Museu da Pessoa

Para que possamos respirar

autoria: Museu da Pessoa personagem: Delson Plácido Teixeira

Memórias do Golpe de 64
Depoimento de Delson Plácido Teixeira
Entrevistado por Bárbara Tavernard
São Paulo, 31/03/2004
Realização Armazém da Memória e Museu da Pessoa
CNG_06_Delson Plácido Teixeira
Transcrito por Karina Medici Barrella
Revisado por Ligia Furlan

P/1 – Boa noite.

R – Boa noite.

P/1 – Por favor, diga o seu nome completo, a data e o local do seu nascimento.

R – Delson Plácido Teixeira. Nasci na cidade do Rio de Janeiro, no dia 23 de novembro de 1936.

P/1 – E onde o senhor estava no dia do Golpe?

R – No dia do Golpe eu estava de vigília no Sindicato dos Trabalhadores de Empresas Telegráficas, Rádio Telegráficas e Rádio Telefônicas do Estado de Guanabara, onde eu era secretário geral. Estive lá do dia 31 até o dia primeiro, pela manhã, quando começaram as primeiras intervenções e invasões de sindicatos. E prisões, naturalmente.

P/1 – E qual foi a sua reação frente ao Golpe?

R – Olha, fiquei perplexo, não acreditava, parecia um pesadelo. Primeiro porque nós acreditávamos no esquema militar do Presidente João Goulart, segundo declarações do próprio titular do esquema, que era o General Assis Brasil. Eu me lembro de uma passagem do Dante Pellacani, que era Presidente do CGT, que representava o sindicato no Comando Geral dos Trabalhadores. Era uma organização semi-legal, que paralisava esse Brasil de ponta a ponta e que estava tentando pressionar o governo para a concretização das reformas de base: reforma agrária, reforma urbana, não à dívida externa, moratória, reforma universitária, etc. Então o Dante Pellacani veio da Bahia, e ao descer no Galeão, disse para o Brigadeiro Teixeira que a coisa estava feia na Bahia, e que o golpe já estava dado. O General Mourão Filho, o Coronel Carlos Guedes havia feito um levante em Minas Gerais, com o apoio do Governador Magalhães Pinto, e o Dante havia dito que o golpe já estava nas ruas. Um coronel se aproximou: “Olha, se quiser eu levanto alguns aviões, jogamos gasolina gelatinosa e acabamos com essa farra” “Não, deixe eles botarem as mãozinhas de fora, que isso é só o início de um Golpe”. Mas acontece que o Golpe veio pra valer.

P/1 – Então o senhor não acreditava?

R – Não, eu não acreditava de jeito nenhum.

P/1 – Mas o senhor estava de vigília.

R – De vigília, pois é, mas não tínhamos armas, ia fazer o quê? Eu me lembro que 500 marinheiros no Rio de Janeiro chegaram a pedir armas ao Almirante Aragão, e ele disse que não tinha ordem do Presidente João Goulart.

P/1 – E quando foi que o senhor assumiu a luta, antes ou depois do Golpe?

R – Bom, depois do Golpe eu parti pra clandestinidade. Eu estava iniciando meu curso de História na Faculdade Nacional de Filosofia, onde era o foco de agitação do Rio de Janeiro; melhor, onde o movimento estudantil era mais forte em todo o Brasil, depois no Caco, Centro Acadêmico Cândido de Oliveira, que era na Faculdade Nacional de Direito, ali na Praça da República. Eu fui afastado da faculdade, aí parti pra clandestinidade. Encontrei com uns sargentos na rua, soldados, intelectuais, apresentando pouco a pouco um pessoal que estava disposto a fazer alguma coisa, e chegamos a criar o Movimento 21 de abril, Tiradentes, que pouca gente fala nisso. Culminou no chamado atentado contra o governador da Guanabara, que era um governador golpista, o Carlos Lacerda. E esse movimento foi desbaratado. Descobriram, parece, uma dinamite na altura de Japeri, cuja intenção... Eu não participei dessas reuniões, a imprensa dizia que era pra dinamitar um trem que vinha de São Paulo pro Rio de Janeiro, na altura de Japeri. Essa convenção aqui em São Paulo foi pra lançar a candidatura do Governador Carlos Lacerda à presidência da república, mas eu acredito também que foi uma farsa montada, porque o Governador Carlos Lacerda, que foi um dos articuladores do golpe, já estava fora da jogada. Quer dizer, os militares já haviam descartado o Carlos Lacerda, como também o Ademar de Barros e depois o Magalhães Pinto, e se transformou num governo militar de muitos anos, uma ditadura de 21 anos.

P/1 – E o senhor chegou a ser preso?

R – A primeira vez que eu fui preso foi em Montevidéu, sequestrado em Montevidéu. Eu morava em Montevidéu, tinha ido passar uns meses lá e fui sequestrado, um trabalho de cooperação entre a polícia brasileira, uruguaia e depois transformou na Operação Condor, quer dizer, o assassinato de pessoas que moravam em outros países. Na Operação Condor participavam as polícias do Chile, do Uruguai, do Brasil, da Argentina e da Bolívia. Essa Operação Condor foi descoberta por um advogado paraguaio, Ayala, que recebeu até medalha do Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro, a Medalha Chico Mendes.

P/1 – Depois do senhor ter sido sequestrado o que aconteceu?

R – Aí não fiquei muito tempo preso, não. Fui encaminhado à Polícia Marítima e depois ao DOPS [Departamento de Ordem Política e Social]. Quando registraram minha prisão, eu já percebi que, naturalmente, não ia acontecer algo mais grave. Quando eles não registram é que desaparece, né?

P/1 – E como foi que o senhor escapou?

R – Não, eu não escapei, fui liberado. Eu tive uma boa assistência de um advogado famoso, Jorge Tavares, e como reserva Evaristo Moraes. Naquele tempo − foi em julho de 1966 −, a ditadura não sabia que rumo tomar ainda, estava na fase branda. Tanto é que eu, como preso político no DOPS do Rio de Janeiro, Estado da Guanabara, na época, era o único preso político.

P/1 – E o senhor acabou se exilando?

R – Fui levado pra Suécia pela Igreja Luterana, onde permaneci durante 17 anos. Eu trabalhei na rádio e televisão sueca muitos anos.

P/1 – E qual o impacto que o Golpe teve na sua vida?

R – Impacto? Foi um golpe de Estado, até hoje parece um pesadelo (risos), até hoje. E também o choque cultural ao chegar à Suécia. Se bem que recebemos um apoio sensacional do povo sueco e do próprio governo sueco, do então primeiro ministro Olof Joachim Palme, assassinado em fevereiro de 1986. Mas na Suécia nós tivemos muita facilidade, inclusive de denunciar os crimes das ditaduras, não só do Brasil, mas da Argentina, do Uruguai, do Chile, da Bolívia, o que acontecia na Namíbia, ocupada ilegalmente pela África do Sul. O cruel regime do Apartheid, na África do Sul, a intervenção norte-americana no Vietnã, no Camboja. A agressão norte-americana no Panamá, em vários países da Ásia e da África também.

P/1 – E quais os resquícios do Golpe no Brasil de hoje?

R – Pra mim, na verdade, esse golpe de Estado foi uma ação entre amigos. Eu digo isto por quê? Por exemplo, eu tive um amigo que trabalhava no Banco do Brasil. Após o golpe de Estado, ele foi algemado em pleno serviço, foi para o Cenimar, para o DOPS. Quem foi colocado no lugar dele? E assim foi na Petrobrás, onde várias pessoas foram demitidas, na Companhia Vale do Rio Doce, e várias empresas estatais. Quer dizer, foram os amigos, os parentes dos golpistas. Foi uma ação entre amigos. Foi aí que começaram as quadrilhas a atuarem, estão atuando mais do que nunca hoje em dia.

P/1 – Que quadrilhas?

R – As quadrilhas que existem em vários setores, no Ministério do Transporte, Ministério da Previdência, etc. Todos os escalões brasileiros.

P/1 – Alguma outra coisa que o senhor gostaria de falar?

R – Olha, atualmente eu atuo no Grupo Tortura Nunca Mais. No Rio de Janeiro eu sou suplente, aqui em São Paulo, atualmente, eu sou secretário do grupo. E nós continuamos na luta, porque essa anistia não foi nem geral, nem ampla, nem irrestrita, muitos companheiros não foram anistiados, muitos morreram. E depois nós nem vivemos uma democracia plena no Brasil, nós vivemos uma ditadura dos meios de comunicação, e para isso nós temos que atuar e continuar a luta para que o país faça as reformar necessárias, a reforma agrária, divisão de renda para início de conversa, reforma da educação. E nós estamos numa luta atualmente para acabar com a tortura, porque a tortura é crime hediondo, tanto segundo a Declaração da Organização das Nações Unidas como também na própria Constituição.

P/1 – E a questão dos documentos que até hoje continuam guardados, em sigilo?

R – Olha, é lamentável que o próprio Presidente Lula, contrariando a decisão de uma juíza que decretou a abertura dos arquivos secretos das Forças Armadas, o governo do Presidente Lula lamentavelmente recorreu. E o pior é que o Secretário Nacional de Direitos Humanos, o Mario Miranda, piorou ainda com as suas declarações, porque ele chegou a afirmar que o governo recorreu por uma questão técnica. Ora, nós precisamos mostrar ao povo brasileiro as pessoas que desapareceram, que morreram, que foram torturadas, pra que hoje possamos respirar um pouquinho. E se o Brasil não sabe, um dia vai ter que saber. Esse pessoal morreu pra que hoje em dia nós possamos respirar um pouco de liberdade, porque a democracia plena nós não conquistamos ainda. Temos resquícios de democracia, mas temos que lutar por uma democracia verdadeira, como na Suécia, na Dinamarca, na Finlândia, Noruega.

P/1 – E algum sinal de quando isso vai ser liberado?

R – Olha, eu não sei, nós vamos pressionar, vamos continuar reivindicando essa abertura, porque é inadmissível. A guerrilha foi 70, 72, tantos anos depois e nada, quer dizer, as pessoas continuam desaparecidas.

P/1 – Tá bom, então, obrigada.

R – Por nada.