Museu da Pessoa

Projeto de alfabetização

autoria: Museu da Pessoa personagem: Milton Teixeira Santos Filho

Memória dos Brasileiros - Brasil que precisa mudar
Depoimento de Milton Teixeira Santos Filho
Entrevistado por (Wini Shoe?) e Júlia Basso
Açailândia – MA, 30/10/2007.
Realização: Museu da Pessoa
MB_HV073_Milton T S Filho
Transcrito por Edson Osmar Rodrigues Arruda
Revisado por Paulo Ricardo Gomides Abe


P1 – Milton, para a gente começar, eu gostaria que você falasse só nome completo, a data e a cidade onde você nasceu.

R – Meu nome é Milton Teixeira Santos Filho. Eu nasci no dia 21 de abril de 1968 e nasci em Floresta Azul, Bahia.

P1 – Me fala o nome dos seus pais.

R – O nome do meu pai é Milton Teixeira Santos e da mãe, Doralice Alves Santos.

P1 – Você tem irmãos?

R – Tenho. Nós somos uma família de onze filhos e filhas, então desse conjunto de pessoas, são 5 homens e 7 mulheres ou 5 homens e 6 mulheres.

P1 – Você está onde aqui nesses homens?

R – Eu estou em trigésimo... O trigésimo...

P1 – (risos).

R – (risos) Eu estou no nono, na nona posição.

P1 – E vocês cresceram lá em Floresta Azul?

R – Todos lá em Floresta Azul. Alguns viajaram para São Paulo, eu estou aqui no Maranhão já há doze anos.

P1 – E como era lá em Floresta Azul? A casa que você morava...

R – Olha, Floresta Azul é um município muito pequeno no sul da Bahia. É uma cidade que não chega hoje a mais que 13 mil habitantes e é um município tipicamente rural. Nesse município a nossa moradia é uma moradia razoável, considerando a situação do município. Uma casa de alvenaria. Em vista da maioria das casas, é uma casa que, nós poderíamos dizer, é uma casa decente de se morar e esse município depende basicamente da zona rural. É um município que tem uma arrecadação muito baixa, praticamente toda a economia do município gira em torno da prefeitura e o que segura um pouco a economia é a questão dos aposentados.

P1 – Mas como era? Os seus pais plantavam?

R – Meu pai na realidade cursou foi até o quarto ano primário. Não chegou a ir nem ao ginasial e a relação dele era mais direta com o campo. Ele vem também de uma família que tem relação direta com o campesinato e ligado também ao Sindicato dos Trabalhadores Rurais. A minha mãe nas atividades também, ela não chegou a ir ao ginásio, parou aí no que hoje nós chamamos de ensino fundamental e também a atividade que ela desenvolvia era mais específica nas atividades domésticas, nas atividades do lar.

P1 – _____ ______ ________.

R – Imagina aí, onze filhos, inclusive todos esses filhos são de quatro famílias, porque o meu pai casou com a primeira esposa e teve cinco filhos e depois veio o falecimento dessa esposa. Casou com a segunda eí teve mais dois filhos, depois teve outro casamento, não deu certo, mais um outro casamento, mais um filho e finalmente com a minha mãe mais três filhos.

P2 – Vocês moravam todos juntos?

R – Todos nós morávamos na mesma casa e à medida que não ia casando, outro dia casando, ia constituindo a família e se separando um pouco desse núcleo maior.

P1 – Vocês dormiam todo mundo junto lá no...

R – Não, não chegava a dormir junto porque o meu pai, ele tinha uma cultura muito tradicional. Então tinha um quarto específico só dos homens e o quarto das mulheres, mas não passava mais do que 3 quartos. E se dividia toda essa turma nesses três cômodos.

P1 – E você, onde você morava lá em Floresta Azul? Era um sítio? As casas eram próximas? Como que era Floresta Azul?

R – Floresta Azul. Na realidade, as cidades daquela região, região em que se encontra Floresta Azul, que é no sul da Bahia, elas são até mais organizadas do que aqui no Maranhão. Tem saneamento básico. As ruas são todas pavimentadas, muito bem arborizadas. O único problema é a questão econômica, porque depende basicamente de uma cultura que está aí falida, que é o cacau. Então naquela região, dada à doença que é chamada vassoura de bruxa, fez com que acabasse muito com a lavoura cacaueira. E isso afetou drasticamente a economia, tanto que próximo do nosso município tinha a indústria da Nestlé e ela fechou em função de que não tinha produção suficiente de cacau para que eles pudessem transformar em chocolate e inclusive estar até exportando.

P1 – Você comia muito chocolate?

R – Rapaz, ainda hoje quando a gente retorna lá. A cidade está muito próxima à zona rural, então a gente visita muito as fazendas, o sítio dos amigos. A gente tem muito acesso à questão do cacau.

P1 – Como que era com esse tanto de

irmãos. Como que eram as brincadeiras de infância...

R – Rapaz, a maior parte das brincadeiras eram as brincadeiras de roda, era pião, era perna–de–pau e depois com o passar do tempo veio a figurinha. Mas em geral eram essas brincadeiras mais tradicionais mesmo, de cunho educativo.

P1 – Vocês brincavam muito?

R – Nós brincávamos muito, inclusive lá a nossa cidade é cortada por um rio, e esse rio é um rio chamado Rio Cachoeira. É um Rio que à medida que enchia transbordava a cidade, enchia as casas de água. Era uma festa imensa, era um misto de prazer e ao mesmo tempo de agonia, porque afetava diretamente algumas famílias, mas nós costumávamos brincar na beira desse rio e se eu também... Com o passar do tempo começaram a explorar demais área, e começou a provocar o assoreamento. Enfim, esse rio hoje praticamente desapareceu, então foi muito afetado com exploração da areia para a comercialização.

P1 – Vocês brincavam muito nesse rio...

R – Ah, esse rio... Nosso pai com medo de haver algum acidente proibiu a gente de usar, usufruir do rio e nós tínhamos o cuidado de irmos ao rio, geralmente no período da tarde e a gente se banhava no rio. Como água era a salobra, os olhos ficavam vermelhos então a gente não podia chegar em casa porque estávamos com os olhos vermelhos e com o cabelo duro, o cabelo ficava muito duro. Então, para que os nossos pais não soubessem, a gente pegava, conseguia brilhantina para poder disfarçar o estado do cabelo. O rio ali era o nosso ponto de encontro. Então ali na beira do rio tinha muitas ingazeiras. A gente abusava de muito ingá. Pegávamos cordas e pendurávamos nos galhos das ingazeiras, das que estavam bem adentrando o rio, brincávamos ali. Era o nosso mundo, nós nos realizávamos com aquelas brincadeiras.

P1 – Aprontavam muito lá?

R – Xi, aprontávamos demais, mas pena que hoje todos os anos eu retorno. Passam as férias, lá na Bahia, e a gente já não tem mais aquelas crianças na faixa etária de dez, 15, 16 anos mais. Quer dizer, usufruir desse bem. Boa parte da molecada hoje está envolvida com drogas, está envolvido com a criminalidade. Foram faltando esses espaços de lazer e enveredaram pelo crime. e a gente lamenta muito, de que elas não possam ter tido o mesmo prazer que tivemos.

P1 – O que o senhor lembra da infância? O que sua mãe fazia de comer para vocês?

R – Olha, na verdade a minha avó se concentrava toda a atenção na minha avó, porque minha vó fazia muitos biscoitos de polvilho. Ela tinha um jeito muito especial de fazer café porque o café in natura mesmo. Ela pegava e tornava o café junto com o cravo e a canela. Então tinha todo um sabor especial e a gente brigava para ficar na casa da nossa avó. Inclusive, no período da Semana Santa, toda a nossa família, um levava um prato, outro levava outro. Então se concentrava todo mundo na casa da minha avó. Era um canto assim. É um lugar especial. Ali tinha muito do sagrado porque ali a gente se sentia bem, ali a gente tinha todo um conforto, uma atenção. Era um pouco disso. A minha avó (a latinha?) todo esse traquejo com a questão da culinária, um jeito especial de fazer a coisa. Então acaba cativando todo mundo.

P1 – Ela era baiana?

R – Minha avó era baiana, tipicamente. Nesse conjunto da culinária, se produzia a questão do vatapá, do caruru, então para comidas... O peixe estava sempre presente, também porque esse próprio rio que a gente usufruiu para as brincadeiras, também era dali que a maioria da população extraía seu alimento. E a casa da minha avó era muito próxima ao rio. Então tudo favorecia para que a casa dela fosse esse Centro de encontro para brincar, para se divertir e para comer essas iguarias que hoje praticamente a gente tem dificuldade de encontrar.

P2 – Sua avó _______?

R – Olha, na realidade a nossa região é uma região onde a umbanda, o candomblé tem uma relação muito íntima com a igreja católica. Então a minha avó não era aquela mulher de estar frequentando igreja. E todos nós, minha avó dizia isso, o meu pai e minha mãe diziam: "Não, nós somos católicos” Mas não eram aqueles frequentadores assíduos, como eu também digo aos pais, sou católico, mas não sou um frequentador assíduo. Mas todos os ensinamentos que repassavam para a gente, a questão educacional, estavam muito na linha do catolicismo, sem perder -

é lógico - todo esse lado cultural que o candomblé, com toda a riqueza que ele tem, também ajudou a gente a ter essa presença desses dois ritos, tanto culturais, como religiosos.

P1 – Esses peixes que você falou do rio, como que eram? Os peixes, as frutas que eram lá da região mesmo...

R – Olha, as frutas que tem lá na região, as frutas são a carambola, tem o cacau, a jaca, a banana, tem a graviola, a cajá. Essas são praticamente as frutas que tem mais, com mais facilidade. Lá tem coisas assim que mudam nome, tipo para a gente lá come aipim, aqui no Maranhão o pessoal chama de macaxeira. E lá nós temos aipim e também temos a mandioca, só que a mandioca ela não é própria para a gente comer, é dela que é produzida a farinha, então a gente obtém um outro produto para ter acesso a ela enquanto alimento.O que tinha de frutas basicamente é isso. Quanto à questão dos peixes, então tinha muitos, o paré, piaba. Tinha muito o tucunaré. Esses eram alguns dos peixes que tinham na nossa região ali.

P1 – Quando o senhor era pequeno, com seus irmão, o senhor lembra de alguma história que o senhor ouvia que fala do folclore, alguma coisa...

R – Olha, ali na nossa região, eu acho que tem uma relação direta com essa cultura ligado aos entes naturais, então fala–se muito do Curupira, da Caipora. E desde pequeno a gente cresceu ouvindo: "Olha, para você adentrar a mata, você tem que pedir licença”. Você precisa ter a permissão da Caipora porque sem isso você não pode entrar e a maioria dos caçadores, ainda hoje, conseguem fazer isso. Eles saem para as caçadas, eles levam uma bolsinha que é feito de tecido, geralmente de confecção caseira mesmo, bastante artesanal. E dentro dessa bolsa eles não deixam de levar o dente de alho, um pedaço de fita vermelha, um pedaço de fumo de rolo, então tem todo esse rito, essa cerimônia para você ter acesso à mata, à floresta. Então a maioria dos caçadores, inclusive os nossos pais, desde pequenos, diziam colocando nas nossas cabeças isso: "Olha, se você vai passar na mata, não deixe de levar isso e assim que você chegar na porta, lá na entrada da mata fechada, você tem que se benzer, fazer o sinal da cruz e procurar um toco ali. Naquele toco você tem que depositar a fita. Eu fumo de rolo e o alho continua contigo. E nesse dia vão aparecer caças. Você vai ter um dia bastante proveitoso, você vai conseguir matar a caça. Se também não fizerem isso, o cachorro que vai contigo para caçar pode se perder, você pode se perder no lugar fácil. Numa mata fácil de ser conhecida você pode se perder. Enfim, você pode ter problemas." E as pessoas aprenderam a fazer isso e foram repassando umas para as outras e ainda, graças a Deus, que esse respeito ainda permanece e com isso com certeza, com toda essa carência, com toda essa ritualidade, que a mata em determinados lugares, os animais ainda conseguem permanecer sem risco de serem extintos.

P1 – Você pedia?

R – Mas com certeza, até hoje quando a gente entra, mesmo que não leve o alho, a fita vermelha o fumo, o pedaço de fumo de rolo, pelo menos a gente se benze pedindo permissão para adentrar no lugar sagrado.

P1 – Como é o Curupira? Como que o pessoal fala que é?

R – Rapaz, na realidade a figura da Caipora, lá pra gente, o Curupira aqui, Caipora, Caipora na realidade um ente natural que tem os pés voltados para trás e esses pés voltados para trás também são uma estratégia da própria natureza para fazer com que a gente não consiga alcançá–lo. E segundo o que se relata, é que tem um cabelo avermelhado, que até ele é um misto de negro com índio. Então aí está afigurado a Caipora. É um sujeito de cabelo sarará meio avermelhado, um caboclo, que é a mistura do índio com o negro e com os pés para trás, veste apenas uma sunga, como se fosse uma saia avermelhada, que essa é a figura da Caipora.

P1 – De pequeno, você lembra de algumas músicas, danças, algumas coisas que você via na cidade passando, o pessoal cantava...

R – Olha, as festas, as músicas, geralmente as músicas ali da nossa região elas estão muito ligadas à questão do candomblé, então isso é muito forte. São músicas que têm toda essa relação com as questões afros. Eu também não tenho, eu também não era muito assim envolvido, então não tenho na lembrança nenhuma música relacionada a essa atividade ligada ao candomblé ou de cunho mais cultural e lógico. Dentro dessas brincadeiras, eram as músicas que são mais tradicionais de um modo geral, que era: “Ciranda cirandar. Vamos todos cirandar”. Eram essas músicas que geralmente estão mais do contexto, de um modo geral no Brasil.

P1 – Você começou a estudar de pequeno, seus irmãos, como é que foi?

R – Olha, na realidade assim, o meu pai, apesar de não ter ido à escola como deveria, ele fez assim imensos esforços para que nós pudéssemos estudar. Era tanto que a minha mãe praticamente vivia na roça, e conseguia ter uma casa na cidade para que nós pudéssemos ficar na cidade e termos condições de estar estudando. Somente dois dos meus irmãos e vi um que chegou a concluir o ensino fundamental, terminou a 8ª série. Eu tenho uma irmã que conseguiu ver um pouco mais avante e conseguiu terminar o ensino médio. Tenho uma outra irmã mais nova que hoje está tendo condição de estar fazendo a faculdade. Eu basicamente fui o único que consegui concluir e avançar mais em nível de estudos, e apesar de meu pai não ser aquele cara que foi à escola, mas era um cara queria muito. Então o fato de ele estar lendo, estar envolvido nas atividades sindicais fez também com que se despertassem nos últimos dos filhos – no caso em mim e mais em duas irmãs que são mais novas do que eu –, então essa coisa pela cultura, pela leitura, pela necessidade de estudar, nós dessa última remessa que fomos agraciados por essa bênção. Os outros, alguns se envolveram mais com o campo, porque meu pai estava mais presente no campo. Eles tinham que estar apoiando no campo, alguns outros enveredaram em ser caminhoneiros. Nós três, os três últimos filhos da última remessa, fomos os que conseguiram avançar um pouco mais em nível de estudos.

P1 – Como que eram as primeiras escolas que vocês estudaram em Floresta Azul?

R – As escolas eram públicas, um pouco diferente das escolas atuais, porque naquela época até a merenda escolar tinha mais qualidade. Hoje tem mais recursos e menos qualidade. É até uma vergonha de dizer isso, mas as escolas, essa é a realidade nossa. Quem é de Açailândia e dos municípios que a gente costuma visitar e acompanhar a merenda e ki–suco de pacote, quando a gente vê a região produzindo frutas, como: caju, açaí. Nossa região é rica em tudo isso e a gente vendo as crianças tomando ki–suco em pacote, então na época em que eu estudei a merenda tinha melhor qualidade, o professor melhor remunerado, a questão do que ensinar era mais vocacional, hoje ser professor fazer bico. Então se avacalhou muito a questão da educação, hoje no momento atual, e isso às vezes nos entristece de saber que, poxa, lá, há dez, 30 anos,

a coisa era de uma forma e agora que tem mais recursos, agora que as verbas estão mais municipalizadas e há todo esse retrocesso. Mas a nossa relação sempre foi em escola pública, a universidade que eu fiz também foi a Universidade Federal do Maranhão, também pública. A nossa trajetória escolar foi no mundo da escola pública mesmo.

P1 – Você gostava de ir para a aula...

R – Mas era fantástico, apesar de que se tinha a disciplina. Era ainda a disciplina carregada com toda a cultura do militarismo, de você ter de ir de meias brancas e, se tivesse com uma meia de outra cor, você tinha de voltar mesmo, você não conseguia entrar na escola. Aquela educação da alienação patriótica, mas de certa forma era muito doutrinária por outra, era muito sadia porque foi a partir dali que a gente conseguiu entender mais sobre a nossa ação enquanto cidadão, enquanto cidadã. A gente passou a conhecer mais, explorar a questão do hino, de ter aquela relação de respeito com a questão do patrimônio público porque a gente não via as carteiras riscadas, não via depredação do mobiliário. Eu acho que se por um lado era ruim por outro era muito bom. Era um misto desta contradição. É que a gente acabou ganhando com tudo isso, porque muito do que a gente era foi fruto desse tipo de educação, da forma com que nossos pais nos criaram, da forma como a gente se relacionava com os nossos amigos, como a escola tratava gente. Tratava realmente com muito respeito, eu me lembro que a maioria das vacinas eram realizadas na escola, isso ajudou muito. A nossa escola apesar de ser uma escola pública de uma banda, uma banda marcial, então no dia 7 de setembro ganhamos uma festa, porque todo mundo estava brigando para participar da banda e as escolas públicas brigando para cada uma poder fazer melhor do que a outra. Assim, resgatando a para a questão da cultura. A questão do candomblé estava presente, a questão da religião, tudo tava presente ali e hoje a gente não vê mais esse resgate histórico, essa memória de estar se preservando toda a cultura que a gente quase não vê mais.

P2 – Milton, nas escola tinha _____ ______ ______ _______?

R – Tinha, tinha, na minha escola tinha uma figura que chamava muito a atenção. Durante todo o período escolar, eu passei por várias professoras, mas tinha uma professora que era a professora Fátima, não, Fátima não. O nome dela era Laudicea e o apelido dela era Fafinha, isso aí era ano primário (risos). Ela tratava a gente com um carinho muito especial. Não era uma professora, era muito mais do que isso. Ela costumava levar a gente para casa dela e lá ela tratava a gente assim... Aqueles alunos que tinham dificuldade eram levados para casa dela e ali trabalhava a dificuldade daqueles alunos, então ela só largava do aluno quando conseguia perceber que ele de fato aprendia. E, para ela, parece que era proposital, então aqueles alunos que eram mais danados, que eram mais travessos nas outras escolas. Alguns professores diziam assim: "Olha, quando você vir que esse aluno não toma jeito, então olha, entrega para a Fafinha." Ela era como se fosse (risos) a tábua da salvação e ela tinha um jeito todo especial e lembro até hoje. Hoje, quando eu vou na minha cidade, faço questão de visitá–la e de conversar com ela, de relembrar de um monte de coisa e até hoje ela me trata de um jeito muito especial. Inclusive a pessoa que a criou, porque ela foi criada por uma tia dela, era também minha madrinha, então por isso essa afinidade. Morava lá muito próximo da minha casa. Essa afinidade toda fez com que a gente, aprontava alguma coisa que o meu pai ou minha mãe ia correr atrás de mim para bater, eu corria para lá para casa de Fafinha. Ela vinha com aquele jeitão todo expansivo e conversava ali e amenizada toda a situação. Todo mundo queria ficar com a Fafinha, então a Fafinha é uma pessoa que marcou não só a minha vida, mas acredito que a maioria daqueles alunos que tinham um problema ou outro nas outras escolas.

P2

– Você ia para a casa da Fafinha ____ _____ _____?

R – Não, não, não. A Fafinha, a minha relação com Fafinha era mais porque a minha casa era numa esquina, noutra esquina, e a dela na outra. Então desde pequeno ali muito próximo. Tinha muita afinidade e como os meus pais confiavam muito nela: "Não, olha, tem que matricular os meninos lá na escola onde Fafinha estava." E ali a gente foi ficando, foi ficando e foi criando essa relação.

P1 – Como é que foi sair da escola, ensino médio...

R – Na realidade, nós tivemos um contato com a igreja, tivemos uma relação não foi muito profunda, mas um pouco tímida com a questão da pastoral, a Pastoral da Juventude. Na escola eu tive assim uma participação mais presente hoje por causa do grêmio, o grêmio estudantil. Na nossa época era o Centro Cívico, um grupo de estudantes de várias séries e que na época conduzia várias atividades da escola, mas muitos submissos, muito subordinado à direção da escola. O que eles iam fazer então a gente tinha que estar ali sempre consultando a diretora. Conseguimos avançar em alguns aspectos a partir daí, porque o grupo em que nós participávamos, da nossa diretoria, do Centro Cívico conseguimos um espaço na nossa escola e nesse espaço também foi criado um grêmio estudantil. E ali com muita batalha nós conseguimos a sinuca, dominó, xadrez. Conseguimos ali fazer um trabalho com os alunos à medida que os alunos tinham aulas vagas. A gente conseguia levar os alunos para esse espaço. Conseguimos marcar a nossa passagem no ensino fundamental, já na segunda etapa e no ensino médio com essas atividades. E também na nossa cidade nós fizemos um trabalho muito forte na parte de esporte, porque a gente desenvolvia muitas atividades. Geralmente as pessoas me tinham como uma certa referência: "Vamos fazer uma atividade cultural, esportiva, Miltinho, vamos lá..." A gente batalhava e a gente conseguia fazer as coisas. Tanto que só tem duas quadras esportivas do nosso município. Eu fiz uma dessas quadras, a melhor Quadra que tem lá foi fruto da batalha da juventude. Nós fizemos um trabalho, conseguimos arrecadar cimento, todo o material e construímos essa quadra. E ela na realidade é uma quadra que todos os anos que a gente vai lá, a gente reúne aquela molecada da escola, compramos troféus, bola e fazemos um torneio. Todo final de ano a gente faz um torneio lá com outros jovens da minha época que também saíram do município, mas, como as famílias permanecem ainda na cidade, então todo final de ano a gente se encontra e tem essas atividades que a gente faz como uma forma de dizer: “Olha, o poder público precisa fazer alguma coisa. Se nós que somos sociedade civil fazemos, o poder público também precisa fazer alguma coisa”. Então a nossa juventude, no período que nós estudamos, a gente incomodou muito o poder público porque nós conseguimos fazer coisas que o poder público não fazia e isso acabava incomodando. De certa forma, o poder público também... Nós éramos como se fôssemos as pessoas marcadas: "Aqueles ali não..." E como o nosso município era um município muito pequeno, existem só dois grupos políticos partidários: o que está no poder e o que está querendo entrar, então quando chega o período das eleições, rapaz, é um sofrimento. Muita gente sofre, porque quase todo mundo do município, boa parte da comunidade depende do emprego da prefeitura porque não tem outras empresas que gerem emprego no município e, quem não consegue eleger o seu candidato, vai ter de esperar quatro anos (risos) para poder ver se o seu candidato se elege para ele poder ter acesso a um cargo político. Trabalhar. Então é um pouco isso.

P1 – Vocês construíram uma quadra?

R – Nós construímos a quadra.

P1 – Bateram o cimento, tudo...

R – Fizemos com cimento, reunimos os pedreiros lá do município que doaram sua mão–de–obra e nós corremos atrás dos recursos, materiais e fizemos uma quadra. Mas não só uma quadra, nós fizemos várias atividades. A gente conseguia naquela época, aquelas pessoas que eram amigas nossas, que sabiam que a gente sabia que tinha dificuldade para construir as casas. Então a gente saía fazendo a campanha do tijolo, a campanha do cimento e conseguíamos juntar materiais e fazíamos mutirão. Íamos para a casa dessa pessoa e junto com essa turma toda a gente conseguia ajudar essas pessoas a construírem as suas casas, a ter uma vida um pouco mais digna.

P1 – Quando você começou, no ensino fundamental, participar do movimento estudantil, o que você esperava, assim... O que...

R – Olha, o meu pai, como elite, tinha uma ligação direta com o sindicato dos trabalhadores rurais, então lá dentro de casa o meu pai era assim, com jeitão dele tradicional, ele era muito rigoroso. Ele era um cara assim extremamente injusto, as coisas dele tinham que ser muito bem feitas, que era do tipo que se assumisse o compromisso tinha que honrar aquele compromisso e às vezes até pessoalmente se prejudicava em função de tudo isso. Porque lá em casa, nós desde pequenos éramos exigidos ter essa postura. Tanto é que o meu pai, só para você ter uma ideia de quanto ele era rígido, dizia assim: "Meio-dia é hora do almoço, então todo mundo tem que estar na mesa almoçando e, se não chegar na hora do almoço, só vai ficar para janta." Então ali estava todo mundo meio–dia porque sabia (risos) que ele ia de fato fazer cumprir aquela determinação. Essa vivência com meu pai – não só minha, mas de todos nós, irmãos e irmãs – era muito forte e isso fez com que a gente fosse observando como que era que ele se comportava, como ele absorvia os sentimentos, o sofrimento do trabalhador, porque ele também era um trabalhador que estava relacionado ao sindicato. Tudo isso fez com que a gente começasse a ter a partir dessa vivência, com relação à escola, a gente começou a construir uma outra ideia de sociedade, uma sociedade em que realmente os pobres, os oprimidos tinham que ter seu espaço e era um direito entre iguais e que a gente precisava conquistar isso, precisávamos batalhar. E foi se somando na escola a partir dessa educação familiar, foi se consolidando. Veio também a questão sindical, que a gente participou na Bahia da APLB, Associação de Professores Licenciados da Bahia, e também fez com que a gente começasse a abrir um pouco mais a mente, depois que eu cheguei aqui no Maranhão. Aqui no município tinha uma Associação dos Servidores Públicos Municipais e naquele momento que eu chegava muita gente dizia: "Rapazes, nós precisamos resgatar a credibilidade da Associação e tal..." Eu ainda um pouco receoso para poder participar disso, com muita luta eu vi que realmente precisava, é um chamamento das pessoas que me conheciam para estar à frente desta Associação. Eu me candidatei e nós conseguimos ganhar as eleições, de imediato também eu percebi que o poder público municipal podia ali passar a perna na gente, então a gente fez uma articulação e transformamos a associação em um sindicato que é o (Sintracema?) hoje, Sindicato dos Trabalhadores do Serviço Público Municipal e conseguimos vários avanço no município. Depois queriam que eu permanecesse no processo de reeleição e que eu entendia que precisava do espaço para outras pessoas que também viam a parte da luta. Foi quando eu me afastei e veio nova diretoria e, assim que eu saí do sindicato, eu comecei a desenvolver um trabalho voluntário aqui no Centro de Defesa, mais ou menos de 99 até 2005. Em meados de 2005, eu fiquei a desenvolver esse trabalho voluntário aqui no Centro, foi quando a Carmen me fez um convite para eu coordenar um projeto, que é esse projeto de criação dos novos Centros de Defesa, que eu achei que seria uma forma também de contribuir e fiquei. Eu sou um servidor público efetivo no estado do Tocantins, na área de educação e estou licenciado, então a minha licença termina este ano. No ano que vem eu preciso retornar para o estado de Tocantins e estou no impasse sem retorno, se continuo aqui no Centro de Defesa, mas enfim, essa foi um pouco da nossa luta.

P1 – Então, Miltinho, como a gente estava conversando, eu queria que você contasse um pouco, só voltando um pouquinho, quando foi que você saiu da Floresta Azul? Como é que você chegou em Açailândia...

R – Eu saí de Floresta Azul em julho de 2002, foi julho. Não, minto, foi em julho de 92, foi em julho de 92. Saí de lá porque quase não tinha mais espaço para gente de trabalho e foi quando um amigo meu, por nome Chico, ele é cearense, por sinal índio também, estava vindo para cá, para o Maranhão. E ele me fez o convite. Ele mexe com essa parte de novelaria, essa coisa toda. Ele estava vindo para cá para Açailândia montar umas máquinas de novelaria e, como ele via que eu fazia algum trabalho artesanal, entalhe de madeira, eu já fazia um trabalho nesse sentido. "Não, rapaz, você vai comigo e lá você pode fazer algum trabalho nesse aspecto." Então, como não tinha outra alternativa, então eu vim com ele. A gente veio com o propósito de passar seis meses aqui e depois retornar à Bahia. Então passamos oito meses, voltamos à Bahia, passamos mais dois meses na Bahia e finalmente voltamos para cá. E, quando voltamos para cá, de imediato teve o concurso público do município aqui. Eu fiz o concurso, fui aprovado, depois veio o vestibular, fiz, passei e a gente foi criando raízes aqui que de lá para cá. Eu passei praticamente um ano com ele fazendo alguns trabalhos na área de novelaria. Foi um período que não tinha contato nenhum com esse ofício, mas acabei aprendendo a fazer porta, cama, mesa. Aprendi um monte de coisa nesse período, que me ajudou muito na minha experiência de vida, e depois eu entrei na educação e continuei trabalhando na educação. Em 2002, eu fiz o concurso do estado do Tocantins e fui aprovado só que na localidade que tinha feito, fica em torno de quase 500 quilômetros daqui, então eu passei um ano, indo e voltando. Ia na segunda–feira, e quando era na sexta–feira retornava para cá para Açailândia. Depois eu pedi, consegui uma transferência, fiquei no lugar mais próximo daqui e fiquei até 2005. E em 2005 foi quando teve essa proposta do Centro de Defesa e eu entrei com licença, fui licenciado e a licença finda esse ano.

P1 – Como é que você conheceu o Centro de Defesa?

R – Quando eu estava à frente do (Sintracema?), do Sindicato dos Trabalhadores no Serviço Público Municipal, então muitas das atividades que a gente desenvolvia lá, o Centro de Defesa era uma referência para consulta, para apoio nas épocas de mobilização. A gente sempre contava com apoio do Centro de Defesa e essa relação acabou me aproximando do Centro de Defesa. Tanto foi que quando terminou meu mandato lá como presidente do Sintracema de imediato eu já engrenei como voluntário no Centro de Defesa. Basicamente, a minha relação com Centro de Defesa surgiu a partir das atividades que eram desenvolvidas pelo Sintracema e que eram apoiadas em sua grande maioria pelo Centro de Defesa.

P1 – O que você fazia como voluntário?

R – Como voluntário fazia um pouco do que eu faço hoje, me metia num monte, em tudo que aparecia: "Olha, precisa aqui..." Então eu estava sempre disponível para fazer. Às vezes as pessoas me perguntam: "O que você faz hoje aqui no Centro de Defesa?" Eu falo assim: “Rapaz, eu sou bicão, aparece uma coisa, eu vejo seu tenho condição de ajudar”. Eu me meto e ali tento ajudar da melhor forma possível, porque então a gente faz um pouco dessa atividade, apesar de que a minha função era bem específica, mas dada às demandas, os problemas que chego no Centro de Defesa não tem como você atuar de maneira específica, você tem que se regular e procurar ajudar na medida do possível.

P2 – Qual é a área que você atua mais, que você gosta de atuar mais?

R – Rapaz, na área que está relacionada com a educação, mas também muito pela questão da formação e também porque a gente tem lido muito na educação e isso fez com que a gente despertasse essa atividade que a gente desenvolve, e que está muito vinculada à educação. A gente tem descoberto que a questão do trabalho escravo tem uma relação direta com essa questão educacional, porque os dados que a gente tem recolhido aí, as informações que a gente tem levantado e que são geradas a partir daí da assessoria jurídica, quando recebe as denúncias, quando a gente lança mão dessas informações, a gente percebe que mais de oitenta porcento dos trabalhadores envolvidos no trabalho escravo ou são analfabetos ou são semi–analfabetos. Ou seja, são analfabetos funcionais. Fizeram basicamente a primeira, segunda, terceira série do ensino fundamental e pararam aí. Muitos pararam há dez, 20, 30 anos e não ingressaram na escola. Portanto não sabem ler, não sabem escrever, então essa carência de educação faz com que eles acabem, já que eles foram expulsos do campo pelo latifúndio, procurando, ou sendo empurrados para a cidade e eles não tiveram condições de se adaptarem ao modo de viver, do mundo urbano. E então, lógico, os gestores públicos acabaram empurrando eles para a periferia e não restou outra alternativa senão eles serem presas fáceis para se enveredar no mundo do trabalho escravo.

P1 – A educação então seria uma ferramenta...

R – Ah, ela é fundamental, é peça fundamental para acabar com a questão do trabalho escravo. Lógico que não somente a questão educacional, tem que estar presente a questão educacional conjugada com a questão da geração de emprego e renda, a questão da moradia, a questão da saúde. Todas as políticas públicas postas aí no artigo da Constituição, todas elas juntas, com certeza é a saída para a questão do trabalho escravo, mas fundamentalmente a educação, porque muitos acabam indo, não conseguem ter um trabalho sequer informal porque não conseguem ler e não conseguem sair desse dilema.

P1 – Miltinho, como foi o seu primeiro contato com essa questão do trabalho escravo?

R – Olha bem, assim que eu vim aqui para o Centro de Defesa fazendo trabalho voluntário, eu não tinha uma atividade mais direta com esses trabalhadores. O Centro de Defesa sempre teve uma equipe mais afinada, inclusive mais atuante nessa área. Então me veio uma oportunidade, salvo engano em 97, me veio uma oportunidade da OIT, Organização Internacional do Trabalho, inclusive foi uma sugestão do Centro de Defesa, de ser contratado pela OIT para desenvolver um trabalho de pesquisa na região sobre o trabalho escravo. Então quando eu fui fazer esse trabalho de pesquisa, inclusive nas áreas de carvoaria, a gente saiu para fazer toda uma pesquisa. Na área de carvoaria, estivemos em vários órgãos, relacionados, em vários órgãos jurídicos, órgãos governamentais que têm relação direta com o trabalho escravo. Nesse período foi que eu tive condição de ver a dimensão do problema, então a partir daí eu comecei a me interessar um pouco mais em relação à questão do trabalho escravo. E com o passar do tempo, desses dois últimos anos também, eu me interessei um pouco mais, até de estudar a respeito, porque os dados que chegavam para a gente eram dados que a gente não tinha ainda. Nós tínhamos a informação para efetuar a denúncia, para dar um atendimento ao trabalhador. Nós não tínhamos ainda um elemento que nos dessem mais visibilidade. Supriu outras implicações do problema, então as últimas informações que nós pegamos agora, por exemplo, que têm muitos adolescentes, é interessante isso. A maioria é o pessoal que tem da etnia negra mesmo, também são pardos. Uma outra característica interessante é a que eu relatava anteriormente, de que muitos estudaram só a primeira, segunda, terceira série e acabaram desistindo. Passaram já tem vinte anos ou mais que desistiram de estudar e, portanto, não sabem ler nem escrever, são analfabetos funcionais e isso está (embraçando?). Nós estamos vivendo um momento de migração dos analfabetos para o novo tipo, que é o analfabeto funcional, mas que na realidade as características continuam as mesmas. Mudam nome mas a característica básica continua a mesma. E recentemente teve um fato que me chamou atenção para a questão do homossexualismo, gato com os trabalhadores escravos. Nós tivemos um outro dia um pouco dessa realidade. Alguns adolescentes que foram resgatados do trabalho escravo estiveram envolvidos sexualmente com gato que também não é um fato comum. Então à medida que a gente está analisando, se aprofundando um pouco nesses dados, a gente está encontrando alguns elementos novos, inclusive também a forma deles explorarem o trabalhador, de agredir. E a natureza, de infligirem as leis. A gente está vendo que, à medida que nós que combatemos o trabalho escravo vamos mudando a nossa dinâmica do nosso trabalho, os exploradores, quer dizer, as pessoas que se servem do trabalho escravo também vão modificando a lógica de explorar esse pessoal e isso é como se fosse a ponta do iceberg. Você chega aqui, pensa que pronto, já temos o domínio do problema e o problema é muito mais grave do que a gente imagina.

P1 – O Miltinho, fala um pouco do papel desse gato, aí...

R – Na realidade, o gato, o gato é uma forma do fazendeiro, do empregador tirar a sua responsabilidade das costas, vamos supor: no momento de fiscalização em que se atua e que se é caracterizado que houve a questão do trabalho escravo, da superexploração, do desrespeito à legislação trabalhista, o código civil e as outras legislações, então de imediato a primeira pessoa que figura é o gato. Esse gato é o mesmo elemento que sai nas cidades, principalmente nas cidades pobres, hoje eles já mudaram pouco essa lógica. Antes eles utilizavam a voz da cidade, as rádios comunitárias para divulgar: "Olha, nós queremos tantos trabalhadores para trabalhar não sei onde..." Então as cidades que têm IDH mais baixos são exatamente o alvo desses gatos. Eles chegam aí oferecendo empregos, bons salários, condições de trabalho decente, aquela coisa toda que o trabalhador que está frágil visa pelo desemprego e por todas as misérias sociais. Então se sujeita a ir, não sabe nem para onde vai esse gato. Paga as despesas de ônibus, às vezes pega esses trabalhadores para algumas pousadas que chamam de Hotéis Pioneiros e ali coloca prostituta à disposição desses trabalhadores, pagam cachaça e tudo mais. Então ali o trabalhador fantasiado com tudo aquilo é carregado para o meio do mato sem saber para onde vai, e quando ele se dá conta, ele está num lugar isolado de difícil acesso, mantido por homens armados, em geral, ou armas muito pesadas, armas que nem a própria polícia tem e devendo porque todas essas despesas da prostituta, da cachaça, da hospedagem, toda essa despesa é anotada numa caderneta e o trabalhador quando chega no final do mês, vai receber salário, que ele pensa que vai receber. Então o gato vira para ele e diz: "Não, você aqui está devendo, já apareceu caso de aparecer na caderneta até, eu não vou nem me expressar porque a expressão é realmente horrível, até a atividade que ele vai fazer com a prostituta lá está denominado na caderneta: "Olha, você deve aqui tantas, entendeu, e ali o trabalhador fica à mercê do fazendeiro e explorado até quando ele consegue fugir – em muitos casos ele consegue fugir. Na realidade, o gato é esse elemento que é utilizado pelo fazendeiro para que o fazendeiro no momento de chegar ao criminoso, então o criminoso não é o fazendeiro, que geralmente também aquela terra não está no nome do fazendeiro, que é uma terra grilada. Há toda uma estratégia montada para tirar a figura do fazendeiro ou do próprio empregador da culpabilidade pelo crime.

P1 – Esse conhecimento todo que você tem sobre o trabalhador escravo, você _____ por essa pesquisa que você fez? Como é que...

R – Rapaz, na realidade é assim: a gente convive direto com os trabalhadores. Todos os trabalhadores que chegam aqui que passam pelo trabalho escravo, eu faço um esforço tremendo para ter um momento com ele e eu pergunto, eu anoto, questiono com ele: “Quais são seus sonhos? O que você pensa? Tem família? Estudou, não estudou? Você acha que isso...” Então a gente vai tentando sugar dele todas as misérias dele para a gente tentar absorver toda essa miséria e a gente se colocar no lugar dele para ver até que ponto. Porque essas pessoas quando chegam aqui, em sua grande maioria muita gente diz: "Rapaz, ele está com baixa auto–estima..." Eu costumo dizer que não tem estima mais nenhuma, porque na realidade quando eles chegam aqui, eles estão desesperançosos, eles não sabem mais ao que se apegar e no Centro, quando eles chegam aqui, a gente percebe que há uma transformação. Quando eles passam um dia, dois dias, então a gente senta com eles ele na cozinha, toma café e trata ele assim com muito carinho. Ali ele se sente como se fosse casa e isso faz com que nós tenhamos mais acesso às informações, porque geralmente eles não se abrem para dar. Essa relação com eles é uma relação que nenhuma escola, que nenhuma universidade vai dar para ninguém, porque é um conhecimento onde o cara consegue colocar todas as misérias dele. Tem coisas que ele diz pra gente que às vezes nem vale a pena relatar porque são coisas que mostram o estado de fragilidade em que ele está. Você fala: “Rapaz, como que pode acontecer em pleno o século XXI a gente se deparar com situação desse tipo”. Então são coisas outras, são trabalhadores que são postos para conviver com porcos. Nós temos fotos que caracterizam isso. Que come e bebem aquilo o que os animais que comem. São trabalhadores que veem aí os cachorros do fazendeiro tomar leite e a criança dele não poder tomar leite, ele ter que andar oito, 12 quilômetros para buscar água e quando chegava a água é a própria água que o gado bebe. Então são coisas que na realidade faz com que a gente aprenda muito a valorizar a nossa condição social, nossa condição de vida. É um aprendizado sem tamanho.

P1 – Além de toda essa luta do trabalho escravo, que o Centro de Defesa tem, você falou que antes, além de ter todo um trabalho cultural, você tem outras áreas assim de atuação. Quais que são essas áreas?

R – Olha bem, o eixo central do trabalho do Centro de Defesa é o trabalho escravo. Ah, se vai desenvolver um trabalho teatral, se vai desenvolver um trabalho de dança, de capoeira, no meio ali está o trabalho escravo. A gente busca relacionar todas essas atividades diretamente à questão do trabalho escravo. Ela está o tempo todo o impregnada na nossa vida. A questão do trabalho escravo a gente está discutindo, está debatendo, está disseminando todo o conhecimento possível para que outras pessoas também possam nos ajudar nessa empreitada. Então, nós temos agora mesmo, nós criamos, do início deste ano para cá, nós criamos e estamos aí desenvolvendo um projeto que é chamado Proalfa. Esse programa, Proalfa, ele surgiu no momento em que os programas oficiais de educação de jovens e adultos, teve o Brasil Alfabetizado, A EJA e tal, elas não têm os instrumentos necessários para trabalhar, fazer um trabalho específico com esse trabalhador, que é o trabalhador envolvido na questão do trabalho escravo, então a gente está desenvolvendo essa experiência, tentando moldar uma educação de jovens e adultos para esse perfil, porque nós fizemos uma pesquisa e nós identificamos que a maioria dos trabalhadores que foram resgatados do trabalho escravo, eles permaneceram na cidade mas não foram mais para escola. Alguns deles até se matricularam, ele ou a esposa, só que não foram na escola porque na escola eles não podiam levar os filhos, eles não foram na escola porque ele está envolvido num trabalho, numa outra atividade, seja, carvoaria, seja lá no que for que vai aí passar durante o dia e depois retorna. Então ele já está o dia todo trabalhando, à noite está estafado, ele não tem condição de seguir o mesmo horário, horário regular que seria das 19h15 até as 22h30 ou 22h45. Ele não pode aguentava uma jornada de atividade dessa. Um outro aspecto também é que eles não tinham um trabalho mais voltado pra ele. O professor não tinha aquela atenção mais personalizada, então a gente foi fazendo uma pesquisa identificando aqueles alunos que se evadiam. A gente perguntava: “Mas por que você se evadiu? Mas o que tu achas que deveria mudar para que você retornasse à escola?” Então com base nisso nós fomos juntando alguns elementos e criamos esse programa que é o Proalfa, que nós chamamos de Programa Alternativo de Alfabetização Popular de Jovens e Adultos. Então a ideia nossa de tentar estar ao longo desse ano foi matando essa proposta, proposta pedagógica nova, inclusive com toda fundamentação em cima das ideias de Paulo Freire, pegando alguns elementos do Programa Assim eu Posso, um programa que está sendo desenvolvido em Cuba e que no ano passado alfabetizou mais de um milhão de pessoas na Venezuela. Então a gente está juntando um emaranhado de experiências e valorizando esses elementos que esse trabalhador nos deu, que é a questão de que hoje eles já podem levar os filhos deles para escola. Então nós temos um grupo de voluntários que cuidam dessas crianças, enquanto as crianças dele estão envolvidas ali em alguma atividade voluntária. Então os pais estão estudando e isso dá mais segurança para que os pais possam permanecer na escola. A merenda também que a gente oferece para eles é uma merenda produzida por alguns voluntários e geralmente ali é um suco natural. Eles gostam muito de caldo de carne, então a gente oferece esse caldo de carne e todo esse diferencial que a gente está tentando fazer com as experiências aí, em final de dezembro, a ideia nossa é a gente formatar tudo isso numa proposta. Sentar com o Governo em nível estadual e, se possível até federal, e dizer: “Olha, vocês querem resolver o problema da educação de jovens e adultos com esse perfil de trabalhadores escravos? Se querem, está aqui uma proposta que deu certo, que nós conseguimos fazer isso, isso e isso”. Então a ideia na acesso...

P2 – Miltinho, e a questão do conteúdo na sala de aula? Dentro dessa especificidade, desse pessoal _____ ______ _____ como fica esa questão ____ _____...

R – Olha bem, na realidade a LDB, a Lei 9394/96, ela, graças a Deus, deu condição para que nós pudéssemos fazer isso. Nós estamos fazendo hoje, então esse trabalho é um trabalho que nós consideramos básico. Depois, ele tendo esse trabalho básico, ele vai ter condição de acessar os programas oficiais de alfabetização, ele vai continuar na EJA, no

primeiro segmento, no segundo segmento com mais condição de aprendiz. Porque a grande maioria seguinte: apareceu esse elemento dentro da pesquisa que nós fizemos, as pessoas entram, por exemplo, no Brasil Alfabetizados e no espaço de oito meses esses alunos são empurrados para a EJA. Então, quando ele vai para a EJA, ele vai em um nível de conhecimento baixíssimo, ou seja, de igual ou pior do que ele entrou. Pior eu digo porque ele está frustrado, porque ele pensava que naquele espaço de tempo, ele ia avançar e não avançou, ficando frustrado, achando que ele, porque é assim que ele se refere: "Não, eu sou burro, eu tenho problema na cabeça." É assim que ele se refere, porque naquele período de tempo ele não aprender. Então o que nós estamos fazendo? A ideia nossa é dar a base mínima para ele, para ele ingressar nos programas oficiais, porque se ele tem essa base, ele consegue conhecer o que é o alfabeto, ele consegue juntar as famílias silábicas, ele consegue construir minimamente um bilhete, ele tem condição de acessar a EJA com ganhos bastante significativos. Agora se ele vai para a EJA tal qual ele saiu do Brasil Alfabetizados, ele vai ser um sujeito que quando estiver no final do segundo segmento, vai estar pior do que ele entrou e ele vai abandonar a escola para não regressar mais. E isso é muito pior.

P1 – Eu queria perguntar também, que você falou que trabalha agora nessa formação de novos Centros de Defesas...

R – Sim.

P1 – Conta um pouco para a gente disso...

R – Olha, em 2005, desde 2004 por aí o Centro de Defesa tem percebido que as demandas, que os problemas de várias localidades do estado, inclusive algumas vindo do Pará não estavam chegando ao Centro de Defesa e tem gente suficiente para atender essas demandas. Estava muito sobrecarregando o Centro de Defesa. Então surgiu a ideia de criar novos Centros de Defesa e foi quando o Centro de Defesa fez um projeto que apresentou para (Miseiun?). (Miseriun?) na verdade é uma instituição da igreja católica na Alemanha, então (Miseriun?) acabou financiando os projetos, porque esse projeto é um em que nós selecionamos três municípios em nível aqui, primeiro: Bom Jesus da Selva, está a cem quilômetros daqui. Nós selecionamos Bom Jesus da Selva, Santa Luzia do Tide que fica em torno de 200 quilômetros daqui, o terceiro município ficou ainda por decidir. Mais depois nós chegamos avaliando que a Vila (Oremar?), onde vocês verão a questão do núcleo lá da Codigno, com os núcleos produtivos da Condigno, estão lá praticamente uma cidade, 33 mil habitantes e os produtos lá também estão aumentando. Então a gente resolveu eliminar esse terceiro município e construir esse Centro de Defesa lá na Vila (Oremar?). Esse Centro de Defesa da cidade é um trabalho que a gente vai, tem uma equipe daqui do Centro de Defesa que coordena isso, no caso eu eu Wagner. A gente vai até o município, lá no município faz uma pesquisa, em quatro pontos do município – geralmente na periferia. Essa pesquisa é aplicada primeiro nas instituições, nós vamos até a polícia militar, civil, às secretarias municipais, à prefeitura, em todos os órgãos que têm lá no município, inclusive também nas entidades, associações, sindicatos, igrejas, fazemos uma pesquisa relacionada à violação dos direitos humanos e depois a gente pega e faz uma provocação à comunidade: “Olha, o município de vocês está cheio de problemas com a violação dos direitos humanos. Vocês vão ficar de braços cruzados? Não vão fazer nada? Se querem fazer, nós podemos fazer um ensaio, vamos fazer uma pesquisa, vamos...” E a gente junta um grupo, nós orientamos esse grupo a como fazer essa pesquisa. Dividimos e aplicamos a pesquisa em quatro pontos do município, juntamos essas informações, tabulamos essas informações e ficam identificadas quais são as grandes violações. E essas informações são cruzadas com as informações que nós coletamos juntos às instituições e às entidades. Feito isso, nós fazemos a segunda provocação a esse grupo. Certo, a partir desses dados, E e aquele grupo que decide participar a gente faz um calendário e essas atividades ocorrem durante todo o ano, durante todo um ano, ou melhor, dez meses. Então em todos meses, eles têm um trabalho que nós chamamos de informação, seminário e palestra. Os encontros de informação são feitos por nós mesmos daqui do Centro de Defesa, porque se o problema que apareceu mais forte lá é violação aos direitos da criança e do adolescente, então nós vamos fazer um trabalho mais focado sobre os direitos da criança e do adolescente, o Estatuto da Criança e do Adolescente. Então a gente faz um trabalho de formação, que ensina a eles os instrumentos legais que a comunidade pode disponibilizar com bases na lei e aquelas partes mais específicas. A gente geralmente contrata um especialista para fazer esse trabalho com aquela comunidade e isso é feito ao longo do ano e, à medida que ela vai acontecendo, nós vamos levantando mais informações sobre violações no município porque elas vão brotando a a partir dos seminários, na medida que vai fazendo aquelas discussões temáticas, as mobilizações. Ela vai brotando e a gente vai levantando esses dados e ao final de dez meses a gente faz a chamada primeira Jornada da Cidadania, que é o momento em que todas as informações que foram coletadas fazem parte de um dossiê com fotos, com depoimentos, com relatos,

com tudo. E nós mobilizamos as comunidades, as autoridades locais, regionais e estaduais que têm relações diretas com aqueles problemas. Fazemos uma provocação e a comunidade que vai pressionar essas autoridades a tomar medida de enfrentamento a esses problemas. Depois disso se tira alguns encaminhamentos e se esse grupo que foi formado ao longo desses dez meses, que participou da Jornada de Cidadania, entender que eles têm

condições de criar um Centro de Defesa, a gente fornece as condições e eles se tornam autônomos. A gente fica fazendo apenas aquele monitoramento na medida em que aparece um problema que eles não sabem resolver. Ligam para cá. A gente corre até lá e ajuda eles a caminhar para que eles possam caminhar com as próprias pernas. No ano passado nós conseguimos criar o de Bom Jesus da Selva, já está em funcionamento. O grupo já está fazendo algumas atividades. Neste ano nós terminamos no dia 21 agora passado, nós realizamos a Jornada da Cidadania em Santa Luzia, o grupo de lá vai fazer uma reunião interna lá entre eles para decidir se vão criar ou não o Centro de Defesa, porque se eles entenderem que pode ser criado então aí a gente oferece as condições. É...

P1 – Você acompanhou o Centro de Defesa já faz um tempo e como você avalia todo esse aumento de público, esse aumento de projeto, direcionamento...

R – Olha, às vezes a gente comenta aqui entre a gente que o Centro de Defesa tomou proporções que nós não imaginávamos que ia chegar ao ponto que chegou. Imagine uma entidade que consegue desenvolver atividades culturais com mais de seiscentas crianças e adolescentes. Isso aí, somando–se família e tal e verificando locais de atuação, é um instrumento político fantástico e, à medida que vai passando as demandas, vão aumentando. E por isso mesmo que a gente está fazendo um esforço danado para criar esses novos Centros de Defesa para que eles possam compartilhar essa responsabilidade com a gente, porque o risco é grande – e a gente não pode perder esse foco. E que o Centro de Defesa possa se enveredar em outras atividades e perder o foco central que o combate o trabalho escravo. Então esse é o entendimento do Centro de Defesa enquanto coletivo, é de que a gente precisa reduzir o muro de atividades, continuar na mesma caminhada que foi iniciada há dez anos, porque assim a gente continua, porque às vezes as atividades que a gente desenvolve, se a gente não tiver cuidado, a gente acaba passando a fazer o papel do poder público que esse não é o nosso papel. O nosso papel é, por exemplo, com esse programa Proalfa, dizer que pode funcionar, mas quem tem que fazer são eles, não a gente. Então a gente tem que fazer esta intervenção e esse é o papel do Centro de Defesa, fazer as intervenções e exigir que o poder público assuma sua responsabilidade de fazer, e não a gente assumir, tanto é que a gente está numa empreitada imensa, que é a questão de criar um Centro cultural, porque a gente não se dá conta dos espaços que temos são muito pequenos para poder comportar tanta gente. E é lógico, a prefeitura através daí, tem outros setores tranquilamente com condição de fazer. É uma pena a gente produzir tanta cultura, principalmente a questão teatral que nós temos aqui, rodamos o país o ano passado com uma peça teatral com o espetáculo (Josimos?) e a gente não ter um espaço, um teatro para que isso seja desenvolvido, para que essa turma que tem cinco, seis, oito anos trabalhando aqui no Centro de Defesa possaa expandir seus conhecimentos e atingir outros universos. Então é lamentável tudo isso, mas nós estamos nessa empreitada e não vamos parar, no ano passado já começamos a discussão, inclusive tiveram até alguns deputados federais de São Paulo, lá da terra de vocês, contribuindo. Mas infelizmente nós não tivemos aquele compromisso de precisar do poder público municipal daqui, perdemos recursos, tinha emenda parlamentar no ano passado em função de que a prefeitura não conseguiu liberar um terreno para que fosse construído um centro cultural, então este é o país, o Estado em que vivemos. Estado em que cultura é tratada como qualquer coisa. Enquanto isso, a gente vê a questão dos jovens, o acesso dos jovens envolvidos em droga e com drogas aqui em Açailândia é altíssimo, a questão da prostituição e da exploração sexual infantil também é absurda porque a própria localização geográfica de Açailândia favorece tudo isso. Ou seja, enquanto os espaços ideais de lazer e de cultura que poderiam estar sendo criados para tentar minimizar esses problemas não são feitos porque falta interesse, falta compromisso social das autoridades políticas.

P1 – O que você espera do futuro do Centro de Juventude da Vila, para você?

R – Rapaz, hoje a realidade do Centro de Defesa (risos), a gente não costuma muito pensar no futuro. Costuma é geralmente dar conta das demandas que tem o Centro também é fruto do executar e perceber essas dinâmicas que vão exigindo cada vez mais de nós que trabalhamos aqui no Centro de Defesa. E a gente tem também sistematizado muita coisa que não tínhamos antes. Os trabalhos que realizamos aí hoje estão nesse processo de sistematização de forma que vão sair algumas publicações para que outras pessoas de posse dessas publicações possam também estar ampliando esse trabalho, mas o futuro, como diz o ditado, a deus pertence. E a gente cabe a atender essas demandas mais emergenciais de trabalhar nessa perspectiva de que o trabalho escravo realmente seja abolido de uma vez por todas já que envergonha todo mundo.

P1 – E a sua família, qual é a receptividade dela com relação a você estar trabalhando com essa luta...

R – Olha bem, é meio complicado. Hoje já não é tanto, até também porque eu acho que, à medida que você vai envolvendo, sua família também acaba, por si só, se envolvendo, percebendo o valor, o valor que se tem de seu trabalho. Então geralmente, como é um trabalho de enfrentamento direto, a família pensa logo nos riscos das ameaças, porque pode acontecer isso, pode acontecer aquilo e tal...

P1 – Você estava falando sobre sua família...

R – Isso, é como eu dizia: geralmente o que a família mais teme são as ameaças, a possibilidade de acontecer alguma coisa um pouco mais grave. Só que com o passar do tempo também vai percebendo que as coisas vão mudando. Essa nossa região aqui, apesar do que acontece com o trabalho escravo, nós temos uma região muito menos tensa do que no Pará. Então as pessoas mais focadas aqui, no período que se iniciou todo esse trabalho, na realidade estava focada mais em Carmem, então uma vez ou outra passava carro, era mais também para intimidar e quando viram que nós não iríamos recuar, automaticamente também isso mudou. Então havia também muitos conflitos com a diretoria, com pessoal das siderúrgicas, porque essa relação também foi mudada e hoje o pessoal das siderúrgicas entram aqui, tomam um café, conversam, já até financiaram alguns projetos do Centro de Defesa até porque o nosso trabalho tem demonstrado para eles de forma bastante prática de que, à medida que eles melhoram as condições de trabalho, também melhoram a qualidade do produto deles. É uma extrema burrice o empregador hoje explorar a mão–de–obra, tratar o próprio empregado como se fosse um animal, um objeto e depois querer ter um produto de qualidade. Algumas empresas têm aprendido isto, as relações do Centro de Defesa com esse pessoal também tem melhorado. É lógico que, em meio a todo esse pessoal, tem um caso outro, um caso esporádico que isso é comum, isso é

natural, mas a família sempre fica receosa, e a gente também por outro lado tem determinadas cautelas, a gente não pode estar ficando à exposição como qualquer outra pessoa, que nem podemos estar numa mesa de bar de qualquer forma como qualquer outra pessoa. Então são cuidados que a gente precisa ter, e isso é natural e o trabalho continua.

P2 – Você falou ___ ____ a questão do trabalho escravo é _____ em sala de aula e é uma questão que vocês conversam informalmente no café. Como é conversar sobre isso, uma conversa tão delicada por quem passou por essa situação?

R – Olha, é. Eu costumo dizer que a gente tem que perder o jeito técnico para lidar com as pessoas e nós temos uma maneira muito familiar para lidar com as pessoas. Por exemplo, quando chegam trabalhador que eu não conheço, tipo chegou um grupo de trabalhadores, eu vou lá no meio deles e pergunto: “E aí, vocês são de onde? E aí, tal etc, já tomaram café, não tomaram? Ah, vamos à cozinha tomar um café”. Então eles vêm, tomam café e ali a gente senta com eles e ali eles contam histórias e a gente conta outra que naturalmente o progresso vai fluindo. E no meio dessa conversa a gente também vai aproveitando para poder realmente chegar a outras situações que às vezes não se apresenta com muita naturalidade e que ele também é receoso, e que requer da gente um certo cuidado até porque como eles estão muito fragilizados, qualquer coisa que eles coloquem podem expô–los, e é isso que cria um certo constrangimento e nessa dinâmica que a gente se relaciona com ele. Eles na realidade percebem que não é aquela coisa que é criada para tirar proveito dele porque a gente não tem necessidade nenhuma de tirar proveito dela, aquele ciclo em casa, a gente tem algumas regrinhas básicas. Eles pegam isso com muita facilidade, porque se ele tomou café e utiliza o copo, o copo está sujo, então a gente sempre fala: “Olha, tem que lavar o copo, aqui sujou, limpou”. E à medida que ele vai se envolvendo com isso, ele também vai automaticamente se naturalizando, porque a nossa relação geralmente é de tentar usar da maior naturalidade possível para que eles se sintam muito à vontade e à medida do possível a gente vai também colhendo essas informações.


P1 – _______ a gente foi conversando, dando essa volta no tempo desde sua infância, eu queria saber o que você achou dessa experiência de estar contando para o Museu da Pessoa...

R – Olha, eu acredito sempre que esse trabalho de resgate da memória, não só do Museu, mas é permanentemente nós enquanto pessoas, enquanto seres humanos precisamos estar resgatando essa memória nossa, porque eu acho que o combustível que nós precisamos para continuar na luta é estar fazendo esse resgate de memórias. Eu costumo estar sempre lembrando dos tempos que a gente batalhou lá na Bahia junto ao Centro Cívico, me lembro da Pastoral, dos trabalhos comunitários, das ações comunitárias que a gente desenvolvia, de modo que esses resgates vez ou outra eu me encontro fazendo. E na realidade a gente encontra razão para continuar na luta. Eu acho que esse trabalho que vocês fazem é um trabalho necessário, é um trabalho importantíssimo porque infelizmente nem todo mundo tem acesso a essas informações e todos os meios que a gente puder propagar essas informações para essa luta que o combate ao trabalho escravo é extremamente significativo, espero que em cada um de vocês, não só aí no material de vídeo, mas também no boca a boca também contenha essa nossa história, falem da realidade dos trabalhadores daqui. Vai ser muito interessante se você estiver em um contato com algum desses trabalhadores, eu espero que vocês usufruam desse momento. Vai ser assim uma experiência de vida fantástica para vocês e que continuem fazendo esse trabalho em outros lugares, não só na questão do trabalho escravo, existem outras realidades também a serem desveladas

e postas para que o poder público, para que a sociedade perceba não só o Centro de Defesa, mas que todo mundo precisa dar as mãos e fazer esse trabalho valer.

P1 – Eu queria agradecer pelo Museu da Pessoa, dando votos já para a continuidade eterna do Centro de Defesa e obrigada.

R – Só o Centro de Defesa que agradece, vocês já conhecem qual é o caminho, quando quiserem vir aqui não só para trabalhar (risos), mas para acompanhar a gente que vier, e desfrutar o que a gente tem desfrutado aí. O Centro de Defesa permanece o tempo todo aí de portas abertas.

P2 – Obrigada.