeco que ele mal cabia dentro. (risos) Tadinho, ele adorava os carrinhos pequenos, mas ele não cabia. Ele era muito grande, então, ele deixava o carro estacionado perto do Instituto Biológico, a gente esperava o bonde e ia com o bonde aberto. Do lado de fora, do lado que passava o outro bonde de sentido contrário, tinha uma madeirona para ninguém subir e descer, e o estribo do bonde era fechado. Então, só tinha acesso por um lado do bonde, né? Bonde aberto. Então, a gente ia até Santo Amaro, mas não descia do bonde, via represa, ele comprava o sorvete, vinha tomando sorvete, o bonde dava a volta e a gente voltava. Aí pegava o carro e ia para casa, eram uns passeios. Também mudou tudo, mas aí já não vivenciei essa mudança. Lá da Rua Tutóia, era Rua Tutóia por ali, mas não vivenciei, a Teodoro Sampaio, a abertura da Teodoro Sampaio, nós sempre tivemos muito medo porque a passarela que fizeram no Hospital das Clínicas diziam que ia ser feita ali na Oscar Freire. Então, ela ia partir da minha casa e a gente tinha muito medo de perder terreno. Como nós tínhamos 60 metros de fundo, eles uma vez... Não me lembro, isso foi comentado, que estiveram lá uns fiscais, um pessoal medindo os terrenos. Que iam tirar da frente. Ih, ia sair o quarto da frente, fiquei muito triste, mas Graças a Deus nunca tiraram um milímetro. A passarela tá lá nas Clínicas, que também não desalojou ninguém, não precisou desalojar ninguém, eu me lembro. A Avenida Rebouças não tinha canteiro no meio, não tinha nada, era só uma via, uma rua um pouco mais larga. A Oscar Freire era toda de paralelepípedo. Depois eles deixaram só aquela rampinha que vai da Oscar Freire para a Rebouças de paralelepípedo, mas aí chovia, os carros não subiam. Até que depois asfaltaram tudo, asfaltaram em 1967. Eu sei bem porque foi quando papai faleceu. Estavam aquelas máquinas ali na porta, aquilo tudo, aí que a Oscar Freire passou a ter uma mão de direção só, ela era sentido contrário: Augusta, Dr. Arnaldo. Depois é que mudou, mudou para sempre, aí acabaram de alargar a Rebouças, aquilo tudo. Então, isso tudo senti porque a gente viveu ali, foi um sentimento bom porque alargou, a gente ficava feliz; agora ia ter bastante movimento. Foi gostoso, um período bom.

P/1 - E quando chegou a televisão?

R - Ah, foi maravilhoso, como a minha irmã também trabalhava, meu pai e ela trabalhavam fora, mamãe costurando sempre, então logo que apareceu máquina de lavar roupa os dois compraram, apareceu não sei quê eles compravam e compraram televisão. E não contou nem para mamãe, nem para mim, então, estava no carro da minha irmã a televisão e nós tínhamos uma senhora amiga do lado, Dona Mariquinha. Seu Gustavo, italiano, marido dela... Eles tiveram padaria lá no Bexiga, depois se aposentaram e foram para lá. Ainda mora a filha, a Luzia, ainda mora lá, ainda é nossa amiga. Então, meu pai falou: “Rosa, por que você não vai pedir para Seu Gustavo ver se ele tem salsa?” Porque meu pai gostava de cozinhar, ele queria fazer uma beringela e precisava de salsa. “Mas, vai com a Carmo.” Na hora ninguém pensou nada porque eles queriam por a televisão dentro de casa e lá fomos, minha mãe e eu. Minha mãe apressada porque ela queria continuar costurando e, outra, que ela tinha que levar salsa porque meu pai queria fazer a tal da beringela. Que não tinha beringela nenhuma! (risos) E Seu Gustavo tinha uma plantaçãozinha no quintal, né? Ele conversando muito, conversando muito aí, de repente, chegamos, né? Aí, eles querendo que a gente entrasse, de repente a televisão lá dentro. No pedaço ali dos amigos nós éramos os únicos que tinha televisão em casa. Inclusive essa família, Dona Mariquinha, Seu Gustavo, a Luzia iam lá a casa para assistir televisão, era branco e preto, claro, não era contínua como agora que você liga às 8:00, vai até às 8:00. Tinha horário, começava tarde, tinha o Circo Bombril que era aquela família do... Esqueci o nome do palhaço! Então, no pedaço da nossa casa nós éramos os únicos a ter televisão, essa família, a Dona Mariquinha, o Seu Gustavo, a dona da pensão que tinha os estudantes de medicina, Dona Horizontina, ia lá em casa assistir televisão. Dona Luiza, outra vizinha., era gostoso porque cada uma levava uma coisinha. Uma vez uma levava um bolo, outra levava um sanduichinho porque tinha intervalos grandes. Intervalos dela ficar escura, não ter imagem e tinha de sábado Grande Teatro Tupi. Mas era lindo! Depois, teve TV de Vanguarda.

P/2 - E telenovelas?

R - Uma das primeiras que assisti foi na TV Record com a... A que fazia Almoço com as Estrelas, como é que ela chama? A Lolita Rodrigues, chamava Algemas de Ouro. Era uma trama que ela era viúva, os filhos não queria que ela casasse outra vez. Aqueles trem da vida, aqueles dramas mexicanos, mas foi uma das primeiras novelas que eu assisti. Depois, assisti outra que era com essa atriz Ana Rosa, que ela era cigana, não me lembro o nome da novela, mas era linda. Nossa, me lembro que chorava, era ela, não me lembro mais qual o ator. Eu me lembro dela, aquela saia enorme, o lenço. Na TV Tupi também, porque não tinha Globo. Tinha Rádio Nacional e a Rádio Nacional tinha muito programa de calouro. A Record tinha programas excelentes. Tinha os Shows do Dia Sete. Eram shows magníficos, tinha todo o Festival da Música Brasileira. Todo aquele movimento quanto surgiu Caetano Veloso, Gilberto Gil, Elis Regina. Nossa, vi Elis Regina, as primeiras aparições dela com os cabelinhos todo estufadinhos. Que mais? Ah, quando o Agnaldo Rayol ganhou o programa da Peneira de Ouro que era o Ari Barroso que fazia. Não existia Globo, era Rádio Nacional, mas também não era na Rádio Nacional, era na Record. Era Tupi Difusora, que era boa, e tinha o programa de manhã e chamava Programa do Canarinho. Aquele pretinho, pequenininho que era o canarinho, ele que era o apresentador. Era um programa bom. Inclusive a Rebeca, minha filha, dançou lá várias vezes. Ela era aluna da Elza Prado, na parte popular, fez o curso com a Lina Bienarca, clássico e tinha a Elza Prado que era música popular. Então, ela dançou várias vezes lá.
Quando o Roberto Carlos... Estava começando a Jovem Guarda.

P/2 - Vamos voltar um pouquinho na história da telenovela. Por um acaso a senhora assistiu o primeiro beijo na boca, na televisão, com a Vida Alves e o Walter Foster?

R – Assisti, não me lembro qual foi a novela, mas assisti, foi comentadíssimo. Imagina, um simples beijo. Hoje, meu Deus, né?

P/1 - E saiu notícia em jornal?

R - Em jornal. Foi comentadíssimo, assim, uma depravação, uma coisa, assim, imoralissima. Eu me lembro também, foi nessa época do beijo, ou um pouco antes, ou um pouco depois, que a Virgínia Lani - ela era uma vedete daquele Valter Pinto -, foi uma das minhas frustrações porque eu nunca pude assistir, porque eu era pequena. A minha mãe foi com meu pai e a minha irmã. Mas eu não podia ir porque era acima de 18 anos. Magina, aparecia vedete, de perna de fora. Coisa horrorosa, não? E a Virgínia Lani tinha um programa de domingo, não me lembro em qual canal. Acho que na Tupi e meu pai gostava dela, né? De ver, tudo mais. A gente estava todo mundo na sala, de repente, ela aparece de maio. Olha a depravação. Maio inteiro, perninha, tudo bonitinho, tomara que caia, sem alça. Oh, meu Deus do Céu! Uma gravatinha e orelhina, que agora tem a garota da Playboy. O programa simplesmente saiu do ar. Era tudo ao vivo, não tinha gravação, ela foi suspensa. Desacato ao pudor público como que uma mulher semi nua entra dentro de casa, na frente de crianças e tudo mais? Ela foi suspensa. Nossa, foi uma polêmica enorme, hoje, coitadinha, ela seria suspensa porque ela estava vestida demais. (risos) Então, teve isso também, mas, a Vida Alves, me lembro... Não me lembro qual foi a novela, assisti, também, todo O Direito de Nascer; do Albertinho Limonta, da Mãe Dolores.

P/1 - E o homem pisando na Lua, em 69?

R - Também. Aí meus filhos viram também, foi lindo, a primeira imagem colorida.

P/1 - E mudou, depois da televisão, a vida cotidiana da senhora?

R - Ah, muda. Mudou, antes eu só assistia rádio teatro, era Rádio São Paulo. O rádio foi passado para escanteio, durante o dia a gente ouvia música, mas a noite, de sábado tinha Grande Teatro... Ô, meu Deus! Eu sei que era de sábado a tarde, na Rádio América, acho que era Rádio América, não me lembro o nome dele. Alcina de Oliveira. Como é que era o nome dela? Alcina... Só sei que era marido e mulher, assim, príncipes do teatro. Então, tinha aquele rádio teatro, era lindo, a gente ouvia, ficava ouvindo e tinha a descrição da roupa. Ela vestia não sei que, usava um chapéu não sei de que jeito. Então, você imaginava aquilo tudo. Depois, você passou a vê, então, foi muito mais interessante, o rádio, coitadinho... Manuel Durains. Era o rádio teatro de Manuel Durains. Nossa, mas era assim muito famoso como o Procópio Ferreira, era o Manuel Durains do rádio. A televisão mudou totalmente, radicalmente. Então, de sábado quem ia ficar ouvindo rádio se podia ver Grande Teatro Tupi, era a Lia Borges de Aguiar, o Walter Foster, tinha aquele José Parisi, ai, era assim o galã. Ele fazia muito assim Zorro, tinha assim umas pecinhas de espadachim, aqueles negócios todo, era sempre ele com aquelas camisas de cetim. Ah meu Deus que coisa linda, maravilhosa, ficava embebecida vendo. Custou para ter os musicais a Record que começou com os festivais e musicais, a Tupi tinha o Grande Circo Bombril que era daquela família de palhaços. Não me lembro o nome, meu Deus, eu tenho uma cabeça! Eu tenho a fisionomia, mas não me lembro o nome.

P/2 – Será que não seria o Circo do Arrelia?

R – Ah bom, o Circo do Arrelia era da Record, era excelente de domingo a tarde. Ocupava a tarde inteira, ele era ótimo, era Arrelia e Pimentinha, mas foi ótimo o Circo do Arrelia. Foi muito bom, a gente assistia todo domingo, nossa. Almoçávamos até rapidinho, fazia tudo correndinho para ir ver televisão. Ficava aquele bando de gente lá em casa.

P/1 – Essa coisa de transformações da cidade, o que a senhora observou que marcou a cidade, a transformação de costumes, roupa?

R - Então, o Mappin tinha um salão de chá, era tão gostoso. A gente ia muito bem arrumado, de luvinha. Tanto que quando houve a nossa formatura da Escola Normal, independente da colação de grau, do baile, daquilo tudo, as meninas se reuniram e nós fizemos um chá no Mappin. Era muito gostoso, nada igual aos chás que a gente vai na Mestiça, nada disso, mas era um chazinho assim também, tinha chocolate, leite, chocolate, chá, alguns salgadinhos, uns docinhos e tudo. Ora, o que mudou então isso foi uma coisa que eles tiraram, não sei por que, depois tinha o Fasano, o Fasano que era muito fino. Sempre foi na 24 de maio, não, na Barão de Itapetininga, uma coisa ótima que tinha era o Footing na Barão de Itapetininga, então a gente ia no cinema de domingo a tarde e depois era obrigatório o passeio na Barão de Itapetininga, ficavam assim uns rapazes parados, a gente ia e depois tomava lanche, fazia qualquer coisa, ou no Fasano, tinha a Doceira Paulista, daí então a gente voltava e pronto. Isso era obrigatório. Então ia no cinema, imagina no Cine Marrocos, mas ninguém entrava, sequer de camisa esporte, tinha que ser de gravata e hoje tá uma coisa horrorosa, que ninguém consegue entrar (risos). Mas mudou, mudou muito, a gente sente...

P/1 – Mas tinha outro lugar que tinha Footing, era só na Barão mesmo...

R- Só na Barão de Itapetininga. Nossa, era assim famosíssimo.

P/1 – Funcionava como em cidade do interior, homem de um lado, mulher do outro?

R – Não, não, os rapazes ficavam parados, tinha outra charutaria, charutaria Caruso, onde tinha café, coisa assim, os rapazes ficavam e as moças iam ao Fasano, comia doce na Doceira Paulista. Uma coisa que eu me esqueci de falar que foi muito, muito marcante na minha vida foram os cadetes que depois a escola mudou para as Agulhas Negras. Para diante de Rezende, mas a escola deles era ali onde é a GV...

P/1 – Ah, era ali é...

R – Era lá, nessas casinhas, ali na Consolação com a Oscar Freire tinha uma família, Dona Angelina, Seu Carneiro, não me lembro o primeiro nome dele, chamava de Seu Carneiro e filhos. De uma das filhas, a Cacilda foi amiga da minha irmã e esse seu Carneiro tinha uma irmã, bem temporona também que era casada com militar. Capitão Renaux. Quirino Renaux e eles tinham um filho, o Tile que era também Quirino Renaux Filho, ele estava na escola de Cadetes. Tinham sempre festas, eles ficavam na Escola Militar, então eles saiam de quarta, sábado e domingo e iam no cine Bandeirantes, mas era tão lindo com aqueles pelerines com aquelas coisas. A meninada caia doida em cima deles, eles iam no Cine Bandeirantes, no Largo Paissandu, perto da Igreja Nossa Senhora do Rosário na ladeirinha ali. No Ipiranga, no Marabá que eram cinemas bons, e no Metro, eram os melhores cinemas que a gente tinha. Eles faziam muitas festas no Círculo Militar. Ah, imagine se eu não ia. Então, era ótimo. Puxa, os cadetes, que esqueci deles, essa foi a época melhor da minha vida...

P/1 – Ah é...

R – Foi. Foi uma época muito, muito, muito boa, muito alegre e depois eles mudaram, foram todos para as Agulhas Negras. No começo a gente ainda se correspondia e depois um deles, Martinho foi transferido para Itapetininga. Era um fanzoca, pronto. perdi a paquera. (risos) Então, ficou distante a distância.

P/1 – Tinha muitos bailes?

R – Tinha, mas tinha muitos, muitos, no Clube Homs era tão lindo porque eles ficavam todos esperando os convidados, era muito elegante. Eles ficavam na porta esperando os convidados com o quepe assim do jeito lá deles, a espada cruzando. Era muito bom. Muito charmoso. A gente usava vestido a rigor, vestido comprido, muitas flores, era muito romântico. As roupas, a gente era muito românticas. Sabe assim, boazinho, rendinha, flores, coisa assim muito feminina, muito delicado, cores delicadas.

P/2 - Os cadetes chamavam muito a atenção das moças, nessa época?

R – Nossa Senhora, como chamavam. Tinha das forças armadas, as três: aeronáutica, marinha e exército. Então, era verde, azul marinho e branco, as cores de festa. Meu Deus do céu, aqueles espadinha, brilhando. Nossa, então meu sonho era casar com um militar para passar embaixo de espadinho. Não sei...(risos)

P/2 – Então, a senhora se interessava pelos cadetes, mas nunca chegou a namorar, nem teve nada?

R – Teve um, teve o Martinho, que mudou, que ele mudou não, foi destacado para ir, depois que se formou, era tenente, foi para Itapetininga. A gente se escrevia, se correspondia e tudo, mas, depois foi a distância, ele nunca mais veio e eu não tinha condição de ir, que hoje é diferente, menina cata a mochila dela e vai. Mas imagina, em 1955, 1956, de jeito nenhum, nunca! (risos). De jeito nenhum. Nossa como é que eu tinha esquecido deles? Foi uma época de juventude linda, eles passeavam pela Barão de Itapetininga, Rua Marcone, e o cinema sempre o Cine Bandeirantes, eles iam muito lá.

P/1 – Nessa época na Paulista tinha o Trianon?

R – Tinha, tinha mas aí já....

P/1 – Que era onde depois foi construído o MASP...

R – O MASP é! Mas pelo menos nós não íamos muito. Ah, uma outra coisa muito engraçada, isso quando pequeneninha, na Quarta-feira de Cinzas, era muito respeitado, o Carnaval ia até Terça-feira meia noite, então, toda Terça-feira de Carnaval, nós íamos naquela rua que sai do Patriarca... Como é que chama?

P/2 – Conselheiro Crispiniano?

R – Não, não!

P/1 – Aquela que desce pro Vale do Anhangabaú, é essa?

R – É, é! Será aquela rua? Como é que chama? Que ela liga Largo do São Francisco...

P/1 – Frei Galvão?

R – Não! É rua...

P/1 – Eu sei, aquela que sai do Largo de São Francisco e desce...

R – E desce e vai até o Largo de São Bento. Eu lembro o nome dela, por ali tinha uma pizzaria que era famosa, tinha uma pizza toda famosa, não sei o que. Era mesmo pizza, pizza só tinha, mussarela, aliche e só! Só existia essa duas, não tinha mais versão nenhuma, eram as pizzas tradicionais, mussarela e de aliche. Eles faziam lá, não sei de que jeito com alho, não me lembro. O que eu sei que a gente ia comer pizza lá, na Terça-feira de Carnaval, a gente achava ótimo, lindo e maravilhoso e, a gente via o finalzinho do desfile da escola Vai-Vai, que era bem pequena. Tinha sei lá, vamos dizer, no total uns 100 figurantes, mas sempre de branco e preto... Líbero Badaró! A rua! Eles sempre de branco e preto, tudo, achava lindo aqueles passistas, aquelas coisas, mas meia-noite acabava porque começava a Quarta-feira de Cinzas e era religiosamente respeitado. Não é como hoje, que Quarta-feira de Cinzas tem escola ainda desfilando.(risos)

P/1 – E o Carnaval de rua era feito aonde?

R – Então, um pedaço na Paulista que eu não cheguei a pegar. A minha irmã sim, ela contava, a minha mãe contava que tinha carros alegóricos e ficava forrados de serpentina, de confetes . Mas, essa época já não era mais a minha. Já tinha mais assim, eles desfilavam na Avenida Ipiranga, mas aí a minha mãe, gente não ia porque a minha mãe tinha medo, porque disse que era muito gente, que era perigoso, que podia...

P/1 – Mas Avenida Ipiranga, Avenida São João?

R – São João, por ali, depois então, na Terça-feira a gente via o finalzinho. Eles vinham pela São João e então, passavam pela Líbero Badaró, ali onde a gente estava. Acho que a gente ia comer pizza no Guanabara. Não é por ali o Guanabara? É por ali, não me lembro. Sais ali na porta do restaurante e via a escola de samba passar. Era no máximo uns 100 figurantes. Aquelas capinhas que giravam, bandeira...

P/2 – Pelo que a senhora ta contando, a senhora não participou do Carnaval, efetivamente, o Carnaval de rua, a senhora assistia.

R – Assistia.

P/2 – E Carnaval no salão? Confete e serpentina?

R – Não, nunca fui. É uma pena, mas eu nunca fui.

P/2 – Nunca participou?

R – Não. Ah, mas, nós tivemos uma amiga, Lucy Atala, o pai tinha cavalos no Jóquei e tudo, eram muitos filhos então ele fazia festinha, festinha caipira lá na casa deles, porque era só ela de mulher e um bando de homens, de filhos homens. Eles faziam lá, o Teófilo Atala fazia lá mesmo a festinha. Então, era engraçado que eu bom, que eu sempre fui baixinha não tinha problema, mas, os convidados eram tudo jóquei, tudo baixinho e a Raquel uma amiga muito alta, ela era a única que a gente olhava assim e a Raquel estava dançando sozinha. O rapaz sempre baixinho era muito engraçado, a gente brincava: “como é que é, tomou sopa na cabeça do menino”. (risos) Então a gente brincava era mesmo assim. Festa caipira, tinha vestido caipira, eu lembro tive um lindo. Minha mãe comprou uma chita azul, não a chita não sei que cor que era. Mas eu sei tinha, predominava o azul, tinha hortênsias, sabe umas flores assim, discreto o vestido (risos) Tinha um babado aqui era sem manga, nossa, aquilo. Meu pai: “Como é que você vai deixar a menina sair assim com esse braço de fora?” Ué, não tem nada, é festa caipira, caipira usa assim, sei lá, com as tranças, da minha irmã fazia as tranças, pintava a cara, tudo.

P/1 – Você se lembra das mudanças políticas, do regime militar?

R – Lembro, lembro sim, me lembro quando estavam fazendo o Hospital das Clínicas, foi a época do Ademar de Barros. Dizia que ia ser um monstro, o maior hospital do mundo, na época, eu acho mesmo, deve ter sido e que ia ter tudo nesse hospital, pertinho lá de casa, então nós acompanhamos a construção dele. Mas a mudança de governo, nossa, acompanhei, foi triste, como estava muito em casa, mal lia jornal porque... Era engraçada, a mulher era muito alienada, a gente era alienada sim, por exemplo: alienada porque eu sou muito acomodada. Era muito acomodada. Mas a minha irmã não, minha irmã era ativa, sempre trabalhou fora e mesmo depois de casada, depois do Ricardo ter nascido, ela sempre trabalhou. Era muito ativa e eu não. Eu sempre fui muito dependente, muito coitadinha, ah coitada, a Carmo, a Bilu era pequeninha, pequeninha. O tempo passou, a banda passou e eu fiquei lá, pequena. Tanto que eu quando comecei a trabalhar, eu sofri muito, porque eu estava acostumada pegar o meu carrinho e ir para onde eu queria. Mas a Praça da Sé, às 18:00 da tarde você não tem o seu carrinho na porta. Achei que a boneca ia sair do trabalho e ia ter um táxi esperando, não sabia voltar para a minha casa, não conhecia como era a marmita para quem trabalhava e usava marmita. Na minha cabeça marmita era aquele mostrengo de 3 panelinhas, tanto que quando falei para uma das moças, logo no primeiro dia: “Aonde você almoça?” Sabe aqui em cima no refeitório, eu trago marmita.” Você traz marmita? “É, ponho dentro da bolsa”. Eu via a bolsa, uma bolsa normal. Pensei: “Como é que ela põe aquele trem enorme dentro” Minha cabeça. Quando eu cheguei em casa comentei com a minha irmã: “Nossa, sabe como é que elas comem, de marmita”. Nossa de marmita e como é que é. Não sei, ela falou que coloca dentro da bolsa e como é que é a bolsa? Você não perguntou? Não, fiquei meio acanhada. Aí no dia seguinte, eu falei: “Dulce, mas você usa marmita?”Ela falou: “Ah, Do Carmo, é tão bom. Eu faço comidinha. Chego em casa, faço comidinha, ponho na marmita. Chego, já levo direto na Copa, a tia Aninha, a copeira, já põe no marmiteiro na hora, esquenta.” “Mas você trás dentro da bolsa?” “É, ponho no plástico, embrulho num pano de louça.” “Mas, Lúcia, como é que cabe?” “Cabe direitinho, embaixo.” Eu falei, quase matei a moça de rir: “Mas, marmita não são aquelas três coisa?”, ela: “Ah! quá, quá, quá, quá.” Contou para todo mundo e foi aquela gozação total. Aí me deram marmita, de ágata, me deram de alumínio. Então, de repente eles diziam: “Como é, Do Carmo, vamos almoçar de marmita?” (risos) Porque eu só conhecia aquela marmita. Quando a gente ia para praia, quando a gente passava numa pensãozinha, minha irmã já encomendava as marmitas porque a gente chegava e não dava tempo de cozinhar. Por mais que levasse coisas, tinha que arrumar, tudo. Para mim marmita era aquilo. As panelinhas, uma em cima da outra. Então, foi muito engraçado. Eu era muito, fui muito poupada. Então, com isso eu me tornei muito dependente e custou. Agora sinto falta incrível da minha irmã, da minha mãe. Me sinto sozinha. Sozinha, perdida. Ainda bem que existe telefone, né? Que foi com Graham Bell que usou a cabecinha. Porque o telefone que me salva, falo o tempo todo no telefone e ligo para neto. Que nem, ontem foi aniversário do Gustavinho, liguei um monte de vezes. Ele falou: “Mas, vó, outra vez você?”.Falei: “Filhinho, vovó tá com saudade!”, “mas não dá tempo de sentir saudade. Você falou comigo agora mesmo.” (risos) Ai, como criança é franca, né? Como dói.

P/1 - Atualmente a senhora mora sozinha?

R - Sozinha. Meus filhos são os dois casados. O Augusto mora no Interior, em Valinhos, trabalha em Campinas. A Rebeca mora na Pompéia. Com ela eu tô sempre. Sábado a gente almoça juntas, nós estamos sempre juntas.

P/1 - E as atividades que a senhora desenvolve agora, além do trabalho?

R - De falar no telefone? (risos) Ah, bem, continuo fazendo meus tricozinhos para reza, né? Eu tenho um grupo de orações que a gente vai toda a primeira segunda-feira do mês. A gente se reúne, reza o terço e leva sempre alguma peça, ou de tricô, compra, enfim, para criança carente. Então, a gente forma os enxovais e a minha parte é sempre aquele casaquinho de tricô, meia, sapatinho, gorrinho. Tenho isso, tenho as exposições de artesanato, os meus amigos artesãos que eu vivo indo atrás deles, vendo as exposições, vibrando com eles. Agora vou fazer parte daquele Banco de Talentos, do Banco Real. Não é bem banco de talentos porque vou fazer parte da terceira idade. Uma vez fui premiada com uma crônica, vou fazer uma outra para participar do grupo da Melhor Idade. Na parte de literatura eu vou tentar, faço muito palavra-cruzada, a minha geriatra falou, Dra. Amália, “você não pode ter a cabeça parada, tem que usar o raciocínio.” Você lê, assimila, mas a sua cabeça não funciona. Então, eu e meu dicionário estamos lá pronta para fazer palavra-cruzada, minha atividade é essa. Trabalho de terça e quinta na Associação. Segunda, quarta e sexta fico em casa, mas às vezes levo escolas para falar com as diretoras porque nem sempre elas estão só de terça e quinta. De repente, uma só tá de quarta. Então, ligo lá de casa, marco o horário e as meninas vão fazer visitas para captar associados. Porque antes a nossa Associação era restrita a Secretaria do Trabalho e Emprego. Agora, não. A gente tá abrindo porque precisa, aí sobe tudo. Teve umas leis, uns impostos, Graças a Deus, excelentes, eles estão meio apavorados. Então, nós estamos tentando captar mais associados. Eu também trabalho um pouco em casa, ligo, telefone eu adoro.

P/1 - A gente já está caminhando para o final da entrevista. O que a senhora tiraria da experiência toda da vida da senhora?

R - Bem, experiência, como eu falei, fui muito dependente. A mulher não precisa ser revoltada, não, mas ser firme, ter uma personalidade marcante. Não precisa ter revolta. Eu acho que a mulher tem que ser independente, lutar pelos ideais dela, não se anular. Inconscientemente, na época em que me casei, a mulher era mais anulada, não chegava a ser o senhor feudal, mas era o marido que decidia as coisas. Acho que agora tem que ser os dois. Lá em casa eu vejo a Rebeca e o Marco Antonio, meu genro, a Nair e o Augusto conversam muito, trocam idéias e cada vez é um que cede aqui, cede ali. Então, acho isso. Acho que a mulher tem que ter liberdade de pensamento. Não precisa ser como muita mulher achou, que a liberdade e a igualdade foi um extrapolamento dos costumes. Eu acho que não. A mulher tem que ser moral, se resguardar. Ainda sou mais pelo romantismo, pela conquista, acho que a mulher tem que ser conquistada com aquele carinho todo. Eu vejo a diferença de hoje para o meu tempo: continuar o romantismo, mas o romantismo mais ativo onde a mulher fala não, vai ser assim. Vai ser assim, não! Eu gostaria que fosse assim, vamos ver. Chegar a um consenso. Estudar, sim, sempre, muito e ter muita religiosidade para poder depois passar para os filhos os valores, os princípios. União na família. Ah, não vou casar com a família! Casa com a família sim porque existe um passado, toda uma bagagem de conhecimentos e tudo. Acho que o relacionamento entre marido e mulher, namorado com namorada, essa parte de família tem que ser ponderada. Eu imagino isso. Graças a Deus eu fui afortunada, Deus foi muito bom. Tanto da parte do meu genro, como da minha nora a família é muito família, muita tradição e são muito unidos. Se um espirra a família toda tá lá: “Nossa, espirrou, então ela deve estar doente. Vamos visitar.” Então, existe essa união. Eu sinto assim, né? Embora antigamente houvesse essa união, mas era uma união omissa da parte da mulher. Ela não dizia as coisas dela, acho que hoje ela deve falar, o campo de estudo tá aberto para todos, tem que estudar, estudar muito e tentar manter a juventude, voltada para Deus e afastar dessas coisas horríveis que a gente ouve. Acho que é isso.

P/1 - O que a senhora achou dessa experiência de dar entrevista, esse exercício de recuperar a memória?

R - Ah, eu adorei. Achei ótimo, muito gostoso, muito bom. Se vocês aceitarem alguma coisa que eu escreva até me entusiasmo em escrever alguma coisa. Não sei se seria oportuno, mas eu gostaria. Sei lá. As vezes escrevendo você lembra de coisas mais, né?

P/2 - Em seus projetos para o futuro a senhora falou de uma viagem, né?

R - É. Eu tenho vontade, sim, de viajar. Aliás, agora no Carnaval eu fui para Santa Catarina, nas Treze Tilhas, nas serras de Santa Catarina. Foi uma viagem muito boa, muito gostosa que fiz através da Associação que eu trabalho. Tem desconto, hotel 5 estrelas. Uma coisa muito boa. Eu pretendo viajar mais. O Brasil conheço razoavelmente, nada impede de voltar para Gramado que é tão lindo. Eu tenho uma imagem de Gramado de 1960, ou 61. Na época de setembro, começo de primavera, o portal era uma Hortência só. Sabe aquele roxinho da Hortência, aquele lilás, com o rosa da própria Hortência. Uma imagem que eu não esqueço. Muito linda e como eu ainda tenho 29 anos para viver, se Deus quiser, e ele vai querer porque quando pedi ele não me respondeu. Ele ficou quietinho e quem cala consente. Então, ele me concedeu os 30 anos que eu pedi. Um já foi. Agora tem mais 29. Eu pretendo fazer mais alguma viagem. Gostaria de conhecer Palestina, a Terra Santa, Jerusalém. Isso gostaria de conhecer. O restante do mundo já seria de lucro, se pudesse, mas, é isso, essa é a Maria do Carmo.

P/1 - Bom, Dona Maria do Carmo, a gente agradece a sua participação.

R - Obrigado. Eu agradeço também o convite. Fiquei muito feliz ontem, contei para todo mundo. Filha, filho, sobrinha, amigos, para quem eu lembrei na hora.