Museu da Pessoa

Por uma moradia digna para todos

autoria: Museu da Pessoa personagem: Gerôncio Henrique Neto

Projeto Ponto de Cultura
Depoimento de Gerôncio Henrique Neto
Entrevistado por Eduardo Barros e Isabela de Arruda
São Paulo, 15/03/2010
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista número: PC_MA_HV253
Revisado por Natália Ártico Tozo

P/1 – Gerôncio, a gente começa as nossas entrevistas aqui no Museu da Pessoa sempre pedindo para o entrevistado dizer o nome completo, o local e a data de nascimento.

R – Meu nome é Gerôncio Henrique Neto, a data de nascimento é dia 8 de maio de 1942.

P/1 – E o senhor nasceu onde?

R – Nasci no estado de Alagoas num sítio na cidade Santana do Ipanema.

P/1 – E os nomes dos seus pais?

R – O meu pai é José Henrique Filho e Maria da Conceição Filha.

P/1 – O senhor tem irmãos?

R – Eu tenho sete irmãos, morreu um e eu tenho seis irmãos, eu e mais cinco irmãos.

P/1 – E o que seus pais faziam, Gerôncio?

R – O meu pai trabalhava na roça, faleceu em 1998. Minha mãe continua morando lá, não mais no sítio, está morando na cidade, ela tem o sítio, mas mora na cidade, inclusive ela agora passou quarenta dias comigo aqui em São Paulo; agora dia 16 de maio ela vai fazer 85 anos. Tenho três irmãos lá... Tem dois em Maceió e outro em Santana, e aqui tenho mais dois irmãos também, duas irmãs que moram aqui em São Paulo.

P/1 – Você sabe como seus pais se conheceram?

R – Meus pais se conheceram porque lá era tudo família, os meus bisavôs são irmãos, são dois irmãos, então casaram primo com primo... Então era da mesma família que casaram, não foi com outra família diferente, era conhecimento de localização, morando todos no mesmo local e todos da mesma família.

P/1 – E qual é a sua posição entre os irmãos? Você é mais velho, mais novo, do meio?

R – Minha mãe teve 22 filhos, uns nasceram fora do tempo... Mas vivas nasceram doze crianças e se criaram sete; dos sete que se criaram, no dia 11 de novembro de 2007 morreu o meu irmão, com quase dois anos de idade de diferença.

P/1 – Mas dos sete que sobreviveram você é o...

R – Eu sou o mais velho.

P/1 – Como era a sua infância lá em Alagoas nesse sítio?

R – A minha infância lá naquele tempo eu achava que era boa, porque graças a Deus meu pai era uma pessoa bem sucedida, nunca passou fome com a família... Na medida do possível, a gente tinha de tudo; não tinha rádio, televisão nem jornal, mas a gente tinha uma infância muito boa, trabalhando na roça, brincando com os parentes, com as outras crianças, era todos primos. Eram todos juntos, uma turma de primos e a gente brincava as brincadeiras de criança. Depois de certa idade, quinze, dezesseis anos, a gente tinha as festinhas, tinha as danças, os bailes, pra gente dançar e namorar, tinha namoro.

P/1 – Mas vamos voltar um pouquinho ainda na infância. Como eram as brincadeiras lá em Alagoas nessa época com a turma? Com os primos, os irmãos, do que vocês brincavam?

R – As brincadeiras da gente lá eram brincar de esconde-esconde, passa-anel, jogar casca de laranja na telha pra ver com quem casava... Era uma brincadeira que a gente fazia.

P/1 – Como é essa história de jogar casca de laranja na telha? Explica pra mim?

R – As casas eram de taipa e tinham os caibros, você descascava aquela laranja, jogava e falava: “Eu vou casar com aquela pessoa”. Jogava a casca da laranja, se pegasse, era com quem ia casar, era aquela brincadeira. E outras brincadeiras que a gente tinha também era jogar bola, a gente tinha o campinho de futebol pra jogar a bola. Correr montado em cavalo de pau... Eram essas coisas que a gente tinha.

P/1 – Gerôncio, descreve pra gente a casa onde você passou a sua infância, do jeito que você se lembra dela.

R – A casa onde eu passei a minha infância era uma casa boa, de alvenaria, bem arejada, com alpendre de luz dos lados. A casa tinha a sala, três quartos, uma cozinha, a sala de jantar. Só não tinha banheiro naquela época, mas era uma casa confortável.

P/1 – E era no sítio?

R – Era no sítio.

P/1 – E quando você chegava na porta da frente da sua casa, o que você olhava diante de você? Qual era a imagem que você tinha da paisagem?

R – Era muito gostosa a paisagem, você olhava a mata, via ao lado um pé de cajueiro, um pé de jaqueira, um pé de mangueira, um pé de coqueiro... A maior dificuldade que nós tínhamos naquela época era água, porque nós íamos buscar água nas costas, nos potes... Gastava uma hora e meia pra ir e voltar com aquela água. Não tinha energia e água era difícil, porque enchia os barreiros e em poucos dias secavam e você tinha que buscar na mina. Muitas vezes eu saí de casa três horas da manhã pra ir buscar água na mina, porque chegava lá, tinha que fazer fila pra pegar água, tinha que ficar esperando, porque não descia aquela água, você tinha que esperar, era uma mina com uns dez centímetros de água, mas era muita gente na fila pra pegar água. Ela vinha de dentro de umas pedras, aquela água é uma coisa muito bonita, a água mais limpa que a gente tomava era aquela, não é igual à de hoje. Para mim, aquela era uma água limpa, porque não é armazenada, vinha direto da fonte, de dento da pedra, armazenada só pra você encher os potes de água. Eu acho que era muito mais limpo do que hoje essa água.

P/1 – Gerôncio, como era passar uma noite lá no sítio sem eletricidade? Como eram suas noites lá?

R – A gente tinha esse candeeiro, era um pavio de algodão com querosene e iluminava. Cada local tinha um candeeiro daquele e iluminava normalmente.

P/1 – Mas o que vocês faziam à noite? Como era a noite lá com a família, com os irmãos?

R – À noite, quando eram oito horas, estava todo mundo dormindo; seis horas, estava todo mundo de pé pra ir trabalhar.

P/1 – Você se lembra da sua relação com seus pais na sua infância? As conversas que vocês tinham? Como era seu pai e você na infância?

R – Meu pai, em matéria de criar os filhos, só pode ter igual a ele, melhor não pode ter existido, porque deu tudo quanto podia dar aos filhos. Um pouco carrasco também: brincou, a gente estava na cinta, não tinha jeito. Teve um dia, eu briguei com um primo meu e joguei uma pedra nele, na canela dele, que sangrou bastante; em vez de ir pra casa do meu pai, eu fui pra casa do meu avô por parte de mãe, porque se chegasse em casa eu ia apanhar, ia levar uma surra. Aí fiquei dois dias na casa do meu avô. O outro meu avô, por parte de pai, todo dia eu passava na casa dele, todo dia a gente ia lá; fiquei um dia sem ir lá, ele sentiu falta e foi perguntar o que estava acontecendo comigo, aí meu pai falou: “Ah, está na casa do outro avô”; “Mas por quê?”; “Porque ele bateu no menino e não quer vir pra casa”. Aí eu estou lá, chegou o pai do meu pai e falou: “Vamos pra casa”. Pronto, aí acabou o medo, chegou em casa e falou: “Olha o menino aí”. Meu pai não falou mais nada. Era o respeito que a gente tinha com os pais, eu tinha respeito com meus pais e meus pais tinham respeito com o avô, com o pai dele. Hoje é um pouco diferente, hoje não tem aquele respeito que tinha naquela época. Meu pai, pra mim, foi um exemplo de pai, pra não deixar faltar nada para os filhos, muito trabalhador, muito lutador e pra mim foi um grande pai.

P/1 – Qual é a lembrança mais feliz que você tem dele?

R – A lembrança que eu mais tenho dele e a consideração que eu mais tive por ele foi quando eu estava com problema de saúde, quando eu fui operar aqui em São Paulo depois que eu vim aqui pra São Paulo fazer tratamento, porque lá eu andei por todos os lugares e não consegui tratamento, eu vim pra cá e ele não queria que eu viesse. Eu vendi tudo que eu tinha, os móveis de casa, tudo, pra vir pra São Paulo eu, a mulher e quatro filhos, eu já estava casado; antes, quando solteiro, eu estive aqui três anos e, dentro de três anos, eu não fui para lá, ele veio me buscar aqui em São Paulo. Aí eu fiquei em São Paulo, depois casei e dei esse problema de saúde. Quando eu vim pra cá, quando faltavam dois dias pra eu viajar pra São Paulo, ele chegou e falou – era o ano de 1971 e estava uma seca muito grande, a gente tinha mandioca em casa, mas não podia fazer a farinha, porque a mandioca virou uma bucha, de tão seca que estava. Então, o que a gente tinha em casa era feijão e milho. Antes, ele falou pra mim: “Meu filho, eu quero que você não vá pra São Paulo, vou pedir pra você não ir pra São Paulo, você já comprou a passagem? Perde a passagem, não tem problema, eu vou dar o dinheiro das passagens que você comprou e todos os móveis que você vendeu da sua casa, eu não quero que você receba nenhum de volta, eu compro todos pra você...”. Eu falei: “A crise está ruim, eu preciso me tratar, eu estou com quatro filhos, eu preciso trabalhar pra sustentar esses filhos”. Ele falou: “Meu filho, se você ficar aqui, se tiver dois anos de seca, nem eu e nem você com seus filhos passam fome.” Ele era muito prevenido, isso é mais um exemplo do pai que ele era e de tudo o mais. Eu não tenho nada pra falar que meu pai fez de errado contra mim e nem contra os outros irmãos.

P/1 – Gerôncio, ainda na sua infância em Alagoas, você disse que ajudava seus pais... Os irmãos ajudavam os pais lá na lavoura, certo? O que vocês plantavam?

R – A gente plantava milho, feijão, algodão, mamona... Era esse o plantio e no sítio também... Ninguém comprava café, porque no sítio também tinha pé de café e tinha mangueira, tinha jaqueira, tinha cajueiro, tinha cana, tinha coqueiro, tinha goiabeira, tinha pinha. Quer dizer, era um sítio que tinha de tudo quanto é fruta.

P/1 – Vocês criavam algum animal lá?

R – A gente criava um pouco de gado também, vaca, tinha uns cavalos bons pra ir pra feira. Dia de sábado tinha feira.

P/1 – Como eram essas feiras de sábado? Era lá em Santana?

R – Era. Lá tinha feira quarta e sábado, a gente ia dia de sábado pra feira.

P/1 – Como eram essas idas pra feira? Conta pra gente.

R – A gente saía de manhã... O meu pai, quando eram sete horas da manhã, ia pra feira, dez horas ele estava de volta e eu ia com meu primo e o pai dele, depois das dez é que nós íamos, a gente ficava na feira até... Voltava pra casa às cinco horas.

P/1 – Era a hora que vocês encontravam o povo? Como é que faziam negócio?

R – Não é tanto negócio lá, a gente ia comprar o que precisava pra casa. Meu pai comprava, eu não ia comprar nada na minha infância, mas a gente ficava conversando com os amigos na feira, a gente se encontrava, tinha os parentes. Lá em Santana é onde tem a maior feira do estado de Alagoas, só perde pra Arapiraca, e toda aquela vizinhança do município de Santana, todo mundo fazia feira ali, a gente tinha os parentes e o lugar mais de encontro... Tinha lá o lugar de encontro no armazém, era onde se encontrava o pessoal, dificilmente você saía de casa e ia pra casa deles. A gente se encontrava com os tios, com os primos... É um pouco mais fácil de encontrar com aquela família, os conhecidos.

P/1 – Gerôncio, e a escola? O senhor foi pra escola lá em Alagoas?

R – Fui.

P/1 – Como era isso? Qual foi a primeira escola que você foi lá?

R – Na primeira escola a minha professora chamava Marina, me ensinou até o segundo ano; no segundo ano eu já passei pra outra professora, que se chamava Maria do Socorro, que me ensinou o terceiro ano, e no quarto eu não tive oportunidade... Porque eu morava no sítio e tinha que vir pra cidade, eram nove quilômetros pra vir pra cidade todo dia e não deu pra fazer o quarto ano.

P/1 – Mas esses três primeiros anos eram lá no sítio? Tinha uma escola rural? Como era isso?

R – Escola rural.

P/1 – Tinha muita gente que estudava com o senhor lá?

R – Eram 45 crianças na sala.

P/1 – O que você se lembra de bom dessa época?

R – Essa época era boa, porque você ia pra escola às sete horas e quando era tarde ia pra roça; chegava, almoçava e ia pra roça trabalhar.

P/1 – Mas de manhã, lá na escola, o que tinha de bom?

R – Lá era só estudar, tinha dez minutos para o recreio, cada dia um ia buscar um pote de água no barreiro pra gente tomar a água. Era só isso, não tinha outro lazer.

P/1 – E a escola era pertinho do sítio?

R – Era no sítio mesmo.

P/1 – Era no próprio sítio. Como você ia pra escola?

R – A gente ia a pé, era um negócio de um quilômetro de distância só.

P/1 – Quando foi pra quarta série, não teve jeito de ir porque tinha que ser na cidade, aí o senhor só trabalhava nessa época?

R – Só trabalhava.

P/1 – E como é que foi ficar adolescente, jovem lá na cidade de Santana, lá no sítio em Alagoas? O que você se lembra da sua fase de adolescência?

R – Eu hoje, ainda tenho saudade da adolescência, daquela época, era uma adolescência muito mais sadia, muito melhor do que a de hoje, no meu entender. Eu não tinha mordomia, mas a gente tinha um amor uns com os outros. Tinha mais tios, sobrinhos, tinha uma harmonia mais chegada do que hoje. Hoje os próprios irmãos não têm aquela afinidade um com o outro, ele prefere mais brincar com o outro do que com o próprio irmão, inclusive eu tenho duas netas aqui que são assim: as duas brincando não se unem bem, brincando com outra pessoa são diferentes.

P/1 – Mas quando o senhor ficou adolescente, começou a ficar jovenzinho, as brincadeiras começam a mudar, como era esse dia-a-dia lá no sítio? As pessoas? As primeiras namoradas? O que vocês tinham pra fazer?

R – Sempre tinha festas; tinha festa de Santo Antônio, festa de Santa Luzia, festa de Nossa Senhora Santana, que eram nove noites de festa. E no sábado pra domingo tinha os bailes, sempre tinha uns bailinhos pra gente dançar.

P/1 – O senhor saía do sítio e ia pra Santana?

R – Não, era no sítio mesmo, tudo isso era no sítio.

P/1 – Essas festas todas aconteciam no sítio?

R – Eram muitas festas no sítio. No sítio tinha três ou quatro festas por ano e em Santana tinha festa, nove noites de festa no mês de julho, e a festa de Natal, dia de ano na cidade...

P/1 – Essas festas lá no sítio, descreve pra gente como era isso? Armava lá uma barraca?

R – As festas eram assim, você armava a barraca: “Você vai vender pão, você vai vender refrigerante, você vai vender coco, vai vender cocada”. Muitas coisas, todas as coisas, comida que você comia na festa. Cada um armava uma barraca pra vender e o pessoal comprava, soltando fogos, de manhã tinha missa, nós íamos à missa, era muito bonita a festa.

P/1 – Aí vinha o povo do sítio vizinho e das redondezas?

R – Vinha todo mundo para o sítio, de Santana ia a polícia pra garantir a festa, pra não ter problema tinha polícia na festa, era muito organizado.

P/1 – E a música da festa como que era?

R – E tinha música, naquela época era aquele disco na manivela assim, não era igual hoje.

P/1 – E não tinha um sanfoneiro? Um povo que ia lá tocar também? Como era isso?

R – Tinha o zabumbeiro tocando com a zabumba, com os pifes... Sanfoneiro era na festa de dança, mas na festa de Santo não tinha sanfoneiro, tinha aquela zabumba com os tocadores de pifes.

P/1 – Agora e essa outra festa? Nove noites de festa que tinha lá em Santana? Era São João?

R – Não, é a padroeira da cidade, Nossa Senhora de Santana.

P/1 – Como era essa festa? Essa era grande, não?

R – Essa era todo dia. Tinha a roda gigante, tinha carrossel pra turma se divertir, tinha mais músicas, os discos...

P/1 – E as namoradas, como começou essa história?

R – As namoradas eu tinha muitas, eu só nunca gostava de namorar com primas, eu procurava sempre namorar pessoa que não fosse parente, a maioria era casada com primo... Minhas primas eu namorava muito pouco, eu procurava sempre de outra região mais distante pra namorar. Eu namorei com alguma prima também, mas foi muito pouco.

P/1 – E qual era a sua turma, seus amigos nessa época da juventude, de ir para as festas?

R – Eram meus primos mesmo, ali quase todos eram primos, então viviam todos juntos, sempre andavam juntos, três, quatro, eu ia pra festa eram três, quatro primos, as primas. Quando a gente ia para as festas ia todo mundo junto.

P/1 – Teve algum ano que teve uma festa especial que te marcou mais? Tem alguma história boa pra contar?

R – Não, pra mim a história boa, melhor que eu tive de festa, foi quando eu namorei com essa que eu casei.

P/1 – Conta pra gente então?

R – Eu tinha vindo pra São Paulo antes e tinha voltado fazia pouco tempo e fazia uns quatro anos mais ou menos que eu não via essas meninas, inclusive essas meninas eram irmãs... O pai dela era irmão do marido de uma tia minha que, quando eles casaram, eu é que levava os bilhetinhos deles de um para o outro. Quando eu cheguei lá, eu arrumei muitas namoradas em São Paulo, só que era assim: eu namorava com uma hoje e amanhã não queria mais, já era com outra. Então, era um namoro por farra. Essa, que eu casei com ela, estava na festa de Nossa Senhora de Santana, era o último dia de festa e ela estava lá, ela e a outra irmã, a irmã casada, e uns caras atrás de namorar com elas e elas não estavam querendo. Aí cheguei eu e um vizinho meu. Eu tinha outra namorada, só que a namorada não tinha vindo pra festa, aí quando foi uma base de meia-noite eu falei: “Agora eu vou arrumar uma pra amanhecer o dia namorando”. Aí eu falei: “Vou namorar com a filha de Virgílio”. Só que estavam duas irmãs e eu ia namorar uma, eu falei: “Eu vou namorar com Lindalva e você vai namorar com a Corália”. Quando chegamos lá, inverteu-se, eu namorei com a Corália e o outro com a Lindalva. Foi um namoro assim, por farra também. Esse foi um dia de sábado pra domingo, eu namorei com ela a noite toda; já tinha outro lá que ficou com raiva, porque eu fiquei namorando com ela. Quando foi no outro dia, eu fui pra minha casa, ela foi pra casa dela, e eu também esqueci, faz de conta que não aconteceu nada. Aí, quando foram oito dias depois morreu uma tia minha, perto da casa onde ele morava – ela morava um pouco distante, eu morava em Santana do Ipanema e ela morava no Poço das Trincheiras, na Serra do Poço, era outra cidade. Em um dia de chuva, numa noite de chuva, pra ir lá pro velório, meu pai foi, minha mãe foi, todo mundo foi e eu falei: “Eu não vou não”. Era pra subir uma serra. Chegou esse amigo meu, esse que tinha namorado com a outra, ele falou: “Vamos lá que as filhas de Virgílio estão lá”. Aí ele pegou a me animar e eu fui. Quando chegamos lá, os outros foram para o velório e nós fomos namorar, tinha sido a tia que tinha morrido, mas o jovem, a cabeça é... Fomos namorar e depois daquele dia não teve outro jeito, eu não esqueci mais dela. Eu tinha um bocado de namorada e acabei tudo, não quis mais nada com ninguém, fiquei namorando ela e ia uma vez por semana na casa dela. Daí a pouco, eu não aguentava ficar mais uma vez por semana, eram duas vezes e pra encurtar a história dentro de dez meses eu casei com ela. Dentro de dez meses eu pedi ela em casamento e casei e vivo com ela vai fazer 45 anos no dia 13 de junho [de 2010]. Para mim, foi a melhor coisa que veio pra mim, dos meus namoros, foi o melhor que teve.

P/1 – Você tinha quantos anos quando você a conheceu?

R – Eu estava com 23 anos.

P/1 – Nessa época o senhor ainda trabalhava com seu pai lá no sítio?

R – Eu trabalhava com meu pai.

P/1 – E como o senhor começou a ficar mais independente? O senhor já tinha o seu dinheiro? Como era a sua relação de trabalho ali? Você continuou trabalhando no sítio do pai?

R – Trabalhava eu, meu pai, minhas irmãs, todos juntos; eu casei e a gente continuava trabalhando junto.

P/1 – Mas aí o senhor foi morar em outra casa?

R – Em outra casa, eu fiz uma casa, construí a casa.

P/1 – Lá no próprio sítio?

R – No próprio sítio, bem perto da casa do meu pai.

P/1 – Agora me conta uma história, nessa época o senhor já tinha vindo e voltado de São Paulo, não é isso?

R – Já.

P/1 – Como foi essa história da sua primeira vinda pra São Paulo? Começo da década de 1960, é isso?

R – Em 1961 eu vim aqui pra São Paulo com aquela ilusão. Mas eu gastei onze dias pra chegar aqui em São Paulo.

P/1 – Quantos anos você tinha nessa época?

R – Dezenove anos.

P/1 – E de onde vem essa ideia? Alguém te contou, falou alguma coisa? Como é que foi isso?

R – Lá era assim: quando vinha uma pessoa pra São Paulo, a minha tia, uma das minhas tias que vieram pra São Paulo, ela gastou vinte dias pra chegar em São Paulo e quando ela voltou, quando só se via falar que virou caminhão, que caminhão tombou e matou gente, porque a estrada naquele tempo era ruim, não tinha estrada boa. E quando chegava lá todo mundo soltava fogos, era alegria... Quando soltava fogos à noite já sabia que chegou um paulista, uns pra vir trabalhar, de arrumar emprego, outros de ir pra roça que era mais facilidade e o cara vinha e quando chegava lá, chegava com um bom dinheiro sempre, sempre arrumava um dinheirinho. E eu vim assim... Não por precisão de ganhar dinheiro, eu vim pra conhecer São Paulo, eu queria conhecer São Paulo. Meu pai não queria deixar que eu viesse, minha mãe... Mas eu vim, eu fiquei três anos. Quando eu não voltei dentro de três anos, quando pensei que não, meu pai estava lá em casa, na porta.

P/1 – Descreve pra gente um pouquinho dessa viagem, como que foi?

R – Esses onze dias eu andei quilômetros e quilômetros a pé, porque vinha de pau-de-arara e o caminhão tinha que acorrentar as rodas com correntes pra poder passar no barro, não dá pra passar no barro com a gente em cima... As pessoas têm que descer, empurrar o caminhão em outro lugar pra poder chegar aqui, foi muito difícil. A gente dormia ao lado do rio e os pernilongos mordendo à noite, foi uma viagem muito difícil.

P/1 – De madrugada o caminhão parava pra vocês dormirem do lado de fora, era assim?

R – Lá pelas dez, onze horas, parava e a gente dormia no relento... Um dormia em cima do caminhão, o outro dormia lá, era uma viagem muito difícil.

P/1 – Teve algum problema mais sério durante a viagem ou correu tudo mais ou menos bem?

R – Não, correu tudo bem, a gente andava de uns quinze a vinte quilômetros a pé, porque não podia vir em cima do caminhão por causa do barro, a estrada era muito ruim. Já quando eu voltei, foi melhor.

P/1 – Chegando aqui, qual é a primeira imagem que o senhor tem de São Paulo na sua vida?

R – Quando eu cheguei aqui, eu gostei muito, eu achava que a minha vida lá era melhor do que aqui, a minha infância lá, o tipo de vida lá, eu achava que era muito melhor do que aqui. Depois de um ano, eu arrumei emprego, eu trabalhei três anos numa firma, arrumei emprego. Durante os três anos que eu fiquei aqui, eu ia visitar meus parentes que eu tinha no interior pra sair um pouco da rota aqui de São Paulo. E também aqui não era tão ruim, o tempo que eu passei aqui, mas eu achava que a vida lá no Norte, lá no sertão, era melhor do que aqui na cidade.

P/1 – Mas quando o senhor chegou, foi morar onde aqui em São Paulo?

R – Eu cheguei lá no Brooklin, a Rodovia Moreira, eu fiquei os três anos lá, mas ali era só brejo, lagoa, eu pesquei muito ali onde é aquela delegacia do Brooklin. Eu tomava banho ali, que era um açude, hoje é o bombeamento da Água Espraiada, perto da Globo; ali era um porto de areia, o que tinha de bom ali é que eram cinco campos de futebol na época, hoje só tem um. Naquela época já tinha cinco campos de futebol pra gente se distrair. Mas, mesmo assim, eu achei que lá no Norte era melhor do que aqui.

P/1 – Mas como o senhor foi parar lá no Brooklin? Tinha alguma indicação? O senhor conhecia alguém aqui?

R – Eu tinha um tio meu que morava lá, eu vim por causa de um tio meu, eu fiquei na casa dele, inclusive ele foi embora e eu fiquei.

P/1 – Como era essa casa que você morava lá?

R – A gente morava numa casa de madeira com um metro de altura, um assoalho, depois um metro pra cima, tinha uma casa na frente, de alvenaria, que ninguém podia morar nela, ficou lá abandonada e pra gente poder ter mais tranquilidade, tivemos que fazer um barraco atrás da casa, porque tinha um metro de água e tinha lá o Doutor Altemar, que tinha uma canoa que transportava as pessoas para o ponto do ônibus, porque não podia andar dentro de água.

P/1 – Ali tinha poucas casas então?

R – Tinha pouca casa.

P/1 – Urbanização nenhuma? Tudo de terra?

R – Tudo terra e enchente, era uma enchente em cima da outra. Em 1962, choveu quarenta dias sem parar e eu vinha pegar o ônibus mais ou menos uns seiscentos metros de distância de onde eu morava, com sapato na mão, pra vir calçar o sapato claro no ponto de ônibus, porque lá não dava pra calçar o sapato, entrava dentro da água, e saía dentro da água.

P/1 – Como foi o seu primeiro emprego aqui? Como é que você conseguiu esse emprego?

R – Naquela época, emprego era só você querer trabalhar, não exigia profissão, não exigia nada e aquela pessoa que vinha do Norte estava na fila, não achava nem um paulista, mas aquele do Norte, ele tinha mais facilidade, por causa do trabalho, são dispostos pra trabalhar. Você podia sair do emprego hoje e entrar em outro amanhã, não era igual hoje, todo lugar você via as placas. Hoje é mais difícil de arrumar emprego, naquele tempo era muito mais fácil, o salário era muito melhor. O salário daquela época era 942, equivalia hoje a uma base de... Pelo que eu fazia com aquele dinheiro, hoje você tinha que ganhar no mínimo três mil reais pra ter o poder aquisitivo que tinha com o salário daquela época.

P/1 – E qual era o emprego que o senhor conseguiu aqui?

R – Eu consegui emprego numa fábrica de ar condicionado.

P/1 – Que fábrica era essa?

R – SIDEC, uma fábrica holandesa.

P/1 – E era longe da sua casa?

R – Era um pouco longe, era lá no Socorro.

P/1 – Qual era o caminho que você fazia pra ir pra lá?

R – Eu andava quinze minutos a pé pra chegar em Santo Amaro e lá pegava o ônibus e descia perto da fábrica.

P/1 – Isso no comecinho da década de 1960?

R – Era 1961.

P/1 – Você já tinha visto televisão antes de vir pra cá?

R – Não, lá onde eu morava, era no Brooklin, quando cheguei aqui, só tinha próximo... Só tinha um alemão que tinha televisão, um casal alemão que tinha televisão e a outra televisão tinha num bar, perto da Igreja Coração de Jesus, lá da Vila Cordeiro.

P/1 – A Copa do Mundo de 1962... Pelo visto você gosta de futebol, né? Você já falou de campo de futebol várias vezes. Como vocês acompanharam a Copa de 1962?

R – No rádio.

P/1 – Você lembra bem disso?

R – Lembro, em 1962 o Silvio Luiz, o Pedro Luiz... O Pedro Luiz chorando na derrota do Brasil com a Espanha aos 28 minutos do segundo tempo, perdendo pra Espanha e o Amarildo conseguiu virar o jogo, ele estava substituindo o Pelé, que tinha se machucado, e dos 28 minutos do segundo tempo virou o jogo e ganhamos a Copa.

P/1 – Você lembra onde você estava na final? Onde você ouviu a final?

R – A final eu ouvi em casa, no rádio, eu pegava o trem... Eu trabalhava no Socorro, mas eu fiquei seis meses trabalhando na Rhodia, a fábrica de tecidos em Santo André, e eu saía de casa às cinco horas da manhã pra chegar a Santo André às sete horas pra entrar no serviço. Eu trabalhei seis meses e era nessa época de 1962, quando era na hora do jogo da seleção brasileira a fábrica parava, todo mundo parava pra assistir o jogo, mesmo dia de semana tinha que parar pra assistir o jogo, e a gente de radinho dentro do trem, a gente fazia os comentários dentro do trem.

P/1 – E nesses três anos que você passou em São Paulo, o tempo livre que você tinha que não devia ser muito, trabalhava muito, o que você fazia?

R – Tinha tempo, porque eu só trabalhava de segunda a sexta e no sábado e domingo você ficava... Domingo era o baile, era dançar, eu sempre gostei de dançar e sempre assisti ao futebol, cinema.

P/1 – Cinema? Você ia a qual cinema?

R – Ali no Anhangabaú , o Marabá.

P/1 – Ah, você saía lá do Brooklin e vinha aqui pro centro?

R – É. Naquela época passou “Lampião, o Rei do Cangaço”, andavam umas peruas anunciando com microfone em toda a cidade de São Paulo. Você ia lá e muitas vezes não conseguia entrar, lotava.

P/1 – E como era o centro de São Paulo nessa época, comecinho da década de 1960?

R – O centro de São Paulo daquela época era muito diferente de hoje, porque não tinha o que tem hoje, tinha ruas esburacadas, ali tinha o Viaduto do Chá, onde hoje é o túnel... Aí você ia e pegava o trem... Eu ia de ônibus, descia ali na Praça da Bandeira, naquela época era tudo Viaduto do Chá, e dali eu ia pra Estação da Luz, pegava o trem pra ir pra Santo André.

P/1 – Pra ir para o trabalho?

R – Pra ir para o trabalho.

P/1 – Pra ir para o trabalho você saía lá da zona Sul, ia para o centro, pra depois ir lá pra Santo André?

R – Pra Santo André.

P/1 – Mas e no final de semana, como era essa ida ao centro?

R – Eu pegava o ônibus e descia no Viaduto do Chá, a gente ia ao cinema; quando eram dez horas a gente vinha embora e voltava pra casa, porque era até dez horas, naquela época dez horas tinha pouco ônibus pra vir pra casa, o último ônibus era onze horas, por causa da faculdade. Dez horas, naquela época, gente menor não ficava na rua e as faculdades encerravam dez horas, o máximo era onze horas, se não você tinha que vir a pé e não tinha condições.

P/1 – O senhor ia com quem ao cinema?

R – Eu tinha um primo que sempre ia junto, a gente andava os dois juntos, a gente ia e voltava. Nós íamos assistir futebol juntos, eu sendo santista e ele sendo corintiano. Mas a gente ia juntos. Naquela época, pra assistir futebol era gostoso, hoje você não pode ver um santista e um são paulino junto.

P/1 – Mas o senhor ia ao estádio ver o jogo? Como é que era?

R – No Parque Antártica, no Parque São Jorge, naquela época não tinha o Morumbi ainda, o Pacaembu...

P/1 – O Pacaembu tinha?

R – Tinha, era o melhor... Ainda hoje, continua sendo o melhor estádio pra assistir futebol. Pra mim é o Pacaembu ainda.

P/1 – Você se lembra de um jogo especial?

R – Eu lembro, eu me lembro de Santos e Corinthians pela taça Brasil no Pacaembu. Faltando poucos minutos pra terminar o jogo, que estava zero a zero, os corintianos gritaram e xingaram o Pelé; aí ele enfureceu e, dentro de poucos minutos, ele marcou dois gols e ganhou o jogo.

P/1 – Que ano foi isso? Você lembra?

R – Foi em 1963.

P/1 – E esse primo seu, como chama?

R – Esse primo meu chamava Zequinha.

P/1 – E o cinema, você falou do filme do Lampião que marcou bem, né? Como o povo frequentava o cinema naquela época? O povo ia chique ao cinema?

R – Não, ia com roupa normal mesmo, não era chique não, era social.

P/1 – O cinema era grandão?

R – Lá cabia muita gente, só que tinha muitos dias que muita gente não conseguia entrar, depende do filme. Esse “Lampião, o Rei do Cangaço” lotou e depois ele saiu para os bairros também, passou ali no cine Araúna, mais próximo. Mas na primeira vez que passou no centro de São Paulo era uma beleza, era muita gente e tinha aqueles filmes de guerra também, a turma gostava de ver filme de guerra, não era igual hoje, hoje os filmes são totalmente diferentes daquela época...

P/1 – E a saudade de Alagoas, como ficava? Nesses três anos aqui você mandava carta?

R – Eu mandava carta pra meu pai, pra minha mãe, foto, tinha saudade. Mas eu estava empregado e não queria pedir a conta da firma. Quando meu pai veio, eu fui obrigado a pedir, porque aí não teve jeito de me segurar, ele falou que não me deixava mais em São Paulo.

P/1 – Como é que foi? Um dia você chegou em casa e seu pai estava lá, ele veio de surpresa?

R – Veio de surpresa, eu nem esperava.

P/1 – Conta pra nós, como foi essa história?

R – Eu estava trabalhando, cheguei do serviço, eu tinha uma namorada que trabalhava em uma tecelagem e, dez horas da noite, eu fui levá-la na Cidade Ademar, na Vila Santa Catarina, peguei ela na fábrica pra levar no ônibus, depois de ela pegar o ônibus eu vim pra casa; quando cheguei, meu tio foi lá em casa, falou: “Seu pai está lá em casa”. Ele foi direto à casa do meu tio, aí foi uma surpresa. Cheguei lá, conversamos e ele falou: “Eu vim te buscar e não tem acordo, pode pedir a conta”. Eu falei: “Eu não quero pedir a conta”; “Pode pedir.” Aí eu pedi a conta e fui embora.

P/1 – E por que ele queria tanto que você voltasse?

R – É porque de filho homem só tinha eu e duas meninas.

P/1 – E os outros? Não eram sete?

R – Mas naquela época não, naquela época só era eu e três meninas. Quando eu vim pra São Paulo, depois que nasceu mais três.

P/1 – Ah, eles nasceram bem depois?

R – Bem depois. Esse irmão meu que morreu há pouco tempo, eu casei no dia 13 de junho e ele nasceu no dia 13 de julho, nasceu depois que eu casei e tem outro meu irmão, que eu tenho um filho mais velho que ele.

P/1 – Aí teve que voltar, não teve jeito? A volta não demorou tantos dias...

R – Não, eu fui à firma, pedi a conta e eles pagaram só os dias que eu trabalhei, eu pedi a conta e perdi todo tempo de casa e eu falei pra ele e ele disse: “Se for por dinheiro, não se preocupe não”. Eu saí com pouco dinheiro daqui, mas lá eu tinha tudo, ele me dava dinheiro, era só falar: “Pai, eu quero tanto”.

P/1 – Como foi o retorno? Como você encontrou o sítio?

R – Eu encontrei o sítio a mesma coisa que eu deixei, bem cuidado, bem organizado, com as mesmas coisas que tinha antes. Ele trabalhando, eu continuei trabalhando com ele no sítio, eu só vim pra cá por problema de saúde.

P/1 – Aí continuou a trabalhar com ele no sítio, encontrou a esposa na festa de Santana, dez meses depois casou, construiu a casa no próprio sítio e foi vivendo ali trabalhando.

R – Vivendo trabalhando.

P/1 – E o primeiro filho?

R – Com dez meses nasceu o primeiro filho, eu casei no dia 13 de junho e meu filho nasceu no dia 21 de abril do ano seguinte, o meu mais velho.

P/1 – Qual é o nome?

R – Rinaldo. E depois nasceu o segundo filho meu, Renildo, e depois nasceu a Carlinha e depois nasceu o José.

P/1 – Tudo lá em Alagoas?

R – Tudo em Alagoas

P/1 – Mais ou menos seguidinho um do outro?

R – É, mais ou menos seguidinho um do outro.

P/1 – E como é que foi essa vida de casado nos primeiros anos, lá na casa nova, trabalhando?

R – Vida boa, pra mim foi uma vida maravilhosa, com meus pais, minha família toda, minha mulher, meus filhos não tenho a reclamar.

P/1 – De vez em quando ia pra cidade?

R – Pra cidade a gente até ia, mas só dia de sábado na feira.

P/1 – Continuava indo à feira aos sábados?

R – À feira todo sábado, tinha que ir à feira fazer umas comprinhas, comprar um arroz, comprar um óleo, comprar o açúcar, comprar o sal, comprar uma carne no açougue... Tudo era na feira.

P/1 – E o povo te perguntava muito como era aqui em São Paulo já que você tinha vivido tanto tempo aqui?

R – Não, não perguntava muito não, tinha muita gente que já tinha vindo.

P/1 – Até chegar à década de 1970 que você falou que teve um problema de saúde, certo? Que problema de saúde foi esse?

R – É uma úlcera no estômago, só que eu sofria da úlcera e não sabia o que era, e lá em Maceió eu não conseguia saber o que era, eu vim saber aqui em São Paulo depois de catorze anos, porque eu tirei várias radiografias e não acusava nada, só veio acusar essa úlcera em 1979, quando chegou a endoscopia. Inclusive ela sangrou duas vezes, eu fiquei internado por causa dessa úlcera, só que não acusava, tirava radiografia e na chapa não dava nada, e quando foi feita a endoscopia – que era horrível naquela época, uma mangueira na boca, hoje dão anestesia e você não sente, mas naquela época era difícil –, eu fui operado do estômago.

P/1 – Mas antes disso o senhor estava lá, em 1971, sofrendo com a úlcera, aí falou para o seu pai: “Agora eu preciso voltar de novo lá pra São Paulo”? E a esposa, o que ela achou disso?

R – Ela concordou normalmente, chegou aqui e ela começou a trabalhar em casa de família. Eu também já entrei logo numa firma.

P/1 – Mas quando o senhor voltou o senhor foi morar onde?

R – Eu fui morar na casa desse meu tio e aluguei um quarto pra morar com a minha família.

P/1 – Lá no Brooklin?

R – Lá no Brooklin.

P/1 – A sua esposa foi trabalhar numa casa de família e o senhor foi trabalhar onde?

R – Fui trabalhar numa firma.

P/1 – Que firma?

R – Era de peça de carro.

P/1 – E os filhos? Quatro filhos?

R – Os quatro filhos eu coloquei na escola, estudaram todos, a gente lutou mesmo durante um tempo. Eu trabalhava, saí da firma porque não estava aguentando, eu trabalhava num forno, uma queimação de peças, eu não aguentei, eu pedi a conta. Eu já tinha trabalhado de servente de pedreiro, eu fui trabalhar de servente, eu trabalhei uns seis meses de servente, aí o cara já me passou pra pedreiro e eu comecei a trabalhar de pedreiro e até hoje eu trabalho de pedreiro.

P/1 – Isso naquela época com uns trinta anos mais ou menos que o senhor tinha, certo?

R – Isso.

P/1 – Conta pra gente, como era essa casa que o senhor morou? O senhor alugou um cômodo perto da casa do tio ou na própria casa do tio? Como era isso?

R – Perto da casa do tio.

P/1 – Que rua, o senhor lembra?

R – Rua Chaves Colombo, número 157.

P/1 – E como era a casa?

R – A casa era um cômodo só, um cômodo e um banheiro, morávamos eu e meus quatro filhos num cômodo e um banheiro. E fiquei 15 dias sem sair de casa, em 15 dias eu perdi tudo que tinha dentro de casa e fui morar na Cidade Ademar na casa de um primo meu, uns 15 dias, enquanto abaixava a água.

P/1 – Ah, por causa de uma enchente?

R – Por causa de enchente. Ali era um sacrifício, ali tinha cobra, preá, rato, até cobra tinha e era como eu te falei, era só lagoa, capim, umas vacas comendo capim, e tinha pouca gente morando naquela época.

P/1 – Esse era o lugar que depois virou conjunto habitacional ou não era?

R – Não. Aí no ano de 1978 começou a fazer aquele primeiro prédio que foi demolido, na Berrini, não sei se você viu aquele que teve uma explosão...

P/1 – Há um ano, dois anos?

R – É, mais ou menos isso. Ali foi onde a Back Collection construiu... Começou a investir ali e fez aquele primeiro prédio, mas ali era só lagoa. Eu tinha um amigo que tinha um terreno ali, ele e o irmão; ele pegou e vendeu a metade do terreno dele para o irmão e comprou um lá em São José, por causa de enchente, ele não aguentava ficar lá dentro da enchente, ele falou: “Eu não quero...”. Deu quase de graça o terreno dele, o terreno dele agora foi vendido por um 1,2 milhão, a casa dele hoje ele não vende por 50 mil, terreno 10 por 25, você vê o valor que tem aquele área...

P/1 – O senhor estava naquela área da Berrini já nesse cômodo que alugou, né?

R – Eu fiquei três anos nesse cômodo. Essa pessoa com quem eu estava trabalhando, um mineiro, um cara muito bom, ele fez um quarto pra mim no terreno dele – eu pagava aluguel. Ele fez um quarto e um banheiro no terreno dele bem maior do que o que eu estava lá; a gente trabalhava na semana e sábado e domingo nós fizemos. Fiquei sem pagar aluguel, maneirou um pouquinho, já não pagava mais aluguel, e a minha esposa trabalhando... A minha esposa entrou numa fábrica de costura, ela fez roupa pro Médici e para a filha dele, o presidente.

P/1 – É mesmo? Como foi essa história?

R – Eu já trabalhava ali na Spinelli, ali na Funchal, e ela era uma das melhores costureiras que tinha lá – ela já costurava lá no Norte, também era costureira. A firma não quis dar aumento pra ela, ela pediu aumento, não quiseram dar. Aí chega um cara de uma loja que mandou fazer uma roupa, ela fez uma roupa e, pela fama dela, ele contratou ela ganhando três vezes mais do que ela ganhava. Ela trabalhou nessa loja na Brigadeiro cinco anos. Aí a firma faliu, o cara começou com muita mulherada e mulher é coisa boa, mas tem coisa que mulher faz mal, é o cara ter a sua mulher e querer arrumar dez, doze fora de casa, porque a de casa controla as coisas, ela sabe arrumar as coisas, é o futuro dos dois e a de fora não, ela quer... Se puder tirar a camisa dele e deixar ele pelado, ela deixa, não quer nem saber. Eu sei que esse senhor ficou nessa situação, faliu a firma, ela saiu, mas ainda hoje continua trabalhando de costura, porque ela fazia conserto e alugou no mesmo prédio um apartamentozinho pra costurar e costura lá até hoje.

P/1 – O senhor estava no Brooklin ali? Agora já não pagava mais aluguel?

R – Eu não pagava mais aluguel, isso foi em 1974. Em 1973 começaram as desapropriações naquele local, iam fazer o anel viário do Palácio do Governo ao aeroporto, e desapropriou todo mundo, o governo do Estado. A casa que eu morava foi desapropriada, só que quando foi desapropriada, o dono falou: “Vão tomar minha casa...”, porque o valor que ele achava não era um valor muito bom, ele falou: “Eu vou embora” – ele era de Minas, de Alfenas, queria ir embora antes de receber, só que quando ele quis ir embora, tinha um filho dele que morava lá em Alfenas, ele chegou lá, trouxe um carro e levou os móveis, não levou a família, ficaram ele, a mulher e três filhos, cinco pessoas. Ele não tinha dinheiro da passagem pra ir embora. Eu estava trabalhando, eu e a minha esposa trabalhando; eu estava no quarto e a casa dele era grande, tinha dois quartos, sala, cozinha e banheiro, era maior a casa. Ele falou assim: “Você não quer me arrumar um dinheiro?”. Ele queria vender aquela casa, eu falei com a minha mulher: “Quer saber de uma coisa, vamos comprar essa casa, vamos dar um dinheiro pra esse homem ir embora, ele foi muito bom com a gente. Nós moramos mais de ano sem pagar aluguel no terreno deles”. Eu peguei e falei: “Quanto é a passagem de vocês?”. Ele falou: “É tanto”. Eu fiz a conta das passagens e falei: “Senhor José, eu vou lhe dar 500 cruzeiros para o senhor ir embora e eu fico na casa”. Ele falou: “Tá bom”. Aí eu saí daquele quarto e passei pra minha casa, naquele quarto eu pus uma irmã da minha mulher, eu coloquei lá pra morar e fui para aquela casa, fiquei lá até agora, dia 16 de março, amanhã, faz um ano que eu saí de lá.

P/1 – Mas espera aí, não estava fazendo a desapropriação ali?

R – Eles esqueceram, desapropriaram as pessoas, pagaram para o pessoal, inclusive daqueles dois quarteirões, ficaram três proprietários, só que não chegaram a receber. Desistiram do projeto... Por causa daquela enchente e mais enchentes, as paredes estavam estragadas, os tacos estavam todos podres. Aí eu fui ao DER [Departamento de Estradas de Rodagem] e falei: “Eu estou morando nessa casa, mas eu estou morando e quero fazer uma melhoria, o que eu posso fazer?”. Eu fui falar com um engenheiro do DER, ele falou: “Ô, senhor Gerôncio, o senhor tem condições de fazer um sobrado? Pode fazer”, porque lá ninguém ia fazer mais nada, “pode ficar tranquilo”. Comecei a melhorar a casa, fiz mais um quarto, coloquei piso, coloquei azulejo, suspendi mais oitenta centímetros, suspendi a casa oitenta centímetros.

P/1 – Deixa eu ver se entendi, em 1973, 1974 o governo do Estado ia fazer uma obra ali no anel viário, então ele começou a desapropriar aqueles terrenos. O seu companheiro que morava lá na casa foi embora pra Alfenas, o senhor comprou a casa dele e o Estado desapropriou... Pagou pela casa?

R – Pagou pela casa, depois de um ano que ele voltou aqui pra receber, já em 1975 mais ou menos, foi que o DER pagou pra ele, o Estado.

P/1 – O Estado pagou, mas não pegou o terreno?

R – Não pegou o terreno da maioria, ali na Água Espraiada, 90% até a Imigrantes é tudo desapropriado, é do DER, inclusive naquele papel está: tudo que está ali é do DER.

P/1 – Mas aí o senhor foi no DER e falou: “Vocês vão me tomar a casa ou não vão? Posso investir?”. Eles falaram: “Pode”. É isso?

R – Eles falaram: “Se o senhor quiser fazer um sobrado lá pode fazer”. Isso foi o que o engenheiro falou pra mim, aí eu aproveitei e melhorei, eu não fiz sobrado, mas suspendi ela oitenta centímetros. Eu suspendi ela mais por causa da enchente, aí melhorou um pouco, mas de vez em quando sempre vem enchente. Eu fiquei morando lá, o DER esqueceu, acabou. Quando foi 1994 pra 1995, o Maluf governador... Antes disso, a Erundina, em 1988 até 1992, ela foi prefeita e fez um projeto de moradia naquele local, saiu no jornal a maquete, bonitinha, os predinhos. Aí, no governo dela, não fez, entrou o Jânio, o Jânio tirou a maioria das favelas, parte das favelas, e começou a fazer... O Jânio ia fazer na Água Espraiada, aquela avenida hoje, aí começou a fazer a avenida...

P/1 – O Jânio foi antes, né?

R – Ele tinha começado antes, o Jânio foi antes da Erundina, e tinha começado antes a fazer e a Erundina nem fez; fez um projeto dos prédios e nem fez os prédios e nem fez a avenida. Aí foi quando o Maluf foi eleito e fez aquela avenida, ele desapropriou 2,4 mil famílias, saiu muita gente, só que esse pedaço nosso sobrou, não saiu esse pessoal, naquela época não era barraco ali, naquela época nós tínhamos poucas casas, depois de 1978 que começou a encher mais e começou a favela, começaram a invadir. Depois que o Jânio tirou uma parte, o Maluf veio e tirou o resto.

P/1 – Então quando o Maluf foi construir a avenida, ele desapropriou 2,4 mil famílias, mas a sua casa ficou fora disso?

R – A minha ficou fora.

P/1 – E esse povo que foi desapropriado foi pra onde?

R – A maioria foi pra Parque Cocaia, Vila Natal, Colônia, a área de manancial.

P/1 – E nessa época o senhor já estava envolvido nessa questão da comunidade? Como é que o senhor começou a tomar frente?

R – Vieram uns advogados e falaram: “Vocês vão sair daqui, mas vocês vão ser indenizados”, porque na época do Maluf os empresários deram oito milhões pra tirar as famílias de lá e fizeram os prédios no Educandário. O Maluf queria tirar o restante, a gente entrou com advogado pra não sair e falamos: “Pra sair tem que pagar por metro”, naquela época eles pagavam 800 reais o metro pra tirar. Se naquela época tivesse me tirado, teria sido bom, porque o meu dava noventa metros, já dava um dinheirinho bom, minha área tinha noventa metros, só que quando chegou a vez de tirar, próximo à minha casa, disse que acabou o dinheiro, não tirou mais ninguém, parou, ficaram 268 famílias.

P/1 – Isso na época da construção da avenida?

R – Na construção da avenida, sobraram 268 famílias, só que foi aumentando e chegou a 800.

P/1 – Ali naquela região?

R – Naquela região. Em 2001, a Marta Suplicy, como prefeita, fez a Operação Urbana, discutiu o projeto de Operação Urbana, garantiu fazer área de terreno social. E todo mundo ficou no local, nós lutamos pra isso, lutamos e estávamos com certeza que ia acontecer. Aí teve a Operação Urbana e foi formado um conselho, do qual eu faço parte, e dentro daquela Operação Urbana a gente tinha o direito de permanecer no local, só que aí veio o DER e queria tirar as famílias, mesmo com a Operação Urbana, inclusive vieram com oficial de justiça falso, comprado, dizendo que era ordem da justiça sem ser. Nós fomos ver e não era nada daquilo. Aí nós fomos ao DER saber o que estava acontecendo, quer dizer, o próprio presidente do DER disse que não sabia que estava acontecendo aquilo, foi quando ele falou: “Agora vocês montam uma associação”. O próprio presidente do DER. Nós montamos uma associação e começamos a brigar. Dentro da associação você tinha mais como acompanhar e a Marta deu o maior apoio, o Paulo Teixeira, que era o secretário da habitação, deu o maior apoio pra ficar naquela área. Só que os empresários não queriam...

P/1 – Mas me deixa só entender, isso a gente já está aqui nos anos 2000, certo? Quando aquelas 2,4 mil famílias foram desapropriadas, foi no começo da década de 1990?

R – Foi até 1996.

P/1 – Aí construíram a avenida, sobraram 200 e poucas famílias que não foram desapropriadas, inclusive o senhor, e foi chegando mais gente nesse meio tempo...

R – Foi chegando mais gente.

P/1 – Até chegar a 800 pessoas. Pelo que eu entendi, nesse meio tempo houve mais investidas pra ver se conseguiam tirar vocês dali, não é isso? E como é que vocês foram se mobilizando internamente? Você assumiu um papel de líder? Como é que aconteciam essas reuniões? Eu estou falando bem antes de formar a associação, como é que começou essa organização de vocês?

R – Ela começou antes de formar a associação, ela começou tocando fogo nos pneus e fechando a Berrini; quando a gente viu que era tudo falso, nós começamos. Aí veio o deputado Henrique Pacheco e nos levou lá no DER e o DER não quis receber ele, o DER não quis receber ele. Ele ficou revoltado e foi lá pra Assembleia falar com o presidente da Assembleia pra atender a gente. Levamos cem pessoas para serem atendidas, o presidente da Assembleia atendeu a gente e foi muito bacana, ele enviou a gente para o presidente do DER; foi quando ele nos orientou a formar uma associação pra ter mais força pra lutar, e esse deputado fundou a associação, fez todo o trabalho da associação com advogado e tudo. Aí veio a Operação Urbana, quando começou, no dia 16 de março de 2001, que ia ser aprovada a Operação Urbana, nós fomos chamados pra participar, inclusive está no livro, o Jardim Edite estava presente, todo mundo presente lá. Aí começou a lutar e reivindicar o direito e foi feita a Operação Urbana, foi aprovada com muita dificuldade... Teve a eleição, a primeira presidente não deu certo, teve que ser afastada, porque estava falando coisa que não devia...

P/1 – Qual é o nome da associação de vocês?

R – Associação de Moradores do Jardim Edite.

P/1 – Aí a primeira presidente não deu certo?

R – Ela não deu, porque quando ela entrou, ela não tinha conhecimento, ela não conhecia quase ninguém e quando nós entramos na luta pela moradia, porque lá onde a gente mora hoje é Pinheiros, antes era Santo Amaro, quando eu fui lá... Nós fomos numa primeira reunião na superintendência de Santo Amaro, eu me encontrei com o chefe de gabinete do subprefeito, que fazia anos que eu não via, mas cheguei lá... Ele era uma pessoa que nós tomávamos banho juntos nos anos de 1962 até 1964, ali onde é a delegacia do Brooklin, eu peguei muito conhecimento com ele. Com o conhecimento, você tem mais chance, é mais bem atendido. Então ela ficou com ciúme, porque em vez dele fazer tudo com ela, eles trabalhavam mais comigo, procuravam mais a mim do que a ela. Ela foi falar para o deputado que eu estava vendendo o Jardim Edite; o atendimento era mais comigo do que com ela, mas por causa de ciúme... Aí o deputado me chamou atenção: “Por que você está fazendo isso?”. Eu falei: “Eu não estou fazendo nada, eu arrumei uma melhoria para os barracos e ela falou que eu estava me vendendo”. Quer dizer, uma empresa veio pra arrumar os barracos, pra melhorar, pra pintar, pra dar uma arrumada, pra dar uma ajuda; com uma associação, as coisas mudam, a associação tem uma força e como é uma comunidade, tem empresa que quer ajudar, a loja Bayard de esportes continuou ajudando o que ela pode, o que ela podia fazer ela fazia, a gente ia formar a associação e quem fez toda a despesa foi ela. Então ela estava ficando com ciúme, chegamos lá e fizemos uma reunião com o deputado. Eu cheguei lá, ela estava presente e eu falei que queria que ela provasse, só queria que ela provasse, chamei o deputado: “Vamos falar com o Márcio, o chefe de gabinete, pra ver o que eu estou fazendo”. Ele falou: “Ele está fazendo aquilo que precisa fazer e nós estamos ajudando no que precisa fazer, não estamos comprando nada, então ele está se vendendo por nada”, aí ela ficou sem jeito, porque a mentira tem perna curta. Eu falei pra eles: “De hoje em diante eu trabalho, mas junto com a Luísa eu não trabalho mais, eu vou fazer meu trabalho independente, ela pra mim não existe mais, porque eu não trabalho com gente falsa”. Ela devia era agradecer o conhecimento que eu tinha com eles, porque o conhecimento ajudava muito. Ela ficou enciumada, ela ficou meio frustrada e ela mesma pediu a renúncia e saiu. De lá pra cá eu sou o presidente da associação e com muito conhecimento, com muita ajuda, o movimento de moradia, que é uma força nacional, que ajuda muito pra chamar advogado, pra tudo, a gente tem a união de frente pra fazer.

P/1 – Então vamos lá, quando a associação foi criada qual era o principal objetivo, sonho, projeto?

R – Projeto era aquele que a Marta tinha na Câmara Municipal: urbanizar todas as favelas na Operação Urbana daquela região e dar o direito de permanecer no local. O projeto era: moradia, saúde, educação e trabalho. Isso está no estatuto, porque não é só de moradia que a gente precisa. A associação trabalhou por tudo aquilo, tivemos muita ajuda, o Banco de Boston ajudou a gente com cesta básica, pra dar brinquedo para as crianças no Natal, a JP-Salva, o Rubão Barrichello, pai do Rubinho, que doou brinquedos pra todas as crianças do Jardim Edite; tem muita ajuda, através da associação.

P/1 – A associação centralizava esse trabalho?

R – Centralizava e reconhecia, tem uma força, através da associação é mais fácil e, sendo uma pessoa de caráter, de respeito e honesta, é mais fácil de as empresas ajudarem. Isso é uma coisa que eu tenho muito, é honestidade, isso é o principal.

P/1 – E o que era a Operação Urbana? Explica pra gente.

R – São cinco Operações Urbanas: Centro, Faria Lima, Água Branca, Vila Sônia e Água Espraiada. A Faria Lima foi a primeira, só que não funcionou, foi uma Operação Urbana dentro da Lei da Constituinte, porque a Constituição diz que o direito é igual para todos, só que existe no papel, na prática não. Agora que está começando a existir. Em 2001 veio o estatuto da cidade que reforçou a Constituinte, em 2001 a Operação Urbana foi em Água Espraiada. Em 2002 foi aprovado o Plano Diretor, que rege toda a movimentação de obra na cidade de São Paulo, mas isso, dentro da Constituinte, e parece que foi bom até o final. A Faria Lima, quando foi feita, não existia isso, a Faria Lima desviou 26 milhões pra fazer o Real Parque. A Operação Urbana foi bem discutida no dia 28 de dezembro de 2001, com muita discussão por toda liderança da Água Espraiada; só que quando viemos cobrar, a Marta deixou começada a obra do Jardim Edite, já pra fazer em 2003, aí já estava feito o projeto. Quando o outro governo entrou, o [José] Serra esqueceu e falou: “Isso não existe”. Só existia ponte pra ele, tinha o projeto da ponte e das unidades, ele se esqueceu das unidades, a gente discutiu com ele umas três vezes, com o Serra como prefeito, e fomos lutando e achando que ele não tinha boa vontade, aí vieram as empresas, o próprio vereador que aprovou a operação da ponte falou pra mim: “Vocês não vão conseguir, foi aprovado, mas não vão conseguir porque a força da imobiliária é maior”. Quer dizer, foi uma luta muito difícil pra conseguir aquilo, mas, dentro da garantia da Marta, a gente tinha que lutar em cima daquilo. Não foi aprovado? Nós temos que lutar dentro daquilo, porque foi aprovado e só o Jardim Edite lutou por esse direito, as outras comunidades só acordaram agora, porque o promotor mandou eles se unirem comigo, me procurarem pra trabalhar com eles, mas por eles mesmos estava jogado pra lá. Estão fazendo um trabalho muito bom agora na Operação Urbana, mas a do Jardim Edite foi difícil pela pressão que tinha, foi difícil.

P/1 – Mas só ficaram 200 e poucas casas no começo, há quase 20 anos, depois foi chegando mais gente, como foi isso? Foi entrando gente desordenadamente?

R – Desordenadamente.

P/1 – E o objetivo da Operação Urbana era o quê? Era construir prédios ali?

R – Era construir oito mil unidades da Berrini até a Imigrantes, até na Avenida Jornalista Roberto Marinho hoje, até ali na avenida em que hoje estão fazendo um projeto muito bonito, onde vai ter o Parque Lineal, um túnel de quatro quilômetros e meio... Só que as unidades estão esquecendo, o governo esqueceu. Quer dizer, o Jardim Edite, pra ter esse projeto que tem hoje, eu fui obrigado a entrar na justiça. Teve dois incêndios, tiraram as famílias e jogaram para o aluguel, o CDHU [Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano] me ofereceu 508 unidades em troca do Jardim Edite, o sujeito me ligou lá e falou: “Vem aqui, eu te dou 508 unidades pra vocês colocarem as famílias de vocês, e vocês saírem do Jardim Edite”. Quer dizer, era uma pressão muito grande, inclusive eu fui criticado por várias associações, várias comunidades, porque eu não tinha aceitado, eu falei: “Eu não aceito, porque tem gente que está com dez, quinze anos que fez inscrição no CDHU e não tinha moradia, por que eu vou pegar 508 unidades que já estão quase prontas se eu tenho direito de ficar aqui no Jardim Edite?”. Era a dezoito quilômetros dali, porque na Operação Urbana tem que ser na região, não é fora, por isso que não aceitei. Só que esse prédio está até hoje e não foi assentado ninguém ainda, mas para o Jardim Edite tinha e para os outros que estão com dez, quinze anos que tinham feito a inscrição, está lá parado o prédio, inclusive no Jardim Edite tem 114, porque não acreditavam que ia ter moradia no Jardim Edite. E só passamos a acreditar através da justiça, porque hoje nós temos, eu digo hoje nosso movimento de moradia do Estado de São Paulo conseguiu trazer, que é da Lei de 1988, a defensoria pública pra pessoa carente... Muitos estados já tinham e São Paulo não tinha. Tem através do movimento de moradia, manifesto, ato e pedido para o governo pra conseguir, hoje nós temos 470 defensores públicos, eram 400 e nós fizemos um ato com 2,5 mil pessoas na Secretaria da Justiça para que aumentasse cem por ano, porque são quarenta milhões de paulistanos e só tinha 400 defensores públicos, é muito pouco, nós queremos mais. Conseguimos cem com um ato na Assembleia Legislativa, um projeto na Assembleia, hoje já tem 270 e falta colocar mais trinta pra completar 500. E a Defensoria Pública é a unidade básica de saúde que existe hoje; se você está com problema de saúde, pra você fazer um tratamento com especialidade, você tem que primeiro passar por uma unidade básica, então, hoje, o caminho que o pobre carente tem, a pessoa carente tem, é a Defensoria Pública e a parceria com o Ministério Público, hoje nós temos um Ministério Público muito atuante...

P/1 – Gerôncio, você estava falando da associação e da luta que vocês tiveram pra conseguir os seus direitos. Uma das coisas previstas no projeto Operação Urbana era que as unidades habitacionais construídas seriam no próprio lugar, no próprio Jardim Edite, é isso?

R – Não, na região. Agora o Jardim Edite tem Z1, Z2, Z3 e Z4, Jardim Edite tem Leis, uma é Lei específica local, só o Jardim Edite que é local, o Jardim Edite e a Djalma Coelho aqui na Vila Madalena; só que a Djalma Coelho o Serra tirou todos os moradores pagando cinco mil reais, está desocupado o terreno e não pode construir prédio, porque uma Z [ZEIS: Zona Especial de Interesse Social] não pode construir prédios.

P/1 – Então a principal luta de vocês quando montaram a associação com a ajuda do deputado era colocar em prática a Lei que é a Lei da Operação Urbana?

R – A Lei da Operação Urbana, só que o Serra e nem o Kassab queriam cumprir, e pra cumprir eu entrei através da ação na Defensoria Pública e com a promotora pública... Eu não pedi pra entrar com a promotora, ela me chamou pra entrar com uma ação, porque ela já conhecia a minha luta, o meu trabalho; ela assinou um termo de compromisso de lutar comigo pra conseguir a Lei Jardim Edite com a Defensoria Pública e, com poucos dias que a gente entrou com a ação, o Doutor Jairo, Juiz de Direito da 3º Vara, concedeu a liminar e parou tudo, porque a Prefeitura estava tirando todo mundo em seguida. Em 2007 a Prefeitura chegou lá e falou: “ou cinco mil ou oito mil ou Campo Limpo ou é despejado”, despejado numa coisa que nós tínhamos direito.

P/1 – Espera aí, então cinco mil reais?

R – É, ou oito mil, pra comprar um barraco em outra favela ou seria despejado, aí o chefe falou: “Vem cá, nós não temos ação de despejo, nós temos uma Lei da Constituinte, estatuto da cidade, da Operação Urbana, do Plano Diretor pra urbanização da favela pra construir oito mil unidades, isso é uma Lei e não estão respeitando”. Foi quando eu entrei na justiça, o juiz imediatamente concedeu a liminar, já marcou a audiência, já fomos lá, a prefeitura entrou com um agravo, o desembargador não aceitou, aí me chamou pra fazer um acordo, fizemos um acordo de conciliação no dia 8 de setembro de 2008. Foi feito um acordo de conciliação pra fazer as unidades no local, só que foi feito o acordo na Prefeitura e até hoje não conseguiu fazer uma única unidade, não tem interesse. Foi feito o projeto, discutiram o projeto e agora estão mudando o projeto, eu fui à promotora, agora a promotora deu trinta dias pra eles... A Prefeitura se manifestar e começar a obra porque foram tiradas todas as famílias, todo mundo saiu pacificamente. E a prefeitura não está se movimentando a tirar... Já foi feita a pré-qualificação, tinham dezenove empresas interessadas em fazer, agora só tem nove, dez saíram fora e estão esperando que saia a licitação pra construir, dentro de trinta dias tem que explicar para o juiz o que fizeram de errado, porque continua fazendo errado. Agora juntou toda a liderança da Operação Urbana, está tendo um fórum de liderança a cada quinze dias e me convidaram pra participar a pedido do promotor de justiça que se juntasse comigo, porque eles estavam perdido, não sabem o que é a Lei, não sabem o que é nada, a própria Prefeitura não sabe da Lei, faz que não sabe, apesar de que tem muitos funcionários lá que não sabem nem o que é Operação Urbana. Eu falei pra ele na Câmara Municipal: “Você está aí não sei por que, porque você não conhece nada, você não sabe participar de nada”, porque eu conheço Operação Urbana, e se tem uma pessoa que conhece Operação Urbana sou eu, porque o próprio arquiteto que fez a Operação Urbana falou numa reunião que eu conheço mais do que ele, porque eu vi o dia-a-dia da Operação Urbana mais do que ele. E nossa esperança é que agora comece no mês de maio; eu conversei com o secretário, ele garantiu que no mês de maio começa a obra e a Prefeitura vai construir quatro mil unidades; tivemos uma reunião com 1,3 mil pessoas, uma audiência pública, e eu falei que não quero quatro mil, eu quero que se cumpra a Lei: “Todos os moradores da região sejam atendidos”. Porque hoje, eu tenho a lista e já está com mais de oito mil, e não terminou ainda de fazer o cadastramento, e já tem mais de oito mil, eu exigi e a Prefeitura me deu, eu tenho em casa toda a lista das famílias, quantas famílias tem, tudo, tudo, eu tenho um cadastro bem feito agora. Eu ensinei eles a fazerem o cadastro porque não sabiam fazer, e a própria prefeitura agora quer que eu vá ajudar a capacitar essa liderança, porque se você sabe da Lei é mais fácil você exigir, se você não conhece vai falar o quê? Você não conhece nada e eu estou capacitando eles lá, vão ter agora mais três dias de curso pra eles pra ensinar a eles a lutarem pelos direitos deles.

P/1 – Você está capacitando outras lideranças de outros lugares, é isso?

R – Outras lideranças dentro da Operação Urbana.

P/1 – De outras comunidades que fazem parte da Operação Urbana, certo? Gerôncio, e agora essas oito mil pessoas ou mais de oito mil pessoas que moram no Jardim Edite, elas ainda estão lá ou... Como vai fazer a obra ali com essas pessoas morando?

R – Não, o Jardim Edite foi desocupado, faz um ano que não tem mais ninguém morando lá; tem um que entrou com a usucapião e o outro que é um daqueles três proprietários que não tinham recebido aquela época que a Prefeitura não tirou dali, mas já está com o decreto de desapropriação. E todo mundo que saiu do Jardim Edite está morando de aluguel, inclusive o aluguel na cidade de São Paulo é trezentos reais pra toda a cidade de São Paulo, a bolsa aluguel é trezentos reais, e eu na justiça, isso dentro da Lei, porque você conhecendo da Lei é tudo mais fácil de você conseguir. No dia que foi feita a conciliação no dia 8 de setembro de 2008, eu falei para o doutor, para o juiz: “Doutor...”, eu estava com a Lei na mão, “a Lei de Operação Urbana diz o seguinte: remoção das famílias por moradias dignas e retorno pra definitiva, isso está na Lei e com trezentos reais, doutor, ele só vai pra outra favela, se ele ia morar de aluguel não tem moradia digna de forma nenhuma doutor”. Aí ele perguntou pra mim: “Senhor Gerôncio, o senhor já tem mais ou menos uma base de quanto é o valor de um bairro igual Jardim Edite?”. Eu falei: “Eu sei”, eu já tinha feito uma pesquisa, não na região, no Brooklin você não arruma por menos de 1,5 mil, é 1,5, dois mil, mas próximo dali eu já tinha pesquisado, 560 reais você arruma quarto, sala, cozinha e banheiro, isso já é uma moradia digna. Eu falei: “Eu sei, são quinhentos reais”. Aí ele pensou e perguntou para o procurador da Prefeitura: “Você está de acordo a cumprir a Lei?”, o juiz já deu uma pancada pra derrubar, “você está de acordo pra cumprir a Lei?”. Ele pensou e falou: “Estamos”; “Então vamos pagar o aluguel de quinhentos reais”. E nós recebemos quinhentos reais de aluguel.

P/1 – Então todas as famílias do Jardim Edite têm essa bolsa aluguel todo mês?

R – Bolsa aluguel todo mês.

P/1 – E agora vai ser construído lá naquela região? Pelo menos a Lei prevê isso e depois vocês voltam todos para lá?

R – Voltamos todos para lá, inclusive apartamento com cinquenta metros quadrados, está tudo bem discutido, tudo bem... E está tudo na mão do juiz, então agora tem que prestar conta para o juiz.

P/1 – E essas oito mil pessoas estão espalhadas lá pela região?

R – No Jardim Edite não, que vai ficar no Jardim Edite 270 e poucas famílias. O resto, 114, vai para o Campo Limpo, 240 receberam cinco mil porque não acreditavam que ia ter mais, 54 vão para o Desterro Baiano dentro da Operação Urbana, mas não no Jardim Edite, porque a pressão no Jardim Edite era muito grande, lá tem uma empresa que quer construir duas torres naquele local, inclusive foi lá na reunião pedir pra não fazer prédio, foram ao Ministério Público, foram à Prefeitura, só não tiveram vaga. Aí eu falei para o secretário: “Vai cumprir a Lei?”, se for cumprir a Lei, acabou, só isso. Agora espero que eles cumpram a Lei.

P/1 – Então quer dizer que de todo mundo que morava lá, teve algumas pessoas que não acreditaram, pegaram o dinheiro e saíram? Outros vão pra outros lugares?

R – Só que agora não tem mais cinco mil e nem oito mil, ou é moradia ou moradia e acabou, porque teve muito aproveitador... Tinha um barraco que só fez quarto pra receber vinte mil, aí colocava gente... Veio gente do Norte pra receber dinheiro no Jardim Edite, veio só pra... O cara dividia o barraco em quatro, ele pegou uma moradia pra ele, um apartamento e aqueles três recebem cinco mil, dá mil para o cara e fica com quatro mil cada um, fizeram isso aí. Então isso aí eu falei pra ele na reunião, expliquei tudo e agora mudou, por isso que não está fazendo mais.

P/1 – Então o Jardim Edite agora está à espera da obra?

R – À espera da obra. Espero que agora, mês de maio... Palavra do secretário que agora, mês de maio, começa se sair agora a licitação esse mês, porque demora quase cinco dias, a partir do dia que a empresa ganha a licitação tem quase cinco dias pra ver se ela tem que contestar, porque vai sair a licitação, a gente quer saber o valor: “Nós vamos pagar o valor da obra, da mão de obra, o terreno? Nós não vamos pagar não, o terreno é nosso”. Pelas leis o terreno já é nosso, nós vamos ter que pagar a mão de obra, nós não vamos aceitar que uma empresa um valor de vinte mil ela cobre cinquenta mil, sessenta mil.

P/1 – Então me explica isso, eu não tinha entendido. O terreno que tinha sido desapropriado está retornando para os moradores, de acordo com a Lei?

R – De acordo com a Lei, todas as leis, o valor do terreno é zero.

P/1 – E a Prefeitura vai construir esses prédios?

R – Vai construir esses prédios.

P/1 – E depois vocês pagam como se fosse pela...

R – A gente vai pagar... Você pode pagar até 15% sobre o salário mínimo, você vai pagar vinte anos.

P/1 – Aí cada pessoa que for morar lá vai pagar... Como se fosse da COHAB [Companhia de Habitação], CDHU, certo?

R – Vai pagar normalmente, só que o valor é menos de um terço do valor atual de um... Por exemplo, um apartamento ali no Brooklin hoje, o secretário falou em 65 mil, mas não vai ficar isso, eu só aceito se ficar na faixa de 45 mil, mas vale 150 mil ou mais. O projeto que está feito – que é muito lindo o projeto –, outra coisa que vai ter lá, lá vai ter e dentro da Operação Urbana, você não só tinha direito à moradia, você tinha direito ao equipamento todo, e no dia da conciliação eu coloquei uma AMA [Assistência Médica Ambulatorial] e um posto de saúde, uma creche e uma escola técnica pra ensinar as pessoas a trabalharem em restaurante, e isso vai fazer dentro do projeto. E um apartamento ali com cinquenta metros quadrados do jeito que o projeto está com AMA, o posto de saúde, uma creche e uma escola é pra ser 150 mil a mais o metro quadrado. Em qualquer local, qualquer região de São Paulo, um apartamento de cinquenta metros quadrados está custando 120 mil e ali é mais caro, ali o metro quadrado está saindo por 6 mil reais.

P/1 – Só que aí pra vocês vai sair por...

R – O secretário falou em 65 mil, mas não, chega lá vai ser menos e você pode pagar conforme você pode, o mínimo é 15% de um salário mínimo, porque tem família que não tem uma renda assim, mas ele pode pagar 75 reais por mês e ser dono do apartamento e não excluir ninguém. Tudo tem que ficar lá, inclusive agora a Prefeitura fez um projeto pra 248 e está sobrando 34, porque esses 34 foram colocados em Campo Limpo, mas eles deram opção para o Jardim Edite, eu já fui na promotora e falei com ela: “Eu não aceito, eu vou ter que colocar os 34 dentro do Jardim Edite”. Se deram opção, a gente com duas testemunhas tem que fazer.

P/1 – Gerôncio, o que você acha que foi o diferencial do Jardim Edite? Tem muitas comunidades, tem áreas de ocupação em São Paulo, tem gente pela própria Operação Urbana, tem muita gente pleiteando o direito à moradia etc, e o Jardim Edite pelo que eu vejo virou uma referência, não?

R – Referência mundial.

P/1 – O que você acha que teve de diferencial ali?

R – A diferença é que na Jabaquara custa trezentos reais o metro quadrado do terreno, inclusive o Aurélio Miguel entrou com um projeto na Câmara Municipal pra que não fosse construir no Jardim Edite, naquele local, por causa do valor do metro quadrado, tinha que construir onde fosse trezentos reais o metro quadrado e no Jardim Edite custa seis mil reais o metro quadrado. Essa foi a diferença, o interesse imobiliário lá, nós estamos perto do Hotel Hilton, onde se hospedou o George Bush, e perto da Globo, ali é área nobre o Jardim Edite. E o direito mais da associação é o conhecimento da Lei, se eu não conhecesse da Lei nós estávamos recebendo trezentos reais, igual aos outros, mas dentro da Lei vai pagar os quinhentos. E agora o pessoal restante, eu acho que vai ter umas 12 mil famílias e está oito mil e pouco, mas não cadastraram todo mundo ainda, vai dar umas 12 mil famílias, eles não vão ter casa a trezentos reais, não tem condições. Agora vai ter uma reunião esse mês, eu vou levar para o conselho para aumentar o aluguel dele pra quinhentos reais também. No projeto Operação Urbana, as outras habitações do Estado de São Paulo sai dos cofres da Prefeitura, na arrecadação do município, são 27 bilhões a arrecadação do município de São Paulo, tem que ter uma parte pra... Lá no Pantanal que está saindo, ali vai sair dos cofres da Prefeitura, do Jardim Edite da Operação Urbana não saiu um centavo da Prefeitura, é do CEPAC [Certificados de Potencial Adicional de Construção].

P/1 – O que é o CEPAC? De onde sai?

R – Quem vai construir prédio na região de São Paulo, se vai construir prédio na região do Brooklin, só pode construir duzentos metros naquele terreno, mas eu quero construir um prédio com mil metros, você vai pagar oitocentos metros a mais e hoje está 460 reais o metro quadrado, cada metro pra construir, e coloca os títulos pra vender são 3,5 milhões de títulos pra vender. Aí você pode construir a mais do que o limite do zoneamento do loteamento, você tem que pagar 460 e quem comprou sabe quanto está valendo hoje? 1.410, 1.410 reais o metro pra quem quiser construir um metro a mais ali no Brooklin, mas quem paga são as construtoras que vão construir, esse dinheiro não vai para os cofres da Prefeitura. Eu tenho o número da conta do Banco do Brasil, conta da Caixa e vai direto ali, e lá já foi arrecadado 660 milhões e foram gastos 260 milhões na ponte, tem 400 milhões na conta e só tem pra moradia 45 milhões, só que agora o próprio conselho vai pedir que ponha título pra vender, pra vender mais títulos, porque só com a Operação Urbana vai gastar 520 milhões só no metrô, porque agora estão fazendo um projeto e vai ter um metrô de Jabaquara até o campo do Morumbi, só que é dinheiro municipal, estadual e federal, só que a operação grande vai colocar 520 milhões.

P/1 – O dinheiro que vem dessa taxa que as pessoas pagam é o dinheiro que está financiando o projeto do Jardim Edite?

R – De toda Operação Urbana, o da ponte, do túnel, do Parque Linear; tem quatro empresas que ganharam a licitação pra fazer o túnel, cada empresa vai construir mil apartamentos, ela ganhou a licitação pra construir o túnel, mas ela é obrigada paralelamente a construir mil apartamentos cada uma.

P/1 – Então só pra eu aprender aqui: Operação Urbana foi esse projeto do governo da Marta que foi transformado em Lei, ela fez um projeto e conseguiu transformar esse projeto em Lei, certo? Por isso que você está conseguindo entrar na justiça agora, porque se não o prefeito poderia falar assim: “Eu não quero executar esse projeto do governo anterior”, mas ela transformou em Lei, foi isso?

R – É a Lei da Constituição de 1988 e do estatuto da cidade, da Operação Urbana e Plano Diretor de 2002. Isso é uma Lei, só que a operação pra Água Espraiada... As outras saíram como uma lei comum que pode ser revogada e a Lei específica não pode ser revogada, é Lei específica, por isso já define o local. As outras favelas podem ser removidas.

P/1 – Mas por que a Lei do Jardim Edite foi diferente?

R – Porque o Jardim Edite já existia, a avenida pronta e restava o terreno ao lado. Então não teve jeito de remover ninguém, agora lá onde vão fazer o Parque Linear vai ter que remover as famílias pra fazer um túnel, não dá pra colocar no mesmo local... A Operação Urbana, ela tem um perímetro marcado e dentro do perímetro (tem?) que fazer.

P/1 – Entendi. Pra não levar pra muito longe.

R – Não, tem que colocar dentro do perímetro, fora do perímetro só pode ser feito pelo Plano Diretor, mas na Operação Urbana é dentro do perímetro.

P/1 – Gerôncio, e dezessete, dezoito anos atrás, quando começou essa coisa na época do Maluf da construção da avenida, existia muita gente que morava lá nessa comunidade, certo? O que fez com que o senhor se tornasse uma das lideranças? Poderiam ter sido outras pessoas? Que assumisse, tomasse frente etc. O que te fez tomar frente nisso?

R – O que me fez tomar frente, eu já falo pra você, começou pelo conhecimento na hora que a gente precisou... Você precisou de uma coisa na minha casa, eu tenho os meus filhos em casa, minha mulher e meus filhos, você vai lá e você encontra com meus filhos, falar com meus filhos é uma coisa, você tem intimidade comigo, se for conversar comigo é diferente, é mais fácil de resolver. Então assim, eu com a amizade que eu tinha, com o chefe de gabinete e com o subprefeito de Santo Amaro, as coisas ficaram tudo mais... Eles trabalharam lado a lado comigo na Operação Urbana, não me deixaram um dia, sabe o que é não deixar um dia? Toda reunião tinha um do meu lado me ajudando e o (Labio Bonduque?) com a assessoria na Câmara Municipal, pegamos um conhecimento, quer dizer, o conhecimento ajudou muito, porque sem conhecimento fica mais difícil você entrar em qualquer lugar, com o conhecimento você entra mais fácil. Na subprefeitura de Pinheiros todo mundo agenda pra entrar, eu não preciso, eu falo com o subprefeito lá a hora que eu quiser, eu ligo no celular dele a cobrar, é a ordem que eu tenho. E o conhecimento que eu tenho não é só aqui, eu tenho conhecimento em todo Brasil e em muitas partes do mundo, porque essa história do Jardim Edite não está só aqui no Brasil, está na Inglaterra, está na Alemanha, está na Itália, está na Argentina, está no Uruguai, está na Suécia, na França, porque eu tive... Esse texto aqui eu tive com todo esse pessoal e a Raquel Rolim levou toda a história de Jardim Edite pra ONU [Organização das Nações Unidas] porque ela é representante da ONU; isso fez com que a gente assumisse qualquer coisa que acontece com o Jardim Edite... Às vezes eu nem estou sabendo e os caras me ligam: “Oh, está acontecendo isso”. Então eu tenho muita amizade, muito conhecimento lá fora. E a divulgação também, porque a divulgação saiu na Globo também, eu vou em um monte de lugares aí que eu nunca tinha ido, eu fui lá no Parque Cocaia visitar duas mil famílias, a situação é difícil, eu cheguei lá e não conheço ninguém, mas lá todo mundo me conhece porque a maioria me viu na Globo. Então tem aquele conhecimento, fica mais fácil de trabalhar, quer dizer, o defensor público recebeu prêmio do melhor defensor público do Estado de São Paulo e o defensor público defendeu Jardim Edite, com essa causa do Jardim Edite que ele conseguiu, recebeu prêmio na Assembleia Legislativa, o melhor defensor público do Estado de São Paulo. E quem foi dar o troféu pra ele, o prêmio? Fui eu, eu fui convidado pra entregar o troféu. Quem foi que chorou lá? Chorou promotor, promotora, defensor público, deputado, todo mundo chorou, eu entreguei o troféu pra ele e tive que fazer um discurso e o discurso que eu fiz emocionou todo mundo e pôs todo mundo... Muitas promotoras, promotores vieram me abraçar chorando, porque através de mim... Eles falavam que queriam que tivesse muitas pessoas iguais a mim que mudava muitas coisas na Lei, ser aquela teimosia de acreditar e buscar a Lei, eu vi muita coisa na justiça, porque se você busca a Lei não com a emoção, você não tem que buscar com a emoção, é com luta, mostrar o caminho com luta o que você passou, o que está fazendo, o que você quer conseguir. A Doutora Cristina é a defensora geral do Estado de São Paulo quando ela tomou posse, que o Serra indicou ela, quem foi entregar flor pra ela e um livro da assinatura da Lei? A minha neta, e assim foi muito, quer dizer, a promotora que nós temos hoje, ela me trata como ela trata um filho dela com amor, com carinho, sabe? Ela luta igual a mim, por quê? Porque ela viu o que foi que eu fiz, como eu consegui o caminho que eu percorri pra chegar até ela e ela se emocionou, o juiz... Eu estive com quatro promotores públicos lá na Secretaria e todos saíram emocionados e todos a dizer que se tivessem muitas pessoas como eu tudo melhorava no poder judiciário, porque você também não pode criticar, você tem que reivindicar do Ministério Público, porque eles estão lá e eu falei no dia da audiência, eles estão lá, se não fossemos nós não devia nem existir Ministério Público, promotor público, existe por nós. Então você tem que fazer por nós, mas nós temos que levar a nossa opinião pra eles.

P/1 – Gerôncio, e por que a causa da moradia? O que te leva...

R – Isso aí é a coisa que mais... Eu vou dizer pra você, a coisa pior que tem é você chegar num fim de tarde e não tem um local pra você repousar e você com uma moradia digna, você é casado, tem esposa que vai ganhar nenê e quando ela vem do hospital ela vai pra onde? Qual é o lugar melhor pra ela vir? É uma casa, é a moradia, e eu fico horrorizado, triste quando eu vejo... Nós visitamos com os Direitos Humanos, nós visitamos morador de rua, porque dia 17, 18 de dezembro nós visitamos várias favelas, eu visitei moradores de rua e você vê uma criança jogada na rua, uma mulher dando mama enrolada num lençol na rua sem ter onde morar, isso pra mim é uma tristeza. Pois pra mim a primeira atividade do cidadão é ter moradia, segundo é saúde, isso tudo é coisa que o governo tem que investir, o terceiro é a educação e quarto o trabalho, o trabalho vem por último. Comece pela moradia, você mora numa favela, você não tem endereço, você vai arrumar um serviço: “Você mora na favela tal, eu não quero”, ninguém quer, muita gente foi rejeitada em Jardim Edite no emprego porque morava no Jardim Edite, eu arrumei muito emprego no Jardim Edite por causa do meu conhecimento, eu levei muita gente boa pra trabalhar com a pessoa. Muita gente quando queria uma empregada ou um empregado bom no Jardim Edite ligava pra mim, pra eu arrumar, porque eu só levo gente de confiança, porque na favela não mora só bandido, vagabundo, mora gente boa, claro que tem uns bandidos no meio, certo? Mas pra mim é moradia, saúde, educação e trabalho, esses são os direitos... A primeira coisa que existe pra família.

P/1 – A sua história é uma história de muita conquista. O senhor já contou vários avanços que conseguiu não só pro senhor, como para toda a comunidade, qual é um sonho grande que você tem agora dentro dessa sua luta aí?

R – A minha luta é que essas doze mil famílias, para o próximo pagamento da Operação Urbana, todos tenham a moradia digna, esse pra mim é o principal, aquilo que foi aprovado na Lei, que consigam todos terem, não só o Jardim Edite, porque eu não sou diferente dos outros, todos queremos moradia digna. A minha moradia, quando nós estávamos fazendo Operação Urbana, o Paulo Bastos foi ao Jardim Edite e foi ao Vietnã, Canadá, na Rocinha, Beira Rio e ele falou pra mim: “Gerôncio, vocês moram no Jardim Edite, você mora em Manhattan, aquela cidade mais chique dos Estados Unidos, eles lá moram no Afeganistão, então você vê a diferença muito grande da nossa moradia pra lá”. Eu fui a uma reunião da subprefeitura de Jabaquara, inclusive era um tumulto tão grande que não coube ninguém lá, não deu nem pra fazer a reunião, e uma senhora falou pra mim a situação que ela morava lá, ela foi bem clara, ela morava em baixo e outra morava em cima e todos os efeitos que saía de vasos ia tudo pra casa dela, ela falou claro o que era, não posso nem falar aqui numa entrevista, a situação daquele pessoal que mora. Aquele pessoal que mora no Parque Cocaia, aquele pessoal que mora lá em Diadema, aquele que mora lá em Mauá no Jardim Oratório, ali da Vila Romana e muitas favelas, o meu desejo é que o governo, através do Jardim Edite, que mudou... Isso foi palavra da Prefeitura, através do Jardim Edite está mudando pra cumprir a Lei e aprendendo a trabalhar e todas essas 1,5 favelas que tem no Estado de São Paulo um dia tenha direito a moradia digna, esse é um desejo maior que eu tenho.

P/1 – Gerôncio, a gente queria te agradecer por você ter vindo aqui e ter contado a história bonita de luta...

R – Obrigado, qualquer coisa que precisar fazer a gente faz.

P/1 – Eu queria fazer uma última pergunta e depois se você quiser falar outra coisa fica a vontade. E os seus quatro filhos onde estão? Ah, teve um quinto depois?

R – Eu tive oito filhos.

P/1 – Ah, então espera aí porque a gente parou nos quatro e depois aqui em São Paulo...

R – Eu trouxe quatro aqui pra São Paulo e aqui em São Paulo nasceu quatro. Dos que eu trouxe do Norte, a polícia abateu um em 1992 porque ele era testemunha, a polícia matou uma moça de quinze anos e ele estava presente e pra ele não ir ao fórum pra denunciar ele, o policial mandou matar. E tem outro dos que nasceram aqui que bandido matou ele na Faria Lima, ele morava ali na Brigadeiro, mas ele foi lá um dia e bandido matou ele e deixou duas filhas que são o xodó da minha vida, as duas filhas dele, porque a mãe é um pouco irresponsável e eu tenho que assumi-las e tudo; o dia que elas não estão lá em casa eu não estou aguentando mais, elas estão morando aqui em Osasco, então elas vão lá em casa nas sextas-feiras e os outros... Mais dois estão aí, eu tenho seis filhos, o meu mais velho é gerente do HSBC, tem 25 anos de banco; o outro filho trabalha com nota fiscal, inclusive agora está desempregado; o outro trabalha em financeira, também está desempregado. E tenho uma filha, a mais velha, que tem uma filha com 21 anos e é conselheira tutelar aqui de Pinheiros, tem dias que ela sai e chega em casa às seis horas da manhã. De sexta pra sábado eu estava visitando uns bairros junto com o subprefeito pra ver as crianças que estavam bebendo no bar porque a polícia não pode pegar, o subprefeito não pode pegar, só elas que podem pegar porque são conselheiras tutelares.

P/1 – Tá certo. Então Gerôncio, mais uma vez a gente agradece, foi muito enriquecedor ouvir a sua história e parabéns por isso tudo que o senhor faz aí.

R – E depois quando você ler aquele livro, você vai ver mais histórias.

P/1 – Tomara que o senhor e a associação continuem tendo vitórias na luta de vocês.

R – Enquanto eu puder, vamos lutar pra ver o sonho realizado.

P/1 – Muito obrigado.