Museu da Pessoa

Questão de cidadania

autoria: Museu da Pessoa personagem: Roberto da Silva

Projeto Qual é seu centro?
Entrevistado: Roberto da Silva
Data: 21 de Junho de 2001.
Revisão: Nataniel Torres

P – Qual seu nome completo, local e data de nascimento?

R - Meu nome é Roberto da Silva. Todos os outros dados da minha biografia são o que eu chamo de “dados oficiais” porque foram extraídos de processos judiciais, do Juizado de Menores, principalmente. Tenho três datas e três cidades de nascimento, todas registradas oficialmente pelo estado. Sou Roberto da Silva nascido supostamente em Garça, interior de São Paulo, no dia 31 de agosto de 1957.

P/1 – Mas por quê? Que história é essa?

R - A versão oficial da história é a seguinte: Os pais moravam em São José dos Campos e, com a separação do casal, a mãe veio com os quatro filhos para São Paulo em busca do auxílio de um programa do Juizado de Menores, mas só conseguiu ser atendida depois de quatro ou cinco meses. Enquanto isso, ela vivia com as crianças na rua. Quando finalmente foi atendida, o juiz percebeu que a família estava tão debilitada e a mãe tão vulnerável, que recomendou a internação dela em um hospital psiquiátrico na Vila Mariana. Os quatro filhos foram encaminhados para a Febem [Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor, hoje Fundação Casa]. Éramos todos pequenos: um bebê de seis meses; uma menina de um ano; eu, com idade aproximada de dois anos, e outro de quatro anos. A partir daí, nós quatro fomos separados, transferidos sucessivamente para diversas unidades da Febem, e todos cresceram sem se conhecer, sem saber que eram irmãos e nem quem eram os pais. Só fui recuperar esses dados muito depois, em uma pesquisa, quando estava com 40 anos de idade.

P/1 - Qual sua primeira lembrança desse episódio? Quantos anos você tinha?

R - Sete anos.

P/1 - Sete anos? Antes você não se lembra de nada?

R - Não. Antes disso eu não tenho memória. (risos)

P/1 – Por que sete anos? Quais suas primeiras lembranças?

R - Eu estava em um orfanato já havia mais de quatro anos, em São Paulo. Quando as crianças foram tiradas de minha mãe, ela passou a procurá-los em diversas unidades da Febem em todo o Estado. Lembro-me muito bem dessa idade, sete anos, porque fui localizado pela minha mãe, que me visitou em uma dessas unidades. Eu estava em um galpão com cerca de 150 outras crianças. Até então eu não imaginava que alguém precisava de uma mãe, nem tinha noção do que eram irmãos ou família. Eu vivia no meio de meninos e todos nós éramos cuidados por policiais militares, e nossas necessidades eram supridas por alguns funcionários públicos. Quando alguém apresentou essa senhora como sendo minha mãe, eu tomei um susto e saí correndo para o meio do mato.

P/1 – Depois disso você continuou a ver sua mãe?

R - Não, e nunca mais a localizei. Ao longo de todo o trabalho de levantamento que fiz, encontrei dois dos irmãos, que estão vivos ainda.

P/1 - Você mantém contato?

R - Sim. Um deles foi dado em adoção para uma família italiana. Esse, eu não consegui localizar. Em relação aos meus pais, nunca foi possível obter informações precisas, nem mesmo se estão vivos.

P/1 - Depois do encontro com sua mãe você continuou no orfanato?

R - Fiquei na Febem até os 17 anos e comecei a trabalhar na sede do Juizado de Menores, no centro da cidade. Foi a primeira vez que eu saí para a rua.

P/1 - Onde era o orfanato?

R - Fiquei em diversas unidades: no Pacaembu, chamado Sampaio Viana, que era a creche da Febem; em Sorocaba, onde permaneci por vários anos; no Tatuapé; e em Mogi das Cruzes, a unidade onde ficavam os infratores daquela época.

P/1 – Você foi infrator?

R - Não, fui transferido para lá por questões disciplinares. Quando comecei a trabalhar no juizado, conhecendo as ruas, aos 17 anos, encontrei outros meninos da Febem que trabalhavam em repartições públicas no centro da cidade. Em alguns momentos nos reuníamos para explorar a cidade, o centro de São Paulo.

P/1 - Como foi a experiência de andar pela primeira vez nas ruas?

R - Eu tinha uma visão muito rural, porque fui criado em fazendas, chácaras, cuidando de animais e de plantas nas unidades da Febem. E as bagunças que os meninos aprontavam naquela época eram ligadas ao ambiente rural. De repente, conheci meninos mais familiarizados com a cultura do asfalto, da cidade, e via o que eles aprontavam, sempre em grupo e armados.

P/1 - Você só ficava nas ruas do centro?

R - Sim, principalmente na Praça Clóvis [Bevilácqua], antes da reforma e da criação da Praça da Sé. Mas quando fizeram a Praça da Sé, eu fazia parte de um dos primeiros grupos que inauguraram o chafariz. Tomávamos banho lá (risos). O espelho d’água construído em cima do Metrô era muito bonito. Na inauguração da primeira linha do Metrô, em 1976, eu também estava no grupo que fez a primeira viagem (risos). Andei muito pelo centro: Praça Clóvis Bevilácqua, Praça João Mendes. Em pouco tempo fui mandado embora da Febem porque já estava com 17 anos e passei a morar nas ruas.

P/1 - Por quê? Explique como é o processo. Você ficou na Febem até os 17 anos?

R - Sim. Mas eu trabalhava de manhã no Juizado de Menores e, à tarde, consegui por conta própria um emprego de office boy num escritório de Engenharia, nos Jardins.

P/1 - E você dormia na Febem?

R - Dormia e estudava lá. Os assistentes sociais que trabalhavam na Febem concluíram que, com dois salários, eu teria condições de me sustentar e simplesmente me mandaram embora. Tive que arranjar uma pensão, onde fiquei só três meses. Eu não sabia administrar o dinheiro (risos), não sabia fazer essa mágica comum ao brasileiro, que faz coincidir o último centavo do salário com o último dia do mês. E nem sabia cuidar direito das próprias coisas de um adolescente: o material de escola, a roupa, a alimentação, a administração dos horários, a agenda, tudo. Eu não tinha essa cultura. Havia passado a vida preso. Três meses bastaram para que eu constatasse que era muito difícil administrar tudo. A dona da pensão confiscou minhas roupas e tudo o que eu tinha. Precisei morar na rua nos quatro anos seguintes.

P/1 - Nas ruas do centro?

R - No centro e nos Jardins. Eu conhecia todos os meninos das ruas, na faixa etária entre 12 e 16 anos. Por causa do emprego que tinha no Jardim Paulista, eu ficava por lá durante o dia. Eu sabia quais eram as casas que estavam vazias, onde dava para dormir. O Ibirapuera era imenso para ser explorado, jogar bola, fumar maconha, roubar toca-fitas. Mas quando escurecia eu ia para o centro, onde havia vida. Eu e o grupo de meninos passávamos a noite e a madrugada no centro porque era, para nós, uma questão de segurança.

P/1 - Segurança contra quem?

R - Contra a polícia. Na região dos Jardins não havia uma cultura de vivência nas ruas. Qualquer elemento estranho ali era facilmente percebido e perseguido (risos). Eles tinham aquelas técnicas de limpeza pública: faziam todo esforço para tirar as crianças desse cenário. No centro já existia essa cultura, de circulação por lá, na “Boca do Lixo”. Lá ficava a Rodoviária e fervilhava de gente. Para nós, estar diante das luzes, no meio de muitas pessoas e de movimento era uma questão de sobrevivência.

P/1 – O que vocês faziam à noite e na madrugada? Vocês dormiam?

R - Não. Para dormir nós saíamos do centro da cidade. O centro era o lugar onde se vivia, lugar dos pequenos furtos, das drogas, dos romances, onde tudo acontecia. A distinção era clara entre “Boca do Lixo” e “Boca do Luxo”, que era a região das ruas Rego Freitas e Major Sertório, lugar das boates. Na “Boca do Lixo” eram feitos os trambiques e a “Boca do Luxo” era onde se viviam os romances (risos).

P/1 - Como era exatamente a “Boca do Lixo”?

R - “Boca do Lixo” é o quadrilátero que compreende as Avenidas São João, Ipiranga e Rio Branco, e a Rua Aurora. Região que foi reduto de produtoras de cinema nas décadas de 1940 e 1950. Havia pequenos hotéis e a Rodoviária, que era o eixo de todo o movimento por ali.

P/1 – Vocês ficavam lá para fazer trambiques?

R - Sim. Ali é que estavam os vendedores, os compradores.

P/1 - Que tipo de trambiques? Drogas?

R - Isso era inevitável. Mas tinha um pouco de tudo. Pequenas jóias, toca-fitas, documentos, cheques, tudo o que se conseguia em outros bairros era para lá que se levava, para trocar ou vender. Quando conseguíamos dinheiro, o destino era a “Boca do Luxo”.

P/1 – Para namorar?

R - (Risos) Nem tanto. Éramos todos moleques, pirralhos. Mas tínhamos amizade com os leões-de-chácara, seguranças, dançarinas, garçons, e sempre conseguíamos entrar nas boates. Para nós, meninos de rua, era uma fascinação.

P/1 - Quando vocês queriam dormir iam para onde?

R - Eu voltava para o Ibirapuera.

P/1 - Onde no Ibirapuera?

R - Dentro do Parque do Ibirapuera. Primeiro, eu morei bastante tempo na Rua Guarará e na Alameda Lorena, antes da construção do supermercado Eldorado. Eu trabalhei na Rua Guarará durante um ano, em um escritório de Engenharia.

P/1 - Mesmo morando na rua?

R - Não. Enquanto eu ainda estava na Febem.

P/1 - Depois que você foi embora, você perdeu os empregos?

R - Quando eu saí da Febem, perdi a vaga na pensão e os empregos. Eu tinha que conseguir lugares para dormir e sabia onde ficavam as casas abandonadas. Fiquei muito tempo por ali. Quando as casas começaram a ser vendidas fiquei muito manjado e o recurso foi ir para dentro do Parque do Ibirapuera, onde também existiam os grupinhos. Fui menino de rua, sim, mas menino de rua dos Jardins (risos).

P/1 – Nessa época você não trabalhava mais?

R - Não. Ficava o dia inteiro na rua.

P/1 - E para comer e tomar banho?

R - Nos Jardins isso era, de certa forma, facilitado porque ainda havia aquela tradição da entrega em domicílio. De manhã, entre quatro e seis horas, os leiteiros e padeiros entregavam leite e pão nas casas e até em pequenas mercearias na Rua Pamplona, na Avenida Brigadeiro Luiz Antônio. Os caminhões da Ceasa [Centrais de Abastecimento de São Paulo] depositavam as encomendas nas portas, antes mesmo do estabelecimento abrir. Era nossa primeira refeição (risos). Durante o dia, tínhamos que nos virar.

P/1 – Depois desses quatro anos, o que aconteceu?

R - O período de quatro anos em que fiquei nas ruas foi intercalado com muitas prisões. Fui mais de 50 vezes para distritos policiais. Ou por vadiagem, como a polícia chamava, ou por estar junto de outros meninos, ou por estar cometendo pequenos delitos. Enquanto os policiais acreditavam, pela minha aparência, que eu era menor de idade, me davam um esculacho, me batiam, me colocavam no pau-de-arara e depois me soltavam. Mas quando ficou evidente minha maioridade, com quase 19 anos, não teve jeito, me mandaram pela primeira vez para a Casa de Detenção. Fui uma vez, saí, voltei para as ruas. Na segunda vez, a mesma coisa, porque não tinha para onde ir. Até que, na terceira vez, fiquei lá sete anos.

P/1 - Só depois que você saiu é que foi estudar?

R - Na Casa de Detenção estudei Direito como autodidata. Direito Penal, Direito Constitucional. Mas, regularmente, eu só voltei a estudar muito tempo depois de ter saído da prisão.

P/1 – Quando você voltou a frequentar o centro da cidade?

R - Eu nunca fiquei completamente ausente do centro. Além do tempo em que passei na cadeia, vivi outra fase longe de São Paulo, durante dez anos. Fui perseguido intensamente por causa do trabalho que comecei a fazer ainda na prisão e que deu origem a essa entidade que se chama História do Presente. Nesses dez anos, vivi entre a Bahia, o Mato Grosso e o Rio de Janeiro. Quando retornei, fui novamente para o centro de São Paulo, porque o público alvo do trabalho que iniciei continuava lá.

P/1 - Como e por que você começou a fazer esse trabalho?

R - Porque era uma questão de resgatar minha história de vida. Quando fiquei o período mais longo na Casa de Detenção, encontrei lá quase todos os meninos que foram criados comigo na Febem. Ingressaram na instituição como bebês e acabaram na prisão. Esses encontros me deram a certeza de que tínhamos uma história comum e de que se alguma coisa havia dado errado em nossas vidas, não era só por responsabilidade nossa. Meu trabalho consistiu em investigar justamente isso: o que é que deu errado em nossas vidas? Por obra de quem? Voltei aos arquivos públicos, do Juizado de Menores, quando já fazia Mestrado na USP. Foi lá que localizei, pela primeira vez, um processo a meu respeito. Fui aos arquivos do Sistema Penitenciário e de diversos órgãos levantar as informações, saber quem eram meus pais, meus irmãos, e por onde eles andavam. Eu me interessei também pela história daqueles outros meninos que encontrei na prisão. Comecei o trabalho na tentativa de localizar meus irmãos, reconstituir a história deles, passar a limpo meus dados pessoais sobre o local e a data de meu nascimento. Fiz a mesma coisa para outros 60 meninos. Ao final do trabalho, localizei 60 grupos de irmãos, que foram separados ainda bebês ao ingressarem na Febem. Foi o ponto de partida do trabalho que comecei a fazer.

P/1 – Como foi o desenvolvimento do trabalho e que rumos ele tomou?

R - Tomou várias direções: as relações do Estado com a adoção, com a delinquência infanto-juvenil, com o sistema penitenciário e com as ações sobre essa parcela mais vulnerável da população. Mas centralizei a atenção nesse ponto: como dentro das instituições geridas pelo próprio Estado se reproduz a criminalidade e, por vezes, até pela ação do próprio Estado?

P/1 – Em que momento você decidiu saber sobre sua origem e a de sua família? E o que você descobriu mudou sua vida a ponto de querer fazer isso por outras pessoas?

R - No meu caso, ficou claro que era uma questão de sobrevivência. Depois de passar por tantos distritos policiais, ser tão esculachado pela polícia, sofrer tantas humilhações, eu já havia adquirido uma tuberculose, chamada tuberculose óssea. E, na verdade, eu estava condenado a 18 anos de prisão, dos quais eu cumpri sete. Dentro da prisão, testemunhei o estado das pessoas, não tanto o estado físico, mas esse sentimento de entrega; pessoas que já não queriam lutar por nada, só queriam viver no crime; pessoas totalmente sem esperanças. Encontrei os meninos que haviam sido criados comigo exatamente nessa situação. Eu dizia para eles: “Não pode ser assim. Nós éramos crianças, nos conhecemos por apelido, nós sabemos quem é cada um. Você sabe que eu não sou criminoso e eu sei também que vocês não são criminosos. E por que a gente tem que se sujeitar a esse tipo de vida?” O fato é que éramos fruto de alguma coisa e que nossa parcela de responsabilidade era pequena. Por isso, tínhamos que fazer algum esforço no sentido de entender o que havia acontecido em nossas vidas a ponto de nos reduzir a essa condição miserável. E, depois, tentar encontrar o caminho para sair daquela situação. Na verdade, poucos conseguiram sair, porque é um círculo vicioso brutal, que reduz a pessoa a uma condição de impotência.

P/1 – Você disse que foi perseguido. De que maneira? Como isso aconteceu?

R - Por conta dessas preocupações dentro da prisão, começamos a criar as chamadas Comissões de Presos. As primeiras formas de organizações na prisão.

P/1 - Isso ainda no Regime Militar?

R - No final do Regime Militar. E qualquer espécie de organização de presos sempre era muito mal vista pelas autoridades, pelos órgãos de repressão. A criação dessas comissões de presos em São Paulo teve uma grande repercussão, e quando quisemos legitimar essas organizações, em forma de uma associação registrada, com um estatuto, para dialogar com o Estado e com outros órgãos da sociedade, o poder judiciário, particularmente, caiu de pau em cima de nós. O Tribunal de Justiça nos acusava de tentar criar o sindicato do crime em São Paulo. Por isso, nunca foi possível criar essas organizações legalizadas dentro das prisões e passei a fazer isso fora da Casa de Detenção. Mas só dez anos depois é que consegui fundar a História do Presente, em 1999.

P/1 - Você já tinha completado os estudos? Como foi?

R - Quando a História do Presente foi fundada, eu já estava iniciando o doutorado na USP.

P/1 - Como foi dentro da prisão, como você saiu e decidiu estudar?

R - Dentro da prisão eu realmente aprendi como funciona a máquina prisional. As estatísticas criminais, os registros, como são feitos os processos, os prontuários e toda essa lógica de aplicação da Lei. O que é Lei Criminal, Lei Cível. De certa forma, percebi como é a estrutura e a lógica do funcionamento da sociedade e como a sociedade legitima instituições como a Febem, as prisões, e como ocorre a exclusão social. Durante o período em que estive fora daqui, para fugir dessa perseguição, fui primeiro para a Bahia viver no meio de comunidades negras. Depois estive no Mato Grosso, em comunidades indígenas, ainda em busca de minhas supostas origens. Como nos prontuários eu não encontrava nada, mas supunha ter uma ascendência negra ou uma ascendência índia, fui viver no meio de comunidades negras e índias (risos). E foi importante, porque fiz minha descoberta como gente, mesmo; pude me afirmar enquanto pessoa. No Mato Grosso fiz o Curso Supletivo, para recuperar os estudos atrasados, e entrei na Universidade Federal do Mato Grosso, onde cursei Pedagogia. Logo que terminei a faculdade, montei um projeto de pesquisa que me permitiu voltar a São Paulo. O projeto foi aprovado na USP e me abriu um novo campo de trabalho. Novo no sentido de que eu poderia trabalhar em outra relação com as autoridades, com os órgãos públicos. Eu não era mais o ex-interno da Febem, o ex-menino de rua, o ex-presidiário. Eu passei a ser um professor universitário, um pesquisador, que tinha acesso a esses órgãos de uma maneira legítima e legal. Aprendi os caminhos dos órgãos públicos, coletei informações, fiz análises e passei tudo a limpo.

P/1 - Foi em 1999 que você institucionalizou toda essa experiência?

R - Sim.

P/1 - Desde então, como funciona a História do Presente?

R - A equipe que trabalha na História do Presente está afinada com todos esses pontos de vista porque eu usei minha história de vida como metodologia de pesquisa de mestrado e doutorado. Com isso, consolidamos um método de trabalho que a organização incorporou. Nós trabalhamos no ciclo de formação da criminalidade, que vai do abandono à saída da prisão, que é a trajetória de minha vida.

P/1 - Por que esse nome, História do Presente?

R - O nome foi dado por um de nossos colegas que se inspirou no trabalho que Foucault [Michel de Foucault, pensador francês] desenvolveu no período em que esteve nos Estados Unidos. Foi uma das pessoas que mais estudaram as prisões. Ele editava um boletim para conclamar setores da sociedade para a análise e revisão da pena de privação da liberdade. Fez até campanhas para a libertação de alguns presos. O boletim, que teve vida curta, se chamava História do Presente.

P/1 - Desde quando você voltou a viver no centro de São Paulo?

R - Eu fiz todo o mestrado e o doutorado morando no Crusp, residência estudantil da USP. Depois que consegui algum trabalho fixo fui morar na Bela Vista, pagando aluguel. No final do ano passado, conseguimos comprar um apartamento na Liberdade.

P/1 - Como é voltar a andar pelo centro de uma maneira diferente daquelas primeiras vezes, quando você tinha 17 anos? Mudou alguma coisa?

R - Ah, São Paulo é uma cidade que se expande muito. Todo menino deveria começar a trabalhar como office boy (risos). Ser office boy em São Paulo é a melhor maneira de conhecer a cidade. Até hoje conheço muito bem São Paulo em função da experiência desse primeiro trabalho. Agora vejo a cidade de outra maneira. Quando percebi que não conseguiria resgatar aquelas informações a respeito de minha identidade, uma vereadora me levou para a Câmara Municipal e fez um discurso: “Como é possível um cidadão viver aqui, ter um trabalho, ser um contribuinte e nenhum órgão público ser capaz de fornecer ou resgatar as informações que lhe permitam reconstituir seu passado?” Resolveram o problema de consciência me dando o título de Cidadão Paulistano (risos). Agora não importa mais se eu nasci em Garça, Santos ou São José dos Campos, meus três endereços oficiais (risos). Sou Cidadão Paulistano. A Unicef [órgão das Nações Unidas que luta pelos direitos das crianças em todo o mundo] também comprou essa briga da questão do processo de identificação de crianças órfãs e abandonadas. Consegui mostrar a eles que é um problema relativamente grave. E a Unicef me deu o título de Cidadão do Mundo. Na hora, falei: “Agora não vou mais me preocupar com isso, minha questão de cidadania está resolvida” (risos)

P/1 – Andando no centro, o que você pensa que deveria ser feito?

R - Ah, as ações das ONGs são importantes, mas é fundamental a atuação do poder público para resgatar a qualidade de vida no centro. Lembro-me particularmente de uma experiência quando conheci Nova York. Havia uma região da cidade exatamente igual à nossa “Boca do Lixo”. O que a prefeitura de lá fez? Simplesmente desapropriou todos os imóveis da região e os vendeu a preços simbólicos para quem quisesse comprá-los, ao preço de um dólar, com o compromisso formal dos compradores de recuperar sua arquitetura, a iluminação, o paisagismo urbano. Hoje, o bairro é um cartão postal. Em São Paulo, o Banco do Brasil e algumas ONGs até compram um ou outro prédio, restauram e dão a ele uma finalidade cultural. Mas são iniciativas pequenas, isoladas. Uma ação decisiva do poder público permitiria recuperar tudo de uma maneira muito mais acelerada. Não vejo outra solução para o centro velho, para a região da “Boca do Lixo”.

(Roberto da Silva é empreendedor social da Ashoka. Em 1998, publicou o livro Os filhos do governo. Esta entrevista foi concedida em 21 de junho de 2001, no âmbito do projeto Qual é o seu centro?, do Centro Cultural Banco do Brasil)