Museu da Pessoa

Quero cuidar das pessoas: ser enfermeira!

autoria: Museu da Pessoa personagem: Maria Helena Santana Mandelbaum

Programa conte a sua história
Depoimento de Maria Helena Santana Mandelbaum
Entrevistada por Denise Cooke
São José dos Campos, 02 de outubro de 2018
Entrevista número PCSH_HV660
Realização: Museu da Pessoa
Revisado e editado por Bruno Pinho

P/1 - Bom dia doutora. Muito obrigada por estar aqui contando a sua história para a gente. Fala para nós o seu nome.

R - O meu nome é Maria Helena Santana Mandelbaum.

P/1 - Onde e quando a senhora nasceu?

R - Eu nasci em São Paulo, no bairro da Freguesia do Ó, no dia dez de junho de 1953.

P/1 - A senhora sabe alguma coisa sobre o dia do seu nascimento?

R - Eu sempre tive muita curiosidade. Eu sou muito curiosa. Eu quis saber de outras pessoas que nasceram no mesmo dia que eu. Eu descobri, por exemplo, que o Frank Sinatra faz aniversário no mesmo dia. Eu adoro música. Eu descobri que tem vários escritores, cientistas. Eu tive sempre essa curiosidade de saber se eu tinha nascido em um dia importante não só para a minha mãe, mas para outras pessoas ou para a humanidade.

P/1 - Me fala uma coisa; como seus pais se conheceram?

R - Meus pais se conheceram, na verdade, como era comum naquela época. Eles são de Minas Gerais, da região de Mariana, Ouro Preto. Na verdade, tudo começou com a minha bisavó, que veio ainda no final do século XVII, em 1896, para o Brasil. Minha avó que era italiana, o meu avô, que era português, e que vieram para o Brasil. Como a maioria dos brasileiros imigraram para cá fugindo da guerra, buscando um país melhor, uma oportunidade. O meu avô acabou indo para Minas, em uma região, e a minha avó, para outra. Depois de um tempo eles acabaram indo para aquela região para a construção da estrada de ferro. A família da minha avó, que era italiana, e a família do meu avô, que era português e foi para lá para trabalhar na construção da estrada de ferro. Dali nasceu meu pai por um lado da família portuguesa, dos Santana; e do lado da minha mãe, que era da família italiana, Laporte, a minha avó. Ali, eles vivendo naquela região, acabaram se conhecendo muito cedo. Minha mãe casou muito jovem. Minha mãe nasceu em 1918 e meu pai em 1916. Minha mãe acabou de completar 100 anos. Agora, nesse fim de semana. Meu pai, infelizmente, faleceu muito cedo. Nós ficamos órfãos muito cedo, mas a minha mãe está aqui, com 100 anos, e criou os seis filhos dela.

P/1 - Quais eram os nomes dos seus pais?

R - Minha mãe, Elvira Cândida Santana. Cândida Pereira, inicialmente. Depois, Cândida Santana. Meu pai, Pedro Gomes Santana.

P/1 - E quando eles vieram para São Paulo, no que o seu pai trabalhava?

R - Inicialmente, o meu pai trabalhava já na estrada de ferro, que era a Bahia-Minas. A família dele havia ficado ali para a construção e o meu pai começou a trabalhar de motorneiro e depois ele ficou aprendendo a parte de torneiro mecânico. Quando a estrada terminou - e também teve o problema de que a estrada parou, naquela época - ele ficou sem esse trabalho. Durante um tempo eles fizeram o que todo mundo fazia ali, que era ter uma pequena lavoura. A família deles morava por ali. Os irmãos dos meus pais. Só que aí os irmãos dos meus pais já começaram a falar de vir para São Paulo. Veio o irmão mais velho para São Paulo e depois o meu pai também quis vir. O meu pai era o irmão mais novo dos irmãos dele. A minha mãe - só tinha uma irmã mais nova que ela - era praticamente a caçula, também do lado de lá. A minha mãe seria a primeira que tinha pensado em vir para cá, por conta do meu pai, porque os irmãos dela ficaram todos em Minas. Não vieram para cá. O meu pai veio para São Paulo, primeiro, sozinho para ver como eram as coisas e aí viu que poderia trabalhar como torneiro mecânico. Ele foi trabalhar em uma empresa de aço e logo depois foi para Minas para buscar a minha mãe. Eles já tinham dois filhos nessa época, que são a minha irmã mais velha e a minha outra irmã, a segunda, logo depois. A minha mãe já tinha ficado com duas filhas lá e o meu pai foi buscá-la para vir para São Paulo. Naquela época ele trabalhava como torneiro mecânico.

P/1 - E como era a sua casa na Freguesia do Ó? Do que a senhora lembra?

R - Eu lembro muito, porque era um bairro muito simples. Eu fiquei pouco tempo no bairro da Freguesia do Ó, que eu possa lembrar. Eu lembro muito mais de quando meus pais mudaram de lá. Ainda da Freguesia do Ó eu tenho muitas lembranças de uma horta muito grande que tinha na frente da minha casa, onde a minha mãe plantava as verduras e meus irmãos saíam com o carrinho de mão para vender o que a minha mãe plantava. O meu pai saía para trabalhar como torneiro mecânico e a minha mãe fazia isso. Ela cuidava da casa. A minha mãe sempre foi muito trabalhadeira. Ela passava roupa para vizinhos, fazia faxina na casa dos vizinhos e tinha esse quintal muito grande, um terreno muito grande na frente da nossa casa, que o dono deixou a minha mãe usar. Naquela época não se fazia nada com o terreno. Minha mãe, como boa mineirinha, começou a criar galinha ali, começou a plantar e logo logo, a lembrança que eu tinha é dessa horta deliciosa, de um pé de pêra maravilhoso que tinha lá, daquelas galinhas e também daquelas verduras sempre muito bonitas, que a minha mãe colhia, punha no carrinho e ia vender para os vizinhos. Eu tenho essa lembrança deliciosa dessa casa. Uma casa muito simples, de três cômodos. Nem chuveiro elétrico tinha na nossa casa. Nós esquentávamos água para tomar banho, mas era uma casa que tinha isso: nós fazíamos aquelas comidinhas de criança com o fogareiro. Dessa casa eu tenho lembranças boas, mas também é o período em que vieram as primeiras lembranças ruins, que foi que o meu pai faleceu quando nós morávamos ali. Quando eu estava com sete anos, o meu pai faleceu.

P/1 - Do que ele faleceu?

R - Ele faleceu em um acidente do trabalho. Naquela época, a mudança para São Paulo mexeu um pouco com o meu pai. Ele começou a beber. Ele trabalhava, mas bebia todos os dias à tarde. Ele chegava meio alcoolizado em casa. Isso já começou, para a minha mãe, a ser uma mudança que mexeu muito com ela também. Por conta desse processo de ele sempre, a cada dia, beber, ficava mais tempo no bar, chegava mais tarde em casa, até que acabou ocorrendo um acidente no trabalho que nós atribuímos a ele já estar com algum comprometimento. Às vezes, de tomar muito álcool, de ficar até tarde no bar e no outro dia ir trabalhar em um trabalho perigoso e sem ter dormido direito. Minha mãe ficou viúva com os seus filhos para criar, sendo que o caçula, o meu irmão, tinha quatro anos. Ela, realmente, teve de retomar a sua vida. Felizmente, com toda a garra dela, ela conseguiu.

P/1 - O que ela fez depois da morte do seu pai? Como foi essa retomada da vida dela?


R - A minha mãe tentou durante um tempo. Ela era analfabeta, mas é muito inteligente e sempre foi. Não tinha esses programas, naquela época, de incentivo para as pessoas estudar e você era analfabeto. Ela foi tentando ler aqui ou lá. Eu nem sei nem como ela pegava ônibus, se pegava, se virava. Daquela época tinha (SANDU) [00:09:14] INAMPS. Ela nos levava, nós preenchíamos a ficha, criança, quando ficava doente. Minha mãe se virava, mas ela não tinha sido alfabetizada formalmente. Tinha uma escola perto da minha casa, que era chamada de Grupo Escolar de Escola Primária. Ela foi lá nessa escola para ver se ela podia trabalhar lá como auxiliar de limpeza, alguma coisa. Por sorte, a diretora da escola falou: “nós podemos contratar a senhora, mas a senhora vai ter de fazer um concurso”. Minha mãe não tinha como fazer um concurso. Ela ficou enquanto pode. Depois, quando foi para fazer o concurso ela não teve condições porque não era alfabetizada. Essa diretora ficou tão penalizada que ela contratou a minha mãe para trabalhar como empregada doméstica na casa dela, porque naquele tempo professora e diretora de escola eram pessoas muito respeitadas, moravam na melhor casa do bairro. Essa diretora era, praticamente, uma das pessoas mais importantes do bairro. A minha mãe essa honra, porque era uma honra ir trabalhar na casa da diretora. Ela contratou a minha mãe e foi ali que a minha mãe realmente pode ter um salário, um trabalho, onde era a renda dela. Naquele tempo, os direitos do meu eram poucos, até porque houve essa questão de o acidente foi ele que causou. Essas coisas que é melhor deixar em algum lugar do passado, mas que são bem diferentes dos dias de hoje. Ela tinha uma pensãozinha que (era) [00:10:54] uma coisa miserável. Ela precisou ter uma renda para poder cuidar de nós. Mas muito cedo a minha mãe nos ensinou a trabalhar. Com 14, 13 anos, a minha mãe já arrumava algum lugar para trabalharmos no bairro. Nesse processo a minha mãe também acabou indo para Perdizes, porque a casa onde nós morávamos, o senhor estava querendo aproveitar que tinha aquele terreno grande e ele ia vender toda aquela área para uma fábrica de veludo que viria da Itália para se instalar ali no bairro.

Nós não tivemos condições e a minha mãe foi procurar e acabou achando uma casa mais compatível no bairro de Perdizes. Nós saímos e fomos para lá, morar em Perdizes. Minha mãe acabou tendo de procurar uma outra casa para trabalhar porque era difícil. Ela ficou muito tempo indo trabalhar lá na Freguesia, mas depois ficava difícil até para ela voltar, porque, naquele tempo, a condução. Muitas vezes ela ia e voltava a pé para economizar dinheiro. Ela saía da Lapa e ia até Perdizes a pé. Nós ficamos pasmos por imaginar, para não gastar o dinheiro do transporte. Felizmente, por conta de ela sempre ter sido uma ótima empregada e trabalhar muito, essa diretora logo a recomendou para trabalhar e logo ela foi trabalhar em uma casa muito boa em Perdizes, na região da Lapa. Nós fomos morar para o lado de Perdizes. Nossa casa - eu tenho também uma lembrança muito boa - dava fundos para onde é hoje a Avenida Sumaré. Era uma casa muito simples, mas tinha muita bananeira porque tinha aquele rio ali. O fundo da nossa casa era um rio, que hoje é a Avenida Sumaré, em São Paulo. Nós crescemos ali. Era uma vida tranquila no bairro de Perdizes. Já era um bairro que tinha um padrão, em uma parte dele era mais elevado. Nós moramos ali na várzea, você pode dizer. É um lugar mais simples, perto ali do clube do Palmeiras. Ali eu até aprendi a ter amor pelo Palmeiras porque eu sempre senti muita vontade de fazer alguma coisa e eu ia no Palmeiras, ia lá. Nisso, eu já estava no Grupo Escolar de Perdizes. Eu ia lá no Palmeiras, passava lá e xeretava. Ficava olhando as meninas jogar e, às vezes, quando estava terminando, eu entrava na quadra. Era muito curiosa. Um dia, um técnico me deixou entrar lá e eu tive jeito, porque eu era canhota. Logo comecei a cortar bola e ele me segurou, para treinar. Isso foi muito importante para mim. Isso me trouxe uma coisa que eu nunca tinha podido imaginar, que eu ia conviver com algumas pessoas que já tinham um certo padrão, que eram sócias. Eu tive uma carteirinha de atleta. Tinha uma categoria separada. Isso foi muito bom. O fato de a minha mãe ter ido para lá, ajudou muito porque eu pude ter esse contato com o Palestra Itália e aprender um pouco. A minha mãe realmente teve esse papel de nos colocar muito cedo para trabalhar porque ela dizia que não podia fazer o que aconteceu. O meu pai faleceu subitamente. Ela ficou nessas condições. Se acontecesse qualquer coisa com ela, ela precisava que nós estivéssemos preparados para a vida, porque ela estava praticamente sozinha. Não tinha nenhum parente dela lá em São Paulo. Só tinha esse irmão do meu pai que morava em Interlagos, Mauá, que naquela época era super longe. Santo André, ele ficou morando para lá. Para nós era muito interessante. Para mim, sair de Perdizes e ir até Santo André, Santo Amaro, era uma viagem como se eu fosse daqui até a Itália. Eu achava que estava indo para um outro mundo. Era uma das coisas mais prazerosas quando minha mãe nos dizia que íamos passar um fim de semana na casa do nosso tio, porque pegávamos o trem e íamos até Santo Amaro e depois até Santo André, onde nós ficávamos. Essa sensação da dimensão das coisas é bem diferente do que olhando hoje. Nós tínhamos a impressão de que estávamos viajando para outro Estado, para outro país. Isso a minha mãe tinha de bom e nos passou muito: essa coisa de trabalhar, de cuidar de si desde muito cedo, de não nos entregarmos. “Você é responsável por sua vida. Eu não vou estar aqui e se isso acontecer você vai ter de se virar”. Nós trabalhamos nas padarias, ajudando a minha mãe nas casas, quando ela trabalhava. A minha mãe nos pegava: “você vai me ajudar lá”; “você vai passar roupa enquanto eu termino o serviço”; “você vai cuidar do bebê da minha patroa”; “você vai enxugar a louça”. Minha mãe nos colocava e depois, quando dava, ela já arrumava um trabalho formal. Com 14, 15 anos, meu irmão foi trabalhar em uma bicicletaria, a minha irmã foi trabalhar como balconista na antiga Clipper. Uma outra irmã foi trabalhar no (Map) [00:16:37]. Minha mãe ficava atrás e nos ia enfiando. “E tem de estudar, estudar de noite”. Estudar à noite e trabalhar. Isso foi muito bom para nós, o fato de ela nos cobrar, o fato de não nos mostrar que as coisas seriam fáceis. Ela também foi sempre muito alegre. Ela nunca colocou essas coisas como um drama. Sempre colocou que era uma coisa natural e que nós tínhamos de fazer. Minha mãe nunca foi uma pessoa de fazer drama. Eu nunca a vi chorar para ninguém que ela tinha seis filhos para criar. Nunca vi. Eu tenho esse exemplo dela, que me marca muito. Acho que todos nós fomos muito marcados por esse exemplo dela.
P/1 - E como foi a chegada da sua adolescência?
R - A minha adolescência foi muito interessante porque eu sempre fui muito estudiosa. Sempre gostei de estudar. Sempre fui muito curiosa, demais. Eu caçava biblioteca por São Paulo. Mesmo morando na Freguesia, eu pegava o ônibus e ia na Biblioteca Central, na cidade. Eu ia na Biblioteca da Lapa. Eu emprestava livro para levar para casa. Sempre gostei muito de ler. Eu tive uma adolescência muito bacana, primeiro porque eu fui formando algumas relações com pessoas mais velhas, que também gostavam de ler. Às vezes eu ia para a Biblioteca e ficava conversando com uma pessoa mais velha, que me dava uma dica de livro. Às vezes, me dava um livro para ler. Por outro lado, eu também tive uma adolescência boa pelo fato de eu sempre trabalhar. Era engraçado porque eu tinha alguns amigos que tinham pai e mãe. Eles me admiravam. A minha situação não era para ninguém invejar, mas, por outro lado, eu sempre tive essa coisa de os meus amigos, na adolescência, olhar e invejar. Eu não entendia o porquê naquela época, porque a vida deles era, em tese, melhor do que a minha. Eles não precisavam trabalhar, muitos iam para o clube. Eu tinha de trabalhar, de estudar à noite, mas eles achavam que eu era um pouco mais independente. Eu tinha essa coisa: eu era muito segura do que eu queria fazer. E tanto é que eu estava estudando em uma escola estadual. Um professor de matemática me disse assim: “se você quiser, você vai entrar no Colégio de Aplicação da USP. Você tem tudo para isso”. Eu falei: “o que eu tenho de fazer?”. Ele falou: “estude bastante, estude muito isso e isso”. Eu tomei essa decisão. Sábado e domingo, para mim, era para estudar porque eu queria entrar. Eu não queria mais fazer o antigo ginásio e o antigo normal. A escola em que eu estudava só tinha normal e eu queria fazer o científico, mas para fazer eu tinha de ir para lá.

P/1 - E você já sabia o que você queria ser nessa época?

R - Eu já sabia. Eu descobri muito cedo que eu queria ser enfermeira. Não era médica nem nada. Eu descobri muito cedo que eu queria ser enfermeira.

P/1 - Por quê?

R - Porque eu sempre gostei de cuidar das pessoas. Sempre gostei de cuidar de pessoas mais velhas. Gostei de cuidar dos meus amigos. Eu gostei muito do meu pai. Às vezes ele bebia e chegavam na minha casa: “seu Pedro está caído lá na rua”. Isso, às 21h. A minha mãe, às vezes, ficava chateada: “deixa ele para lá”. Eu ia lá e pegava ele. Várias vezes eu arrastava meu pai até em casa, dava banho nele. Eu tenho sempre essa coisa de cuidar das pessoas. Eu cuidei de dois irmãos meus, mais novos. Quando minha mãe ficou viúva, cuidei deles. Tinha aquela responsabilidade. Tanto é que esse cuidar me trouxe uma experiência que me marcou. Eu estava fazendo a minha tarefa de casa na cozinha e eles dois brincando ali, eu esquentando a água para dar banho neles. Um deles bateu no fogão e caiu a água quente nos dois. Teve aquela queimadura. Eu era muito jovem ainda. Eu tinha 13 anos ainda. Caiu aquela água quente, grudou tudo na roupa. Imagina uma menina ali, fazendo a lição, e dois irmãos queimados ao mesmo tempo. Eu tive de cuidar deles também, porque a minha mãe teve de continuar com a rotina dela. Fomos ao pronto-socorro e tudo, mas não era como é hoje. Eu tive de, muito cedo, trocar aqueles curativos, dar banho neles. Por outro lado, eu tinha muito essa coisa: dali para diante essa minha responsabilidade aumentou muito, porque não podia acontecer mais nada com os meus irmãos além daquilo que já tinha acontecido. Eu tive muito essa coisa. Não era de chegar, sentar e ter meu consultório. Era mesmo de cuidar das pessoas. Quando eu fui ver a escolha das profissões, na época todo mundo dizia: “faça Medicina. Você é uma menina tão inteligente. Você é uma ótima aluna”. Eu fiz duas escolhas. Na época podia fazer porque era a época do CESCEM, que era o vestibular dos anos 70. Não era como é hoje. Eu entrei na Medicina e entrei na Enfermagem, mas eu fui para a escola da Enfermagem. Lá, eu fui ver: “é isso o que eu quero ser. Eu gosto de cuidar das pessoas, de ficar muito tempo com as pessoas. É isso o que eu gosto de fazer”. Eu achava bonito, até porque a minha irmã trabalhou em um consultório durante um tempo, de médico. Eu fui muitas vezes com ela, lá. Eu amava ir lá nas férias. Eu queria ver tudo o que a minha irmã fazia. Eu aprendi a aplicar injeção com a minha irmã, muito cedo. Eu aprendi a fazer parto com a minha irmã, nessa clínica, muito cedo. Se a pessoa soubesse, na época, matava, porque eu tinha uns 15 anos e já tinha feito um parto junto com a minha irmã, nessa clínica. Eu aplicava soro nas pessoas para ajudar a minha irmã. Imagine: aprender a pegar veia nessa clínica, com a minha irmã, muito cedo. Eu gostava desse trabalho. Às vezes o médico lá com o qual ela trabalhava falava: “menina, você vai ser médica. Vem trabalhar aqui comigo”, mas eu queria mesmo era fazer o trabalho da enfermeira, lá, que não era enfermeira.

P/1 - Vamos aproveitar e entrar no bloco sobre a dermatite atópica? Vamos pegar esse gancho?

R - Claro.

P/1 - Me fala uma coisa; quando a senhora ouviu falar de dermatite atópica?

R - Muito cedo. Na verdade, eu ouvia falar dessas alergias de pele desde muito cedo, até por conta de que eu tive uma amiga de adolescência e de infância que era uma pessoa que tinha muitas alergias. Ela tinha muitas alergias e ninguém sabia o que era. Eram alergias tão fortes que ela, às vezes, precisava internar porque dava crises de bronquite. Era muito estranho porque todo mundo dizia que era psicológico, que era da cabeça dela, coitada. Ela sofria duplamente: sofria com as alergias, sofria porque achavam que era invenção dela. A alergia dela era aquela que deixava a pele dela toda manchada depois. Era uma coisa que eu convivia muito com essa minha amiga. Quando eu fui fazer faculdade de Enfermagem, eu tive algumas matérias e comecei a tentar associar o que era aquilo que a minha amiga tinha. Eu falei para ela: “eu acho que você tem um problema assim. Vamos tentar?”. Até fui achar um jeito de ela arranjar uma consulta no Hospital das Clínicas, porque tinha isso, mas não se tinha ainda o diagnóstico da dermatite atópica. Era tudo, assim, meio alergia e ficou. Aquilo sempre ficou na minha cabeça. Mais tarde, quando eu comecei a namorar com o meu esposo - é interessante, porque ele é um atópico. Eu falei: “poxa, isso volta na minha vida, que engraçado”. A minha família, em si, observando depois os meus irmãos, todo mundo tem um pouquinho de atopia em grau menor. Alguns menores. Tenho sobrinhos que tem até em graus maiores. Tem uma irmã minha que tem um quadro bem sério. Chega até a parte de bronquite. Aí o (doutor) [00:25:14] Samuel, quando casei com ele e namorei, eu vi que ele, inclusive, usava aquelas bombinhas. Aquilo me preocupou muito. Eu falei: “você vai parar com essas bombinhas”. Como pode? Ele dormia com uma bombinha, assim, na cabeceira da cama. Eu falei: “você é médico”. Aí veio o meu lado de enfermeira. Para ele, médico, era super normal colocar a bombinha. Para mim, enfermeira, já não era bem assim e a coisa tinha de ser cuidada. Parece, assim, que ela vinha em círculos na minha vida. Até que eu passei a ter, trabalhando na dermatologia - depois, quando eu resolvi fazer a especialização na enfermagem dermatológica, na década de 80 eu pude ver um pouco mais. Quando eu fui para congresso fora, quando eu vi que existiam grupos de pacientes com doenças específicas, em que os enfermeiros tinham um papel muito importante na educação desses pacientes. Eu voltava para o Brasil e via que não tinha nada disso e via que o enfermeiro parecia que não era parte disso. Era uma coisa de médico. Eu nunca aceitei muito essa coisa de que isso é de médico e isso é de enfermeiro. Eu sempre achei que tinha de ser um trabalho em conjunto. Vendo fora coisas que se faziam e vendo o quanto faltava de não fazer aqui, eu comecei a fazer sempre alguma coisa no sentido principalmente educativo dos pacientes; no sentido de entender, exatamente - uma coisa que eu, como enfermeira, observava por trabalhar no hospital. Quando eu recebia um paciente que tinha um quadro, como era terrível a noite dele. Ele não dormia à noite, precisando fazer um tratamento no dia seguinte. O paciente tinha a noite do terror, que eu brincava. Ainda mais que ele ia para o hospital com toda a parte emocional afetada por um monte de cheiro, um monte de coisa, um monte de produto novo. Aquilo também me preocupava. Eu falava: “poxa, precisava fazer alguma coisa”. Eu fui, realmente, quando fui estudar, na parte do mestrado. Primeiro eu fiz a especialização na Enfermagem Dermatológica, estudei muito essas questões das doenças dermatológicas e o impacto delas na vida das pessoas. No mestrado, eu também fui fazer o meu trabalho na linha de educação do paciente para lidar com as suas doenças dermatológicas crônicas. Eu achava que era muito importante não ficar querendo que os médicos achassem que eu estava preocupada com o tratamento. Não é essa a minha preocupação. A minha preocupação é: como é que a pessoa vai lidar com aquilo? Como a família vai lidar? Eu percebia também que existia uma dificuldade. Ou a família superprotegia aquela pessoa, principalmente quando eram os casos severos. Privava de tudo. A criança não podia fazer nada. A casa só não podia ser esterilizada porque não tinha como. Aí depois começavam coisas extremamente restritivas, de dieta, de tudo, de tudo. Eu comecei a achar que tinha de ter um meio termo nisso, que tinha de ter um equilíbrio do que pode e do que não pode fazer, do que não pode fazer de jeito nenhum, do que pode fazer em certas situações. No meu mestrado eu fui estudar um pouco disso, do impacto da patologia na família, o desgaste familiar, mas o impacto sobre o paciente também. Aí eu vi que era muito importante. Quando eu fui para os Estados Unidos, em um congresso, em 96, fui nas sessões onde eu vi muito claro o quanto o trabalho do grupo de apoio era importante para os pacientes. Eu disse: “poxa, é isso que eu quero fazer. Eu quero trabalhar com o grupo de apoio, juntar pacientes que tem as doenças dermatológicas para que eles percebam que eles não estão sozinhos, que não são os únicos, que você pode ter o preconceito, mas o outro também tem” e também relativizar um pouco. Não que a dermatite atópica não seja séria, mas comparando com algumas doenças da dermatologia, você pode ver que tem doenças que comprometem mais a sua vida. Quem sabe, se você ver que tem alguém que tem uma doença que é assim, você pode até ver que você consegue gerenciar a sua doença. Aí eu comecei a ter essa ideia com o doutor Samuel - ele diz que foi o lado do coração - de criar essa ONG, de criar o DermaCamp, porque eu achava que era importante reunir pacientes com diferentes patologias. Patologias que tinham até manifestações diferentes, mas que tinham um ponto em comum, que era o preconceito que eles tinham. Todos tinham o preconceito, porque doença na pele está ali, aparece. Você pode ter uma doença no coração. As pessoas ficam até com pena se você falar que tem doença no coração, mas se você tem uma doença na pele, todo mundo já olha assim: “vai pegar”. Eu sempre ouvi muito isso dos pacientes. Eu ouvi muitos depoimentos pesados. Eu via pacientes depressivos, tomando muita medicação. Eu via os pais também depressivos, uma desestruturação da família. Eu queria intervir nisso. Eu queria ajudar nisso. Até por conta de que eu acredito que por ter sido criada - e por toda a história do meu passado vir à tona - de uma forma onde eu tive de empoderar da minha vida. A minha mãe nos ensinou que nós temos de nos empoderar das nossas vidas mesmo diante das situações mais adversas. Quem tem uma doença crônica, ela também precisa se empoderar da sua vida. Ela não pode ser o coitadinho, não pode ser a vítima, não pode se entregar totalmente. É difícil? É difícil. É desafiador? É desafiador. Você tem um lado que as manifestações físicas são intensas nas formas graves? São. De tempos em tempos você vai parar em um hospital. Tem tudo isso. Nunca nego. Mas você precisa ser mais do que a sua doença e ela não pode tomar conta de você. Eu trouxe da minha vida pessoal para o caso das doenças de pele um pouco disso que eu acredito, que não é negar que você tenha nada disso, mas é você não achar que isso te justifica anular todo o seu potencial de vida e que também você não pode ficar esperando tudo dos outros, que você tem de ir à luta, se organizar, pleitear os seus direitos para um tratamento, para ter um medicamento, para ter um apoio psicológico, cada um no seu grau. Uma coisa que eu também sempre procuro divulgar: dermatite atópica, epidermólise bolhosa, psoríase não são uma coisa, são N doenças dentro de uma. Você tem uma forma mais simples, uma forma moderada, uma forma grave. Não dá para por tudo na mesma cesta e tratar todos iguais. Cada pai, cada paciente: “eu tenho dermatite atópica”. Não. “O meu mundo é assim”. “O mundo da ultrasevera é assim”. As pessoas também precisam lidar com essa diversidade que existe dentro da própria patologia.
P/1 - Vamos falar mais sobre o DermaCamp. Explica para nós como ele é, como é a rotina, as pessoas. Como é?
R - eberem que não são únicas e que não estão sozinhas. O sentimento que eu percebia inicialmente era: “meu Deus, parece que eu sou o único”, “o meu filho é o único que nasceu com essa doença”, “ai, meu Deus, a minha vida virou um inferno”. Eu não estou negando nada disso. Pelo contrário. Eu acolho todos esses sentimentos, mas, olhando, nós que estamos em uma posição, vemos que não é o único. Você precisa, em um primeiro momento, sentir que se pertence a alguma coisa. A minha ideia inicial era reunir as pessoas. Tínhamos uma ideia muito simples de reunir pessoas, de fazermos grupos e encontros dessas pessoas e que elas pudessem verbalizar. Eu já tinha ido em outros lugares onde eu não gostava da abordagem, porque era uma choradeira. Era, desculpa a expressão, uma desgraceira. Eu não gostava disso. Não faz parte do que eu acredito. Eu acho que você tem de fazer isso por um certo tempo, mas não pode ficar para sempre. Eu acho que não. Você tem de ver: “espera um pouco. O que você pode fazer mesmo tendo isso?”. E você não vai ter crises. Vamos lá. Eu sou muito otimista nessas questões assim. Eu sou muito de a pessoa enfrentar aquilo, porque o enfrentamento de cada pessoa vai fazer a diferença. A mesma doença, se eu enfrentar de um jeito vai fazer diferença no rumo da minha doença. Se eu aprender a me cuidar direitinho, se eu souber o que é bom para mim e o que não é bom para mim, se eu aprender que eu não posso tomar um banho mais quente ou que eu preciso ter um perfume que não seja assim, isso já vai fazer diferença. Eu preciso aprender como eu vou cuidar de mim para que eu possa ter uma vida normal. E nasceu desse sentimento, de reunir essas pessoas. Eu acredito que não adianta fazer isso quando você já é adulto, que está com tudo. Eu acredito que esse trabalho tenha de começar por crianças. Eu não tenho forças, pernas ou braços para fazer isso para o mundo todo. Eu sou assim, da governabilidade. Qual é a minha governabilidade de ajudar nisso? A minha governabilidade é em um certo número de pessoas. Eu escolhi trabalhar com as crianças porque eu achava que se começar com as crianças, depois eu vou ter um adolescente e um adulto que já aprendeu uma porção de coisas e vai levar isso para a vida. Depois que nós já tivermos mais avançados, até os adultos podem vir para usufruir disso. Mas em termos de possibilidade, nós tínhamos de priorizar a nossa capacidade, a minha capacidade de trabalho, a minha possibilidade. Eu tentei passar isso para outras pessoas. Primeiro, que também tinham doença de pele, que já eram mais velhas, profissionais, porque seria tudo voluntário. O DermaCamp partiu de um pressuposto de ser uma organização não-governamental, de ser um projeto voluntário onde as pessoas que viessem ali quisessem fazer alguma coisa que pudessem ajudar quem tem problemas de pele severos e crônicos a ter uma qualidade de vida melhor.

P/1 - Explica para nós como é a estrutura do DermaCamp? Funcionamento, o dia-a-dia, como são as temporadas, como é que é?

R - O DermaCamp, hoje, com esses 18 anos, foi sendo construído e estamos em construção. Eu continuo sonhando muito e com muitas coisas que eu gostaria que o DermaCamp tivesse. Eu digo que nós estamos nem no meio do caminho do que eu sonho que um dia fosse o DermaCamp. Nós partimos de algumas premissas, de alguns pressupostos. Primeiro a crença de que as pessoas precisam ser empoderadas. Nós não seríamos nunca paternalistas e nem assistencialistas, porque as pessoas precisam estar vinculadas aos seus médicos e ter um médico que cuida delas. Que as pessoas precisam ter aderência a um tratamento porque em doença crônica como essa, a pessoa falou que tem uma coisa na conchinchina, que é milagrosa, ela vai correndo e larga todo o tratamento. Isso impacta no resultado. O que nós queríamos focar: primeiro é esse autoconhecimento. Que cada um se conhecesse. Precisa se conhecer. “Como é que eu sou?”. Nós começamos a fazer o que nós chamamos de reuniões, encontros, onde, através do lúdico e não só do racional, nós começávamos a trabalhar o autoconhecimento por meio da brincadeira. Como eu estou trabalhando com criança, eu quero valorizar o que a criança gosta de fazer. Brincar, para a criança, é muito sério. Através da brincadeira ela consegue se expressar, colocar para fora seus sentimentos e, por outro lado, através da brincadeira ela se solta, se desamarra e consegue se aproximar. A criança, em si, não tem o preconceito. Ele vai sendo construído ao longo da sua vida. Nós começamos primeiro a fazer encontros com pessoas com doenças de pele - dermatite atópica, epidermólise bolhosa, psoríase. Como a dermatite é mais frequente e tem maior número de casos, é sempre o maior grupo que comparece. Essas pessoas vêm aos encontros e eu já tenho um planejamento. O encontro tem um momento que eu valorizo demais, que é o momento em que todos sabem o nome de todos. São jogos de nomes porque é a sua identidade. Foi daí que eu observei reuniões de outros lugares: ali, todo mundo, é DA. Eles se apresentam assim: “meu nome é fulano e eu tenho DA”. É a primeira coisa que eles falam nesses lugares. Gente, como é forte. A doença é mais do que eles. Eu não quero isso no DermaCamp. Eu quero que eles sejam mais fortes do que a doença (en passant) [00:39:05] vão citar que tem dermatite atópica, mas: “eu sou fulano de tal, eu estudo”; “eu sou a Maria Helena”; “eu sou fulano e tal”. Aí, a última frase que ele vai falar é a da dermatite atópica. Se eu chegar a isso, alcancei meu objetivo. Foi trabalhando nesse sentido: a pessoa que tem por trás, a pessoa que está ali por trás daquela doença e não a doença ser realmente o seu principal foco e representação. Que pessoa se esconde aí? O que você está escondendo aí? Através do lúdico. Nesses encontros, temos momentos comuns, em que vem os profissionais, as crianças, os jovens - que crescem e continuam lá -, os pais, agregados, quem for. Nessa primeira atividade lúdica de valorizar o seu nome, identidade, quem você é, participa todo mundo. Nós fazemos brincadeiras mesmo, jogos de nomes divertidos. Nós estamos sempre procurando. Eu vivo fazendo cursos para jogos cooperativos. Nós não fazemos jogos competitivos. Jogos cooperativos, jogos que desenvolvem a cooperação entre as pessoas. Sempre estamos fazendo cursos para aprendermos jogos cooperativos. É nesse primeiro momento. Depois nós fazemos um momento em que deixamos as crianças separadas com os nossos monitores para brincar mais ainda, para fazer mais jogos e atividades onde eles vão se conhecer melhor. Eles vão ver como lidam com o outro, vão ver se eles só ficam perto de uma pessoa que eles conhecem. Isso tudo sem julgamento. Não tem o certo e o errado ali. Nós não julgamos ninguém. E nós vamos conversar com os pais. O encontro sempre tem o primeiro momento comum, de todos, mas tem um momento onde as crianças ficam com os monitores, sempre tem um enfermeiro, um médico, um profissional que fica ali acompanhando e depois os pais vão conosco. Nós temos os pais que nós chamamos e que são os nossos referenciais, aqueles que já estão há muito tempo, onde eles vão nos ajudar a dar as dicas de pais. Uma coisa sou eu, pai, que tenho um filho e outra coisa é Maria Helena, enfermeira, que não tem o filho. Eu falo a mesma coisa, mas na hora que o pai reforça aquilo tem outro peso porque ele tem o filho. Tudo aquilo que nós falamos o pai fala e soma. Nós fazemos essa reunião com os pais. Depois nós juntamos todos novamente para fazermos esse fechamento no fim do dia do encontro. Esses encontros nós gostaríamos que fossem mais frequentes. Não fazemos mais por falta de verba mesmo, mas nós faríamos todos os meses. Nós acabamos não conseguindo porque dependemos da verba da SBD, fornecer um lanchinho, coisa boba. É oferecer um lanchinho para as crianças porque o resto, todo mundo paga a sua condução para ir para lá.

P/1 - É um dia de acampamento?

R - Não. Isso é o encontro.

P/1 - É o encontro.

R - Isso são os encontros. Aí, nós temos, além dos encontros de grupo de apoio - esses que são realizados a cada dois meses - nós fazemos um acampamento anual. O acampamento anual nós fazemos, normalmente, no mínimo, três dias. O que nós fazemos durante o ano: fazemos esses encontros que hoje nós já fazemos em São Paulo e em Barueri. Nós temos um núcleo em Barueri. Nosso sonho era ter um núcleo em cada cidade aí. Porque é mais fácil a pessoa participar onde ela mora do que se deslocar. São Paulo é um Estado grande. Para um pai, que tem, às vezes, uma criança com dermatite atópica, epidermólise bolhosa, que é cadeirante, que tem aquele monte de curativo - leva três horas para uma mãe fazer um curativo dela. Não dá para ela chegar nove horas da manhã no nosso encontro. Nós gostaríamos de fazer na região de Campinas, de fazer em tal região e levarmos a metodologia DermaCamp para aquele lugar, porque eu sei que tem gente que faz reunião de grupo de apoio, mas o que é que faz? Não critico. Não estou dizendo que o meu seja melhor, nada. Eu não critico. Mas aí é um enfermeiro, dá uma palestrinha sobre como hidrata a pele, como dá banho. É uma informação que eu dou no nosso encontro, mas é dentro de uma metodologia lúdica. Nós passamos isso sem que seja uma coisa com o espírito de aula. Nós temos uma crença que se chama learning by doing. Nós partimos desse pressuposto de que você vai aprendendo fazendo. Nós fazemos as brincadeiras para eles aprenderem a se hidratar corretamente, como usar o protetor.

P/1 - Dá um exemplo para nós dessa brincadeira lúdica, por exemplo, ensinando a se hidratar ou como tomar banho?

R - Como tomar banho. Por exemplo: nós fazemos uma brincadeira lá que é uma simulação. Eles formam pares, por exemplo. Nós fazemos uma brincadeira, um barco fictício. Para você entrar no meu barco - se chama on my boat - você tem de fazer o seguinte: tem de passar protetor solar e se hidratar, porque para você atravessar o rio para o lado de lá você precisa de um barco. Aí então você fala assim: para você se hidratar no meu barco, vai ter de fazer assim. Na brincadeira, sabe? Aí ele fala: “mas você não passou isso daqui”; “você não fez assim”. É um monitor que está fazendo brincadeira. Ele é o barqueiro. Ele não é um médico, nada. É um barqueiro que vai dar uma carona para aquela criança pegar um barco e atravessar para o lado de lá. Isso é lá, no seco, é na (SBD) [00:44:51]. Lá no acampamento nós já fazemos isso no lago. Mas lá na SBD nós já fazemos isso. Pegamos essas banheirinhas de plástico e levamos para lá, aí brincamos. Nós sondamos, fazemos uns questionários com eles: “tomar banho de água é uma delícia”. Aí ele escreve se é água fria ou água quente. Eu tenho um conjunto de ferramentas lúdicas e pedagógicas que eu uso. Eu uso atividades, por exemplo, onde ele vai sujar as mãos e depois vai lavá-las e nós vamos lá observar como ele lava as mãos, quanto tempo ele leva, o que ele faz, se ele hidrata as mãos depois. É no lúdico, no learning by doing. Não sei se eu soube explicar. Fazendo, ele vai aprendendo. Ao invés de eu ficar lá: “olha, para você fazer a hidratação da sua pele...”. Não. Ele vai fazer por meio das brincadeiras e será gerada essa situação. Nós vamos ver como é que ele faz. Nós não vamos julgar se ele está fazendo certo ou errado, mas nós vamos pelo exemplo e pela forma de fazer, reconstruir aquele processo.

P/1 - Houveram momentos desafiadores durante essa história do acampamento, de casos de crianças mais sérios, alguma coisa marcante que a senhora gostaria de contar para nós?

R - Sempre existem. Muitas vezes, uma criança vai para lá. Ela já está naquele período, um momento que ela passou por uma crise. Ela fica ansiosa para ir para o acampamento, o que é natural. Por quê? Porque muitas crianças nunca saíram de perto dos seus pais. Nunca saíram nem para passeios, porque como os pais tem medo de elas irem para locais, levar picada em um local, em um acampamento, de chegar lá, ter cheiro, ter contato com animal, o que acontece: muitas vezes, os pais passam essa ansiedade. Naquela semana, às vezes a criança já fica meio ansiosa, os pais ansiosos, já altera. Ela já chega no acampamento, às vezes, com um prurido maior. Ela já chega com um pouco de tosse, com um pouco de falta de ar. Às vezes chega no acampamento e a criança tem uma crise lá. Já aconteceu. Eu levo para o acampamento inalador, medicação. Já temos todo um contrato com a Santa Casa para que em qualquer emergência irmos para lá. Procuramos, primeiro, resolver tudo ali. Tudo ali no local do acampamento. Para isso tem os médicos voluntários, dermatologistas que estão lá, porque nós evitamos levar a criança para o ambiente hospitalar. Ela foi para lá para isso, mas acontece de a criança realmente ficar em uma crise de bronquite muito acentuada, em uma crise de prurido muito acentuado, por conta de ela estar muito ansiosa pelo fato de ter se afastado da família ou até pela expectativa que ela ficou durante aqueles dias, porque a pele e a parte emocional tem uma conexão. Não é que as doenças de pele sejam de causa emocional. É isso que nós tentamos desconstruir, mas as emoções afetam a nossa pele e pioram as doenças. Isso nós passamos para as crianças. Nós fazemos com que eles façam uma análise: “o que é que aconteceu com você? Me conta aí”. Eles fazem com desenhos. Nós fazemos muitos desenhos. Tem desenhos em que tem crianças em várias partes de uma árvore e ele nos mostra onde é que ele está naquela árvore. Às vezes ele está lá embaixo, ou lá em cima. “Por que é que você está aqui?”; “estou aqui porque aqui respiro melhor, porque eu estava com falta de ar. Eu tive de subir lá em cima na árvore”. Aí nós, no último dia: “onde é que você está na árvore?”; “eu estou aqui embaixo. Estou descansando. Estou super legal aqui”. A mesma criança. Isso é uma forma de avaliação que fazemos do resultado do acampamento na criança. Nós também passamos por essa situação. Eles podem passar por esse período de ter uma crise, de qualquer outro problema de pele. Uma crise de quem ter psoríase ou uma criança que tem epidermólise ou dermatite atópica, por conta dessa sensação de que ele vai para um outro local. Às vezes os pais passam para eles também. Os pais ficam muito inseguros, com muito medo de tirar o seu filho dali e passam essa carga emocional para a criança.

P/1 - Os monitores também são atópicos?

R - A maioria dos nossos monitores são pessoas que tem problema de pele. Quando nós começamos, nós não tínhamos pessoas suficientes com problema de pele, com doenças de pele. Nós começamos assim: com voluntários que nós conhecíamos e que faziam um tipo de trabalho já com jovens, com crianças e que eram de uma organização da qual eu participei muito tempo com meus filhos, que era convivência internacional de jovens. Os CISV, que chama. Children International Summer Village. É uma entidade que promove atividades de integração, mas com o objetivo de paz mundial. Ela reúne crianças de vários países do mundo para ficar em um acampamento e para conviver com crianças de países que estão em guerra, em conflito e essas crianças valorizarem a paz. Eu usei essa ideia que meus filhos participaram lá para fazer o DermaCamp. Criança que tem um monte de problema de pele, que vive em guerra com o seu próprio corpo tem um pouco de paz naqueles dias lá. Eu convidei esses monitores para me ajudar no início. À medida que as nossas crianças foram crescendo, viraram monitores. É o caso da Daiana, do Márcio, do Alan. Eu tenho hoje no meu corpo de monitores praticamente ex-acampantes. Como nós temos já 18 anos de existência, eles começaram com oito, dez anos e hoje já são voluntários-monitores. Eu tenho um monitor que é o que faz as brincadeiras, eu tenho o companheiro que é o que fica mais próximo da criança, eu tenho o monitor mirim que com 14, 15 anos vai aprender a ser monitor mais tarde. Ele é um trainee de monitor. Ele já tem a doença de pele, mas já tem diferenças. Ele vai, de oito a 13 anos, como um acampante. De 13 em diante, já vai com responsabilidades ao acampamento.

P/1 - Doutora, para encerrar, eu queria agradecer muito essa entrevista e queria que a senhora falasse alguma coisa que a senhora gostaria de ter falado, que não teve oportunidade. Enfim, alguma coisa sobre esse seu trabalho com a dermatite atópica. O que a senhora gostaria de nos falar?

R - Eu gostaria de falar tanta coisa. Esperava até que eu tivesse mais tempo. Sonhei muito com essa entrevista e não vou negar que estou frustrada, mas na vida eu também aprendi que nós temos de fazer o que é possível. O que eu mais espero com essa entrevista e com esse momento é agradecer, primeiro, a essa oportunidade. Acho que tudo o que nós temos de oportunidade temos de aproveitar e sermos gratos, porque nem todos tem essa oportunidade. Eu sou muito grata à Sanofi, a vocês do museu por me darem esse privilégio. Quero dizer que a dermatite atópica, assim como outras doenças dermatológicas crônicas comprometem muito a qualidade de vida das pessoas, mas, por outro lado, muitas coisas extremamente simples poderiam ser feitas e que ajudariam. Embora eu entenda que o acesso ao tratamento de ponta seja extremamente importante, que a pesquisa precisa avançar, que as pesquisas trarão, realmente, a possibilidade até de uma intervenção nas causas mais profundas - e é aí que a ciência caminha, é aí que entra a parte do tratamento médico e que não é a parte onde eu milito diretamente, eu acho que mesmo que tudo isso avance, nós precisamos olhar, acima de tudo, para as pessoas porque cada um reage, mesmo tendo uma patologia, um nome, mesmo tendo um tratamento, você tem as pessoas que reage a ele com as suas características pessoais, com os seus valores de vida, com as suas características culturais. Eu penso que quando nós lidamos com patologias crônicas, onde aquele paciente vai conviver conosco a vida toda - isso se nós soubermos trabalhar de forma que ele tenha aderência ao tratamento, porque, senão, esse paciente vai ter uma saga ao longo da vida dele. Primeiro a dificuldade para ter o diagnóstico. Segundo: qual é o tratamento mais adequado? Esse tratamento não implica só no medicamento. Ele implica em todo um conjunto de orientações e que, diante da realidade da Medicina hoje, com um médico com cada vez menos tempo para cuidar das pessoas, menos tempo para fazer consulta, é preciso que se tenha uma visão de equipe multidisciplinar. Eu sou casada com um médico, respeito e valorizo, mas o médico é formado ainda para ter uma visão de que o médico faz tudo, de que o médico cura tudo e o médico salva tudo. E não é assim. O médico tem um papel importantíssimo no tratamento e no diagnóstico, mas ele precisa se cercar de uma equipe que o ajude a cuidar das pessoas. Uma coisa é você tratar a doença e outra coisa é cuidar da pessoa e eu acho que essas duas coisas precisam caminhar juntas para que nós possamos ter um bom resultado. Que a pessoa tenha um bom resultado, que ela viva bem mesmo tendo qualquer doença. Isso vale para mim, para um câncer, para uma doença rara degenerativa e vale para a dermatite atópica que já é uma patologia onde nós vemos tantas pesquisas maravilhosas, tanto investimento, tanto avanço. Mas se nós não soubermos juntar o tratar a doença com o cuidar da pessoa, mesmo que nós cheguemos a um avanço até de intervenção genética onde você vai lá e tira aquela causa, nós vamos ter uma dificuldade de que essa pessoa tenha uma boa qualidade de vida, porque nós temos de ver que ela vai se cuidar. E quem se cuida e se cura é o paciente, é a pessoa. Nós somos meras ferramentas. Quem se cura, quem se trata, quem adere ao tratamento de fato, que acredita que aquilo é bom e vai em frente ou que desacredita e fica a cada hora fazendo uma experiência consigo próprio ou com o seu filho é a família, é o paciente. Se nós não tivermos essa proximidade que uma sala de consultório, uma cadeira e um formulário não nos dá, se nós não fizermos essas ações complementares ao tratamento médico, eu não acredito que teremos bons resultados. Por isso que até hoje nós não tivemos um resultado tão satisfatório. Eu aposto muito nessa nova visão, nesse trabalho em equipe, no médico com os profissionais. Com enfermeiro, fisioterapeuta, psicólogo, educador físico e até mesmo com a escola. Por que não? Na escola também vai ter a questão de ele ter o preconceito. Educar os professores com quem as pessoas passam uma grande parte do seu tempo. O meu sonho é que nós tenhamos possibilidade de fazer um trabalho educativo muito maior do que nós fazemos também junto aos médicos, porque os médicos tem o seu valor enorme. Mas o médico precisa ter um pouco mais de humildade e perceber o seu papel como parte desse processo mais amplo de levar uma qualidade de vida. Cada um de nós é uma partezinha muito pequena desse tabuleiro de xadrez e nós temos de nos movimentar em harmonia para que esse paciente se sinta amparado, seguro, não se sinta perdido e que ele não fique fazendo hoje a consulta para tratar da sua dermatite atópica com o doutor Google, que acredite mais no doutor Google do que naquele médico que é o médico dele. Onde nós estamos falhando, que muitas vezes as pessoas acreditam mais no doutor Google do que em enfermeiro, no meu médico? Nós precisamos fazer essa reflexão e termos humildade. Nos aproximarmos mais da pessoa e nem tanto do doente. E através de um conjunto de pessoas e de ações chegar a um melhor resultado. Eu acredito muito nisso e espero que nós possamos levar isso para o futuro como uma nova forma de lidar com as pessoas em qualquer tipo de doença. Eu acho que, para mim, a dermatite é um exemplo muito poderoso disso. Convivendo com a dermatite nós percebemos o quanto à forma como você lida com as pessoas muda completamente, mesmo ela não tendo possibilidade, às vezes, de ter uma mudança tão grande do tratamento, mas a forma como você lida com aquele paciente. Sem julgá-lo, acolhendo, muitas vezes, os seus momentos de crise, de dificuldade, sendo, realmente, alguém que possa dar pequenas dicas, coisas simples. Adequar a nossa orientação ao nível social, econômico e cultural. Você pode chegar do melhor congresso da Europa. Ótimo, mas, espera aí: não dá para ser assim. Como é que eu vou fazer esse processo? Decodificar também as informações que nós trazemos de lá para o nosso paciente, em uma linguagem simples, uma linguagem acessível, que é essa proximidade. Eu acho que isso só é possível se nós saímos um pouco do ambiente e vai para um ambiente como esse, por exemplo, de encontros, onde é você o doutor que eu não vou ser. Você é uma das pessoas ali. Eu vou me apresentar, eu vou falar o meu nome. “Eu sou o doutor fulano”; “eu sou o doutor cicrano”, “mas ali eu sou um de vocês que estou aqui para construir junto, para nos tratarmos e curarmos juntos”. Eu acho que falta um pouco disso ainda. Existe muito essa projeção. “O doutor que está lá em cima e que vai me curar” e eu acho que nós nos tratamos e nos cuidamos juntos.

P/1 - Muito obrigada, doutora.

R - Eu que agradeço.

P/1 - Foi pouco, mas foi ótimo.

R - Obrigada.

P/1 - Foi incrível. Muito obrigada.

R - Eu que agradeço. Obrigada a vocês.