Museu da Pessoa

Os frutos de uma vida de trabalho

autoria: Museu da Pessoa personagem: Severino de Lima Pereira

Projeto Um Trem de Histórias
Registro e Disseminação dos Saberes e Ofícios da Rede Ferroviária do Nordeste
Módulo Pernambuco
Depoimento de Severino de Lima Pereira
Entrevistado por Fernanda Prado
Recife, 16 de abril de 2010
Realização Museu da Pessoa
Entrevista Nº MRFP_HV025
Transcrito por Ana Carolina Ruiz
Revisado por Fernanda Regina


P/1 – Senhor Severino, boa tarde.

R – Boa tarde.

P/1 – Muito obrigada pela sua presença. Eu queria começar essa nossa conversa perguntando para o senhor o seu nome completo, local e data de nascimento.

R – Nome completo Severino de Lima Pereira. Data de nascimento: 16 de março de 1937. O que mais?

P/1 – O local em que o senhor nasceu.

R – Em Moreno. Residência na Rua Manoel Buriti, número 30, Sucupira, Jaboatão de Guararapes.

P/1 – E o nome dos seus pais, senhor Severino?

R – Severino Geraldo Pereira e, a mãe, Anita Maria de Lima.

P/1 – O senhor sabe aonde eles nasceram?

R – Ele não, mas ela nasceu na cidade de Moreno.

P/1 – E qual que era a atividade deles? O senhor sabe?

R – Eu também não sei.

P/1 – E de sua mãe?

R – Minha mãe era doméstica.

P/1 – E o senhor chegou a conhecer os pais da sua mãe? Seus avôs?

R – Conheci o pai, a mãe não. Mas o pai, eu tive a felicidade de conhecer até a idade de 95 anos que foi quando ele faleceu.

P/1 – 95 anos. E qual era o nome dele?

R – Era José Leão.

P/1 – O senhor sabe o que ele fazia?

R – Ele era agricultor.

P/1 – Agricultor? Lá de Moreno?

R – Moreno.

P/1 – E o senhor sabe o que ele costumava plantar?

R – Ele plantava cana.

P/1 – E como é que era a cidade de Moreno quando o senhor era jovem, pequeno?

R – A cidade de Moreno hoje não mudou essas coisas todas. Porque a cidade de Moreno era manobrada por uma fábrica de tecelagem, a Societé Cottonière Belge-Brasilienne que monopolizava a cidade de Moreno. Casas, feira, tudo dependia daquela fábrica. O pessoal dali, uma média de 60%, era dependente da fábrica de Moreno até o tempo em que as fábricas de tecelagem foram fechando. Foram aparecendo outras atividades e também a ligação entre a cidade de Moreno e a capital, a integração do pessoal, e, hoje, a cidade de Moreno não é mais dependente da fábrica e sim de diversas atividades que ela tem.

P/1 – O senhor tem irmãos?

R – Eu tinha um irmão, mas ele morreu no ano de 1975, no dia 23 de junho.

P/1 – Como era a infância do senhor? O dia-a-dia da sua infância lá em Moreno? Tinha alguém da família que trabalhava na fábrica?

R – Tinha uns parentes longes. Quando fiquei só na dependência da minha mãe, nós viemos morar em Jaboatão e, depois de uns tempos, nós viemos para Cavaleiro que é perto. Passamos 36 anos em Cavaleiro, nesse período, ela morreu. Em maio de 1974, ela faleceu e eu continuei na mesma casinha que nós morávamos e essa casinha foi a casa mais feliz da minha vida. Nessa casa eu fui adolescente, fui jovem, fui adulto, me casei, construí família, entrei na Rede Ferroviária. Quando eu mudei dessa casa eu saí, praticamente, aposentado. Faltavam apenas dois anos e pouco para eu me aposentar. Lá essa casa foi toda a minha felicidade. Infelizmente, não pude mantê-la no lugar porque o lugar não prestava, era ladeira, casa de taipa, antigamente de taipa. Se deixasse lá, feito museu, podia, mas ia ser destruída pela malandragem. Nessa época, dei a casa a minha esposa e ela vendeu. Nós compramos um terreno onde construímos nossa casa, lá na Rua Manoel Buriti, em Sucupira que é divisão com Recife. Já vai fazer 29 anos que nós estamos nessa casa.

P/1 – Então, vamos voltar para época da sua infância, quando o senhor entrou na escola, que escola o senhor foi estudar os primeiros anos?

R – A primeira escola foi uma escolinha particular em Jaboatão. Depois dessa escola particular, eu passei para uma escola do Estado, o Ginásio Estadual de Jaboatão. Saindo de lá, vindo morar em Cavaleiro, comecei a estudar em escola do governo porque não tinha as mínimas condições de estudar em escola particular. Depois, com 12 para 13 anos, minha mãe me colocou no Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI) de Areias. No SENAI de Areias, eu comecei o curso, mas não terminei porque minha mãe disse que lá era bom, mas não era o ideal para mim. Apesar de ela ser analfabeta, não sabia ler nada, mas enxergava muito mais do que quem não era analfabeto. Ela disse: “Eu vou tirar você de lá e você vai para o SENAI Jaboatão porque lá, quando você terminar o curso, você estará empregado para o fim da vida”. Aquele SENAI da Rede que era o Centro de Formação Profissional. Eu não queria, mas tinha que obedecê-la. Graças a Deus, me dei bem.

P/1 – O senhor então nasceu em Moreno e, depois, se mudou para Jaboatão com a sua mãe e seu irmão. Como é que foi essa mudança?

R – Meu irmão não. Só eu e minha mãe. Meu irmão ficou com meu avô.

P/1 – Como é que foi essa mudança sua com a sua mãe para Jaboatão?

R – A gente foi morar em Jaboatão numa casinha humilde e ela foi trabalhar de doméstica, comigo. A casa que ela trabalhava aceitava e ela trabalhou determinado tempo. Depois, nós saímos para Cavaleiro e ela continuou na vida de doméstica. Nessa altura, eu com dez anos, já fazia aquela história de biscate, ia para a feira, carregava pacote de um, pacote de outro, frete, no sábado e no domingo. Através desse dinheirinho que eu arranjava nós comprávamos alguma coisa para mim, para a casa e eu ajudava de um lado, ela ajudava do outro. Quando eu fui para o SENAI de Jaboatão, a gente tinha uma rendazinha, a escola pagava uma renda mensal à gente de acordo com a nota de prova que a gente fazia mensalmente. Aquele dinheiro podia aumentar ou diminuir, dependia da média das provas. No sábado, a gente continuava fazendo biscate, uma coisa que aparecia, já tinha noção de oficina, já ajudava alguém na oficina de serralheria, para gente ir sobrevivendo. Até que eu terminei o curso e fui para o quartel. Não fui para a Rede porque a idade não permitia, tinha que ir para o exército.

P/1 – Então vamos falar um pouquinho mais dessa escola de Jaboatão, do Centro de Formação da Rede. Como é que era essa escola?

R – Era uma beleza. Era uma beleza a escola, ela nos dava tudo. Ela dava o passe para nós viajarmos no trem, mensal. Lá dentro nós tínhamos todo o material escolar dado pela Rede, nós tínhamos a roupa de trabalhar na oficina, naquela época, era macacão azul, doado pela escola. Quando eu entrei tinha o loré que era doado pela escola. A escola dava tudo a nós. Além disso, ainda tinha uma ajuda financeira todo mês de acordo com as notas que a gente tirava.

P/1 – E o loré, O que era?

R – O loré acabou em 1954. Só tive o prazer de conhecer o loré durante um ano. O loré era o feijão. Era feito feijoada. E com esse loré, a gente almoçava lá, não ia para a casa. Depois que o loré acabou, nós largávamos às 11 horas, íamos para casa, pegávamos ônibus, tínhamos duas horas para ir para a casa almoçar, para nós da escola era assim. Antes, os que trabalhavam na Rede, levavam para a casa para ajudar a alimentação da família.

P/1 – Então vamos ver se eu entendi. As aulas lá no centro de Jaboatão eram o dia inteiro?

R – Era o dia inteiro. Pela parte da manhã, era das oito às 11, aula teórica. Nós tínhamos matemática, português, desenho, física, ciências e tecnologia. Tecnologia era uma matéria relacionada à oficina. Essas eram as matérias que nós tínhamos. Dois dias por semana das sete às oito, nós tínhamos educação física na escola. Isso era a parte da manhã. Na parte da tarde, pegando da uma às cinco, eram quatro horas, nós tínhamos aula de oficina, diversas profissões aprendíamos ali: tornearia, serralheria, carpintaria, eletricidade e noção sobre ferreiro. Não tinha formação de ferreiro, nós tínhamos uma noção de ferreiro porque toda aquela turma fazia aquela série de peças na seção de ferreiro. Mas não saía ferreiro, só saía serralheiro, torneiro, carpinteiro e eletricista. Eram as quatro profissões que a escola formava.

P/1 – E como é que entrava nessa escola? Tinha alguma prova, alguma coisa para entrar?

R – Tinha, era tipo um vestibular. Inscrevia-se na escola, antes tinha um processo que só podia se inscrever aquele garoto que tivesse parente ferroviário, quem não tivesse, não podia. A escola era para dar um incentivo à família de ferroviário. Aqueles que tinham qualquer parente, tio, avô, pai, sendo o que fosse, né? Eu tinha um tio, por parte de pai, que trabalhava na Rede, era condutor e através dele eu entrei na escola profissional.

P/1 – O senhor chegou a conhecer esse tio?

R – Conheci muito pouco. Conheci, mas foi pouco.

P/1 – E foi então por conta dele que o senhor conseguiu vínculo para...

R – Foi. Lá na escola profissional.

P/1 – E aí o senhor foi fazer a prova...

R – Aí vamos fazer a prova, é tipo vestibular. O número é limitado, podia inscrever a quantidade de garotos que quisesse, agora só ficavam 30 alunos. Tinha turma que tinha 31, 30 ou 31, esse era o máximo da escola, mas a média eram 30 alunos.

P/1 – Aí entravam e começava as aulas...

R – Entrava tudo como serralheiro porque ali tinham as opções, quem queria ser marceneiro ia logo para carpintaria e quem queria ser serralheiro ou torneiro ficava como serralheiro, aprendendo como serralheiro e, durante o ano, tinha aquele processo. Tinha aquela série para fazer nos tornos, fazia aquelas pecinhas no torno e, de acordo com aquelas notas, aqueles que melhor se saíam... De cada turno, só saíam quatro torneiros de 30 alunos. Um número também baixo ia ser carpinteiro. Uma média de uns seis, sete alunos, iam ser carpinteiro o resto, tudo, ia ser serralheiro e torneiro. Desse resto de serralheiro, quatro saíam como torneiro, aqueles que tinham as melhores notas, tanto nota em matemática como na parte de peça de torno que era avaliado.

P/1 – E o senhor?

R – Eu fiquei como serralheiro. Aí me tornei torneiro e fresador após sair da Rede. Eu trabalhei em quatro indústrias, trabalhei numa fábrica de sabão, trabalhei na Souza Cruz, companhia da minha amiga ali do cigarro, trabalhei na Sociedade Algodoeira do Nordeste Brasileiro (Sanbra) e numa fábrica de implementos agrícolas. Quando trabalhei na de implementos agrícolas, foi quando a Rede me chamou, eu e os demais alunos, aí eu fui para a Rede. Nessas quatro indústrias, eu tive a felicidade de aperfeiçoar em tornearia e fresador.

P/1 – Então assim, o senhor acabou a escola e foi chamado para o exército?

R – Fui para o exército. Após ser licenciado do exército, o presidente Juscelino Kubitschek começou a fazer Brasília, aí nem entrava e nem saía em órgão do governo. O diretor lá da escola disse para aguardar. Nesse aguardar foi que passou muito tempo, para construir aquilo demorou. Nesse tempo, foram quase sete anos. Quer dizer, eu saí em 1955, mas em 1956 eu saí. De 1956 para 1963, quando eu voltei para lá. Foram sete anos, um ano no exército e seis anos fora. Esses anos que eu passei fora me trouxeram benefícios porque eu tive a felicidade de aprender a profissão de fresador onde eu não gostava, adorava a minha profissão. Naquela época, era muito difícil encontrar um fresador. Essas indústrias daqui de Pernambuco poucas tinham fresa e onde sabiam que tinha um fresador faziam de tudo para pegar.

P/1 – E o que faz um fresador? Explica para a gente.

R – Fresador, a profissão de fresador é... Sabe o que é engrenagem e roda dentária? Tem de vários tamanhos, né? Tem a roda dentária que engrena uma na outra e faz o movimento para girar entre dois eixos. Agora, tanto tem dente reto quanto tem dente declinado. Dente declinado é na prática, porque o nome é helicoidal, aquele que tem o dente declinado é helicoidal e paralela. Tem o pinhão, pinhão e coroa, mas coroa era a pedra, não era por causa da idade (risos), era a pedra porque o pinhão era menor e a coroa era maior. Quando nós fazíamos um negócio de redução de velocidade ou aumento de velocidade, se usava a coroa e o pinhão para se fazer essa variedade de velocidade.

P/1 – Então, o fresador é o que cuida...

R – É o que faz a roda dentária que é a engrenagem. Antigamente, a gente chamava carreta, mas depois que apareceu esses caminhões grandes, carreta é caminhão, isso é roda dentária ou engrenagem. E, realmente, o nome certo é esse mesmo, engrenagem.

P/1 – Então, nessas indústrias, enquanto o senhor aguardava abrir uma vaga na Rede, o senhor foi se aperfeiçoando nessa...

R – Estava trabalhando de serralheiro na oficina e tive a felicidade de encontrar um senhor que trabalhava na Sanbra, esse senhor dentro da oficina era tudo. Baixinho, super competente. Tudo, de desenho a vassoura, ele fazia dentro da oficina. Era chefe da oficina, ele gostava muito de mim quando eu trabalhava na Sanbra em Areias. Eu trabalhava na Sanbra, era o encarregado de turmas. Com 20 anos, já era encarregado de turma, tomava conta de caras com 50 anos. Após eu sair de lá, da Sanbra, tive uma divergência lá com o gerente, chefe geral, eu disse: “Você é maior do que eu, você fica eu saio. Não dá mais pra mim”. Quando ele soube que eu tinha saído, tinha ido para Matarazzo que era uma industrinha aqui nos Coelhos, faziam três dias que eu estava na Matarazzo quando ele foi me buscar. Foi quase na hora, ele disse: “Pode entregar tudo que tem aí, você vai para lá comigo”. Aí eu fui lá para o Cordeiro que era a fábrica de implementos agrícolas, fica ali em frente a exposição de animais no Cordeiro. Lá, eu trabalhei dois anos e pouco com ele. Foi quando chegou chamada da Rede, ele disse: “Agora, eu vou liberar você”. Aí eu fui e encerrei minha carreira na Rede, Graças a Deus.

P/1 – Qual que era o nome desse senhor?

R – Era Alcides.

P/1 – E ele que ensinou o senhor...

R – Ensinou o aperfeiçoamento em torno e fresa. A fresa era difícil porque a fresa, qualquer serviço que você vai fazer, tem que calcular, tem que pular para matemática, tem que calcular tudo. No decorrer da prática, você não calcula, mas até a velocidade da máquina com ferramenta, você tem que calcular a velocidade, de acordo com o material. Agora, com a prática, a gente não calcula mais velocidade, você já sabe qual é em média a velocidade, não calcula. Mas você tem que calcular tudo. Entra até trigonometria, pega tudo: condicional, multiplicar, dividir, trigonometria, álgebra, entra tudo. Mas para você que gosta, adora, é uma beleza. Eu adorei.

P/1 – O senhor entrou na Rede então em...

R – Eu entrei na Rede de acordo com a profissão que eu saí da escola. Entrei como serralheiro, mas quando cheguei lá só tinha um fresador. Foi o que eu lhe disse, fresador era difícil e já era um velhinho, já estava para se aposentar. Aí, eu falei para o chefe da oficina, Abelardo Nazaro que até hoje nós somos amigos, eu citei a minha situação para ele. Ele disse: “Não diga rapaz. Então, você vai aguardar uns dias...”. Ele está próximo de se aposentar, já está velho, eu citando a situação aí ele me entregou tudinho: “Vou ficar por aqui, já está perto de eu me aposentar, você vai logo tomando conta, você já vai se adaptando”. E eu fiquei na Rede como fresador.

P/1 – E por que não tinha um curso de fresador? Por que não tinham muitos fresadores nessa época?

R – Porque era difícil. Aqui eram poucas indústrias que tinham fresa. Tinha a fresa que tinha na Sanbra, na Souza Cruz tinha, na fábrica da Torre de tecido tinha. Eram poucas, poucas mesmo que tinham fresa. Quando essas que tinham fresadora, sabiam que em tal lugar tinha um fresador que era bom, faziam tudo para ir buscar. Eu na Rede recebi um convite para ir para uma fábrica de papel que tem em Igarassu, Companhia de Papel e Papelão Ondulado do Norte (Ondunorte) que faz negócio de papel, papel leve, esse negócio. Quando ela foi fundada, não era nesse nome, parece que era Pafisa, Papel Fino Nordeste, um negócio assim. Ele fez de tudo e eu disse: “Meu amigo, tudo bem. Você pode me pagar, o que pagar eu não vou sair da Rede. Aqui, eu estou garantido para o fim da minha vida e eu estou hoje. Qualquer divergência que houver amanhã, você pode me botar para fora. Aqui não. Aqui não tem divergência, aqui eu sou filho da casa e aqui eu vou até o fim, só depende de mim”. Dependendo de mim e da empresa, eu tive a felicidade de me aposentar lá.

P/1 – E como é que era esse trabalho de fresador na Rede? Era só o senhor depois que ele se aposentou?

R – Era só eu. Na oficina de Jaboatão, era somente eu. Em Werneck, tinha um também, não é menosprezando ele, mas a preferência da Rede era comigo. Todos os serviços de fresa vinham para Jaboatão, serviço de João Pessoa, Natal, Alagoas era tudo em Jaboatão. Quando acontecia qualquer problema, quebrasse eles falavam: “Manda para Lima, em Jaboatão que ele faz”.

P/1 – Eu não entendo muito de engrenagens, motores e tal. Onde que entravam essas peças que o senhor fazia?

R – Essas peças entravam em locomotivas, entravam em vagões porque hoje não existe mais, mas existia em vagão de carregar sal e açúcar. Era um vagão quadrado feito em baú, embaixo tinham quatro cilos e tinham aquelas tampas. Ali tinham duas engrenagens, a coroa que era grande e o pinhão que era pequenininho, trabalhava. Quando chegava aqui no porto que era para descarregar, eles abriam a tampa, através daquela engrenagem eles aí todo o material caía ali naquele dique e dali já era transportado direto através de uma esteira para o navio. Em locomotiva, vagão e peça que eles quebravam de maquinário de oficina sempre tinha engrenagem, engrenagem de torno, tudo tinha. Eu tive a felicidade, através de alguns engenheiros, chefes da oficina, alguém que me conhecia, de ser considerado como o melhor fresador da Rede. Isso para mim foi um orgulho. Dinheiro pouco, mas o valor é lá em cima. Inclusive, teve uma época que houve um problema numa máquina lá na serraria que ela preparava umas tábuas que eram para fazer o lastro dos vagões de carga e toda semana tinha que sair uma média de 12, 15 vagões de carga. Quebrou-se uma máquina lá na serraria, quebrou-se na engrenagem, a engrenagem era grande e tornearam a engrenagem, numa época de Carnaval. Eu passei os quatro dias trabalhando sozinho lá dentro da oficina. Sozinho, mentira, porque tinha vigia, eu pedi lá ao engenheiro para colocar uma pessoa junto de mim. Ele perguntou: “Você tá com medo?”. “Não. Eu tenho medo de me acidentar e morrer por causa de falta de socorro”. Aí o vigia ficava lá só sentado, só dormindo. Foram quatro dias que eu trabalhei lá, só eu. Quando ele chegou: “Lima, minha engrenagem está pronta?”. “Pode usar, está pronta”. Da quarta-feira até a sexta, saiu uma média de 10 vagões. Isso tudo era parte da vida que passou da gente na ferrovia que a gente se lembra e tem orgulho. Trabalhava muito na Rede porque primeiro eu precisava e a empresa também. Geralmente, eu largava às oito horas da noite, dez horas da noite. Isso quase todo dia.

P/1 - E como é que era a oficina de Jaboatão?

R – A oficina de Jaboatão tinha tudo. A começar pela frente, tinha o escritório, depois do escritório, vinha a serraria que pegava aquelas toras de pau grande e saía dividindo de acordo com as peças, ele fazia tábua, fazia tudo. Tinha carpintaria que era grande, vinha a parte de bancada que era parte de serralheria, em seguida, vinha a tornearia que era a parte mecânica, onde eu fazia parte. Aí vinha a primeira seção que era a montagem, a gente fabricava as peças, mandava para a primeira lá e montava as locomotivas. Aquelas locomotivas pretas, porque as vermelhas, a óleo diesel, eram em Werneck, era aquela locomotiva preta. Montava e a máquina chegava zerada, chegava sem nada, saía nova. Depois da primeira seção, tinha a quarta seção. A quarta seção era reparo de vagões, vagão de carga. Virava, quebrava tudo, chegava lá, recondicionava e saía novo. Tinha a parte de vagão de passageiros que era também de lá da serraria. Era vagão passageiro no começo e lá no fim era vagão de carga. Então, tinha vagão quadrado, aquele vagão tanque que carregava álcool, gasolina, óleo. Tudo quanto era vagão, era feito lá. As rodas já vinham prontas de Minas Gerais, torneava o eixo, iam para a prensa, entravam sobre pressão naquela bitola, dali colocava em vagão. Tinha o truque, armava o truque com as rodas, o vagão saía novinho. Tudo era feito em Jaboatão. Tudo. Tudo era feito em Jaboatão. O que precisasse fazer Jaboatão fazia.

P/1 – E como é que era o dia-a-dia do senhor? O senhor morava ali perto de Jaboatão...

R – Eu morava em Cavaleiro nessa maravilhosa casa que eu acabei de dizer e trabalhava em Jaboatão. Era perto, de trem era um negócio de 12 minutos, era quase perto onde eu moro hoje. Era um negócio de 15 minutos de lá de Coqueiral para Jaboatão.

P/1 – Almoçava lá mesmo na oficina?

R – Almoçava na oficina, agora o almoço ia de casa. É o que eu falei, o negócio do loré acabou. Quando eu entrei na Rede não tinha mais loré. Uns cozinhavam era lá dentro, tinham uns capacitados lá que faziam um tipo de fogão lá que eles enchiam de pó de serra, aquelas madeiras que serrava, pegavam o pó, enchiam aquilo ali, tocavam fogo e colocavam a panela em cima. Era conta certinha de cozinhar uma panela de feijão! Cozinhava ali e almoçavam três, quatro. Quem não cozinhava lá, o almoço vinha de casa. O meu ia de casa. Quando foi construído o refeitório, aí acabou todo esse negócio. Passou todo mundo a almoçar no refeitório. Foi melhor, né? Hoje é melhor ter o refeitório. Melhor em partes, porque hoje tem o ticket refeição e esse ticket refeição muitos usam até para pagar contas de carro e diversas coisas. Porque a Rede não, aquele se acabou, mas se ainda estivesse a funcionar era a mesma coisa do metrô. O metrô, eu conversando com um colega meu, dá em torno de 600 reais o valor dos tickets dele durante um mês. E tem alguns colegas meus que: “O meu dinheiro que eu ganho, meu salário, é para manter a casa e os tickets eu compro uma coisa, compro outra, prestação de carro, prestação de tudo”. Então é por aí.

P/1 – Na oficina o senhor tinha que usar um tipo de uniforme?

R – Tinha.

P/1 – Como que ele era?

R – Nós usávamos era macacão como o que a gente usava na escola. Macacão azul. Depois através da Comissão Interna de Prevenção de Acidentes (CIPA), davam à gente uma botina para evitar acidentes, tipo corte nos pés. Nós usávamos uma botina, a botinha vinha uma parte aqui assim e a gente trabalhava com aquela botina. Botinha e o macacão era o fardamento do pessoal da oficina.

P/1 – E tinha equipamento de segurança?

R – Tinha. Tinha chapéu, para determinados cargos tinha aqueles chapéus e óculos de proteção. Só que nós da oficina não usávamos aqueles chapéus, só usávamos óculos para determinados serviços. Nós íamos ao esmeril, afiar uma ferramenta, arrumar uma ferramenta por causa daquela fagulha que saía, nós usávamos óculos. Às vezes, eu estava torneando, depende do material que saía pó, aí usava aqueles óculos de proteção. Tinha óculos de proteção, tinha luva, tinha botina e tinha o macacão que a Rede dava para nós trabalharmos.

P/1 – E o senhor fazia parte de algum grupo... Tinha também o Clube dos Ferroviários, né? Tinha o time da oficina...

R – Tinha o Clube dos Ferroviários. Do time, eu fazia parte. A gente fazia um campeonato interno quando a gente largava ia para o campo que ainda existe lá em Jaboatão e fazia aquele campeonato. Era aquela seção contra a seção, né? Ia a primeira, segunda, terceira, quarta, quinta, oitava. As seções que tinham lá disputavam aquele campeonato. Eu tinha a felicidade de tomar conta da parte da quinta, era quem organizava o negócio todinho, só queria ganhar, não queria perder de maneira nenhuma e sempre o time da gente era bom.

P/1 – Era futebol, né?

R – Era futebol.

P/1 – E o senhor jogava em que...

R – Depois, acabou esse futebol de campo lá e se fez uma espécie de uma quadra dentro da oficina. Foi derrubada uma parte lá quando fizeram o refeitório lá e tinha uma quadra. O campo era de areia. A gente jogava tipo de salão, também campeonato das seções. Deixou o futebol de campo para ser lá dentro. Era melhor porque quando a gente largava estava ali mesmo e não ia mais para canto nenhum.

P/1 – E como é que eram esses campeonatos? Todo fim de tarde ou era...

R – Era de tarde, quando largava, a gente largava às cinco horas, aí começava o campeonato. A gente ia até às seis horas.

P/1 – E o time da sua seção ganhou várias vezes? Como é que era?

R – Era seção. Existia lá aquele que era a seção e aqueles times mais fortes. Nós tínhamos a quinta seção, tinha a quarta seção e tinha a fundição, esses eram os três principais times de lá. O resto não era feito estes, mas a quinta, quarta, a fundição e a primeira seção tinham um time bom. O campeonato era animado e valia a pena, a gente gostava.

P/1 – E a banda? Tinha banda também, não tinha?

R – Tinha. Ainda tem.

P/1 – Ainda tem a banda dos ferroviários?

R – Felizmente, ainda tem. Eu quando entrei, quem era o chefe da banda, o maestro da banda, na intimidade, a gente chamava de Mané Besta, mas de besta ele não tinha nada. Era para ser Mané Sabido, né? Após ele sair, o tempo chegou, se aposentou, ele foi embora, vai passando de um para outro... Chegou um rapaz lá, entrou, ele foi da escola, do Centro de Formação Profissional, Ailton e ele é músico... E a banda foi enfraquecendo, o negócio dele foi se acabando, ia saindo um, ia saindo outro e ele lá por conta. Quando ele começou fazendo uma bandazinha de casa, coisa de garoto, e tem essa banda. Não é mais aquela banda ferroviária que tinha, porque a banda ferroviária era uma banda de respeito. Eram duas coisas que se entrava na Rede sem concurso, sem nada: músico e jogador de futebol. Se fosse bom entrava, não se ia para concurso, nada. A Rede acobertava. Tanto para o time ferroviário, locomoção, quanto para a banda. Se fosse bom tinha, o privilégio de entrar, não ia fazer concurso, não fazia nada. Hoje essa banda de Ailton, não é mais a banda ferroviária, mas ele continua e agora com o falecimento do rapaz que era o presidente do centro o nome dele era Luís Carlos que a maior parte a gente conhecia por apelido, na intimidade, a gente só chamava de Buruca. Ele infelizmente faleceu de um acidente vascular cerebral (AVC). Dois colegas nossos assumiram lá e colocou locomoção e a banda tudo para lá, no centro ferroviário.

P/1 – E o senhor chegou a assistir alguma vez essa banda em alguma apresentação?

R – Essa de Ailton? Ou a da Rede?

P/1 – A banda da Rede.

R – Olha, Jaboatão tinha duas bandas, era a banda da Rede e a banda de um padre muito antigo que era uma banda também de respeito. Sempre quando tinha qualquer atividade assim as bandas faziam parte.

P/1 – E tinha assim, campeonato das bandas?

R – Não. Tinha não.

P/1 – O senhor ficou trabalhando então na oficina de Jaboatão...

R – Toda minha vida foi Jaboatão.

P/1 – Foi sempre lá?

R – Foi sempre lá. Quiseram me tirar para Werneck, mas eu não quis porque, justamente, lá qualquer bronca ia para Jaboatão. Aí, houve um acidente de percurso, chegou um determinado serviço, uma engrenagem, levaram para fazer em Werneck. Uma engrenagem grande. O rapaz de lá, que ainda é meu amigo, disse que lá não tinha condições de fazer. Não tinha condições de fazer então mandou para Jaboatão: “Manda para Lima que Lima faz”. Vieram me perguntar porque a fresadora de Werneck nem se igualava com a de Jaboatão que já era ultrapassada e a de Werneck era nova, a fresa americana nova boa. Eu não estava sabendo da história, né? O supervisor chegou para mim e disse: “Lima, essa engrenagem daqui veio para você fazer aqui. Você conhece a fresadora de Werneck?”. “Conheço.” “Dá para fazer lá?”. “Dá”. Mas não sabia que tinha armação. “Então, você vai fazer lá”. “Não. Eu vou fazer aqui”. “O engenheiro mandou saber de você se dava para fazer lá e se desse você ia para lá fazer”. Eu digo: “Mas rapaz, você vai arranjar conflito entre eu e o Ramiro”. “Não tem nada de conflito, você vai fazer lá”. Eu fui, cheguei lá, o chamei: “Olha, o problema é esse, esse, esse”. O nome dele é até Daniel: “Não Lima. Pode ficar à vontade. Não tem problema”. Aí, eu terminei a engrenagem e o engenheiro: “Você quer ficar aqui? Eu faço a sua transferência...” “Não. Eu vou embora para Jaboatão”. Quando eu voltei para Jaboatão, o engenheiro de lá, doutor Belém: “Pega a fresadora daqui e manda lá para Jaboatão que aqui não faz”. O supervisor lá da seção foi quem trouxe a fresa, colocou em Jaboatão, pegou uma que tinha lá, menor, e levou para lá. Trouxe a fresa com ferramenta, com tudo, e colocou em Jaboatão e ficou a fresa pequena lá. Para mim foi bom porque a fresa era boa, facilitava o trabalho, né? Mas lá não gostaram, por causa dessa história, mas eu não tenho nada a ver com a história aí.

P/1 – A gente estava conversando...

R – Do relógio. Aquele relógio era uma marca que tinha ali em Jaboatão. Quem morava ali em Jaboatão via a hora por aquele relógio, porque ele tinha uma torre, ficava acima da oficina, com quatro relógios. Norte, Sul, Leste, Oeste. Eram quatro relógios. Todos coordenados ali. Agora, aquele ali, muita gente não sabia, mas quem fazia a manutenção dele era um senhor, Manuel, um baixinho, que sempre ele estava lá. O ponteiro maior, segundo ele dizia, era de oitenta centímetros, quer dizer, o diâmetro dele dava um metro e sessenta. E quando se quebrava, vinha o problema das engrenagenzinhas que a gente tinha: “Leva para Lima fazer. Lima faz”. Eu fiz várias engrenagens para aquele relógio ali. Quando quebrava aquela engrenagem a gente fazia, o rapaz ia lá, montava e colocava para funcionar o relógio. Aquele relógio ali era um marco. Depois que derrubaram aquela parte ali por causa do metrô, teve que destruir aquilo ali e o tiraram. Raimundo de Oliveira tentou colocá-lo na frente, fizeram lá uma torrezinha, mas não funcionou mais. Ele está lá, mas não funciona mais não. Mas ele funcionava e trabalhava certo, não era um Big Bang de Londres, mas funcionava para comunidade ali ver a hora.

P/1 – O senhor chegou a ir a algum acidente?

Porque o senhor trabalhava com as engrenagens, se por acaso...

R – Não. Quando acontecia acidente de trem quem fazia isso aí era o pessoal do levantamento, da parte de socorro. Cinco Pontas era a parte de socorro, tinha uma equipe especializada só para aquilo, era quem fazia os resgates. Inclusive esse filho meu, quando saiu de lá que veio para Jaboatão fazia parte dessa equipe de socorro. Tinha o guindaste para aqueles casos de quando virava a locomotiva, vagão. Você olhava assim: “Esse não serve mais não”. Eles tiravam com a maior facilidade. Tiravam, levantavam com a maior facilidade, as turmas de socorro.

P/1 – Já que então o senhor falou do seu filho, vamos então voltar. Eu queria que o senhor falasse um pouco mais dessa sua casa no Coqueiral, como é que ela era.

R – Era o mais simples possível. Era de taipa porque ainda não tinha condições de comprar, né? Na época, eu vivia com a minha mãe. Ali a gente ia se ajeitando, ajeitando... Foi o tempo que eu entrei na Rede, me casei, aí eu comecei a construir família, aí melhorei. Melhorei, mas não podia fazer o que tinha vontade porque era barreira e tudo em barreiro acidentado. Vê esse caso agora do Rio e outro semelhante. Mas se eu fosse fazer base, fazer uma casa de tijolo, levantar, aquela não tinha condições. Tinha que permanecer daquele jeito. Ainda hoje está lá do mesmo jeito. Tem que permanecer daquele jeito porque se for fazer como a gente queria, não podia. O que foi que eu fiz? Esperei aparecer uma oportunidade de um terreno por perto, apareceu esse terreno que ficava quase em frente a Igreja Católica de Tejipió que é na pista principal. Eu comprei o terreno e lá eu construí a casa que ainda hoje eu moro. Essa com base de concreto, com coluna, lajeada tudo. É uma casa. Com a estrutura dela dá para levantar um segundo andar e tudo mais, né? A gente sempre pôde construir do jeito que a gente tinha vontade e, graças a Deus, construímos e tá lá.

P/1 – E essas duas casas eram perto da estação?

R – Era perto da estação. A de Cavaleiro para a Estação de Coqueiral eram uns oito minutos. Essa outra, cinco minutos está lá. Cinco, seis minutos eu estou na Estação de Coqueiral.

P/1 – O senhor falou que casou, como é que foi isso?

R – Eu me casei e, graças a Deus, até hoje para mim foi uma das vitórias que eu tive, um dos bons negócios que eu tive porque minha família estava se acabando, né? Só era eu, minha mãe e meu irmão: “Rapaz, eu vou chegar ao fim”. Eu tenho que me casar, ter pelo menos uns dois ou três filhos que é para manter a família, para não zerar. E nessas de dois, três filhos, foram nove.

P/1 – E qual que é o nome da sua esposa?

R – O nome da minha esposa Mesanete.

P/1 – E como é que o senhor a conheceu?

R – A conheci justamente em Coqueiral que ela tinha umas primas que eram muito minhas amigas. Eram não, ainda são muito amigas. Inclusive, tinha até alguns colegas meus que pensavam que eu namorava alguma lá, eu não namoro nenhuma. Eram quatro, não namorei nenhuma, todas eram minhas amigas. Não acreditaram, só acreditaram quando ela apareceu lá na casa delas que a gente começou a conversar, na conversa a gente começou a namorar e nos casamos. Aí foi que eles vieram tomar conhecimento que eu não namorava nenhuma delas, realmente, eram todas amigas, não era nenhuma namorada. Casei-me e, graças a Deus, até hoje eu esou bem.

P/1 – E foram nove filhos?

R – Nove filhos.

P/1 – E algum deles ferroviário?

R – Na carreira, o terceiro.

P/1 – O terceiro?

R – O terceiro foi. Foi esse que somente faltavam quatro anos para se aposentar quando a Rede fechou aí ele saiu, saiu todo mundo. Teve o mais novo que foi da escola profissional. Esse que foi da Rede, também foi da escola. Esse mais novo concorreu com o outro, estagiou lá em Jaboatão, mas não teve mais a chance de entrar na Rede. Mas esse veio bem, graças a Deus, é chefe de uma oficina, de uma companhia de valores, aqueles carros que carregam dinheiro. Ele é chefe da oficina lá e, graças a Deus, ele está bem.

P/1 – O senhor chegou a trabalhar junto com o seu filho na oficina?

R – Pouco tempo, mas cheguei.

P/1 – E o seu filho que fez a escola, esse terceiro, que fez o Centro de Formação da Rede, ele fez que área?

R – Lá ele fez caldeiraria.

P/1 – Caldeiraria.

R – Ele era caldeireiro e soldador. Trabalhou na Rede com a gente lá. Ele fez serralheria, porque na escola é serralheria, aí quando foi lá para a Rede foi como caldeireiro e soldador.

P/1 – Ele também trabalhou na oficina de Jaboatão?

R – Trabalhou muitos anos em Jaboatão. Depois de Jaboatão, ele foi para Itabaiana que era pequeno, mas fazia esse negócio de reparo de vagão, foi um grupo para Itabaiana. Aí, Itabaiana fechou, veio para Cinco Pontas foi quando fechou de vez que ele saiu.

P/1 – O senhor incentivou os seus filhos a seguirem alguma profissão?

R – Incentivava, não. Ainda hoje incentivo. O mais novo agora no dia 26 de abril completa 38 anos e o mais velho no dia 19 também desse mês completa 48. Por incrível que pareça, ainda dou no pé de todos eles. Com qualquer digo: “Olha, vem cá, está errado. É por aqui, por aqui, por aqui...” Além de pai e filho, somos amigos. Respeitam-me, me amam e a minha família é tudo pra mim.

P/1 – E o senhor tem netos?

R – Tenho 14 netos.

P/1 – Tenho 14 netos e um bisneto que vai fazer dois anos agora. Lucas vai fazer dois anos, em São João. Se brincar, uma coisinha vou ser tataravô.

P/1 – E o senhor viu? Falou que a sua família tava acabando, olha só quantas pessoas!

R – Foi o tal negócio, me casei e tinha que aparecer uns três ou quatro filhos para continuar a família, para família não chegar ao zero. Se eu não me caso, o golpe que eu levei na minha vida, em 1974 morreu minha mãe, que dela eu não vou falar senão eu choro, em 1975, morreu meu irmão, ficou quem? Ficamos eu, minha esposa e meus filhos. Hoje em dia, graças a Deus, tem gente até demais!

P/1 – E o senhor se aposentou da Rede...

R – Em dezembro de 1985, no dia 31, eu encerrava lá, mas como tinha férias coletivas disse não, eu não quero mais nada aqui, eu encerrei. Colocaram janeiro como férias, colocaram como eu saindo fevereiro dia, parece que no dia um ou dois de 1986. Mas eu considero 31 de dezembro de 1985, que foi quando eu encerrei, de lá para cá, até hoje, eu não trabalhei mais em canto nenhum. Não é porque não apareceu. Apareceu, mas eu sempre dizia o que eu sofri na minha infância até hoje, agradeço a Deus por ter chegado aqui, e daqui para frente, eu vou desfrutar o que eu plantei. Agora, recebi recado, chamado, para ir para tal canto, eu digo que eu não quero. Quando me aposentei recebi chamado de um amigo meu que trabalhava aqui na Philips, no Distrito Industrial de Curado, outro trabalhava na Microlite S.A., eu disse: “No dia que eu resolver trabalhar eu procuro vocês”. Já vai fazer 25 anos que eu não procurei nenhum dos dois e nem vou procurar, para isso não, para trabalhar não.

P/1 – E o senhor trabalhando na ferrovia chegou a andar de trem nessas viagens de longo percurso durante as férias?

R – A gente andava de trem que eles liberavam uns passes para a gente que davam para viajar. Agora, eu viajava muito de dois em dois anos porque tinha eleição do Sindicato dos Trabalhadores em Empresas Ferroviárias do Nordeste (SINDFER-NE) e, em toda eleição do sindicato, eu trabalhava, saía como mesário. Tinham uns autos de linha que eram os carros de linha que pegava, em média, oito, dez pessoas. Esses altos de linha eram exclusivamente para engenheiro, para essa chefia. Tinha determinada coisa numa linha, eles pegavam esses autos de linha, era como se fosse um carro particular, aí eles iam. Mas, quando era eleição do sindicato, era liberado para a gente porque tinham as urnas itinerantes. Tinha urna em Jaboatão, Werneck, no prédio, Cinco Pontas, aí tinham as urnas itinerantes. As itinerantes, uma saía partindo daqui até a divisa de Maceió com Sergipe; a outra partia daqui até Sousa na Paraíba, chegava também dividindo com Fortaleza; e, o outra pegava de Natal a Macau. Essa de Natal e João Pessoa eu trabalhava constantemente, toda eleição eu trabalhava. Nunca trabalhei na de Alagoas, nunca fui não, mas quem trabalhava disse que conhecia o trecho todinho, conhecia tudo.

P/1 – Então vocês iam no auto de linha com a urna...

R – No alto de linha, com a urna, tinha aquela determinação da regional de trabalho. A gente cumpria tudo aquilo certinho, direitinho. Começava a eleição às oito horas e às cinco horas, encerrava. A gente já programava aquela estação para a gente dormir, naquela cidade melhor, a gente fazia programação para dormir. Era uma semana para fazer essa eleição porque tinha pessoa, trabalhador de linha, que trabalha na conservação da linha, então, a gente ia parando. Um votava aqui, outro votava ali e a gente ia...

P/1 – Vocês iam parando no meio da linha mesmo?

R – É. No meio da linha. Tal canto tem uma turma, ali trabalhavam dez, 12 pessoas. A gente parava ali e todos eles votavam. Votava direitinho, na urna, saía e seguia até quando dava quatro e meia. Às cinco horas, a gente pegava uma estação, a gente já tinha mais ou menos o roteiro de onde é que ia dormir, a gente recolhia o auto de linha, fechava tudo; pegava a urna e lacrava, colocava no cofre da estação com a chave, ali ninguém abria, só abria a gente no outro dia. Chamava todo o pessoal da mesa para abrir a urna. Quando lacrava a urna todo mundo assinava, rubricava. Tirava e começava a votação. Quando terminava, a gente lacrava, rubricava, passava cadeado, chegava aqui na sede do sindicato, entregava, assinava a ata, pronto, aí era com eles. A missão da gente estava feita.

P/1 – Então, o senhor foi sindicalizado?

R – Eu fazia parte do sindicato. Eu nunca fiz parte de chapa de sindicato, nunca quis não. Agora, trabalhava nas eleições, aí você vai perguntar: “Por quê?”. Era pessoa que trabalhava certo, já tinha conhecimento como era o transcorrer das eleições. Aquelas pessoas que trabalhavam sempre, em toda eleição, já tinha quase aquele pessoal certo de trabalhar nas eleições. Eram quase as mesmas pessoas que faziam.

P/1 – E a maioria dos trabalhadores votava direitinho?

R – Votava. Uma média de 90% votava. E a gente gostava, a gente estava em oficina, ficava preso esse tempo todinho; a gente passava uma semana que, pelo menos, tirava o peso mais das costas. A gente estava andando, aquela conversinha num lugar, outro batendo papo, conhecendo outros amigos que a gente não conhecia.

P/1 – E como é que era a viagem no auto de linha?

R – Era normal. A gente saía, digamos estação “X”, quando sair daqui a gente abre os trabalhos aqui, tinha ata, o pessoal dali votava todinho e a gente saía. Ia seguindo até quando dava quatro e meia, cinco horas, a gente encerrava. Quando era no outro dia, começava de novo. A gente levava rede, levava tudo, porque tinha lugar que não tinha onde dormir, tinha que dormir na rede nas estações, quando tinha lugar, a gente ia para aqueles hoteizinhos, quando não tinha a gente dormia nas estações. Nas estações, todas, tinham armador, dormia ali e, no outro dia, começava de novo. Era divertido, a gente gostava do passeio.

P/1 – E viagens de férias com a família? O senhor chegou a fazer alguma de trem?

R – Em férias, não fiz viagem não. Ficava sempre por aqui mesmo. Porque era preciso ter parente no interior para viajar com família assim, a gente não tinha, ficava por aqui mesmo até terminar as férias. Agora, que era bom viajar era, só que a gente não viajava não.

P/1 – O senhor chegou a sofrer algum tipo de acidente nas oficinas? Aconteceu alguma coisa... O senhor viu algum, alguma vez?

R – Não. Vi acidente pequeno, acidente de pequeno porte. Esse negócio de um corte, essas besteiras, mas acidente grave mesmo nunca vi não.

P/1 – Como é que era a relação das diferentes áreas da oficina? O relacionamento entre as pessoas...

R – O relacionamento da gente era bom. O relacionamento geralmente na oficina era bom. Sempre existia algum arranhãozinho ali porque sempre existe, né? Se dentro de uma família existe, quanto mais na oficina com mil e poucas pessoas. Mas ao todo era bom.

P/1 – O senhor falou, a certa altura agora aqui da nossa conversa, que as pessoas tinham apelidos e tal. O senhor tinha algum apelido?

R – Tinha.

P/1 – Qual que era o seu apelido? Pode falar?

R – Cricri.

P/1 – Cricri? E por quê?

R – Não sei. Eu sei que acontecia. Eu trabalhava na oficina, trabalhavam três juntos, nós éramos amigos. A gente tinha sociedade de jornal, eu comprava jornal, somava e dividia para nós três. A fresadora era assim e dos turnos era assim, trabalhávamos nós três todo tempo. Depois, um deles houve um negócio aí ele passou para o escritório e foi trabalhar no prédio. Inclusive ele faleceu segunda-feira, eu tive a incumbência de fazer a última visita a ele. Quando cheguei lá na casa dele, eu bati na cigarra, a mulher dele saiu em cima, saiu uma garota, disse: “Diga”. “Eu vim aqui porque eu vim saber de Osmar tal e tal.” Ela disse: “Como é seu nome?” Quando eu ia dizer meu nome ele disse: “Diga-lhe para subir que eu já sei quem é. É Lima”. Todo mundo tinha apelido. Esse a gente chamava de Bunda de Osso, o nome dele era Osmar, era gente de primeira qualidade, cara calmo, tranquilo, era uma beleza. Tinha outro pequenininho, esse tinha apelido demais. Esse era Salário Mínimo, Luis Porrete, era apelido demais, tudo que era de pequeno a gente colocava nele. A gente levava tudo na esportividade. E o meu era Cri-cri. Tinha esse que era presidente do centro de ferroviária, o nome de era Luis Carlos, mas aqui a gente chamava de Buruca.

P/1 – Buruca?

R – Buruca, era o apelido dele. Todo mundo tinha apelido na Rede. Tinha um caso que se deu lá em Jaboatão, ele morava lá em Santo Aleixo, um senhor. A filha dele veio falar com ele e disse o nome dele, o vigia não sabia: “Como é o nome dele?” “O nome dele é Fulano de tal.” “Fulano de tal não trabalha aqui não”, “Ele trabalha na quarta seção”. Ele disse: “Não tem, a gente conhece as pessoas”. Ela disse: “Ele tem um apelido, mas é muito feio”. “Não moça, é que a gente está acostumado com isso, não tem problema, não”. “O nome dele é Mané Bota Gás”. Aí pronto, todo mundo caiu na risada... Vai chamá-lo porque a gente já sabe quem é! Era assim. Saber de todo mundo, eu não sabia, mas pelo apelido a gente sabia porque quase todo mundo tinha apelido lá dentro, na Rede e ninguém ficava aperreado porque se aperreasse era pior.

P/1 – Esses apelidos se estendiam para as máquinas, para as locomotivas ou não?

R – Não. Era só dentro da oficina porque a gente ficava ali, ficava na oficina, na rua que a gente chamava: “Chama Fulano, chama Cicrano”. Era tudo por apelido, dificilmente, a gente chamava pelo nome da pessoa. A gente se acostumava e levava tudo na esportiva, não tinha problema não.

P/1 – Porque eu ouvi comentários assim, eu não sei nem se é verdade, mas que, por exemplo, aquelas máquinas, as locomotivas vermelhas tinham o apelido de Coca-Cola.

R – Eu não sei por que ali já é a turma de Werneck. Eu não tenho conhecimento.

P/1 – Mas acontecia algum caso assim desse tipo lá em Jaboatão?

R – Não. Em Jaboatão eram aquelas máquinas pretas, todo mundo chamava Maria Fumaça porque ela queimava óleo, antigamente era a lenha, depois passou para óleo e de óleo passou para diesel. Ficaram as a diesel e aquelas a óleo. As a óleos, quando ligavam as caldeiras que ascendiam os maçaricos, saía aquela fumaça pelo bueiro. Aí eram apelidadas de Maria Fumaça, aquelas pretas, né? Agora aqui em Jaboatão se aquelas vermelhas de lá de Werneck chamavam Coca-Cola eu não tenho conhecimento, não.

P/1 – O senhor falou que se aposentou em 1985, quando foi que o senhor entrou para Associação dos Ferroviários Aposentados do Nordeste (AFAN)?

R – Olha, eu aposentei em 1985. Mais ou menos nos anos de 1990, a gente foi para a associação. Faz 20 anos que eu entrei na associação e eu não queria. Eu tive, na associação, o prazer de fazer um amigo que eu não conhecia, era ferroviário e eu não o conhecia. Esse amigo é quase como se fosse um irmão meu, o Zé Carlos. Sabe quem é José Carlos de Oliveira Melo?

P/1 – Sei.

R – Pronto. Nós somos amigos, amigos mesmo do que der para um, dá para o outro, entendeu? Além dele, o outro eu já conhecia, agora Zé Carlos eu conheci através da associação. O outro era um, não sei se você conhece, ele hoje estava lá, é o André, André Basto. Está cansado, já perdeu uma vista. Nós três ali éramos Os Três Patetas na associação. Teve um tempo que ele foi presidente, Zé Carlos era o tesoureiro, eu era o segundo tesoureiro. O Amauri me convidou para ser eu falei: “Eu não quero”. “Mas vem que a gente está cansado, já faz tempo que a gente está aqui e tem que renovar. Aí você vai ficar na tesouraria.” Depois saiu convidando mais, chamou Zé Carlos também: “Olha Lima, eu chamei o menino de lá do escritório, é boa pessoa, tal coisa, vai trabalhar na tesouraria com você”. Eu disse: “Olha, tesouraria é um negócio muito fino, qualquer coisa, às vezes, o cabra vai pagar sem dever e, dependendo da pessoa, eu ficaria na tesouraria ou não. Dependendo”. Quando chegou lá no Centro Ferroviário de Jaboatão, apresentação da chapa e coisa: “Esse rapaz é esse aqui”. E foi quando eu o conheci. A primeira vez que eu o vi, a gente se deu bem e, graças a Deus, foi uma grata surpresa para mim, ter um amigo da qualidade dele.

P/1 – O senhor falou que teve filho ferroviário, né? O que o senhor sentiu em relação a isso? De ter um filho seguindo sua profissão, ferroviário como o senhor?

R – Naquela época, a empresa ferroviária era uma empresa boa de trabalhar. Além de ser boa, pagava razoável. A gente tinha um filho, sabia que um ano depois ia se aposentar, porque Jaboatão era assim, era sempre passando aquele negócio de pai para filho, de filho pra pai, ia passando... Quando a gente conseguia colocar um filho lá dentro da Rede, a gente tinha um prazer, tinha um prazer de nós trabalharmos, sair e deixar um filho. Tiveram alguns ferroviários que tiveram a felicidade de colocar três, quatro filhos na Rede. Três, quatro, colocavam. Eu tive a sorte de colocar um, mas mediante o fechamento ele não concluiu, mas para todos os efeitos, valeu a pena.

P/1 – E tiveram mudanças na sua profissão ao longo de todo seu...

R – Não. A minha profissão sempre foi essa mesma. Não teve mudança. Às vezes, a pessoa muda, tem alguns que mudam, mas a minha não. A minha no que começou, terminou.

P/1 – E o que significou para o senhor ter trabalhado na ferrovia?

R – A ferrovia para mim foi tudo. Com a ferrovia eu construí minha família, criei minha família, eduquei da maneira que pude, hoje estou aposentado e comendo da ferrovia. Quer dizer que se não fosse a ferrovia, a minha vida hoje não seria como é, mas através da ferrovia, hoje eu tenho a minha vida tranquila, sossegada. Eu e a minha família.

P/1 – O senhor gostaria de comentar ou de dizer mais alguma coisa que eu não tenha falado?

R – Não. Acho que a gente já falou quase tudo que a gente tinha que falar sobre a ferrovia. Falamos tanto da ferrovia como da minha família, das amizades que a gente tinha lá dentro, da área de esportes que a gente fazia lá dentro que eu dominava a área de futebol com o pessoal lá, era a espécie de um tipo de treinador. Quem organizava o negócio, a turma ajeitava lá, marcava escalação de time, Fulano, Cicrano, aquele outro.

P/1 – O senhor não se lembra de alguma história que o senhor gostaria de contar, algum caso?

R – Não. Negócio de história era mais quem viajava, né? Quem viajava é quem tinha alguma história para contar, mas a gente que trabalhava preso ali dentro, só mesmo trabalho e só isso que tinha ali mesmo. Não tinha história para gente contar não. História era sobre serviço mesmo.

P/1 – Para o senhor, qual que é a importância de um trabalho como esse de registrar a memória da Rede Ferroviária através das pessoas que viveram o cotidiano da Rede?

R – Reviver é bom, principalmente, quando é um passado feliz, né? É o caso da Rede. A gente resgatar a história da Rede é bom. Seria melhor ainda se a Rede hoje tivesse em pleno funcionamento. Seria tanto bom para nós como para a população, aquela população de baixa renda, do sertão, que usava aqueles trens passageiros como melhor meio de transporte, tanto de segurança como de economia, porque a passagem era sempre a metade do preço da passagem de ônibus. E problema de segurança, dificilmente, você via um acidente de trem, virar trem, era muito difícil. Ônibus não, está batendo, virando, é constante, mas no trem é difícil acontecer.

P/1 – O que o senhor achou de ter dado essa entrevista? Gostou? Não gostou?

R – Foi bem. Foi bom. Quer dizer, a sua pessoa, os demais aqui, são pessoas amigas e trataram a gente bem, ou melhor, tratam a gente bem e a gente só tem de agradecer, ficar sensibilizado por essa oportunidade que vocês deram a nós de falar um pouquinho da Rede. Da Rede tem muita coisa para falar, mas cada um fala um pouquinho e vai concluindo a história da Rede.

P/1 – Em nome do Museu da Pessoa e do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), a gente agradece a sua presença, senhor Severino. Muito obrigada.

R – De nada.