Museu da Pessoa

Para Francisco

autoria: Museu da Pessoa personagem: Cristiana de Souza Guerra

Projeto Conte Sua História - Belo Horizonte Surpreendente
Depoimento de Cris Guerra
Entrevistada por Lucas Torigoi
Belo Horizonte, 11/09/2019
PCSH_HV812



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Realização Museu da Pessoa
Transcrito por Fernanda Regina
Revisado por Paulo Rodrigues Ferreira

P/1 – Cris, qual é o seu nome completo, local e data de nascimento?

R – Cristiana de Souza Guerra, nasci em Belo Horizonte, no dia 15 de agosto de 1970.

P/1 – Qual é o nome completo da sua mãe?

R – Dulce Maria de Souza Guerra.

P/1 – Dulce Maria de Souza Guerra.

R – O nome de casada, quando ela nasceu, era Dulce Maria Furquim Werneck de Souza e aí, nessa brincadeira, eu perdi o Werneck (risos).

P/1 – Como é a família dela?

R – A família da minha mãe é... A minha mãe é neta do Hugo Werneck, que é um cara que foi um pouco conhecido na cidade, tem até uma praça com o nome dele. O Hugo Werneck era um médico que veio do Rio e criou um... Acho que ele teve tuberculose quando mais jovem, foi tratado em algum lugar do Rio, e aí quando ele chegou em Belo Horizonte, um tempo depois ele lançou o sanatório Hugo Werneck, que era para tratamento de tuberculose, em um lugar com um clima legal. Então, era na região de Santa Luzia, que é região metropolitana aqui. Ele teve, acho que 11 ou 13 filhos, não sei, me falha a memória neste momento. A minha avó era a filha mais velha; das filhas, era a mais velha e tinha o mesmo nome da mãe dela: Dora. Ele também tinha um outro filho chamado Hugo, então, os dois tiveram alguns filhos e dos vários, tinham Hugo e Dora. O Hugo era o mais novo dos homens e a vovó era a mais velha das mulheres. E a vovó se casou com 20 anos, com o vovô Lindolfo - Lindolfo Teodoro de Souza - que era um cara que veio de Martinho Campos, de origem simples. Eu lembro que ela contava que ele trabalhou por uma semana como entregador de jornais, antes de se formar em Engenharia. E aí, depois, ele começou a trabalhar na rede ferroviária. E eles eram uma família que vivia muito apertada e tiveram duas filhas - a tia Marina e a tia Leda. Quando elas estavam com dois e um ano de idade, o meu avô morreu, com 32 anos - a minha avó tinha 23 - e ele teve um câncer, morreu muito rápido. Ela ficou praticamente três anos casada e quando ele morreu, um tempo depois, ela descobriu que estava grávida - tinha dois meses de gravidez. Então a minha avó foi uma mãe viúva, sozinha, que trabalhou desde cedo. Ela se tornou diretora do sanatório, em uma época em que as mulheres não trabalhavam, era uma mulher muito forte, nunca se permitiu casar novamente, morreu com 91 anos e, no final da vida, ela confessou que se arrependia de não ter se casado de novo. Acho que é isso, da família da minha mãe.

P/1 – E o teu pai, o nome dele qual é?

R – Fernando de Amel Brasiliense Guerra. Fernando de Amel é um nome francês, como se fosse um nome composto, ele era filho do (Jover?) e da Juracir. O meu avô era de Diamantina, minha avó de Ouro Preto, de famílias simples, famílias que não eram abastadas, mas vovô era muito amigo do Juscelino Kubitschek, na época eles fizeram o Seminário juntos, eles eram muito amigos. Então, vovô teve uma carreira meio de acompanhar o Juscelino, e se tornou presidente da FNM, que era a Fábrica Nacional de Motores. E eu não sei precisar as épocas, ele foi deputado também, foi prefeito de Diamantina, um pouco acompanhando a vida política do Juscelino. A vovó era uma professora primária, uma pessoa extremamente culta e interessada. Mas eles se casaram, era o segundo casamento do vovô - o vovô foi casado com a Ceci, que era irmã da vovó, eles tiveram dois filhos - o tio Mauro e a tia Magda - e depois de um tempo, quando a Ceci teve uma doença, eles eram pequenininhos e ela faleceu. Uma doença rara assim, naquela época, não sei exatamente que doença foi, aí o vovô paquerou a vovó, ela não queria casar com ele, mas ele acabou conseguindo. Depois o vovô e a vovó tiveram o meu pai, Fernando, e o meu tio Gilberto - Gilberto Filho. Então, o meu avô e a minha avó tiveram uma vida boa, eles tinham posses, mas eles não eram uma família tão tradicional porque eles não vinham de uma família tradicional. Então, eu sinto que essa coisa da família tradicional vinha muito mais da família da minha mãe.

P/1 – E não do seu pai.

R – Não do meu pai. Mas assim... Meu avô era um cara muito elegante, muito discreto, ele escrevia, sabia falar Francês, viajou muito para a Europa, papai pôde conhecer a Europa, mas é engraçado porque assim... Tem a questão do poder aquisitivo, mas eu acho que os valores eram mais próximos do que eu considero interessante. Assim... Eu acho que era uma família um pouco mais livre comparada com a família Werneck, que é bem a tradicional família mineira.

P/1 – Livre em que sentido?

R – Ah, livre de convenções. Não livre de convenções, mas menos apegadas às convenções, talvez. A família Werneck é uma família bem tradicional, em termos de aparências, casamentos. Acho que do lado da família da minha mãe o diferente soava bem mais estranho do que para o lado da família do meu pai; acho que é uma família mais tranquila.

P/1 – E vocês sabem, mais ou menos, o que os seus pais faziam na época em que eles se conheceram?

R – Sim, meu pai jogava basquete no Ginástico, ele era do time de basquete amador, mas um time bacana, na época. Eram dois times importantes: o time do Minas Tênis Clube e o time do Ginástico. O meu pai jogava basquete no Ginástico e minha mãe jogava vôlei, eles se conheceram lá. Apesar de minha mãe ter 1,55 e meu pai era alto para a época - ele tinha 1,83. Era um cara alto;

ele era considerado o primeiro cara que enterrava bola em Belo Horizonte, era Fernando Magrelo o apelido dele. Depois ele se tornou médico, fazia Medicina, mas eles começaram a namorar porque se encontraram no clube. Papai foi o segundo namorado da mamãe, namoraram seis anos e se casaram.

P/1 – Você tem irmãos?

R – Tenho. Eu sou a quinta filha, sou temporã, tenho dois irmãos e duas irmãs: o Flávio, o Marcos, a Patrícia e a Alexia, que são oito, sete, cinco e quatro mais velhos que eu, respectivamente. Eu, literalmente, a ‘rapa do tacho’, como diriam. Por causa disso, sou bem meio ovelha negra da família; eu quebrei uma harmonia. Isso explica muito da minha personalidade também.

P/1 – Você chegar nisso, mas antes...

R – A pessoa já se adianta, não é? (risos).

P/1 – Deixa eu perguntar, você nasceu em 1970, então é isso... Quais são suas primeiras lembranças que você tem, assim...?

R – Da infância?

P/1 – É, o que você se lembra?

R – Eu não tenho... Eu recuperei algumas fotos, não tenho lembranças de muito pequenininha, mas eu lembro, assim, minha mãe não trabalhava nessa época, depois ela acabou fazendo Faculdade e tal, mas lembro muito dos meus irmãos. Lembro de um tempo muito próprio meu, lembro de brincar muito sozinha, porque como existia uma diferença de idade entre mim e meus irmãos... Lembro de um quintal, no bairro de Lourdes, com uma jabuticabeira, que tinha um roda-roda e um escorregador, acho muito legal isso. Lembro de brincar muito sozinha, lembro de meus irmãos implicando muito comigo porque... Dos meus pais e meus irmãos, assim, é uma lembrança até um pouco de horror, porque eles falavam: “Ah, você está muito chata, muito mimada”. Então, eu acho... A minha visão da infância - é claro que a gente romanceia tudo isso, a gente põe um drama nessa história - mas a minha infância eu lembro de coisas muito doídas, também lembro de coisas legais. Mas acho que hoje sou mais leve do que era antes - era muito reclamona e tal. Eu lembro da minha babá, que ficou comigo até os cinco anos, eu era apaixonada por ela, a Zá - o nome dela era Rosa - lembro que ela se casou com um cara chamado Arcanjo e ele não deixou ela trabalhar mais, então ela teve que parar de trabalhar lá em casa e isso foi uma coisa muito doída para mim. Lembro de um suco de tangerina que tinha na casa da vovó, na Pampulha, todo domingo, que era um suco de mexerica daquele quintal, era o melhor suco do mundo. Eu não gostava de comer o almoço e a vovó tinha uma empregada egípcia, que veio com o “seu” Antônio - ela era Vicenza, ela era casada com seu Antônio, eles eram fugidos da guerra da Itália, ela foi do Egito para a Itália e vieram os dois. A Vicenza trabalhava na casa da vovó, o “seu” Antônio também e a Vicenza sempre colocava o suco de tangerina na minha frente, com o prato, com a comida, e falava: “Come tudo, depois toma o suco”. E eu chorava, chorava, dá até para escrever uma crônica sobre isso, porque é traumático. O meu suco predileto é o suco de mexerica, é o melhor suco da vida, então eu lembro de sentar numa mesa grande e eu sentava em cima dos meus pés, ajoelhava para poder ficar mais alta junto com as pessoas. Lembro de várias coisas grandiosas, assim, e muito dessa casa da minha avó. A gente falava: “Vamos para a Pampulha”. Então eu falava: “Nós vamos voltar para Belo Horizonte?” Porque a Pampulha, naquela época, era muito longe, então era como se fosse fora de Belo Horizonte. Lembro da rádio Itatiaia, quando meu pai ligava... A gente no carro, voltando da Pampulha, e ele colocava na rádio Itatiaia, no jogo, e eu ouvia: “Itatiaia”. E era sempre uma depressão porque era o fim do domingo. Então essas lembranças ficam muito, habitam a minha memória afetiva.

P/1 – Como seria essa viagem de ida e volta para a casa da sua avó? Como é que vocês faziam?

R – A gente ia em um carro. O meu pai era o cara que mais teve carro na vida, ele era apaixonado por carro, então ele trocava de carro muito, e sempre comprava um carro com um ano de uso, mas adorava trocar. Acho que a gente fez as contas, papai teve mais de cem carros, uma coisa louca. Então eu lembro... Podia ser um Passat, podia ser um Fusca, teve vários carros e sempre iam sete nesse carro. Era sempre uma viagem gostosa, porque passar o dia na Pampulha era muito legal. A casa da vovó, que era uma casa de fim de semana, tinha sido a casa do JK quando ele fez o complexo arquitetônico da Pampulha; ele fez uma casa para ele, para Sara, mas a Sara achava a Pampulha muito longe, então ele não ficou muito tempo com essa casa. Depois ele vendeu para uma pessoa, depois a pessoa vendeu para uma outra pessoa e, um dia, o meu avô conseguiu comprar essa casa. Então, a casa tinha um significado muito grande para a gente, era uma casa Niemeyer, que hoje é a Casa Kubitschek, é um Museu da Casa Modernista, então a gente tem um amor muito grande por essa casa, eu tenho um amor muito grande por esse Museu, porque quando eu vou lá, eu vou visitar a minha infância. É uma casa com jardins Burle Marx, que depois passaram a ser os jardins da vovó Juju – Juracir - que ela mesmo cultivava, ela vivia no jardim. Eu tenho uma história muito especial com a minha avó, era uma viagem muito legal, sempre a ida muito alegre e a volta muito triste porque era o fim do domingo. A gente ia no começo do dia e voltava no fim do dia; ia um pouco antes do almoço, umas dez, onze horas da manhã e voltava, sei lá, seis horas da tarde, sete horas da noite. Aí tinha suco de tomate antes do almoço, tinha azeitona azapa, aquela azeitona preta grande. Eu tenho memórias muito vivas desses gostos e dessas... Eram muito gostosos os domingos na casa, cheiros, muitos gatos, tinha muito gato na casa da vovó - a vovó chegou a ter 30 gatos - depois ela acabou morando nessa casa porque eles tinham uma casa aqui na Savassi e outra casa lá, mas o vovô morreu em 1977 - eu tinha sete anos - então a minha relação com vovô foi mais curta, eu tinha uma relação meio de medo com ele, porque era uma casa do Niemeyer, com guarda-corpo do Niemeyer, o Niemeyer tinha um compromisso com a estética, não com a segurança, então, a gente ficava brincando muito naqueles corrimãos e não era guarda-corpo de nada, a gente não estava protegido. Então, eu lembro sempre do meu avô dizendo: “Você vai cair daí”. Eu só tinha essa relação com o meu avô. A minha avó, que eu tive tempo de conhecer, viveu até 2004, graças a Deus, morreu com 95 anos, me sinto muito próxima e acho que a gente tem muitas semelhanças no jeito de ser. Eu acho que minha avó era uma espécie de alma gêmea que eu tive - duas almas gêmeas de idades diferentes.

P/1 – Por que você acha isso?

R – Porque a gente era muito parecida, a minha avó era uma figura muito curiosa, muito moderna, ela falava que queria ser pintora e meu bisavô não deixou. Ela falava que se apaixonou por um nordestino e queria fugir com ele, um paraibano, e aí não fugiu com ele, casou com meu avô. Ela falava que pelo paraibano tinha sido uma paixão, pelo vovô era amor, mas era um amor diferente. A gente conversava sobre coisas muito profundas, a gente tinha uma conversa muito de igual para igual, minha avó era uma mulher muito à frente do tempo dela. Ela sempre teve uma ligação com as roupas, com a maneira de vestir, ao mesmo tempo em que vivia no jardim catando folha; era uma mulher baixinha, parecia um gnominho, 1.50, super ágil, ela subia em árvores, com 80 anos, com muito mais destreza do que eu. Era uma figura muito viva, eu acho que eu trago muito desse certo humor que eu aprendi a ter, eu aprendi muito com a minha avó. Eu acho que é uma figura que mora muito em mim, me faz muita falta.

P/1 – Isso desde sempre essa relação com a sua avó?

R – Desde pequena, porque a gente morava em uma casa em Lourdes, depois papai comprou... Surgiu o bairro São Bento, que era uma coisa nova em Belo Horizonte, tinha uma vista legal, até eu hoje não perdoo papai por ter saído de Lourdes, porque é uma localização muito legal, muito próximo de tudo, mas naquela época São Bento brilhou aos olhos dele, então ele vendeu a casa em Lourdes e a gente foi para o São Bento. Mas antes da gente ir para o São Bento, a gente chegou a morar em um apartamento durante um tempo e esse apartamento não estava pronto, então moramos cinco meses na casa da vovó e eu dormi na cama de casal com ela. Ela já era viúva, então eu tinha oito, nove anos - oito anos - e eu passei cinco meses sendo uma companheira mais próxima, convivendo mais com a vovó e eu acho que isso nos aproximou muito. Eu tinha uma ligação muito forte com ela, talvez por eu não ter um par dentro de casa, porque minhas irmãs eram uma, par da outra. Meus irmãos, também, e eu me sentia mais só. Então, acho que a vovó acabou completando, talvez entendendo melhor a minha dor de não ter um par. A gente tinha uma cumplicidade muito legal, construída com muita convivência, muitas coisas que ela me contou, sabe?

P/1 – Você estava falando da sua avó. Quero lhe perguntar: você falou que vocês iam de manhã na casa da sua avó, aos domingos. E como era a programação?

R – Era ficar lá. Aí, tinha uma varanda, de fora a fora, com vidro, então eu lembro que tinha uma mesa nessa varanda, com bastante jornal e livro para ler, fotos - vovó era muito fã dos álbuns de fotos, acho que herdei isso dela. A gente ficava ali conversando sobre as coisas, os acontecimentos da semana, lendo algum livro, meu pai mais calado, meu avô também. Depois que meu avô morreu, meu pai entrava ali nesse lugar do vovô, ficava meio que ocupando esse espaço, minha avó sempre contando, falando as novidades, então tinha o jornal Estado de Minas ali, a gente falava do que tinha acontecido. Eu, criança - eu e minhas irmãs, principalmente - a gente brincava muito nos jardins ali, que tinha plantas, dava para esconder, dava para fazer muita coisa, muitas pedras, o terreno grande, com quase três mil metros quadrados, lá tinha piscina, que a vovó costumava contar que era a primeira piscina residencial de Belo Horizonte, uma piscina grande. Então tinha a hora de, quando estava com um tempo bacana, a gente ir nadar. Vovó, às vezes, aparecia de roupa, com sutiã por cima da roupa, com máscara de frio, eu lembro disso, tem até uma cena, uma máscara em cima do rosto, de tricô, e aí ela brincava, a gente jogava ela na piscina. Então, assim... Minha avó era uma figura muito criança, muito legal, era muito divertido. Eu acho que os dias mais felizes da minha infância, sem dúvida, foram na Pampulha.

P/1 – Vocês comiam o que no almoço? Você lembra?

R – Ah, tinha os pratos tradicionais. Tinha uma coisa que eu aprendi a gostar só depois, que era o bacalhau que a Maria fazia. Maria era uma empregada que é viva ainda, hoje ela está em uma casa de repouso, a gente ajuda financeiramente, ela ficou quase 50 anos - mais de 50 anos - com a vovó. Negra, bem aquela coisa, tinha uma história que ela tinha sido, quando eles moraram no Rio, ela foi chamada para ser mulata do Sargentelli, mas não aceitou. A Maria cozinhava muito bem, Maria não sabia ler, tentei ensinar Maria a ler, não consegui, mas cozinhava maravilhosamente bem e ia todos os dias ao Mercado Central, então ela sempre comprava o café fresco, o peixe fresco. Maria fazia um surubim à milanesa maravilhoso; fazia esse bacalhau, que depois eu aprendi a gostar; fazia o vatapá, que era um prato... Não o vatapá tradicional, porque a família da minha avó tinha alguma coisa, não sei explicar de onde veio isso, que era um vatapá da nossa família, que misturava frango, camarão, leite de coco, aí tinha um como se fosse um... No lugar do arroz era tipo um creme de coco, era maravilhoso. Tinha o bife à milanesa e a batata frita mais gostosa do mundo, que é muito parecida com a do Bolão, que é uma batata mais gordinha, assim. Tinha muito milho cozido, milho verde, então quase todo almoço tinha milho verde. Antes tinha o suco de tomate como se fosse um aperitivo, assim, em um copinho, temperado e azeitoninha azapa. Às vezes, a Maria fazia pururuca também como entrada; era um lugar em que a gente comia muito bem. Mas eu, no começo, lembro dessa coisa de não comer bem, acho que demorei para aprender a gostar dessas coisas, então, eu gostava do milho cozido, gostava da azeitona, mas comer mesmo, bater um pratão foi uma coisa que demorou. E aí, quando no fim da vida da vovó, nos últimos anos de vida dela, íamos eu e meu irmão - meu irmão com a mulher dele, eu com o meu marido na época... Teve uma época em que eu morei com a vovó, antes de me casar, eu morei nos fundos dessa casa. A gente sempre frequentava ali e sempre a comidinha da Maria. É uma comida muito afetuosa, não é uma comida típica mineira, mas uma comida que tem um significado muito grande para mim. Assim... Não tem preço, é de ter muita saudade mesmo.

P/1 – Vocês ouviam muita música dessa época? Como era isso?

R – O vovô ouvia algumas músicas, acho que a vovó colocava algumas músicas e tem uma coisa interessante que, tempos depois, eu fui gostar de um cara, que é o Henri Salvador, que é um cara da Guiana Francesa, que recentemente faleceu, e ele era como se fosse uma bossa nova francesa e eu adorei. Aí, anos depois, eu estava indo na casa da vovó, ouvindo no meu carro, eu entrava com o carro na garagem, a vovó ouviu e falou: “Que linda essa música”. Eu falei: “Ah, é o Henri Salvador”. Ela falou: “Era o cantor preferido do seu avô”. Então assim... Vovô tinha muito bom gosto, acho que ele ouvia muito jazz, muitas coisas dos anos 50, 40. Ele tinha uns discos com umas capas legais, dos anos 60, que o design dos anos 60 era incrível. Isso até está eternizado lá na Casa Kubitschek, fizeram alguns quadros com alguns discos do vovô, mas eu não sei se essa música está tão presente, eu acho que é uma coisa meio inconsciente, que eu percebo que talvez no meu gosto musical tenha ficado. Mas eu não acho que a música era protagonista, ela ficava meio de fundo, assim.

P/1 – Nessa época que vocês iam muito na casa da Pampulha, vocês mesmo moravam aonde?

R – No começo, a gente morava no bairro de Lourdes, na rua Curitiba, acho que era 2102, eu lembro até o telefone. E depois a gente se mudou para o Vila Paris que era pertinho do São Bento, moramos dois anos ou nove meses, não sei, em um apartamento tríplex, que era um máximo. Nossa, que legal! Mas papai não aguentou apartamento e acabou comprando essa casa no São Bento, onde eu morei dos 10 ou 9 - dos 10 até os 27 anos. Minha mãe faleceu quando eu tinha 24, então eu morei os últimos anos da vida da minha mãe lá.

P/1 – Como era essa casa?

R – Essa casa é interessante porque quando eu sonho com a minha família, eu sempre sonho com essa casa. Era uma casa estilo colonial, um cara que construía várias casas no São Bento, bem com o estilo meio clichê, assim. Tinha tijolinho, tinha janelas coloniais e ela tinha uma piscina na frente, que foi uma febre quando a gente se mudou - depois a gente não ligava mais para a piscina. Com uma garagem do lado da piscina e tinha uma sala de jantar que era onde tudo acontecia. Dois andares na casa, então, na sala de jantar, na mesa, eu acho que a mesa da família, onde a gente almoçava, principalmente, e nos domingos, onde a gente almoçava. É um cenário que a gente lembra muito, onde as coisas da família acontecem, os conflitos, as coisas boas, as coisas difíceis. Tinha uma cozinha grande, mas não era enorme. E aí o segundo andar tinha quatro quartos, que era o meu quarto com as minhas irmãs; o quarto dos meus irmãos; uma sala que a gente chamava de sala de som, onde meu pai depois acabou comprando uma sinuca e colocou lá; o quarto dos meus pais, que era uma suíte; e tinha o banheiro, que era o banheiro de todos. E aí esse hall onde tudo se encontrava, no segundo andar, era onde ficava a televisão. E a televisão era meio que o centro da casa, porque meu pai passava muito tempo na frente da TV, então tudo que acontecia ali ao redor era alguma coisa que a gente não podia falar muito alto porque a gente atrapalhava a televisão do papai. Às vezes, a gente queria conviver, mas durante a noite, a televisão estava sempre ligada. Eu me lembro várias vezes de chegar em casa do trabalho, ou da própria escola, quando eu só estudava, e querer contar alguma novidade para a minha mãe, minha mãe fazendo tricô ali, fazendo companhia, e minha mãe em um canto da sala, meu pai em outro. Sempre na frente da TV, com o cinzeiro dele, porque ele foi fumante muitos anos, então tinha um cinzeiro de pé do lado dele e aí eu tentava contar as histórias para mamãe e papai ficava aumentando a TV. Papai era uma figura difícil, uma figura um pouco... Ah, acho que a gente tem muitas vezes... principalmente, nessa época... A gente tem uma imagem um pouco amedrontada, eu tinha um pouco de medo do meu pai. Mas depois eu pude conhecê-lo, quando a mamãe faleceu, porque só eu morava com ele e aí a gente teve uma chance de se encontrar. Mas durante muito tempo era uma imagem que eu temia um pouco.

P/1 – E seus irmãos também? Como é que era com seus irmãos?

R – Meus irmãos tinham relacionamentos diferentes. Meu irmão mais velho era mais próximo do meu pai; minha irmã do meio era muito próxima do meu pai. Mas tanto meu segundo irmão, o segundo, que é o Marcos, quanto a Alexia, que é a quarta, e eu, tivemos mais dificuldade de lidar com papai. Acho que mamãe... Era bem a típica casa machista, em que a mulher cuidava do marido. Então, meu pai era médico, trabalhava muito e estava sempre cansado, essa era a imagem que a mamãe passava. Eu costumo dizer que a mamãe tentou fazer uma ponte, mas o que ela fez foi um muro. Porque a gente tinha uma imagem muito idealizada para um lado negativo do papai, então, a gente temia muito o papai. Papai era um cara mais fechado, na verdade. Um cara delicadíssimo, acho que ele era uma pessoa que tinha depressão. Ele foi alcoólatra, então ele bebia um pouco, ficava um pouco diferente, acho que uma pessoa que sofria muito com a profissão, porque ele era cardiologista, amado pelos pacientes, mas assim... É claro que a relação que ele tinha com os pacientes era muito diferente da relação que ele tinha com os filhos, porque é diferente mesmo, a gente é diferente. Então, o meu pai era um cara que ficava muito triste porque ele perdia muitos pacientes. A pessoa que trata do coração... Muitas vezes, a pessoa tem uma cardiopatia e morre de uma hora para outra, então acho que tinha uma frustração com a Medicina, de não poder fazer tudo, não poder sempre salvar as vidas. Acho que isso é a minha análise, porque eu brinco que tenho um lugar na arquibancada. Quando eu entrei na minha casa, o jogo já estava rolando, então eu fiquei assistindo. Não à toa, depois disso, muitos anos depois, eu me tornei uma cronista, então eu sou grata a isso. Mas acho que tenho um olhar sempre muito analítico para essas coisas, acho que meu pai era uma pessoa que tinha a tristeza dele e que não falava sobre isso. Ao homem muitas vezes é imputada uma posição de provedor, de dar conta, de não chorar, e a minha mãe se colocou na posição de servir, pensava muito pouco em si mesma, acho que é, mais ou menos, isso. Tem um aprendizado aí, não é? A gente acaba aprendendo aquilo que a gente quer para a gente e aquilo que a gente não quer.

P/1 – A sua mãe era, mais ou menos, assim então? Que você se lembra dessa época?

R – É. Minha mãe era uma figura muito doce, muito mãezona, carinhosa com todo mundo, mas, assim... A figura do papai era muito importante para ela. Então assim... Eu acho que isso pautava muito a nossa relação, não é? A relação de todos em casa. Havia comidas que eram do papai, na geladeira. Quando a gente abria a geladeira, a gente falava: “Pode comer isso?”. Então era uma figura quase que um rei e ela era uma espécie de alguém... Uma serva ali. Acho que não foi meu pai quem impôs isso, acho que era uma coisa dela também, não é? É o que ela aprendeu, passou para lá. E os dois eram muito apaixonados um pelo outro, mas eu acho que foi um casamento muito difícil, eles viveram a vida toda juntos, a vida toda dela, mas tinham muito sofrimento, eu acho, muitas coisas ocultas, muitas coisas que a gente percebia. Com 15 anos, eu descobri que meu pai tinha alcoolismo e acho que essas coisas nos constituem, não tem jeito, não tem como você esconder, não tem como. Eu estou aqui falando uma coisa que vai ficar eternizada e eu não vou contar essa história, acho que essa história é muito importante, esse detalhe é muito importante. Esse é meu filho... Gente, vou abrir para ele.

P/1 – A gente estava conversando agora então. Você falou dos móveis da casa, como é que era isso? Você se lembra bastante?

R – Lembro. Na minha infância, eu lembro de ver alguns móveis na casa dos meus avós, nessa casa de fim de semana - que acabou virando a residência da vovó, mais tarde - e eram móveis bem anos 50, 60, acho que dos anos 50, então, tinha pé palito e tal. Muitos móveis bonitos e eu tinha os meus prediletos. Assim... Tem um que não está lá mais, que era uma espécie de divã, acho que ele foi para restaurar e não voltou. Porque na casa da minha avó, nessa casa que é a Casa Kubitschek hoje, tem um mezanino muito bonito, com uma escada, com uns degraus presos na parede, é o único ponto onde os degraus estão presos, assim. Era super... E com um corrimão, assim, nada seguro para as crianças, mas muito bonito. Tem uma foto da minha mãe, no dia do casamento, que a festa acho que foi lá, com o vestido dela, descendo os degraus. Esse mezanino, para onde esses degraus levavam, era o lugar onde eu me escondia quando eu estava um pouco chateada, então, em algum momento eu ficava chateada com alguma coisa que meus irmãos tinham me dito, sei lá, papai me deu alguma bronca, então eu subia ali nesse mezanino e ficava ali escondida vendo, não é? Tinha uma janela bonita para a lagoa da Pampulha e era um lugar em que eu me sentia incógnita, mas, ao mesmo tempo, eu ouvia o resto da casa, não é? Então assim... Em vários lugares tinha móveis maravilhosos e tem uma cadeira, uma poltrona, que eu acho que é do Zanini, em formato de Z, assim, que eu sempre falava assim: “Nossa, um dia eu vou herdar essa poltrona, ela vai ser minha”. E não foi porque a casa foi tombada, tombada com os móveis e foram móveis que foram comprados pelo vovô e pela vovó. Acho que essa coisa do bom gosto, de um gosto minimalista do vovô e da vovó ficou muito em mim. Acho que eu herdei isso, aprendi a gostar, aprendi a apreciar. Tenho uma relação muito... Tenho um orgulho, não escondo meu orgulho dessa referência estética.

P/1 – Nessa época, como foi você entrar na escola? Você se lembra? Quais são as primeiras coisas que você se lembra dessa página da sua vida?

R – Olha, eu lembro da minha primeira escola, que na verdade, foi a segunda, porque depois a mamãe me contou que eu fiquei uma semana na escola Maria Clara Machado, mas na primeira semana eu peguei piolho (risos). E quando mamãe foi me buscar um dia, eu estava isolada, como se fosse assim: “Olha, pegou piolho, pega aí”. E a mamãe ficou muito ofendida, ficou muito triste e me tirou dessa escola, então eu não lembro. Acho que deve ter ficado marcado em mim, mas eu, realmente, não me lembro. E a mamãe me colocou em uma escola chamada Colibri, que era perto da nossa casa, no bairro de Lourdes, que era uma escolinha muito legal e eu tenho lembranças muito legais, a gente usava um uniforme, tipo uma saia escocesa plissada, xadrez, escocesa, uma blusinha branca, uma gravatinha, sapatinho boneca. É uma época muito feliz, muito legal. Eu lembro um pouco das professoras, das donas da escola, tinha a tia Lúcia, tia Mirtes, que eram irmãs ou primas. Eu lembro da Carminha, que era uma funcionária da escola que ficava anunciando quando os pais estavam buscando, quando a minha mãe ia me buscar, então ela falava no microfone o nosso nome para a gente ir. A gente chamava ela de Carninha, eu a chamava de Carninha, era uma época muito legal da escola. Eu ia a pé para a escola, quem me levava era a minha babá. A escola ficava na rua Curitiba, eu também morava na rua Curitiba só que mais atrás, alguns quarteirões antes, e depois, na terceira série, eu fui fazer a terceira série primária no colégio Loyola, já foi um colégio maior e aí eu tenho alguns traumas de ser muito grande, de me sentir muito inferiorizada. Eu era ruim de bola, então as aulas de Educação Física eram muito difíceis porque só tinha jogo com bola e eu era péssima de bola - eu fazia ginástica olímpica fora da escola. Mas são coisas da infância, eu acho que para mim, criança, tudo era muito grande, difícil e sofrido; hoje eu acho muito engraçado isso, sem dúvida, não tem como não falar sobre isso. As minhas amizades de escola não ficaram para sempre, as minhas amizades são mais recentes, a escola deixou lembranças. Recentemente, a gente teve um encontro de 30 anos dos formandos do Loyola e foi muito legal, eu encontrei com essas pessoas e tal, mas não é uma coisa que eu trago, eu não tenho essa nostalgia da escola: “Ah, que saudade do tempo da escola”. Eu tenho saudade da casa da Pampulha, mas eu não tenho saudade do tempo da escola, não é uma coisa que eu fico lembrando com vontade de reviver, não.

P/1 – Você falou de alguns professores, alguns lhe marcaram? Quem mais você acha?

R – Eu não lembro dos nomes dos professores mesmo, eu só lembro mais adiante de alguns professores, já no Cientifico, não é? Que a gente chamaria hoje de Ensino Médio, mas aquela época... Deixa ver se eu lembro de algum nome... Não, eu lembro das coordenadoras - da tia Mirtes e da tia Lúcia, que eram as donas da escola. A gente tinha uma relação muito afetiva com elas, mas eu não tenho nenhum professor dessa época, acho que a minha memória falhou.

P/1 – E você tinha alguma matéria de que você gostava mais? Como era isso? O que você gostava mais de fazer?

R – Tem uma coisa da escola que eu lembro, dessa escolinha, que uma vez teve um desfile de Dia das Mães que a gente tinha que pegar uma... Aí tem sempre uma relação, como eu tenho uma relação com a moda, isso me vem. A gente tinha que pegar alguma coisa no armário da mãe e desfilar. Então eu peguei uma bata da minha mãe e desfilei como se fosse um vestido, eu não esqueço isso, foi lindo. A matéria, mais tarde, eu acho que eu vim a gostar muito de Português, gostava de Matemática também. Não gostava de Geografia, nem de História, que dó, deveria ter gostado. Gostava de Ciências também. Mas assim... Acho que eu gostava muito de matérias mais humanas mesmo, talvez a História fosse mais bacana que a Geografia, mas eu não tive bons professores, eu não tive professores que me marcaram: “Nossa, aprender História era muito legal”. Eu acho que isso é uma coisa que é do talento do professor. Mas tive bons professores de Português, assim. Então, acho que a relação com a escrita começou porque, com treze anos, eu comecei a escrever diários - que era a minha terapia - e isso é muito definidor de outros destinos, assim, da minha vida.

P/1 – Você falou uma coisa que eu achei interessante, que é de olhar distanciado as coisas. Era mais ou menos isso que estava se criando nessa época?

R – Eu tinha um sentimento de estrangeira, um sentimento de ET na família, como se eu não encontrasse meu lugar. E eu acho que não encontrar o meu lugar, acabou me fazendo ter um lugar de espectadora. Então, eu observava muito a vida dos outros e escrevia muito sobre a minha própria vida, uma escrita muito voltada para mim mesma, mas acho que isso foi muito bom, porque percebo que hoje tenho lembranças da minha família, da minha história, da história da nossa família, que meus irmãos falam: “Nossa, como você lembra disso?”. Ficaram coisas muito marcadas. Eu acho que isso é muito legal, hoje eu vejo com bons olhos; antes eu via tudo muito sofrido e tal, mas isso rende crônicas deliciosas, é muito legal.

P/1 – O que você se lembra - que você goste de lembrar - disso que você escreveu dessa época? Alguma história... Você falou da mesa da sua casa, não é? Achei interessante isso.

R – É. Da mesa de jantar da minha casa, eu usava muito para fazer dever de casa, engraçado. Eu não lembro de coisas que eu escrevi, porque eu acho que eu escrevia tão... Era tão ridícula minha escrita que talvez eu falasse muito de mim, da minha sensação. Depois era uma coisa de arrumar namorado, porque eu vim de uma casa muito machista, então eu acho que ficava muito claro que a gente estava sendo preparada para casar. Durante muito tempo, esse foi o centro da minha vida. Hoje eu entendo que não tinha nada a ver, mas naquela época era sempre namorado; meu primeiro namorado eu só tive com 15 anos, Nossa! Então, é como se eu me sentisse excluída. Eu tenho uma lembrança - que até estou escrevendo sobre isso - de quando eu era pequena e meu nariz sangrava muito. Então, às vezes, eu ia para uma festinha de criança e tal, e meu nariz sangrava e sumia, tipo, eu ficava meio cega, era aquela sensação assim: “Meu Deus, meu nariz está sangrando”. Aquele mar de sangue e eu não tinha ficado menstruada ainda, então eu só menstruei com 14 anos e eu era louca para ficar mocinha, não é? As minhas colegas já tinham corpo de mulher e tal e eu sempre muito magrinha, no Loyola, no colégio Loyola, eu tinha apelido que alguns colegas me chamavam de “Amostra grátis” porque eu era muito pequenininha. Eu lembro da Manuela, que era uma moça que trabalhava lá em casa, ela era irmã da Rosa, que tinha sido minha babá. Quando a Rosa saiu, que o marido dela a proibiu de trabalhar, a Manuela foi trabalhar lá em casa. Eu lembro que um dia ela falou assim: "Mas é por isso que essa menina não menstrua, esse nariz está sangrando, teu sangue está vindo para o lado errado”. Muito engraçado isso, não é? Uma lembrança muito divertida. Mas eu acho que essa coisa do nariz sangrar - não sei se eram tantas vezes - mas eu me lembro de estar no meio de algumas crianças e aí as pessoas terem que me acudir porque o nariz sangrava. Então assim... Isso é horrível porque eu me sentia muito exposta. Fico pensando no tamanho que as coisas têm quando a gente é criança: as coisas são grandes, a gente é pequeno, mas as coisas são muito grandes. Depois, com o tempo, tudo vai tomando sua dimensão mais sensata, não é? Mas a minha escrita era sempre sobre essa inadequação. Eu lembro de escrever cartas para os meus pais, assim... Escrever carta para a minha mãe falando de amor, escrever carta para o meu pai. Uma tentativa de ser ouvida, acho que era um pouco isso.

P/1 – Mas você mandava para eles ou não?

R – Eu entregava, sim, deixava em algum lugar. Eu tinha uma paixão muito grande pela minha mãe, eu tinha dificuldade demais de ficar longe dela, se ela tinha que viajar, alguma coisa. Um dia longe da mamãe era um terror, eu tinha uma relação muito próxima. Eu lembro da minha mãe na cama de casal dela, falando ao telefone - naquela época não tinha as coisas que a gente tem hoje, então a forma de comunicação das pessoas era o telefone. Mamãe recebia telefonemas das amigas e, às vezes, ficava horas conversando e era um telefone com fio, não é? Então ela se sentava na cama de casal e eu me deitava ali do lado, ao alcance da mão dela, ela ficava fazendo cafuné em mim. Era um momento em que eu tinha a atenção dela, mesmo que não fosse totalmente dedicada, e era muito especial, assim... Muito legal.

P/1 – Quando você estava, vamos dizer assim, na adolescência, as coisas começaram a mudar nesse sentido, você acha?

R – Acho que sim, mas eu acho que demoraram para mudar. Eu fui para a Faculdade de Comunicação, de tanto escrever acabei indo para a Faculdade de Comunicação, não sei como, eu acho que eu tinha uns primos publicitários que acabaram virando exemplo para mim e resolvi que eu ia fazer publicidade, mas eu ainda era muito...

P/1 – No Ensino Médio isso?

R – É. Já decidi que eu queria fazer... Eu não lembro se decidi que queria fazer Comunicação, no sentido mais amplo, ou se eu já sabia que queria ser publicitária. E aí, entrei na Faculdade de Comunicação, na UFMG, que não era publicidade no começo - os dois primeiros períodos você fazia junto com os outros e depois é que você definia - era a partir do terceiro período. Mas eu já sabia que queria trabalhar com Comunicação. Mas assim... Quando eu entrei na Faculdade, foi muito legal, foi muito melhor. Mas acho que fui muito sofrida durante muito tempo, essa coisa de arrumar namorado, e aí era um namoro atrás do outro, não é?

P/1 – Como é que foi sua primeira vez? O primeiro namorado que você teve, como é que era essa questão?

R – Primeiro namorado chama Guilherme, a gente é até amigo hoje. Eu tinha 15 anos, ele era filho de um amigo do meu pai, que tinha jogado basquete com o papai e aí eu fui fazer o Encontro de Jovens da igreja e ele estava nesse Encontro. Eu fiquei apaixonada por ele dois anos. Ele usava aparelho fixo, muito engraçado, por isso que eu me apaixonei por ele (risos). Ele namorou uma amiga minha, ele era super namorador, assim. Ele namorou uma outra amiga minha, acho que depois eu era a outra da fila, não é? Aí, a gente namorou cinco meses, eu era completamente apaixonada por ele, aí fomos apaixonados e tal, depois de cinco meses ele me deu um pé na bunda. Nossa! Como doeu, meu Deus, primeira dor de amor; dor de amor é um negócio muito ruim, mas passou. Aí eu só tive um namorado sério mesmo depois, com 19, 20 anos, meu primeiro namorado mais sério. Aí foi um namoro mais adulto, também sofri, foram dois anos, a gente terminou, mandava cartas enormes.

P/1 – Já na Faculdade?

R – Já na Faculdade.

P/1 – E você falou do seu pai, seu pai é... Desculpa, o seu avô, ele era do partido do JK, então? PSD?

R – É. Acredito que sim, eu não tenho essa lembrança muito clara, mas, sim, ele foi deputado, com apoio foi nomeado deputado, foi nomeado prefeito, depois o último emprego dele era presidente do Tribunal de Contas. Então assim... Ele teve cargos, acho que eram cargos nomeados. Mas era um cara muito ético, eu acho assim, pelo menos é a visão que eu tenho, não é? Eu acho que o vovô era um cara muito... Nunca foi um cara que enriqueceu, ele tinha uma coisa muito da ética, era muito marcante na personalidade do vovô.

P/1 – E vocês viveram... Você nasceu no meio do período da ditadura militar, não é?

R – Sim.

P/1 – Vocês viveram isso? Isso mudava alguma coisa na sua vida?

R – Então... Eu sou de uma família muito tradicional, acho que, sinceramente, como acontece com algumas famílias hoje em dia, eu acho que a ditadura militar não significou nada para o meu pai. Meu pai não era um cara de esquerda ou que estivesse... Meu pai chamava o Golpe de 64 de Revolução. Acho que eu precisei entrar na Faculdade de Comunicação, eu era uma criança muito alienada, muito alienada. Eu tive contato mais com livros porque eu olhei mais para o lado dos meus irmãos. Acho que sou um pouco ovelha negra nesse sentido. Então assim... A minha leitura tem mais a ver, o que eu procurei para ler tinha mais a ver com observar meus irmãos, observar meu pai, porque a ala feminina da minha família era mais alienada, mais voltada para fazer Faculdade e casar. Então, eu não vejo isso assim. Existe uma admiração pela figura do JK, porque era muito amigo do vovô e a vovó Juju tinha o pin da campanha do JK, ela usava até o fim da vida, assim. Então ela tinha uma paixão pela figura, porque parece que o JK realmente era um cara muito carismático, não é? E eu tenho uma frustração, porque eu lembro da mamãe indo para Diamantina - eles iam para Diamantina, para a festa do Divino, e eu não fui. Eu era muito pequenininha, aí eu fiquei. Eu lembro que meu irmão estava com braço quebrado e voltou com o gesso assinado pelo JK. Então, todos os meus irmãos conheceram o JK, menos eu - acho isso uma grande sacanagem. Mas assim... A vovó contava casos. A casa - essa Casa Kubitscheck - começa em um nível, quando você entra, como o terreno é um aclive, você entra, você tem que subir uma escada, mas quando você está no segundo andar, o banheiro do quarto de casal, da suíte, tem uma porta de saída para o jardim, dizem que essa porta era uma porta de fuga que, se o JK fosse pego com a boca na botija, assim, com uma amante, alguma coisa assim, ele sairia por ali. Vovó gostava de me contar algumas coisas assim, são histórias divertidas, não é? Mas sobre a ditadura, acho que era uma coisa assim, que meio que passou longe de mim. Depois, eu lembro que quando passou aquela minissérie da Globo, “Anos Rebeldes”, eu assisti e me tocou muito. Já me perguntaram: “O que você queria ter vivido? Em qual época você queria ter vivido?”. Eu tenho uma relação romântica com os anos 70 e acho que eu teria sido uma revolucionária, uma ativista. É, uma ativista. Então assim... Acho que eu acabei fazendo uma ruptura com essa maneira de ver as coisas, eu acho que nem o lado da minha mãe, nem o lado do meu pai, tinha uma relação com a esquerda ou de perceber que ali tinha um absurdo. Eu acho que, hoje em dia, a gente vive uma situação que, de fato, a gente convive com pessoas que não percebem o que está acontecendo, não percebem o risco que a gente está correndo, e tudo mais. Entre meus irmãos mesmo eu sinto isso, só o meu irmão mais velho que pensa parecido comigo.

P/1 – Mas como é que era isso, então? Você e seus irmãos mais velhos faziam o quê? E você começou a ler o quê por causa deles?

R – Olha, meu irmão, na verdade - o mais velho - era um cara muito inteligente, que aprendeu a ler muito cedo, depois começou a tocar violão do nada, piano do nada, assim, um cara meio virtuoso. Eu lembro que uma influência que eu tive dele, é que ele assistia muitos filmes - havia o vídeo-clube do Brasil - então ele assistia muito Woody Allen e aí eu assistia os filmes antigos do Woody Allen meio que ali escondidinha na sala. Ele tinha um livro chamado Os Sete Minutos, que era uma história de um orgasmo de sete minutos que o meu avô deu para ele ler, mas o meu avô e ele eram super amigos, ele era meio que o neto predileto. Era um livro proibido, então eu não li esse livro, mas eu ficava de olho. E meu irmão, o segundo, Marcos, fez Psicologia. Eu dei uma vasculhada na biblioteca de psicologia dele e li algumas coisas, mas eu não lembro exatamente. Não que a leitura tenha chegado cedo na minha vida, mas eu tinha essa necessidade e o que eu lembro de mais claro como contribuição para a leitora que eu sou, era uma coleção chamada “Para gostar de ler”, que eram crônicas - e hoje eu sou cronista, o que eu mais quero é ser cronista, é um gênero que eu amo, acho que crônica é uma coisa... Apesar de um gênero meio desvalorizado, porque é meio que o respiro do jornal, eu amo, acho que é muito contemporâneo, acho que o meu olhar dentro de casa é um olhar de cronista, eu não sou romancista. E aí li um pouco de Carlos Drummond de Andrade, Mario Quintana, sempre visitando um pouquinho da biblioteca dos meus irmãos, um pouquinho da Clarice, Jorge Amado eu não lia na época e tinha os livros da escola, os livros que a gente era obrigado a ler e que não eram, necessariamente, aqueles que a gente ia gostar naquele momento. Eu lembro quando eu era pequena eu li Pollyanna e Pollyanna Moça, que é uma coisa que até hoje existem esses livros, foram reeditados e tal, que fala muito de ver as coisas por um ponto positivo, uma coisa super xarope, assim, mas também é marcante. Aí, depois, eu enveredei um pouquinho para o Fernando Pessoa. Ah, eu acho que eu não sou, apesar de eu escrever hoje, eu estou me tornando uma boa leitora recentemente. Assim... Porque eu comecei a escrever antes de começar a ler. A minha necessidade de me expressar era muito grande e acho que isso também tem o seu valor, porque a gente acha que a gente só pode escrever se a gente tiver lido. O que é um Arthur Bispo do Rosário, que é um cara que não tinha referência artística nenhuma, então eu me orgulho um pouco disso: de ter olhado um pouco para a minha história e ter conseguido escrever a partir da minha história. Aí, agora que eu estou lendo melhor, estou me tornando uma leitora, mas não vai dar tempo, já estou na metade da vida ou mais, então me perdoo por isso, acho que o mais importante é você ter boas referências. Eu tive um namorado que falava assim: “Olha, você não tem que ler o livro todo, você tem que ter um contato com a textura do autor”. E eu concordo. Eu me cerco de livros, sou muito feliz por estar cercada de livros e acho que isso já ajuda bastante. Assim... Estar sempre lendo alguma coisa, tanto contemporânea como mais antiga.

P/1 – Você se lembra de como foi essa decisão que você tomou de prestar o vestibular? Você falou que não se lembrava, não é?

R – Eu não lembro. Acho que acabei... Assim... Outro dia, uma colega me falou: “Ah, você disse que ia escrever um livro e tal”. Eu não me lembro de ter falado isso. Acho que me vi escrevendo e foi meio que um caminho obrigatório, mas muito feliz, de entrar na Comunicação. Quando eu cheguei na Comunicação, eu falei: “Gente, eu achei que era gente”. Fui estudar na Fafich - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. Estudar Filosofia, Política e tal. Nossa, gente, eu tinha 17 anos, eu era muito alienada, muito sem noção de todas as coisas, então, às vezes, eu tenho vontade, se eu tivesse tempo, voltaria para a escola nessa época para aproveitar melhor os meus estudos. Eu era muito alienada, acho que a minha consciência política, social começou a surgir em contato com os colegas da Faculdade, depois com os publicitários dentro de agência - porque eu trabalhei 20 anos como redatora publicitária, tive contato com muita gente mais esperta do ponto de vista mais ligada, mais engajada nas coisas. Essa influência veio dos meus amigos porque, dentro de casa, eu vivia no mundo de Alice. Eu acho que tinha coisas interessantes, talvez a pessoa mais desperta politicamente fosse a minha avó, a vovó Juju, mãe do meu pai, porque era uma pessoa muito curiosa e que estava sempre perto dos livros, os livros estavam ali habitando. Então, ela sabia muito sobre as coisas, sabia muito sobre Geografia, sobre História, sobre coisas políticas e, apesar de ser uma pessoa mais tradicional, ela sacava coisas que aconteciam, não é? Mas depois ela foi ficando mais velha, tinha mais dificuldade de entender as movimentações políticas, mas eu acho que ela era uma pessoa muito crítica, muito com o olhar crítico mesmo.

P/1 – Como é que foi o curso então? Como é que era a Faculdade nesse período dos anos 80?

R – É. Eu entrei em 1988 - 1988, 1989, 1990, 1991, é. Formei em 1992 porque teve greve. A Faculdade era um meio muito diferente, muito de esquerda, as pessoas fumavam maconha (risos). Tinha muita vinhada na Fafich, era vinho chapinha, a gente fazia muitas coisas, comia frutas, era bem estudantil, eu acho que a Fafich tem essa herança dos tempos mais políticos mesmo, mas eu estava ali meio que a passeio, eu não entendia muito bem o que estava rolando. Depois é que eu fui tomando mais consciência, mas eu acho que foi muito positivo para mim. Também era uma época em que havia professores que não iam dar aula; professores que eram mais sérios; outros que levavam o curso meio na barriga. Então, eu acho que é um curso em que eu aprendi com alguns professores e fiquei no vácuo em várias coisas. Eu tinha uma professora de Política Internacional Contemporânea que era maravilhosa. Eu não entendia nada, eu boiava, porque a minha falta de base da História, apesar de eu ter estudado em uma escola muito boa, mas que era uma escola, o Loyola era uma escola que não tinha área de Humanas, só tinha Exatas e Biológicas, então era forte na Biologia, forte nas Exatas e eu ia prestar vestibular para Humanas. Assim... Geografia e História não eram o forte do Loyola, eu não saí da escola sabendo essas coisas, me fez muita falta. Eu acho que me tornei uma pessoa com uma participação mais política, um entendimento melhor das coisas de uns dez, cinco anos para cá. E aí, justamente quando eu fui tomar consciência, a gente está vivendo um momento super... Politicamente muito retrógrado e assustador, porque a gente... Eu acho que foi uma tomada de consciência muito grande em 2018, a gente entender quem seria eleito e quem são os brasileiros, acho que isso realmente é muito revelador e um pouco triste também.

P/1 – Voltando um pouquinho, você fez então a Faculdade. Você começou trabalhando nesse período foi estagiando?

R – Fui estagiando.

P/1 – Em Publicidade?

R – Em Publicidade, dentro de agências.

P/1 – Eu ia lhe perguntar agora sobre os seus trabalhos, o comecinho, como é que foi entrar nesse mercado, como é que era?

R – Bom, eu fiz um primeiro estágio ainda na Faculdade, acho que dois estágios eu ainda estava na Faculdade. Quando estava quase saindo da Faculdade, eu arrumei um emprego; eu já sabia que queria ser redatora publicitária. E arrumei emprego. Eu falo que comecei pela porta dos fundos, que foi assim: eu vi um anúncio de jornal “Agência procura redatora” - eu vi que a agência era pequeninha. Liguei para saber o salário e saquei direitinho, falei: “Eles querem uma estagiária, mas essa estagiária vai ser a redatora”. E foi, literalmente, o que aconteceu. Aí comecei. Eu não tinha feito estágio em outros lugares para aprender a ser redatora, era muito mais no peito e na raça, então eu falo que comecei pela porta dos fundos, fiquei seis meses nessa agência, foi um lugar horrível de trabalhar, lembro que com três meses eu falei com a minha mãe: “Eu quero sair”. Aí ela: “Não, filha, fica”. Meu pai, o conselho dele era assim: “Tenha um salário, conquiste um salário”. Então, ok, conquistei um salário, então pronto, acabou. Acho que é engraçado como é que a visão de trabalho muda, não é? Aí o que acontecia é que eu percebia que não estava legal e começava a batalhar outros lugares. Uma pessoa conhecida, fui batalhando, mas eu comecei pela porta dos fundos mesmo, porque muita gente acaba estagiando em agências grandes, entende um pouco e depois vai arrumar um emprego. Eu não, eu não tive esses estágios em agências grandes, então eu fui em uma agência menor, para uma agência um pouquinho maior, até que me formei em 1992; no ano 2000, talvez em 1994, eu já fui para uma agência que me ensinou muito, onde eu tive referências legais, era uma agência média, nova, jovem, uma agência recente e eu tive uma dupla de criação lá: a Cristina Cortez, que era a diretora de arte, eu redatora, e foi uma influência muito legal, não só também, porque eu também tinha um diretor de criação e uma diretora de criação bem legais, então, eu já tive uma referência maior e fiquei seis anos lá. Aprendi muito, principalmente com a própria Cristina. Era uma figura... Ela é uma figura que é minha amiga até hoje, dois anos mais nova que eu, mas muito esperta, muito politizada, muito ligada, muito inteligente e ela foi uma referência muito grande para mim. Eu tinha agência que era o meu sonho, que era Lápis Raro, uma agência muito legal, que ainda não era tão grande, mas que eu gostava muito dos trabalhos de lá e fiquei de olho. Aí me candidatei a uma vaga, me candidatei a uma vaga e finalmente aconteceu e aí eu fiquei praticamente dez anos na Lápis Raro. Eu acho que lá desenvolvi um trabalho muito com traço de humor. Assim... Tive uma dupla de criação lá, que é o José Carlos Mauris, que é meu amigo também, a gente se vê pouco, está lá até hoje, é um cara oito anos mais velho que eu, que tinha convivido com os meus irmãos, e a gente teve uma combinação, uma química de humor muito legal. Então a gente colocou muito humor nos trabalhos da agência. Eu fiquei dez anos na Lápis mas com duas saídas. Para uma outra agência menor - a Solution - onde eu trabalhei em uma delas por seis meses, porque a Cristina saiu da Sofia Propaganda e foi para lá, para a Solution, aí ela negociou a minha ida também. A gente trabalhou seis meses juntas lá, nesse período ela engravidou, aí eu já estava me casando pela primeira vez, eu engravidei também, mas perdi o bebê. Não gostei tanto dessa agência, aí voltei para a Lápis Raro - fiquei lá até 2010.

P/1 – Vamos voltar um pouquinho só. Para as pessoas que não conhecem o trabalho de publicidade, como é que é uma agência? O que faz um redator?

R – O redator é aquele que, sabendo das necessidades do cliente, que é o anunciante, tem que entender o que tem que ser comunicado em determinada oportunidade, se é para vender um produto ou para falar institucionalmente de uma marca, para fixar essa marca, não é? Ele pega o briefing, que a gente chama de briefing, que é o problema, a questão que precisa ser resolvida, o que é a comunicação, esse briefing é feito por uma outra equipe, normalmente a equipe de atendimento, que vai lá com o cliente e o redator se senta junto com o diretor de arte, que apesar de ter esse nome, são dois cargos equivalentes. Ele é um cara que direciona a arte, a parte artística e de desenho, a parte gráfica das campanhas e, junto com o redator ou diretor de arte, eles se sentam para pensar em cada campanha. E essa campanha vai ser aprovada, normalmente pelo diretor de criação. Isso, dentro da agência, até ela ser aprovada pelo próprio cliente. São vários passos, assim. A publicidade é muito trabalhosa, ela é muito interessante, mas estressante, os prazos são curtos, os clientes são muito exigentes. Acho que hoje ela mudou muito também, por causa das redes sociais. O redator é aquele que vai criar, por exemplo, o roteiro de como vai ser o comercial de rádio, de TV, claro que com a ajuda do diretor de arte. Ele que vai criar o texto do anúncio, o diretor de arte vai fazer o visual daquele anúncio, mas a ideia é que os dois trabalhem juntos. Então, no meu caso, com a Cristina, com o Zé, a gente tinha uma interação muito grande, e com outros diretores de arte também; sempre tinha uma troca muito grande. Eu também poderia contribuir com a parte gráfica com opinião, com análises e o diretor de arte contribui muito com a nossa forma de escrever, dá ideia, dá ideia de conceito de campanha, tudo mais. Basicamente, é isso. É mais difícil de explicar, não é tão simples, mas...

P/1 – Mas como é que uma pessoa aprende a escrever para publicidade? Como é que era isso?

R – Ela aprende trabalhando em publicidade. Eu acho que ela aprende... Primeiro, ela tem que saber escrever. Porque aí, isso, é na sua formação, claro, porque aí você ter lido muito, você ter escrito muito, é importante, mas acho que a Faculdade em si não ensina muito isso, é difícil achar uma Faculdade que ensine isso. Ela vai lhe colocar em contato com os problemas, em contato com as necessidades, vai lhe mostrar como é o mercado, às vezes, vai colocar problemáticas, vai fazer você realizar trabalhos, mas esse aprender ele vem com a prática, sem dúvida. Acho que 20 anos de publicidade me ensinaram a escrever, mas na base de fazer, errar, ter referências legais, diretor de criação legal, gente que te fez fazer de novo. Eu acho que esse aprendizado é um aprendizado que vem muito do exercício, das influências de pessoas mais experientes, sem dúvida.

P/1 - Nesses anos que você me contou - de 1994 a 2010 - que histórias você acha que lhe marcaram mais? Boas e ruins, coisas que você consegue pensar. É uma pergunta difícil, eu acho, de trabalho...

R – Eu acho que assim... A gente trabalha no mercado de Belo Horizonte, é muito diferente da gente estar no mercado de São Paulo, onde o dinheiro está, onde os produtos estão. Aqui a gente tem clientes que são mais serviço, não é? Então, a gente atende um plano de saúde; uma drogaria - como a Drogaria Araújo, que é uma coisa que é muito a cara de Belo Horizonte, que, praticamente, tem a idade de Belo Horizonte; a gente atende um shopping, uma rede de motéis. É diferente de ter um produto como em São Paulo, você vai fazer uma campanha para a Coca Cola. Até os poucos produtos que a gente tem aqui, normalmente, acabam indo para São Paulo, como uma Fiat, que acaba tendo uma agência em São Paulo. É raro a gente fazer os produtos. Então, as verbas são menores, é mais difícil fazer campanhas que vão atingir o Brasil todo ou que vão ter uma verba de produção bacana. Eu tenho uma lembrança muito grande de uma campanha que eu fiz, que era uma campanha do Banco Mercantil do Brasil, que é um banco mineiro que deve ter mais de 70 anos... Ai, meu Deus do céu, esse banco era cliente da Lápis Raro. Ele lançou um cartão de crédito - cartão de crédito Mercantil do Brasil Visa - e a gente fez uma campanha que era “A vida é cheia de surpresa; é melhor ter um cartão de crédito Mercantil do Brasil Visa”. Aí, a gente fez uma campanha que eu adoro porque eu colocava muito as minhas próprias histórias, a minha vida, e, nessa época, eu tinha cães. Meu primeiro marido era veterinário e criador de cães, a gente tinha vários cães. Aí, a gente fez uma campanha que era assim, que ficou muito famosa, isso era uma coisa muito rara, porque a campanha é muito diferente da dinâmica de São Paulo. Então aqui, muita gente já ouviu falar dessa campanha, que era a campanha do cachorrinho, o filme do cachorrinho, que era uma mulher, chegava no petshop com o sobrinho e queria comprar um cachorro para o sobrinho, um filhote de cachorrinho, e ela meio que obriga o sobrinho a gostar: “Olha o cachorrinho, a titia vai comprar para você”. E ela vai e pergunta para o cara: “Quanto é o cachorrinho?”. Aí ele fala: “1400 reais”. Aí, só corta e ela falando: “Dá tchau para o cachorrinho”. E isso virou meio que uma linguagem. Como em grandes campanhas que a gente vê, quando a gente trabalha em um mercado que não é do eixo Rio/São Paulo, é mais difícil, porque a gente tem que... Para que uma campanha fique realmente conhecida, essa é uma oportunidade muito rara e essa foi uma campanha que mexeu. Assim... Que a gente ganhou prêmio, as pessoas falaram sobre isso, então, foi uma campanha que me marcou muito. Ela falava muito essa coisa do humor, foram os primeiros prêmios que eu ganhei, uma história legal, mas nessa época, tanto a minha mãe, como o meu pai já tinham falecido, então eles não viram essa parte legal, eles não me viram ganhar prêmio, tal, um pouco triste assim, perderam uma parte boa da minha vida, que depois disso eu lancei livros, mais tarde e tal.

P/1 – Como foi essa aproximação que você teve com seu pai, que você falou?

R – Ah, sim. Quando a mamãe morreu... Mamãe teve câncer, ficou dois anos doente e eu lembro do meu pai falando assim: “Se prepara que sua mãe vai morrer”. Meu pai era médico, muito frio, assim, tentando me prevenir. Eu falei com ele: “Pai, a gente não se prepara para a morte”. Não sei de onde eu tirei isso. “A gente se prepara para a vida, não vou ficar pensando nisso”. E, de fato, aconteceu, um tempo depois, acho que quase um ano depois. E aí eu falava assim: “Meu Deus, vou ficar eu e meu pai”. Uma figura que eu estranho, a gente era aquele ditado: “Dois bicudos não se beijam”. Era mais ou menos isso. A gente se estranhava porque, na verdade, eu era muito parecida com meu pai, metódica, implicante em umas coisas, detalhista, eu percebo que tenho uma personalidade mais explosiva, que é tudo que meu pai tinha, eu precisei viver só eu e ele, viver só com ele e acolhê-lo na saudade que ele sentia, na dor da falta da minha mãe. Foi um encontro muito legal, porque meus irmãos já estavam casados, e aí eu lembro... É uma coisa muito marcante assim, a gente entrando no cemitério do Bonfim, de mãos dadas, eu e ele; eu tinha tanto medo dele e ele virou para mim e falou: “Hoje nós vamos comemorar, depois a gente pensa”. Porque a mamãe tinha parado de sofrer, uma doença muito sofrida. Aquilo já foi muito significativo, quando a gente voltou para casa, eu cheguei para ele e falei: “Pai, você quer fazer um livro de caixa da casa”? Porque mamãe administrava as coisas, não é? Gastos... E eu ainda não tinha meu dinheiro todo, a mamãe me ajudava um pouco, financeiramente, além do meu salário. Mamãe pagava gasolina do meu carro, eu contei para ele como era, porque mamãe é quem administrava tudo, eu falava: “Olha, mamãe pagava gasolina do carro”. O carro não era nem meu, era da mamãe, então se você quiser eu posso ajudar aqui, colocar as contas da casa, eu te ajudo a administrar a casa. Ele falou: “Filha, esse é meu sonho, sua mãe não fazia isso mais”. Então a gente foi entendendo ali naquela solidão; no começo, ele pegava a cestinha de tricô da mamãe, deixava no lugar, aquela dificuldade de aceitar a morte, eu via aquilo e me doía muito, mas eu deixava. Eu lembro que chegava mala direta lá em casa, várias correspondências com o nome da mamãe, ou chegava no Dia dos Namorados “Presenteie sua namorada” e eu interceptava todas as cartas, assim, de modo que ele não precisasse ter contato com isso, que isso tudo é muito doído. Porque, se tem uma coisa que não se renova rápido... Quando a pessoa morre, ela continua no banco de dados, não é? Não sei se hoje isso é mais rápido, mas naquela época não, a pessoa morreu, continuava chegando correspondência com o nome da mamãe. É até interessante, até legal escrever sobre isso, assim... Eu ficava interceptando, era um ato de amor, de tentar... Eu via o sofrimento do papai de um jeito que os meus irmãos não viram e papai muito rapidamente se casou de novo. Ele começou a namorar dois meses depois, ele não aguentou ficar sozinho, mamãe era muito... Ela era a fonte dele de várias coisas, papai não sabia onde ficava um copo na cozinha. Aí, ele começou a namorar, eu entendi, eu aceitei, eu acolhi, porque eu sabia o sofrimento dele. Meus irmãos tiveram mais dificuldade de enxergar isso porque eles não viram o sofrimento do papai de perto. Lembro de que antes do papai começar a namorar, ele chegou para mim e falou... Entrou no meu quarto e falou: “Eu fui ao banco encerrar a conta da sua mãe”. E aí chorou e falou assim: “Não tem outro jeito, não é?” É a pessoa se conscientizando da morte, não é? Porque a morte, ela é difícil, ela é uma verdade que vai crescendo, você tem que ir se acostumando com ela, não é uma coisa que você fala: “Ah, morreu, beleza, vou continuar”. Você tem que ir se acostumando, você tem que vivenciar esse luto, entender como é esse luto e essa ficha vai cair, a pessoa não vai voltar, não vai ligar, ela, de fato, não vai mais falar comigo. É conviver com o definitivo, conviver com o para sempre ou o nunca mais, é uma maneira muito doída. Aí ele falou comigo assim... Eu o abracei, lembro, aí uma outra vez ele entrou no meu quarto e falou: “Filha, ou eu vou casar de novo ou vou virar um Don Juan”. Eu falei: “Pai, você vai fazer o que lhe fizer mais feliz”. Aí ele comprou um carro, porque ele tinha essa coisa com o carro, ele trocou o carro dele por um Citroen ZX, vermelho, de teto solar, aí ele começou a namorar uma amiga da mamãe, que a mulher de um grande amigo dele apresentou

uma amiga para o papai, achando que aquilo ia virar só uma companhia. Só que o papai começou a namorar a Célia. Aí eles namoraram e quando a minha irmã escreveu uma carta falando assim: “Olha, pai...”. Minha irmã nunca tinha falado muito com papai, nunca tinha se aproximado, ela queria dizer assim: “Pai, vai devagar, tal”. Aí, o papai recebeu a carta e ficou muito ofendido, e logo depois que ele recebeu essa carta, ele ficou noivo da Célia. Então assim... Foi muito engraçado porque eles começaram a namorar no dia do aniversário de casamento da mamãe e do papai, e quando foi em novembro eles se casaram. Em outubro, não sei. E aquilo doeu muito para todos nós. Papai era um cara que não gostava de festa e, com a Célia, eu acho que aconteceu o seguinte: ele viu... Ele tinha perdido a minha mãe de câncer, ele viu a mamãe indo embora, ele pensou: “Gente, eu não aproveitei, várias coisas que eu não fiz”. Acho que ele pensou assim: “Agora. A vida é agora”. Acho que a morte, ela te ensina muito, então eu lembro de uma festa de aniversário dessa família, desse casal amigo do papai e da mamãe, que a Célia foi, papai também, e a gente e minhas irmãs lá, e o papai dançando, assim, pé de valsa total, coisa que ele nunca fazia com a mamãe. A gente falava assim: “Eu quero matar ele”. Mas eu entendo, aquilo doeu muito para nós. Depois disso, ele foi para a Europa com a Célia, coisa que a mamãe morreu sem ter ido - eles viajaram muito, mas eles nunca foram para a Europa juntos e o papai conhecia a Europa, mamãe morreu sem conhecer a Europa. Assim... Eu lembro da mamãe morrendo e o papai falando: “Fico te devendo Paris”, chorando. Eu tive um privilégio de ver minha mãe morrendo, é uma cena muito bonita que mamãe estava doente, estava em casa, a gente não a deixou no hospital, papai fez questão de trazê-la para casa, então a minha casa virou um acampamento, muita gente. Mamãe era uma pessoa muito amada, então assim... A mãe dela, a minha avó; as irmãs dela, minhas tias; as amigas, todo mundo dormindo lá em casa porque mamãe estava piorando e assim virou um acampamento. No dia em que ela morreu, em uma segunda feira de manhã, ela já estava meio em choque, papai, médico, dava notícia para a gente do que estava acontecendo. Eu lembro das pessoas em volta da cama da mamãe, mas muita gente, e o papai arrancando o oxigênio para ela ir, sabe? Eu lembro do último suspiro dela, e isso é uma coisa que eu acho um privilégio muito grande, você ter visto o momento em que a vida terminou. É tão forte, que depois do último suspiro quase que uma expressão de dor ali, poucos minutos depois o corpo fica com uma expressão de paz, serenidade, uma coisa muito louca, e você vê que o sofrimento de fato acabou e o sopro de vida vai embora. É por isso que eu acredito no imponderável, realmente. Acredito que existe alma, existe espirito, porque você vê que não está mais ali, naquele corpo. Então, eu estou contando essa história para mostrar que meu pai foi para a Europa porque ele entendeu que a vida era curta e, de fato, seria curta porque sete anos depois ele estaria morrendo de câncer. Minha mãe teve um câncer de mama, ficou dois anos doente, ela nunca fumou, ela conviveu com o cigarro do papai muito tempo, meu pai fumou desde os 13 anos de idade e quando ele tinha uns... Ele morreu com 64; quando ele tinha uns 60, 61, ele parou de fumar. E com 62, talvez ele fosse antes do 60, ele parou de fumar. Aí, com 62, ele descobriu um câncer de pulmão e a Célia foi quem cuidou do papai. Então ela ficou seis anos com ele e os últimos dois foi cuidando dele. Ela cuidou muito bem do meu pai, acho que ela amou muito meu pai, mas é uma história difícil para todos nós. Ela também conseguiu, sem querer... Meu pai se afastou muito de nós nessa brincadeira, eu é que acabei ficando mais no caminho, porque eu morei um tempo com os dois, então acho que tive uma visão de dentro, acho que tentei ser empática para entender que meu pai estava querendo ser feliz e que também a morte da mamãe, a doença, foi uma coisa que machucou muito ele. Então, eu tenho uma coisa muito bem resolvida com papai e que talvez não tenha ficado tão bem resolvida com a minha mãe. Eu tinha muitos conflitos com a minha mãe, falava muitas coisas que eu achava para ela, mas eu fiz esse ritual depois, sabe? De me aproximar. E minha mãe era uma figura muito amada, muito admirável, mas uma mulher forte demais, doce demais, o nome dela era Dulce e ela se dava pouco direito de ser feliz. Eu acho que ela também foi um exemplo de coisas que eu não quero para mim, apesar de eu achar que acabei herdando essa força da mamãe. Acho que ela fez filhos fortes, filhas fortes. Acho que ela também herdou isso da mãe dela, que ficou viúva grávida, então tem uma coisa muito... Nossa, gente, é muita história, não é?

P/1 – Você falou um pouco do seu primeiro marido, não é? Como é que foi isso? Como você o conheceu?

R – Eu o conheci... Eu tinha tido alguns namorados, eu tive um namorado de um namoro muito longo, que terminou e voltou várias vezes. Aí, quando terminou pela última vez, eu tinha comprado uma cachorrinha no Mercado Central. Mercado Central tem uma ala que a gente vê uns filhotinhos sendo vendidos, dá muita dó porque você fica com dó, você não sabe de onde vieram aqueles bichos, de várias espécies. Aí, eu comprei uma poodle, mas eu comprei não é porque eu fui lá comprar, eu fiquei com dó, queria resgatar essa poodle. Aí falaram: “É um poodle toy”. Ela era pretinha, ficou grande, cinza. Aí eu comprei a Ayla, ela adoeceu, teve uma doença de pele e eu fui ao veterinário e me apaixonei pelo veterinário. Ele tinha uma namorada, foi uma paixão assim... Aí a gente, depois de um tempo, começou a namorar e ele me deu um filhotinho de whippet, que é uma raça que eu amo - eu passei a ter duas cachorras. A gente namorou uns três, quatro anos, mas ele era criador de cães, tinha vários cães em casa, então como é que a gente ia morar junto? A gente ficou noivo, mas não tinha como morar junto. Onde que a gente vai colocar esses cachorros? Aí, a gente conseguiu reformar uma casa, que era da família dele, reformamos e mudamos. Era uma casa com muitos cães, fizemos um canil e tal, mas esse casamento durou dois anos e meio. Eu acho que quando eu me casei, eu já não era mais apaixonada por ele, a gente já tinha... Sabe aquela coisa assim, acho que a mulher ela tem muito essa relação com o casamento, não é? A mulher tem uma Cinderela morando dentro dela e minhas irmãs já tinham se casado cedo, elas se casaram com 22 anos e eu me casei a primeira vez com 31, acho que a gente tem esse desejo de seguir o script da família, da tradicional família mineira. Aí, quando a gente casou, já não estava muito boa a relação. Eu engravidei no começo do casamento, perdi logo no começo. Perdi antes de dois meses. Aí falei: “Nossa, quero engravidar de novo”. Dez meses depois consegui engravidar de novo, perdi de novo, achei que eu fosse morrer e assim... Quando eu me casei, meu pai já tinha falecido. A minha mãe faleceu em 1994, meu pai faleceu em 2001. Eu me casei em 2002, engravidei, aí perdi; em 2003 eu engravidei de novo, perdi de novo e aí eu fiquei mais um ano tentando engravidar. Comecei a fazer tratamento, nessa hora a gente começa a dar uma pirada. Nessa época eu comecei a fazer psicanálise, foi ótimo, foi maravilhoso para mim e acabou o casamento. Realmente, nós não resistimos. Então, esse foi o meu primeiro casamento, mas ainda tem vários para te contar.

P/1 – Quantos mais?

R – Bom, aí um tempo depois eu me apaixonei por um colega de trabalho, trabalhava comigo na Lápis Raro, ele também estava separado, tinha, mais ou menos, o mesmo tempo de casado que eu, também tinha vivido um casamento infeliz e também não tinha filhos; aí começamos a namorar. Foi um namoro um pouco conturbado porque a gente trabalhava no mesmo lugar. Quando foi em 2006 - em julho de 2006 - eu já não queria mais ter filho, enfim. “Não, ter filho não é para mim”. Achei que não era para mim, mas em 2006 a gente teve um término, em junho de 2006 - não, não foi em junho, acho que foi em abril - a gente teve um término, aí a gente ficou um tempo separado e eu parei de tomar pílula. Aí, quando foi em junho a gente voltou a se encontrar e eu engravidei. Engravidei, assim, a gente sabia do risco que a gente estava correndo, mas nós não tomamos uma providência. Mas assim... A gente teve dois encontros e eu era muito apaixonada por ele. Aí, quando eu descobri que estava grávida, a gente já estava, mais ou menos, voltando. Fui contar para ele, não sabia se ele ia gostar ou não, ele ficou completamente apaixonado pela ideia, mas a gente não se casou. Continuamos morando separados, a gente estava muito traumatizado pelo fim, pela maneira como tinham sido os nossos casamentos. Aí eu comecei a esperar o Francisco e ficamos muito felizes, mas quando eu tinha sete meses de gravidez, e assim... Morrendo de medo da gravidez não.. Morrendo de medo de não ter a gravidez, de perder o bebê, ele não podia contar para ninguém que eu estava grávida até eu fazer três meses, mas deu tudo certo, a barriga começou a crescer, bebê tudo ótimo. Quando eu tinha sete meses, o Gui tinha 38 anos, ele teve uma morte súbita na casa dele: ele foi para a aula de squash, voltou, tomou um banho, se vestiu para trabalhar e caiu morto na casa dele. Isso foi em janeiro de 2007, a gente não trabalhava mais no mesmo lugar, eu saí da Lápis Raro, fui para a Solution, uma agência onde eu já tinha trabalhado, fui ser diretora de criação da Solution e lá que aconteceu o término, a gravidez e tal, porque, como a gente começou a namorar, eu achei melhor a gente não trabalhar no mesmo lugar. E aí, a gente não morava juntos porque ele falou comigo: “Vamos casar”. Eu falei: “Vamos esperar o Francisco nascer”. Eu já estava com sete meses, estava tendo câimbra direto, então a gente já estava ficando muito junto, mas a gente não dormia todos os dias juntos, a gente dormia uma vez durante a semana e o fim de semana a gente passava juntos. Nesse dia, eu fui trabalhar, entrei para uma reunião, mandei um e-mail para ele, só tinha SMS nessa época, mandei um e-mail dizendo que eu o amava, era um dia bonito, maravilhoso, 17 de janeiro de 2007. Aí, quando eu entrei, eu fui ter uma reunião de produção de um comercial, essa reunião durou bastante, quando eu sai da reunião ele não tinha respondido meu e-mail. Eu não sei te explicar, mas alguma coisa muito ruim me veio, uma intuição. Eu tinha um medo dele morrer, eu tinha falado com ele uma semana antes: “Eu tenho medo de você morrer”. Do nada. Ele tinha parado de fumar, começou a fazer aula de squash, eu falei: “Você é louco, você tem que fazer um exame, não sei o quê”. Aí, eu tentei falar com ele, ele não atendeu o celular, já gelei, tentei falar na casa dele, liguei para o trabalho, falaram: “Ele não veio trabalhar”. Eu falei: “Ele morreu”. Olha, que loucura! Assim. Fui para a terapia, falei: “Não, vou me controlar, calma, ele vai aparecer, isso aí é trauma, já perdi minha mãe, meu pai, já perdi dois bebês”, achando que era uma questão quase minha. Mas, no meio da terapia, eu não consegui. Eu falei: “Preciso ir lá na casa dele”. Fui na casa dele, o carro dele estava parado na porta do prédio. E eu ligava. Isso, umas duas horas da tarde, liguei para a minha diretora, para a diretora de atendimento da agência, porque ela era meu par na diretoria. Falei: “Maria Cristina, estou indo para a casa do Gui porque eu acho que ele morreu”. Ela: “Como assim, Cris?” “Eu acho que ele morreu”. Aí ela falou: “Então, entra aí”. Eu liguei para ela, eu estou ligando de fora, porque eu não tinha a chave do apartamento dele, a gente respeitava muito a privacidade um do outro e tinha uma semana que tinha dado a chave do meu apartamento para ele, porque ele ia mudar para o meu apartamento, até que a gente mudasse com o Francisco. A gente ia fazer as coisas aos poucos e as minhas duas cachorrinhas estavam morando com ele, porque meu médico achou melhor eu não conviver com elas durante a gravidez. Eu ouvia elas latindo desesperadas, eu ouvia o telefone tocando, eu ouvia o celular tocando, eu gritava e nada. Eu falei: “Ele só pode estar morto”. Aí eu toquei a campainha, alguém me falou, tipo, eu toquei e falei: “Ah, eu sou a namorada do Guilherme, deixa eu entrar”. Não lembro mais e aí eu vi assim... Eu fiquei diante da porta, as cachorras desesperadas e a porta era bem fina e tinha um olho mágico, eu não sei por que eu fiz isso, eu sei que eu desatarraxei o olho mágico e ficou só um buraco. Quando eu olhei pelo buraco, ele estava caído de bruços, e eu ainda tentei... Eu falo que - depois eu escrevi isso - que acho que a gente tem uma burrice bonita, que é a esperança. Você olha, você vê que a pessoa está morta, mas você não acredita. Nesse meio tempo, veio um policial que morava do lado dele, começou a ligar para a polícia, eu ligava para a Unimed, para a ambulância, aí as pessoas falavam comigo: “Pega nele, pega”. Eu falava: “Mas eu estou do outro lado”. Já tinha ligado para um amigo, aí chegou gente, chegou o irmão dele, aí eles arrombaram a porta, eu só esperei entrarem, o irmão dele gritando, gritou, ou seja, ele tinha morrido, mais ou menos, entre nove e dez da manhã, sozinho. Ele foi para uma aula de squash, porque eu liguei para o professor de squash, consegui entender, ele foi para a aula de squash, voltou, provavelmente morreu por causa do squash. Mas o Gui era assim, ele era intenso em tudo que fazia, então eu falo que ele morreu com 38 anos e, nessa época, tinha uma história de um cometa, que não era o cometa Halley, é um cometa que só passava de 38 em 38 anos, uma história muito louca e eu falei que eu acho que ele viveu por 76, o equivalente a 76, ele era um cara muito intenso. Então assim... Isso mudou muito a minha vida. Completamente. Porque era uma dor que eu achava que nunca ia passar. Essa história é muito definidora, depois teve outros casamentos, mas essa história é muito definidora da minha revolução pessoal e profissional, porque aí, quatro meses depois, eu comecei a escrever para o Francisco um blog chamado “Para Francisco”, onde eu contava para ele sobre o pai, sobre meus pais e tal. Dois meses depois, Francisco nasceu, super saudável, super lindo, não é? Então, eu falo que o Francisco salvou minha vida porque quando eu vi que o Gui tinha morrido, eu lembro de eu perguntar para mim mesma: quanto tempo vai demorar para eu morrer também, de tanta dor que eu senti. Mas aí eu percebi que eu não podia morrer porque tinha um bebê dentro de mim. Então, eu falo que o coração dele bateu por mim e por ele durante dois meses. Mas quando o Fran nasceu, foi uma felicidade muito grande e aí eu sentia as duas coisas ao mesmo tempo: uma alegria muito grande de ser mãe e uma tristeza muito grande de ter perdido um amor. Aí, acho que minha vida se divide entre antes e depois. Sem dúvida, minha vida se divide entre até 2007 e depois de 2007, sem dúvida.

P/1 – Como é que foi o dia do nascimento, sem o pai por perto?

R – É muita história, não é, gente? A pessoa tem 96 anos de história.

P/1 – Como é que foi então? Como foi o dia do nascimento?

R – Do nascimento?

P/1 – É.

R – Primeiro que eu fui ao médico nesse dia. Ele estava marcado para nascer no dia 26 de março, eu fui ao médico, o médico falou: “Não, está encaixado e tal, mas ainda não tem sinal, você volta na semana que vem” - isso era uma quarta feira. “Você volta na segunda feira”. Falei: “Ai, que preguiça”. Já estava de licença maternidade, tinha tirado a licença havia dois dias, assim. Aí eu fui para o shopping bater perna. Foi muito engraçado. Fui para o restaurante vegetariano, não sei o porquê, comi uma comida vegetariana, fui para o shopping, comprei um vestido novo. Aí cheguei em casa, comecei a ter umas contrações e meu médico estava no consultório dele, que era longe - ele estava em um outro consultório, que era bem no Barreiro. Comecei a ter umas contrações, liguei para ele e ele falou: “Toma buscopan; se não passar é porque é contração”. E assim... Comecei a ter, minha irmã me pegou, me levou para a casa dela, que já era caminho do hospital, que é o Vila da Serra, ali em Nova Lima. Aí as contrações já ficaram espaçadas. Não, antes ele falou: “Leva lá no consultório e vai consultar com o Fernando”. Que era o médico dele. Síndrome do jaleco branco, chegou lá, as contrações pararam, o cara falou comigo: “Isso é muita ansiedade”, não sei o quê. Saiu de lá, as contrações continuaram. Meu médico fala que ele vai cassar o diploma do doutor Fernando, que, por sinal, é o nome do meu pai. Aí fui para a casa da minha irmã. Minha irmã que mora em Campinas, ligava e falava: “Como é que estão as contrações”? E eu dizia: “Estão ótimas”. E as minhas sobrinhas contando tempo e tal. Em três horas, eu já estava... Ele nasceu em três horas, literalmente... Não. Não, em três horas eu já estava sendo anestesiada, aí quando falaram: “Pode colocar a roupa do hospital e tal para você ser anestesiada”. Porque foi muito rápido, eu desesperada de contração. Aí eu fui trocar de roupa, a bolsa estourou, que é a sensação mais incrível que tem, você sente a temperatura da água que estava dentro de você, uma coisa incrível, em duas horas o filho nasceu, eu tomei anestesia e tal. E foi um nascimento super tranquilo, meu médico fala que foi um nascimento de um terceiro filho. Eu falo: “Mas foi?” Que foi um dos partos mais fáceis que ele fez, mas foi muito emocionante, muito emocionante. E todas as lembranças, uma alegria e, ao mesmo tempo, o Gui não está aqui. Muita emoção em um espaço só, muitas faltas naquele momento, mas quando o neném nasce e coloca no seu colo uma criança chorando e ela para de chorar, você sente um poder tão grande, é muito transformador, realmente. Aí fui para casa com ele, no dia seguinte. Assim... Eu não parava de falar, excitada com a anestesia. Falava, estava numa alegria muito grande. Eu acho que é isso, eu cheguei em casa com esse presente, mas, ao mesmo tempo, eu tinha muito medo porque a presença dele me lembrava a ausência do pai. Eu falava: “Será que um dia eu vou esquecer disso?” E, de fato, o tempo é muito poderoso. A gente consegue superar, mas a gente precisa de um tempo do luto, sem dúvida; esse luto precisa ser bem trabalhado. Acho que isso foi uma coisa que eu me permiti: separar os sentimentos. Porque embora eu estivesse muito alegre pela vinda do Francisco, eu estava muito triste pela falta do Gui, porque eu acho que o que faz falta... A criança é um projeto a dois, então o ideal é que os dois estejam lá, mas não é para trocar fralda, não é pelo trabalho que dá, acho que isso aí é a parte menor, é porque é muito grande, você quer dividir aquela alegria com alguém, você quer dividir aquela alegria com quem fez aquilo com você, aquela criança, então essa parte era muito difícil, mas essa é uma história. Tem várias pessoas que vivem histórias, tem mães solteiras que o pai não assumiu. Então assim... Essa é a história do Fran, e é uma história bem resolvida, eu acredito.

P/1 – E ele te lembra o pai dele?

R – Ele nasceu a cara do pai. Durante uma boa parte da vida, ele foi a cara do pai e agora dizem que ele está mais parecido comigo. Ele não gosta muito não, ele preferia ser a cara do pai, mas é impressionante assim, é uma mudança nítida. Ele tinha o olhinho mais rasgadinho, como o do pai, o formato do maxilar, tudo, mas hoje ele está mais parecido comigo. Então, durante muito tempo me lembrava, mas hoje... É porque é assim: eu tive dois anos de convivência com o Gui, hoje eu tenho 12 anos de convivência com o Fran, acho que essa falta vai encontrando seu espaço, não é? Nesse meio tempo, quando o Fran tinha cinco anos, eu me casei de novo, com um publicitário, que eu já conhecia, a gente se apaixonou, aí ficamos três anos casados, mas não deu certo, acho que era uma história muito movida porque o Francisco se deu muito bem com ele e antes disso, o Francisco tinha ciúmes de todos os namorados que eu tive, então foi meio que uma paixão entre os dois. Eu acho que eu fiquei muito tocada por isso, mas não era uma relação que deu certo, então esse foi um casamento tradicional, a gente casou, teve festa, como o primeiro casamento, e depois dele, eu cheguei a morar, eu dividi o mesmo teto com duas outras pessoas. Então, eu falo que de casamento eu entendo, mas assim... Se for para pegar o tempo líquido que eu fiquei casada, é pequeno. Acho casamento uma coisa muito difícil, um desafio muito grande. Aí, depois que você cria um filho praticamente sozinha, você entende que dá para ter... Hoje eu tenho um namorado, que tem quase dois anos que a gente namora, ele tem três filhos de duas relações diferentes, ele mora na casa dele, eu moro na minha, acho um bom formato por enquanto.

P/1 – Está testando?

R – Estou testando, acho que eu sou mais... É engraçado, porque eu acho que você só descobre aquilo que você de fato quer e quem você de fato é - aquela história de a vida começa aos 40 - eu acredito que é aos 40 que você descobre quem você é, o que você de fato quer, porque durante muito tempo você segue o script que disseram para você que você tinha que seguir. Eu acho que isso está mudando, as novas gerações têm mais opções. Eu tentei ser tradicional, eu vim de uma família tradicional, tentei ser tradicional de todas as formas, eu falo que não era para ser porque eu consegui ficar viúva antes de ser mãe (risos). Se você me perguntar meu estado civil, no documento, eu sou divorciada do meu primeiro marido. Quando eu me casei de novo, eu só me casei no religioso, fizemos uma celebração religiosa, mas não teve civil. Depois eu morei junto, então, na prática, eu sou solteira, mas já fui viúva e, no papel, eu sou divorciada. Eu sou uma mãe solo, que é um termo novo, tal. Então assim... Tradição realmente não é comigo. Foi uma coisa que eu busquei durante um tempo, depois eu entendi que não era, que não era isso que ia me fazer feliz. Eu acho que eu sou bem pouco convencional, acho que talvez eu tenha nascido meio destinada à palavra liberdade. Assim... Acho que a liberdade tem muito a ver com a minha personalidade, mas eu demorei para assumir isso. A história é de uma busca diferente, até você encontrar: “Minha filha, a liberdade é sua, vai lá e abraça, ponto final”. Acho que é isso.

P/1 – E como é que começou essa questão de moda, com as redes sociais? Você tinha um trabalho já, não é? Como é que foi?
R – Na verdade, a história da moda começa antes. Eu tenho que falar sobre isso porque é legal! Teve uma época em que a gente tinha... Quando a Barbie era uma boneca que era só importada, a gente tinha a Suzy, que era a versão da Barbie brasileira; então, eu tive várias Suzys e tal. Teve uma época em que a feira hippie, que hoje acontece... A feira de artesanato que acontece na Afonso Pena, ela acontecia na Praça da Liberdade, então era a feira hippie. A gente ia para a feira hippie e tal e eu tinha uma Barbie. E a mamãe ia comigo, todo domingo a gente comprava roupa para a minha Barbie, vê se tem cabimento? Ali começou o consumismo. Quando a mamãe faleceu, eu já tinha uma ligação com a moda através da própria publicidade, porque, esteticamente, a publicidade te coloca junto de referências estéticas legais, você acaba convivendo com coisas bonitas, com referências legais. E aí, quando a mamãe faleceu, eu acho que a dor da falta da mamãe me jogou em um consumo compulsivo, sabe? Eu esqueci de contar que, com 19 anos, eu cortei meu cabelo curto, trinta anos atrás, e isso foi muito importante para mim, para a minha personalidade, para definir quem eu era, minha identidade e tal. Eu tinha cabelo ondulado, minhas irmãs faziam escova no cabelo, eu também ia na onda, aí um dia eu repiquei o cabelo. Teve uma época em que eu tive o cabelo meio Chitãozinho e Xororó, acho que quem nunca, não é? Teve uma época, em que todo mundo tinha um cabelo assim, aí era um cabelo muito cheio, eu ficava muito pequena embaixo do cabelo. Então, com 19 anos, eu cortei meu cabelo curto, quando eu estava no meu primeiro emprego - que era um estágio na Minas Caixa, a extinta Caixa Econômica Estadual - e cortar o cabelo curto foi muito importante para a minha identidade. E, nessa época, eu estava aprendendo a comprar minhas próprias roupas, era meu primeiro emprego, eu gastava o dinheiro todo nas roupas que eu queria, porque em uma casa com cinco pessoas, sua mãe compra roupa na C&A, que na época existia já, na Mesbla, que eram roupas para uma família, não é? Roupa que não era a gente que escolhia. Então eu tinha uma história assim: “Ah, eu queria roupa de marca”. Eu tinha essa frustração. Aí, com 19 anos, quando eu cortei o cabelo, eu comecei a trabalhar um pouco o meu estilo, entendi melhor, aí comecei a comprar muita calça jeans, que eu me sentia gostosa, aquele conceito estético. Quando mamãe morreu, eu tinha 24. Nessa época, eu disparei nas compras, foi uma época muito difícil porque era onde eu ia para a loja para talvez tentar tampar o buraco da falta da mamãe. Aí, tinha um lado que era uma pessoa que comprava muita roupa, gastava o dinheiro todo com roupa, mas tinha ali... Eu estava desenvolvendo o meu olhar para a moda, e a minha avó Juju, vovó Juracir, que era a mulher do meu avô, mãe do meu pai, tinha uma relação com as roupas, tinha uma coisa com a estética, ela cultivava roupas antigas dela. Eu falava “Vovó, que linda essa blusa”. Ela falava: “Tem 27 anos”. Então, só mais tarde, na psicanálise, que eu entendi que eu tinha uma relação com a roupa, eu tentando curar meu consumismo, ali eu entendi que tinha uma coisa positiva, mas eu censurava isso em mim. Aí, quando o Francisco nasceu, acho que eu, durante a gravidez, principalmente depois de ter ficado viúva, eu comprei muita roupa, continuei comprando e curtindo a gravidez, fiz questão de ficar muito bonita durante a gravidez; então, a roupa foi um apoio para a minha autoestima durante muito tempo. Depois que o Fran nasceu, eu comecei o blog para ele - o “Para Francisco” - em que eu escrevia cartas para ele. Dois meses depois, o blog estava fazendo tão bem para mim, que eu comecei a... Eu acho que a mulher, depois que ela tem um filho, ela tem uma reconciliação com a sua identidade porque durante muito tempo ela foi dois, o corpo dela muda muito, então quando uma mulher tem um filho, depois que o filho nasce, ela tem que se reconhecer. E eu mais ainda, porque eu estava diante de uma perda, eu estava com a minha feminilidade um pouco ameaçada, eu tinha perdido meu marido. Onde estava o meu sexo? Onde estava a mulher? Eu acho que a roupa foi uma forma de trazer de volta. E aí o consumo começou a parar porque eu comecei a usar minhas roupas de maneiras diferentes. Um dia, eu cheguei na agência, achei muito legal a roupa com que eu tinha ido - que hoje eu acho horrível - era uma mistura, uma sobreposição de coisas, eu resolvi tirar uma foto, pedi que alguém tirasse uma foto na entrada da agência, falei: “Gente, tira uma foto aqui para mim”. Aí criei um blog, já tinha aprendido a fazer blog, criei um blog, em uma época em que ninguém fazia muito blog, chamado: “Hoje vou assim”. Meus colegas devem ter falado: “Meu Deus, essa mulher está louca”. Eu tinha voltado para a Lápis Raro, porque depois que o Fran nasceu, o meu chefe interrompeu a minha licença maternidade, pediu que eu voltasse, aí eu parei de amamentar, fiquei muito triste, dei um jeito de voltar para a Lápis Raro porque era a agência que eu gostava e da qual eu tinha saído apenas porque eu namorava o Gui. Aí, no dia em que eu voltei a trabalhar na Lápis Raro, foi o dia em que eu comecei o “Para Francisco”, e dois meses depois foi o dia em que eu comecei o “Hoje vou assim”. Tirei uma foto, falei: “Todo dia eu vou tirar uma foto com a roupa que eu for trabalhar”. E fui muito disciplinada com isso que eu determinei. Eu acho que esses dois movimentos foram movimentos de expressão, eu precisava expressar, eu precisava trabalhar meu luto e trabalhar a minha alegria, porque eu estava diante de uma grande tristeza e de uma grande alegria, eu precisava trabalhar essas duas coisas. Eu precisava trabalhar essas duas coisas. Na verdade, eu olho para isso e faço um retrospecto, uma retrospectiva e analiso. Não que na época eu tivesse essa consciência, mas em momento algum eu pensei assim: “O que será que as pessoas vão pensar de mim, falando sobre a minha dor e tudo mais, com essas cartas?” Porque eu coloquei na internet, não é? “O que será que as pessoas vão pensar de mim, se eu colocar essas fotos?” Eu não pensei nisso. Eu falo que isso é uma coisa assim: a coragem realmente te leva a fazer coisas. O que é a coragem? Recentemente, eu soube que a palavra coragem, a etimologia da palavra coragem é: “Agir com o coração”. Quando você age completamente conectado com a sua intuição, você não está preocupado com o que os outros vão pensar. E foram dois movimentos fundamentais na minha vida, que definiram a pessoa que eu sou hoje. Então eu acabei criando o primeiro blog de looks do dia, do Brasil. Eu tinha 37 anos. Se eu virei blogueira, eu virei uma blogueira velha, porque hoje eu tenho 49, as blogueiras depois disso começaram com 20 anos, então, ele não foi o primeiro blog de moda no Brasil, mas foi o primeiro blog de look do dia, do Brasil, e virou uma referência, porque as pessoas começaram a ver, as pessoas entravam no “Para Francisco” e no “Hoje vou assim”, muitas pessoas do “Para Francisco” iam para o “Hoje vou assim”, porque ele estava lá indicado e vice e versa. Mas quando as pessoas chegavam no “Hoje vou assim”, dava um nó na cabeça porque assim... Aquela viúva que chora é a mesma modelo que está aqui. Quando elas entravam pelo “Hoje vou assim” e iam para o “Para Francisco”, que era assim: “Como assim? Essa mulher tão poderosa, que se faz poderosa na frente da câmera, que é uma mulher comum, mas que cresce diante da câmera, que usa roupas estilosas, é essa viúva que perdeu o marido grávida?” Então assim... Eu falo que foi uma estratégia de marketing quase do destino. Eu acabei ficando muito famosa no Brasil, no final das contas, eu acabei me transformando em uma referência de moda sem nunca ter estudado moda. Acabei indo estudar, mas em 2010 eu larguei a agência, porque a coisa foi crescendo, principalmente a parte da moda, e eu vi que podia fazer outra coisa. Então eu comecei a me dedicar só aos meus blogs. Saí da agência, fui cobrir semana de moda em São Paulo, é como se tivesse começado uma nova profissão aos 40 anos, praticamente. Então isso foi rejuvenescedor e hoje eu sou uma empreendedora, eu faço várias coisas que estão relacionadas a esses dois movimentos.
P/1 – Você está muito no Instagram, eu imagino.
R – Sim. Hoje em dia, o Instagram é a minha ferramenta principal, eu não alimento mais o blog. Eu fiz o “Look do dia” por seis anos, chegou uma hora em que eu falei: “Gente, não vai dar. Daqui a pouco eu estou usando uma bengala da Chanel, não tem sentido”. Deixou de fazer sentido para mim, aí o Instagram surgiu. Eu acho que é uma ferramenta muito legal, não tenho mais paciência para ficar alimentando blog. Acho que o Instagram é muito mais fácil, muito mais tranquilo, ali eu posso colocar tanto imagens como texto, e também fazer vídeos. Quando eu escrevo, eu consigo ter uma leitura muito grande, as pessoas gostam do que eu escrevo porque aí eu comecei a escrever para revistas. O “Para Francisco” se transformou em um livro, depois eu escrevi o Moda Intuitiva, que é o meu segundo livro, que é um livro de moda autobiográfico, contando tudo que eu aprendi sobre moda com o meu próprio corpo, que é um livro que vai contra a coisa das regras, que tenta ajudar as pessoas a dizer assim: “Olha, seu corpo sabe, deixe seu corpo lhe ensinar sobre moda” - é um pouco isso. Depois eu escrevi outros livros. Então assim... A coisa foi crescendo, mas a minha ferramenta hoje... Eu também trabalho como influenciadora digital, apesar de eu não gostar desse nome, acho que eu sou criadora de conteúdo, eu estou ali, exponho a minha vida, falo sobre... Eu sou muito de verdade, eu falo sobre a minha vida, mas eu falo sobre o desenvolvimento humano, acho que essa é a minha matéria prima hoje em dia.

Moda já foi meu assunto principal, mas eu cansei, eu não quero ficar só falando sobre moda. A moda faz parte do meu repertório, mas eu não aguento ficar só falando sobre moda, acho que prefiro falar de comportamento de uma maneira geral, acabei começando a fazer palestra, já tem mais de oito anos que eu faço palestra. Hoje eu sou múltipla, não é? Eu falo que foi o Francisco quem me pariu, porque nasceram várias mulheres dessas perdas. É impressionante o que as situações limites são capazes de nos impulsionar a fazer, fazer a gente descobrir.

P/1 – Deixa eu lhe perguntar uma coisa: qual é a história dessas tatuagens que você tem?

R – Então... As tatuagens é o seguinte: com 22 anos eu fiz uma tatuagem aqui na parte baixa das costas, quase cintura, que é um beija flor e uma flor. Aí falei: “Pronto, vou ter uma tatuagem, ela não vai aparecer; beleza!” Aí, quando eu tinha 29 anos, eu vi uma tatuagem que, na época... Eu gosto da tatuagem porque ela meio que retrata uma cultura daquela época. Eu vi uma menina tatuada com um ideograma chinês que significava amor, estava aqui na cintura dela, eu falei para ela: “Posso te copiar?” Tipo assim, sete anos depois, a minha mãe já tinha morrido, mamãe chegou a ver a minha primeira tatuagem, meu pai horrorizou quando descobriu que era uma tatuagem mesmo e tal, eu morava com o meu pai. Não, eu não morava mais com meu pai, já estava morando sozinha nessa época, porque eu saí da casa do meu pai com 27 anos, morei sozinha e depois eu me casei com 31. Aí eu vi essa tatuagem da menina e resolvi copiar, então eu fiz um ideograma chinês que significa amor, aqui na cintura. Aí não parei mais. Mas essa aqui não está aparecendo, então vou fazer essa estrelinha aqui. Mas é viciante, não é? Mas hoje, quando eu olho também, porque eu tenho esse olhar bem analítico para as coisas, eu acho que a tatuagem, como eu tenho uma vida que foi marcada por algumas perdas importantes, que são muito marcantes na minha história, em quem eu sou hoje, eu acho que a tatuagem é uma forma de lidar, brincar com o transitório. As pessoas falam: “Mas você vai tatuar? Isso é para o resto da vida, isso é para sempre”. Mas o que é o sempre, não é? Então eu acho que essa brincadeira com a transitoriedade me agrada muito. Aí é assim... Você põe uma; quando você vê, você põe outra; aí você quer colorida, porque antes você queria só preto e branco. É um vício muito gostoso, a pele é um papel muito legal de desenhar, não é? Então eu acho que tem essa coisa de marcar história e também falar sobre essa transitoriedade de uma maneira divertida. Mas é claro que se meus pais fossem vivos, talvez eu não fosse tatuada ou tão tatuada. Eu não sei como isso teria caminhado, mas eu acho que tem a ver com essa menina que se sentia muito diferente, tanto dentro de casa, como fora de casa, aí cortou o cabelo. Assim... Muitas pessoas olhavam para mim e falavam que eu era exótica, que é um jeito simpático de falar que a gente é feia (risos). Eu fui aprendendo esse exotismo, eu fui me apoderando disso, fui me apropriando disso como uma coisa minha, então, acho que a tatuagem é meio que assim: “Beleza, eu sou diferente; então, agora, eu vou ser diferente mesmo”. Mas não é uma coisa para o outro, é uma coisa para nós. Tem muita gente que acha que a tatuagem é para o outro, ela é para o outro também, mas ela, em primeiro lugar, é para nós. Ela fala de nós para a gente mesmo, é muito gostoso ter o corpo tatuado porque a gente ganha marcas ao longo do tempo que a gente não escolheu, então é legal a gente ter marcas que a gente escolheu, é muito legal.

P/1 – Cris, como é que foi conversar com a gente hoje?

R – Nossa, foi incrível, tipo, muito legal, assim. Acho que principalmente falar um pouco mais da infância, da minha família, é sempre muito... A gente fica imaginando como cada pessoa não é só um livro aberto, ou um livro que se abre. Cada pessoa é uma bíblia, é uma quantidade tão grande de histórias que a gente guarda... E isso assim é o que eu vasculhei nas minhas memórias que as suas perguntas provocaram; imagino se a gente ficasse dois dias conversando, quanta história viria. Muito legal! Eu falo para caramba. Mas é sempre muito... Eu faço psicanálise. Então assim... Tudo que a gente fala, ouvir a gente falando, por exemplo, se um dia eu vir o material ou assistir o que foi editado, isso já é muito interessante porque você se vê falando e, realmente, as coisas que a gente... A gente tem que prestar muita atenção nas coisas que a gente fala, porque a gente fala muito para si mesmo. Eu acho que se todas as pessoas conversassem mais consigo mesmos, em uma conversa assim que é com você, mas é comigo mesmo, o mundo seria bem melhor. Depois você assiste a um documentário chamado “O silêncio dos homens”. Vocês já conheceram? É legal demais, não é? Muito legal! Me dá esperança.

P/1 – Obrigada, viu, Chris?

R – Eu que agradeço.

P/1 – É uma pena eu não poder ficar mais tempo com você.

R – É... Mas depois a gente combina um dia de... De repente, eu lhe levo lá na Casa Kubitschek, se você quiser, se tiver tempo, tá?

P/1 – Tá. Pode deixar.

R – Pode ser legal, você me dá um toque e a gente vai lá no final de semana, sei lá.

P/1 – Obrigada, viu?

R – Obrigada, vocês! Muito obrigada, gente. Desculpe qualquer coisa.

P/1 – Imagina.