Museu da Pessoa

Operária da paz

autoria: Museu da Pessoa personagem: Leonor Beatriz Diskin Pawlowicz

Projeto Ponto de Cultura
Depoimento de Lia Diskin
Entrevistada por Sônia London e Lourdes Alves Sousa
São Paulo, 17/01/2008
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista PC_HV_097
Transcrito por Rosângela Maria Nunes Henriques
Revisado por Viviane Aguiar
Publicado em 01/04/2010

P1 – Vamos começar aqui a nossa entrevista e, para começar, eu peço a você que se apresente dizendo seu nome completo, a data e o local de nascimento.

R – Sou conhecida por Lia Diskin, mas meu nome completo é Leonor Beatriz Diskin, hoje, de Pawlowicz. Eu digo hoje, mas na realidade nos últimos 36 anos, porque me casei nos anos 70. Nasci em Buenos Aires na Argentina, eu nasci no centro de Buenos Aires, numa região muito acessível e, nas minhas lembranças, muito acolhedora pela quantidade de parques que rodeavam minha casa. Eu nasci em 1950, em 27 de outubro.

P1 – Para começar, me explica esse nome, Lia, mas como batismo o nome Leonor. Qual a relação? Quem te deu esse nome de Lia? Por que ele aparece? Como é isso?

R – Na Argentina, ainda existe uma intimidade muito grande entre a Igreja e o Estado, essa intimidade era logicamente muito mais profunda nos anos 50. Então, no início do século XX, a Igreja estava sustentada pelo Estado. Consequentemente, havia uma lista de nomes possíveis para serem colocados nos filhos, não se permitiam nomes estrangeiros ou “estrangeirizantes”. Dentro da lista não constava Lia, constava “Lea”, que é um nome bíblico, a denominação bíblica de uma das personagens femininas. Mas não queriam “Lea”, queriam colocar Lia, e, como não estava, colocaram Leonor Beatriz, um pouco em honra ao Dante, à figura de Beatrice de Dante, por parte de minha mãe, e, por parte do meu pai, Leonor, que sempre soou muito pomposo para mim. Em casa não me chamavam assim, e eu tomei conhecimento do meu verdadeiro nome quando entrei na escola primária, e a professora passava a lista e falava Leonor Beatriz, e eu logicamente não respondia, porque eu não me sentia identificada por esse nome. Depois de duas ou três vezes que falavam o nome, eu terminava dizendo “presente”, mas não é algo com o qual eu me identifique no meu dia a dia. Hoje, se alguém chega dizendo Leonor perto de mim, eu não respondo, porque não foi com aquilo que me identifiquei ou com o qual construí uma identidade.

P1 – Olha, eu não sabia disso.

R – Isso faz parte também de toda a condição de estrangeira. Por mais que eu tenha nascido de pai argentino, o meu pai nasceu na Argentina, mas os pais dele eram russos.

P1 – Essa origem do Diskin qual é?

R – Russa. É um nome da Rússia, perto da Sibéria, e minha mãe era búlgara, sempre falou um espanhol com grande dificuldade, com muito sotaque. Então, todo meu habitat sempre esteve permeado pelo fato de ser estrangeiro, de uma condição de estrangeira, por mais que houvesse uma nacionalidade, inicialmente da Europa, sobretudo a Europa Oriental, era uma referência constante dentro de minha educação, dentro de minha formação. Eu me lembro que havia um cinema, não existe mais, chamado Cosmos 70, na Avenida Corrientes, no centro, bem no centrão, onde passavam com muita frequência filmes russos e filmes da Europa do setor oriental. Era, obviamente, um reduto de uma intelectualidade, não eram filmes comerciais de grande estrondo, mas a gente ia, nos levavam, meu irmão e eu. Nosso pai nos levava com muita assiduidade para ver esses filmes, que obviamente não tínhamos condição nenhuma de entender, além do que, sejamos honestos, eram “terroríficos”. Sim, porque eram permeados continuamente ou pela guerra ou pela desgraça, são filmes nos quais a melancolia e o assinalar o curso do destino, de como o destino às vezes trama situações absolutamente resolvíveis, trágicas, dramáticas, são muitas as linhas, o clima, que tinham esses filmes. Então, a gente não entendia literalmente nada, além do mais, volto a dizer, eram filmes muito “terroríficos”, emocionalmente falando, não porque fossem filmes de terror, mas porque emocionalmente tinham uma carga muito pesada, sobretudo para crianças.

P1 – E como foi isso? Os seus avós vieram da Rússia para Buenos Aires?

R – No caso do meu pai, os avós tinham vindo da Rússia para uma região de Buenos Aires chamada Bahía Blanca. O pai de meu pai era cantor de sinagoga, não era rabino, mas como não havia nenhum rabino na comunidade, na localidade de Bahía Blanca, ele fazia as funções de rabino. O que acontece em Bahía Blanca naquele início? Nós estamos falando do final do século XIX e início do século XX. Havia população indígena na região de Bahía Blanca e, como o meu avô – que eu não conheci porque, quando eu nasci, minha mãe tinha 44 anos e meu pai tinha 44 ou 45 anos, tinham pouca diferença de idade. Então, não conheci nenhum dos meus avós nem por parte paterna e nem por parte materna. Mas o que acontece com esse homem que chega do centro da Rússia e que é um cantante da sinagoga e se veste de preto? E que, quando chega o entardecer, pega seu roupão preto, o passa por cima de sua cabeça e começa a fazer as suas orações com a movimentação típica dos cantores e dos rabinos da tradição ocidental, da tradição em que eu nasci, dos judeus, ele faz suas orações ao entardecer? E, lógico, os índios, os aborígines, veem essa figura tão exótica, tão diferente do mundo, e diziam que falava com Deus, que nesse momento ele estava falando com Deus, e que Deus, de algum modo, se encontrava com ele por baixo desse capote preto, totalmente cuidado do olhar dos outros. E, obviamente, tudo isso também tem seu sentido e sua razão de ser. Quando ele morre de escorbuto – naquela época não tinha nenhum tipo de cura para o escorbuto – e a esposa dele, ou seja, a minha avó, fica viúva com seis filhos, sendo que o pequenininho tinha um ano e meio, o que acontece com essa mulher que era, de alguma maneira, religiosa? É simplesmente que Deus não pode existir. Porque, se Deus existisse, jamais permitiria uma condição dessas, deixá-la em um país estrangeiro, sozinha, com seis filhos para criar, sendo que o último, naquela época, se amamentava, razão pela qual nenhum dos filhos recebeu nenhum tipo de formação religiosa. O meu pai se criou como ateu e eu mesma, na evolução da família, não tive nenhum tipo de formação religiosa. Entretanto, os recintos religiosos, os espaços religiosos, sempre me despertaram uma imensa curiosidade. Eu tinha uma babá, que era muito cristã, e perto de minha casa havia uma igreja, então, ela ia todos os dias para a igreja, ela passava, ficava dez ou 15 minutos. E esses espaços, com essas figuras de santo, com esse silêncio extraordinário que há nesses claustros, despertavam realmente a minha curiosidade de saber o que se fazia ali dentro. O que essa mulher fazia quando se ajoelhava e ficava com a cabeça inclinada? O que era aquilo que acontecia? Mais tarde, eu, sozinha, também comecei a ir à sinagoga. As sinagogas tradicionais, ainda naquela época, tinham uma separação espacial entre os homens e as mulheres. Na sinagoga em que ia haver alguns ofícios, os homens estavam sentados no patamar de baixo, diretamente em frente ao altar, e as mulheres tinham um andar de cima, distanciado desse altar. E os cantores judeus, os hazanin, como se diz, tinham uma voz muito bonita, mas realmente eles são educados e cultivam a sua voz, com a qual fazem as rezas e as preces. E eu ficava fascinada com a voz “estroando”, como uma espécie de trovão, porque são vozes graves dentro do recinto. Eu ficava fascinada e logicamente eu não entendia nada porque era em hebraico, mas sempre essas cenas foram muito instigantes e provocadoras para mim. Quando comecei a crescer, eu comecei a frequentar outros recintos, por exemplo, de cultos budistas japoneses – do qual havia apenas um templo dentro de Buenos Aires. O que chamaríamos de sagrado, os espaços do sagrado sempre foram, ainda que distantes na minha formação, um chamado muito presente em toda a minha trajetória.

P1 – E você nasce em Buenos Aires em 1950...

R – Em Buenos Aires. Minha mãe era búlgara, nasceu em Sófia, ela também migra durante o processo da guerra, ela migra para Buenos Aires. Aliás, ela chegou a Buenos Aires num barco que poderia tanto ter chegado a Buenos Aires como poderia ter chegado ao Uruguai ou ao Brasil, porque era questão de sair da Bulgária de qualquer jeito, seja para onde for. Ela estudava, quando estava na Bulgária, Medicina, mas nunca conseguiu terminar seus estudos em Buenos Aires, porque obviamente tinha que trabalhar para sobreviver, porque eram épocas duras, épocas difíceis. Mas isso eu acredito também que acompanhou a trajetória dela, a frustração. O fato de ter quebrado, ter interrompido uma vocação, simplesmente por algo que acontece, que é a guerra. E acredito que isso vai estar muito presente em toda a minha trajetória de vida, de compreender pela própria carne, pela própria pele, a brutalidade, a monstruosidade que é uma guerra, não só pelo enfrentamento de contingentes humanos, dos exércitos, mas por tudo que provoca nas populações e por tudo que reverbera após o decreto de paz, após o concordar com um cessar-fogo, nas outras gerações. A minha mãe, eu me lembro com muito pesar da trajetória dela, não era uma pessoa nem alegre e nem sorridente. Eu acredito que posso contar com os dedos de minhas mãos alguma vez que eu a via sorrir ou expressar alguma alegria. A guerra marcou a separação brutal desse espaço físico do seu país natal e daquilo que constituía a sua comunidade de existência e criava sua identidade como ser humano, esse corte esteve sempre aberto, nunca cicatrizou essa ferida.

P1 – E como é que foi então essa infância com essa família que se constituiu dessa forma? Quantos irmãos?

R – Um irmão, mais velho, tem quatro anos a mais do que eu. É uma infância da qual não podemos dizer que integrava o repertório da vida de uma criança, não havia grandes brincadeiras, não havia grandes momentos para externar emoções ou “arrebatos” de vitalidade, tudo era extremamente contido. O fato de serem meus pais já de idade, quando eu nasci minha mãe tinha 44 anos e, sejamos honestos, para aquela época... Hoje já é uma temeridade ter um filho com 44 anos, imagina naquela época. E acompanhar o ritmo de uma criança, para uma mulher dessa idade, com um pai também dessa idade, é difícil, não é fácil, não é simples. Então tudo era muito contido, tudo era muito medido, muito pesado. A tal ponto que eu me lembro também com extrema clareza que minha preocupação fundamental era não levar nenhum desgosto, não provocar nenhum tipo de mágoa ou sofrimento para eles, porque na minha compreensão sempre eles eram pessoas muito maiores. Eu comparava meus pais com os pais de minhas coleguinhas e, na realidade ,o que me dava a sensação de que eu sempre convivi com avós, nunca com pais. A consignação era não levar problemas para casa, resolver tudo de qualquer jeito sozinho antes. Ainda que seja uma intimidade irrelevante... Quando eu tive minha primeira menstruação, coisa que eu nem sabia do que se tratava, eu liguei assustada para uma amiga da família que também era búlgara e era médica pedindo, pelo amor de Deus, que me atendesse e que me levasse para algum hospital, porque eu estava morrendo. Era a minha compreensão da situação naquele momento, nunca me ocorreu dizer a meus pais isso.

P1 – Como era a casa?

R – A casa era muito bonita, a minha mãe tinha muito bom gosto, muito bom gosto. Mas era também de uma grande formalidade, não havia espaços para bagunça, todos os móveis eram do estilo Luís XV, com tapetes, com babadinhos, os carpetinhos debaixo do floreiro, debaixo da porcelana, não havia espaço para bagunça. E acredito que também a partir daí eu criei um princípio de ordem, que também tenho essa compulsão para ter tudo medido, tudo ordenadinho. Incorporei isso de maneira muito natural a tal ponto que me sinto desconfortável quando estou em espaço que existe desleixo. Não uma bagunça própria de um trabalho que você está executando, mas quando é desleixo eu realmente não me sinto confortável.

P2 – Conta pra gente algum fato marcante, alguma coisa que na infância foi significativo pra você?

R – Mais uma vez, eu cito essa espiritualidade, que eu lembro com muita clareza, na escola, no que se chama aqui ensino fundamental, eu volto a dizer, a Igreja estava atrelada ao Estado. O Estado sustentava a Igreja naquela época. Então, havia uma festividade chamada Dia da Bandeira, creio que também aqui deve haver isso nas escolas. E nesse dia vinha um padre para benzer a bandeira e também dar a sua bênção aos alunos. Era uma escola muito bonita, realmente muito bonita, e também, naquela época, antes de entrar nas salas de aula, ficávamos todos enfileirados, cada série com seus colegas, dos mais baixinhos aos mais altos lá atrás, bem do tipo exército, para poder ter o domínio visual do grupo. E, nessas festividades, em que se cantava o Hino à Bandeira, o Hino à Bandeira argentino é realmente muito bonito. E, antes de começar a cerimônia, a diretora começava a ler, série por série do grupo escolar, os nomes das pessoas que não eram cristãs, para que saíssemos da fileira e ficássemos atrás de todos no pátio. Então, começava: Adriana Dikistein, Leonor Diskin e aí ia anunciando Verônica Rabinovich e a gente saía da fileira, ia para trás. Eu me lembro sempre do sentimento de perplexidade que eu tinha, porque eu não entendia porque eu tinha que sair da fileira, em quê eu era diferente dos outros. Outras colegas minhas ou que eram protestantes ou que não professavam nenhum tipo de fé específica, mas havia algum tipo de crença, elas me explicavam, mas eu não entendia como acontecia isso na minha casa, que não tinha formação religiosa nenhuma. Então, eu não entendia por que eu tinha que sair da fileira. Isso é minha marca registrada no Centro Lourdes e acredito que isso é a alavanca pela qual hoje eu me mobilizo contra qualquer tipo de discriminação, qualquer tipo de intolerância, qualquer tipo de não compreensão da unidade básica da vida. Seja essa vida de um humano, seja essa vida de um vegetal, seja essa vida de uma bactéria. Para mim, está muito clara essa unidade do vivo, essa unidade do milagre que de fato é a tua vida. Então, isso é uma lembrança muito marcada, mas muito marcada, porque ano após ano, não interessava se eu passasse da terceira série, da quarta série, quinta série... Todos os anos, chegava o Dia da Bandeira – e, antes de começar a cerimônia, em que o padre de fato fazia jurar, perante o crucifixo que ele trazia na mão, jurar a total dedicação a essa bandeira, jurar pela pátria – nós tínhamos que literalmente sair fora e ficar fora da participação. Era um momento que eu achava extremamente significativo porque até os dias de hoje eu me lembro da música dessa cerimônia, o Hino à Bandeira, que acho belíssimo, uma composição muito emotiva, muito tocante, muito verdadeira, que fala justamente que as cores da bandeira da Argentina têm as cores do céu, que é azul e branca.

P2 – Você disse que tem um irmão, e como ele se chama e como foi a sua relação com ele? E como é?

R – Ele se chama José Norberto, a minha relação com ele também foi de algum modo distante, talvez pelo fato de ele ter mais quatro anos, ele era mais irrequieto, mais movediço do que eu, e obviamente, nessa idade, começam a criar os coleguinhas, os amiguinhos e suas brincadeiras que não são sempre as brincadeiras de todas as meninas. A minha relação com ele obviamente hoje adulta é diferente, tem outro perfil, mas de criança eu me lembro que era distante. Ele me achava, às vezes, um empecilho para suas brincadeiras, para seus jogos, que eu não conseguia partilhar, que eu não conseguia realmente partilhar.

P1 – Como você se divertia nessa época, no começo da vida escolar?

R – O meu grande fascínio era dobrar papel e com uma tesourinha recortar e depois abrir e ver, eu ficava fascinada vendo isso. Como depois de aberto isso dava, não sei. Acho que obviamente eu identificava ou forçava a identificação ou como uma flor ou como animaizinhos ou como um objeto. Mas isso era o grande fascínio meu, pegar papeizinhos, dobrar e colar e depois ir recortando, isso eu me lembro muito bem.

P1 – E você tinha amigas?

R – Tinha algumas amigas.

P1 – Faziam coisas em grupo? Saíam em grupo?

R – Muito pouco, eu era muito caseira. E também o fato de serem meus pais mais velhos para o meu imaginário, às vezes, isso me criava certa inquietação, por exemplo, quando eles saíam, olha o clima... Quando eles saíam e, por exemplo, chegavam muito tarde, eu já começava a ficar preocupada e desesperada no sentido de “aconteceu algo, por que estão demorando tanto?”. Eu ficava acordada esperando que eles chegassem. Olha que situação quase invertida, não? E disso eu me lembro, já com uma idade um pouco maior, que de fato a situação se inverteu. Eu passei a ser um pouco pai, um pouco cuidadora deles. E de fato eu cuidei deles quando os dois adoeceram e estive presente quando os dois morreram, eu estive presente com eles quando eles morreram.

P1 – Você tinha quantos anos?

R – 31 anos. Eles morreram os dois em 81.

P1 – Mas você passou a adolescência com eles?

R – Passei a adolescência, mas eu cheguei ao Brasil com 21 anos. Eu saí da Argentina durante a época da ditadura, não porque eu militasse em movimentos de esquerda extremista, porque nunca havia exercido a minha vocação de utilizar a violência, utilizar o instrumento do terror como meio de expressão política ou de expressão ideológica. Eu não formaria parte dessa turminha, contra a minha identidade, a minha inclinação. Mas eu tinha grandes amigos que pertenciam a Montoneros, Tupamaros, e aí realmente tive que sair. No meu imaginário, eu sairia por seis meses, oito meses, e depois voltaria, mas eu fiquei por aqui mesmo.

P1 – E como foi isso? Você veio com eles para cá? A família toda veio?

R – Não, eu vim sozinha, meus pais ficaram lá, meu irmão ficou lá, mas eu saí sozinha. Eu já estava casada, mas Basílio, meu esposo, estava fazendo certos estudos nos Estados Unidos, ele se dedicou à questão de estrutura do papel. Então, ele estava fazendo esse estudo lá, sobre acidez do papel e estrutura do papel, e estava terminando esse trabalho, os estudos. E eu vim aqui, sempre no sentido de que, quando ele terminasse os estudos, viria para o Brasil e depois retornaríamos os dois para Buenos Aires. Mas terminamos ficando aqui mesmo. O Basílio foi contratado pela Melhoramentos. Naquela época, a Melhoramentos estava fazendo essa coleção belíssima de Guia de Museus. Era muito bonita, em papel cuchê, mas estavam tendo muita dificuldade justamente com o papel, porque o papel umedecia e terminava colando as páginas. Então, contrataram o Basílio especificamente para dar conta dessa situação com as tintas, o papel cuchê e as tintas. E depois ele terminou ficando na Melhoramentos mesmo.

P1 – Vamos voltar um pouquinho para falar um pouco mais dessa sua saída de lá. Como foi isso? Como foi esse processo de decisão de sair? De vir para cá? Você disse que primeiro pensava em seis meses, como foi isso?

R – Primeiro que eu achava que tinha realmente que ter uma experiência de outra natureza.

P1 – Você estudava?

R – Eu havia terminado minha formação de jornalismo lá no Instituto Superior de Periodismo José Hernández e havia me especializado em crítica literária com um senhor muito particular, muito singular, de la Peña, que trabalhava na editoria da Revista Estónio, uma revista de cultura e comunicação mensal dedicada a cultura, poesia, artes. E eu fui formada com ele na redação e toda a equipe, porque eu era menininha, era como o bibelô deles, eram pessoas adultas, e eu tinha 20 e poucos anos. No momento que eu senti que tinha que ter experiência mais livre, mais solta, e além do mais porque se havia tornado extremamente preocupante todo o clima que se vivia de terror dentro das próprias universidades e dentro do próprio centro de educação, centro de cultura. Essa fiscalização permanente, de se ver o exército permanentemente nas ruas e pessoas armadas com metralhadoras na rua e na própria universidade. Nós éramos registrados, literalmente éramos apalpados da cabeça aos pés toda vez que entrávamos na universidade. Esse clima, talvez por ter lembrança constante daquilo que falava minha mãe, e também referendava meu pai, isso terminou tornando extremamente opressivo para mim esse espaço e, logicamente, o relato constante de amigos, “desapareceu fulano de tal”, “não se tem informação sobre ninguém”. Não dava, acredito que eu precisava de um espaço de serenidade que obviamente aqui também não se vivia, mas era muito menos descarado, muito menos ultrajante do que se vivia na Argentina nos anos de 72, 73. Foi a época que eu vim.

P2 – Você disse que, quando chegou ao Brasil, você veio casada?

R – Já estava casada.

P2 – Mas como você conheceu o seu marido?

R – Frequentávamos os mesmos espaços culturais, os mesmos lugares. Ele tem dez anos mais do que eu, ele tinha naquela época 29, quando nós casamos, e eu tinha 19. Bom, ele também é russo, descendente de russos, era uma figura muito familiar pra mim, louro, de olhos claros. Ele era a imagem que eu via nos filmes quando eu era criança, era a imagem dos personagens, ele era uma figura muito familiar. E muito sensível, o russo, quando tem essa veia do humanismo, são pessoas extremamente sensíveis, extremamente delicadas. Então, as conversas demoravam, iam até três ou quatro da manhã, muito mais porque eu escutava do que falava, não? Eu nunca fui de falar muito, eu sempre tive relativa tranquilidade para todas essas coisas, mas era fascinante vê-lo, era fascinante aprender, sem sombra de dúvida, com a experiência dele, e o conhecimento de grande leitor, ele era muito afoito à leitura, ele era interessado em livros, tinha interesse em estar nas livrarias. Ele se dedicava naquela época já à Filosofia, apesar de ter se formado em Filosofia aqui no Brasil, na PUC [Pontifícia Universidade Católica] de São Paulo.

P1 – E como foi o casamento?

R – O casamento foi mais uma vez um complexo intrincado, porque o Basílio é de família cristã ortodoxa, são ortodoxos russos. E supostamente meus pais seriam judeus, mas, como eram comunistas, jamais praticaram coisa nenhuma, mas a formalidade da coisa, mais uma vez, criou condições complexas a tal ponto que obviamente nos casamos única e exclusivamente no registro civil, não houve cerimônia religiosa nenhuma. E sempre com um pé atrás, muito mais por parte de meus pais do que dos pais dele, que jamais fizeram nenhum tipo de questão pelo fato de eu pertencer a uma família “formalmente, mas nunca efetivamente de judeus”. E aqui estamos, há 37 anos.

P1 – Você tinha quantos anos?

R – 19.

P1 – E foi o primeiro namorado?

R – Foi o primeiro namorado, havia tido um namorico antes com um chileno.

P1 – Ah, com um chileno que morava na Argentina?

R – Ele morava na Argentina, mas havia sido uma coisa muito “intranscendente”. Mas Basílio é uma pessoa muito amorosa, muito atenciosa tem qualidades, eu sempre falo com total sinceridade isso: eu tento ser uma pessoa bondosa, eu acredito que a bondade é aquilo mais refinado que se pode cultivar na condição humana, eu tento ser, procuro ser, me policio para ser. Ele é uma pessoa naturalmente bondosa, ele tem a bondade como uma condição natural, não é algo que ele tenha que cultivar ou tenha que se educar para... Ele é naturalmente bom, tem essa disponibilidade para o bem, essa disponibilidade para estar presente quando for necessário. Eu volto a dizer, é natural nele, em mim não. Eu tento procurar ser, me policiar para ser, para não me furtar e, no caso dele, não.

P2 – Lia, quando você veio para o Brasil, para onde você veio? Onde você foi morar?

R – Aqui em São Paulo numa casa que estava no Jardim... Não existe mais hoje, infelizmente, no Jardim Paulista, na Rua Batatais, e depois terminei alugando uma casa na Avenida Nove de Julho, que também não existe mais, e depois na Avenida Nove de Julho com a Alameda Lorena. E aí, mais tarde, Basílio já tinha chegado, é que começamos os primeiros encontros filosóficos, literários, culturais na nossa própria casa. E lá na Nove de Julho também tive minhas primeiras experiências com o que é a realidade da exclusão. Por quê? Porque esse sobrado estava exatamente em frente à Igreja da Lorena, exatamente em frente à Igreja da Lorena e, na Igreja da Lorena, havia um grupo de mães – eu estou falando de 74, 75, 76 – havia um grupo de mães que tinham as suas crianças que esmolavam na rua e, não me pergunte por quê, porque realmente eu não sei, chegou um dia que as crianças maiores tocaram a campainha e começaram a pedir esmola na própria avenida ou coisa assim. Eu entendia, naquele momento – já nutrida pelo espírito gandhiano, nutrida pela advertência gandhiana –, que a esmola termina construindo, em última instância, uma relação não igualitária entre ambas as partes. Então, comecei a oferecer comida, comecei a oferecer sopa. E começaram a chegar dois ou três, no horário de meio-dia, meio-dia e meia, para tomar a sopa. Mas depois não era apenas sopa, era também trocar alguma roupa que estava muito deteriorada, e depois foi tomar banho, e depois foi começar a ensinar... Eu não podia ensinar português porque eu não sabia ao certo, eu não teria condições nenhuma de ensinar boa ortografia, então comecei a ensinar números, elementos básicos de matemática. Conclusão: os meninos tomavam banho e saíam com roupas novas, mas o que acontecia? No dia seguinte, voltavam com a roupa velha, e iam com roupas novas, e voltavam com as roupas velhas. Teve um momento que eu simplesmente criei coragem, atravessei a avenida e me dirigi para as mães e perguntei por que não deixavam que as crianças usassem as roupas que a gente tinha comprado para elas, que eram limpinhas. E uma delas, com absoluta sinceridade, coisa que eu agradeço até os dias de hoje, ficou olhando e me perguntou: “Mas você pensa que alguém vai dar algum dinheiro para alguém que está totalmente limpinho e bem vestido?” Isso causou grande impacto para mim, era óbvio que ela tinha razão. Aí comecei a compreender que esse não era o melhor caminho para poder criar uma condição melhor para esses meninos e comecei a pensar no Centro Pedagógico, no que hoje é o Centro Pedagógico, um lar para crianças em condições de abandono que fossem encaminhadas pelo juizado de menores. E aí nos foi doado um terreno, um terreno não, uma área muito grande de cinco alqueires na cidade de Monteiro Lobato, por parte de um fazendeiro que praticamente era dono de grande parte das terras de Monteiro Lobato. E esse desligamento da fazenda dele ficava 11 quilômetros para dentro da cidade de Monteiro Lobato. Naquela época, eu era muito jovem também, muito ignorante, achei que era maravilhoso dispor dessas terras. Nunca pensei que poderíamos ter terras mais próximas para começar uma atividade dessas. E começamos primeiro a recolher, de companheiros, amigos, parceiros de ideais, e começamos a construção do Centro Pedagógico. Abrimos os 11 quilômetros, desculpa, eram sete quilômetros, até o bairro, e nós mesmos, a pico e pá, na estrada, porque não havia, não existia estrada, e começamos a construção do Centro Pedagógico para crianças, que mais tarde, quando já tínhamos a primeira casa, que hoje é a casa sede, que nós construímos literalmente. Eu aprendi a colocar tijolos, a fazer massa. E, na casa sede, começamos a receber as primeiras crianças e encaminhar para o juiz. Naquela época, se chamava Vara do Menor de São José dos Campos, porque Monteiro Lobato era uma comarca de São José dos Campos. Eu me lembro perfeitamente, até os dias de hoje, do Doutor Mendonça, um juiz jovem, brilhante, que ia encaminhando as crianças que realmente não teriam certa condição de serem mantidas nos seus lares, quando os seus lares eram conhecidos. Havia outras crianças que, de fato, criamos, e hoje são adultos e pais de família, que não tinham nenhum tipo de antecedente e nem conhecimento familiar, porque foram abandonadas sem identificação ou em hospitais ou na própria instalação do juizado de menores. E aí começamos o Centro Pedagógico, e foi tendo a trajetória de crianças que entendíamos que teriam que nascer com princípios da dignidade absolutamente preservados. E até os dias de hoje estou absolutamente convicta que o que faz um ser humano, o que permite que esse ser humano apresente todo seu potencial, é manter intacta a sua integridade, manter intacta a sua dignidade como criatura humana.

P2 – E como você construiu o seu grupo de parceiros aqui no Brasil? Porque você chega falando espanhol e seu marido também, como é que foram os primeiros contatos pra construir esse grupo?

R – Os primeiros contatos foram com os próprios colegas de trabalho de Basílio.

P1 – Você já conhecia algumas pessoas daqui?

R – Algumas delas eu já conhecia.

P1 – Você tinha contato?

R – Sim, porque existia muito... Primeiro que, dentro do universo jornalístico, durante a época da ditadura, existia muita correspondência paralela, muita correspondência paralela no sentido de dizer o que estava acontecendo aqui e o que estava acontecendo na Argentina. Havia contato, mas os primeiros parceiros de reflexão foram colegas de trabalho de Basílio, lá da Melhoramentos. Depois, esses também foram chamando outros e foram formando cursos e literalmente criando estruturas de academias, do conteúdo, de reflexão dentro do universo da filosofia e dentro do universo das religiões, naquela época se chamava “religiões comparadas”, no sentido de ir assinalando essa raiz comum que todas as traduções espirituais têm, independentemente de como se estejam articulando culturalmente. E aí foi indo, foi indo, e depois terminei indo para a Índia.

P1 – Você trabalhava também?

R – Eu era correspondente da Revista Estónio. Depois terminei indo para a Índia no ano de 76, ia ver o que era aquela coisa dos Upanishads, foram os primeiros textos dos quais se tem notícia, porque toda uma tradição oral, que não se preservou, de que ao menos não se manteve registro – se preservou na tradição, mas não se preservou em registros –, mas os Upanishads são os primeiros textos indianos, orientais, que fazem menção a um ser, a um si próprio, totalmente descolado das circunstâncias que se vive, totalmente descolado ao impacto que a cultura provoca em nós e que tem a capacidade justamente de testemunhar tudo isso e a partir dessa capacidade poder reformular aquilo que é seu meio de convívio. E isso me fascinava muito, aquilo que nós chamamos de espírito, como aquela gente, que de alguma maneira tão distante no tempo – estamos falando de textos de 1500, 1800 antes de Cristo, antes de Sócrates, que já era antes do próprio Cristo. Nós estamos falando de uma realidade que está além daquilo que nos fornecem os sentidos, daquilo que nos capacita o pensamento, a razão e daquilo, ainda, que termina sendo atingido pela emoção. Quem são essas pessoas que estão ali? Quem é essa personagem que está olhando sempre os outros atores no palco? Então, fui para a região de Pune, onde estavam estudando instruções sobre Upanishads, em Bombaim, e depois também fui para o norte, na região de Dehradun, e aí estudei de fato os Upanishads, a primeira condição para ter conhecimento desses textos era que os decorasse, mas eram em sânscrito. A única facilidade era que todos esses textos são cantados, têm um ritmo, tudo tem uma canção, não é prosa, por assim dizer, então era muito mais fácil.

P1 – Você cantava?

R – É, por exemplo, o Bhagavad Gita tem ritmo, tem um canto, não é algo que se lê.

P1 – O que você lembra? Tem algum trecho que você lembra?

R – (cantando) Então, a gente consegue, pelo canto, estar falando algo que não compreende, algo que não sabe o que é, mas era um meio de poder atingir esse conhecimento das Upanishads, era em inglês, a instrução era dada em inglês. Mas tudo isso também tem muito a ver com o meu encontro com os paradoxos existenciais. Quando, acredito que eu devia ter 16 anos, 15 ou 16 anos, e estava presenciando uma palestra, uma aula de Jorge Luis Borges, ele estava explicando as parábolas de Zenão de Eleia, na qual Aquiles está disputando uma corrida com uma lebre e, para Zenão de Eleia, se a lebre tivesse um metro de vantagem inicialmente, Aquiles nunca chegaria a alcançar a lebre. Desculpa, a lebre não, a tartaruga, Aquiles e a tartaruga, não é a lebre. E como é isso? Obviamente, na primeira visão, racional, é impossível a situação se resolver, mas ele disse: “Se a tartaruga tem um metro de vantagem, quando Aquiles faz esse metro, a tartaruga já deve ter feito dez centímetros, e, quando Aquiles vai fazer os dez centímetros, a tartaruga já deve ter feito mais cinco centímetros, e aí vai indo até o infinito.” E ele vai explicando tudo isso, obviamente com esse linguajar extraordinário que ele tinha para criar cenários, e eu, de pronto, me vi a mim mesma enxergando essa corrida entre Aquiles e a tartaruga. E depois ele passou para outra explanação sobre Zenão, sobre uma partida de um jogo de xadrez, e ele começa a mover mentalmente as peças. E eu vi, mais uma vez, a mim mesma enxergando o tabuleiro de xadrez e as peças que estava movendo mentalmente, na sua palestra, o Jorge Luis Borges. E de pronto eu fui tomada por aquilo que chamam espanto, fui arrebatada pelo espanto, eu falei: “Como pode ser que este homem, que é cego, esteja conseguindo me fazer ver? Como eu estou enxergando através de algo que está falando um homem que é cego?” Então, literalmente, fui catapultada a outro espaço de perplexidade existencial. “O que é isso? Como pode acontecer isso? Como se pode dar isso?” E isso havia acontecido com, por exemplo, os Upanishads. São textos arrebatadores, filosoficamente falando, os conteúdos que eles têm nos catapultam para outra lógica, que não é a lógica da formalidade binária que se dá nesse mundo, são lógicas que trabalham com mais do que duas variáveis, as coisas não são apenas brancas e pretas, mas fundamentalmente e, na maior parte do tempo, são todos os infinitos momentos de gamas de cor cinza que propiciam a vida. Então, nós não estamos nunca no branco e no preto, que é isso que predomina no pensamento, na lógica ocidental. E, de fato, quando eu cheguei lá, na Índia, foi uma experiência muito marcante da minha vida. Não só pela profundidade que se pode alcançar em compreensão do que é a gente, do que é o universo, de como se está dando essa relação gente/universo, mas também por coisas totalmente inusitadas na minha biografia pessoal como, por exemplo, ver pessoas com lepra, eu jamais tinha visto leprosos na minha vida. Lá existiam populações inteiras morando, vivendo da caridade humana e em condições subumanas, eu nunca tinha visto. Então, também foi um impacto perceber como uma cultura que é capaz de tamanha altura, tamanho refinamento, não foi competente em criar condições de humanidade básica e fundamental para seus próprios filhos. Como que se dá isso? Como pode acontecer um pensamento tão desconectado da realidade? Estar afastado da realidade? Como esse pensamento não se traduziu em práxis? É aí que a Palas Athena, que depois toma sua forma conceitual, institucional, legal, tem por mote “filosofia em ação”. Ou seja, filosofia que não se traduz em ato, filosofia que literalmente se mantém como expectadora de um processo, mas não está disposta a pagar o preço de participar do processo, bom, literalmente isso não se pode chamar de filosofia, pode se chamar de diletantismo, até de literatura, mas não de filosofia. Filosofia é um compromisso. Se formos à origem da palavra, o amor é um compromisso, o amor não é algo que possa estar dissociado do enredo da vida. Então, eu acredito que grande parte de meus movimentos de vida se dá ante paradoxos, ante condições contraditórias que me provocam: inicialmente, uma paralisia, e depois uma necessidade de metabolizar isso. E como se metaboliza isso? Como esse Oriente, que eu tinha no meu imaginário, através de Hermann Hesse, que era o que se lia na época, de Hermann Hesse, Sidarta, toda essa coisa, como se mantém intacta essa imagem com o que eu estou enxergando concretamente com os olhos? E, em última instância, qual é a relevância dos Upanishads perante isso, qual é a urgência? E aí me embrenhei no movimento gandhiano, aí foi minha compreensão. De que a lucidez de Gandhi, de não só apontar a necessidade de uma libertação, de uma condição humilhante perante o império, o Império Britânico, submetendo uma centena de milhares de pessoas – acredito que chegavam a 100 mil os ingleses que moravam na Índia e estavam literalmente subordinando e mantendo, sob jugo, milhões, centenas de milhões de indianos. Não apenas isso que assinala, mas também a coragem que ele tem de assinalar a respeito das mazelas da própria cultura indiana, ele assinala com muita clareza. Eu estou colocando que a pobreza na Índia é a maior ignomínia que se poderia tolerar em pleno início do século XX. E, aí, condenando as crendices, condenando as intolerâncias, as arrogâncias espirituais, ele fala para os bramínicos da arrogância com referência à espiritualidade e condena qualquer tipo de sustentação, de justificação das castas como meio de organização social. Isso é totalmente inaudito, totalmente inédito.

P1 – Então, me explica, como você vive isso na sua vida cotidiana mesmo? Na sua vida de dona de casa? Você tem filhos?

R – Não.

P1 – Mas, enfim, é dona de casa e está aqui no Brasil, com todas essas contradições, uma estrangeira, como você traz isso pra sua vida?

R – Uma estrangeira que, isso é importante dizer, que nunca se sentiu estrangeira ou nunca me fizeram sentir estrangeira no Brasil. Isso é uma coisa que eu tenho uma gratidão imensa pelo país, pela cultura. Em nenhum momento ninguém me fez sentir estrangeira aqui, isso é muito bonito e do qual eu me sinto imensamente grata mesmo. Como eu vivo a desigualdade, como vivo a intolerância, como eu vivo, às vezes, a pobreza de iniciativa para tornar-me... Eu confesso que eu as vivo dolorosamente. É muito difícil, para mim, compreender, não entender racionalmente, compreender de alma como, tendo recursos de conhecimentos tecnológicos, materiais e financeiros – que têm o planeta –, nós não conseguimos resolver o problema da fome. É muito doloroso. É muito doloroso viver um tempo em que você sabe que existem populações inteiras passando fome e, na outra ponta, você tem constatações de uma população cujas crianças estão com sobrepeso, cujos jovens, alguns, certos deles, estão atingindo a marca da obesidade mórbida. É tão duro isso, estar em um momento histórico que se dá essa contradição profunda, essa contradição estrutural. Porque se investe em armamentos, o objetivo de armamento, seja um submarino nuclear, seja uma arma, uma metralhadora, mas que se invista em armamento é tão imoral, tão obsceno, quando você tem toda outra necessidade. A redistribuição de condições mínimas de legitimidade de vida. Não estamos falando que todos tenham a possibilidade de entrar numa universidade. O que seria absolutamente legítimo, todos terem possibilidade de entrar numa universidade, que isso seja uma escolha das pessoas. Mas, ainda não podendo chegar a esse patamar, que todos tenham a legitimidade de um lar, de poder dar o endereço de onde moram, há pessoas que não têm endereço, ou seja, que o mundo lhes furta a possibilidade de espaço, quando isso não é verificado em nenhuma outra órbita da vida. Todos têm condições de terem o seu espaço, desde aqueles seres que vivem nas profundezas dos mares até aqueles que, literalmente, transitam pelo ar. Por que raio se deu, na nossa espécie, que é capaz de furtar ao outro semelhante seu direito de ter espaço, de ter um endereço, de dizer nesse universo “eu estou aqui” e na realidade você está dizendo: “Você não está, você não tem direito a estar”.

P1 – Como você vive isso? Como você sai dessa situação de ver tudo isso, em alguns momentos você se sente com potencial de ter essa visão, de conseguir perceber tudo isso e o que você pode fazer? O que você faz? Ou como você se sente diante disso?

R – Eu tento minimizar esse sofrimento dos outros, que causa essa percepção em mil e uma articulações, por exemplo, no que for articulação dentro da área de saúde. Porque, no empenho de levar a cultura de paz, que é um grande chapéu, é um grande guarda-chuva para um repertório de valores, para um repertório de atitudes e propostas extremamente lúcidas e possíveis, praticáveis. Porque levar isso, por exemplo, para a área de saúde, simplesmente porque sabemos que nossa medicina ocidental – isso não sou eu, isso fala a Organização Mundial de Saúde, isso fala o próprio Ministério da Saúde em portarias que foram disponibilizadas no final da década de 80 e toda a década de 90 – nossa medicina ocidental é extremamente dispendiosa, nosso sistema de cura é extremamente caro. Não há sistema possível, não há o SUS [Sistema Único de Saúde] capaz de disponibilizar seus equipamentos para análises para toda população. Dificilmente vamos encontrar condições de levar os equipamentos de última geração que tem, por exemplo, o hospital Albert Einstein, para o Acre. Quem tem que fazer um diagnóstico em um equipamento mais sofisticado, literalmente, ou chega a esses grandes centros ou não têm condições de fazer essas análises. Então, o que acontece com esse tipo de medicina, extremamente dispendiosa, como é a nossa? Ou você se abre a outras abordagens de cura ou vai terminar com a exclusão reiterada por gerações a fio. Nós temos outras abordagens de cura, nós temos outras maneiras de se perceber o organismo humano, de se perceber a vitalidade com sua ascendência e sua descendência de acordo com o que você faça. É o caso de como são essas medicinas orientais, a medicina chinesa, toda a medicina persa, que trabalham muito mais no espírito da prevenção do que no espírito da intervenção, quando a doença se instala. Trabalha muito mais com o conceito de uma saúde equilibrada, a manutenção de um equilíbrio na saúde de maneira permanente do que na reparação quando essa saúde já foi literalmente comprometida. Então, a cultura de paz atrelada ao universo da saúde pode criar, e está criando, já com acesso a acupuntura, com o acesso a homeopatia, com acesso a tratamentos de base natural, com todo o repertório de um movimento que propicia a saúde através do tai chi, através do lian gong, através da ioga. São todas práticas que visam a um equilíbrio energético e, consequentemente, visam à manutenção da saúde nesse universo do biológico. Mas, em outro universo, por exemplo, da justiça, nós sabemos que a justiça tal qual está, justiça retributiva, tal qual está já organizada e instalada em nossa sociedade, não dá conta da complexidade que nossas sociedades têm. Sobretudo porque ela trabalha, via de regra, apenas com o transgressor e jamais está interessada na vítima da transgressão, a vítima, literalmente, desaparece do cenário. E mais: a vítima nem sequer é chamada, conclamada, quando se tem que penalizar o transgressor. Se eu sou, por exemplo, vítima de roubo e vou à delegacia para fazer uma queixa, acabou, terminou minha queixa ali. E se encontram o ladrão, se prendem o ladrão, vamos criar todo um mecanismo jurídico... Em nenhum momento eu sou chamada, a não ser para dizer se essa foi a pessoa que de fato me roubou, e nunca mais sou chamada. Há outros olhares, dentro do universo da justiça, que é a justiça restaurativa, é toda uma outra percepção e logicamente que interessa a questão do transgressor, mas a vítima não é isolada, a vítima participa do processo. E às vezes participa no sentido de criar meios de recuperar a capacidade de socialização do transgressor. Nós temos um núcleo de justiça restaurativa no Brasil extremamente promissor. Tem em Porto Alegre, tem em Brasília, aqui em São Paulo temos três unidades, que estão manifestando grandes avanços em Heliópolis, em Santo André e em Guarulhos. Temos uma geração de juízes que literalmente não veem mais sentido em estar assinando sentenças, não é a sentença que vai recuperar ninguém, pelo contrário não recupera, a sentença se torna quase que a condenação até o fim da vida de um transgressor. Então, são outras maneiras, por exemplo, de levar cultura de paz para o judiciário, permitir que os meios jurídicos tomem conhecimento dessas experiências, tomem conhecimento de tudo aquilo que chama mediação de conflito, que não tem porque chegar a uma instância jurídica que pode, tranquilamente, estabelecer esse sistema de arbitragem dentro das próprias comunidades, organizado pelos próprios integrantes da comunidade. E já se sabe que tem efeitos, consequências, muito salutares, muito edificantes para a própria comunidade. E podemos falar no setor da educação. Por que levar, por exemplo, uma cultura de paz para a área da educação? Simplesmente porque, se não estabelecemos, desde os primeiros anos de vida, a compreensão de que a violência não é uma opção dentro do lar, não há opção pela violência, a violência literalmente não pode ser uma opção, a violência é tudo o que no humano decerto existe. Quando falamos em violência, não estamos nos referindo à violência física, estamos nos referindo à violência estrutural. Por que alguns, na sua formação escolar, vão ter direito a livros, a biblioteca e, hoje, a computadores, e por que outros, literalmente, não têm as mesmas oportunidades? Isso é uma violência estrutural, aparentemente não exercida por nenhum indivíduo em particular, mas sim pelo Estado, que nós, como indivíduos, terminamos legitimando quando não cobramos dele, ou quando não nos manifestamos e colocamos que isso são ignomínias. Verdadeiramente são ignomínias. Até as outras violências culturais, literalmente culturais, o machismo, o sexismo, são violências culturais aparentemente aceitas. Eu não tenho como ir para um tribunal, para uma delegacia, para dizer: “Senhor, eu fui discriminada por ser mulher.” Não tenho como fazer isso, porque culturalmente se aceita o machismo como algo instituído, e hoje não muito bem visto, hoje está politicamente incorreto. Basta ver a coisa que mais me dói, é doloroso pra mim: os insultos que têm nos países latino-americanos todos atingem as mulheres. É uma coisa tão brutal, tão injusta, tão grosseira. Você vê molequinhos repetindo isso. E com isso já estão, de alguma maneira, referendando, já estão se apropriando de uma violência cultural, tomada como natural, como normal, como legítima, como norma, não? Como princípio. Então, por que levar essas questões para a educação? Porque é o momento inicial da socialização, é na escola, seja essa escola uma creche, seja essa escola a formalidade daquilo que chamamos de ensino básico. É na escola onde aprendemos a nos socializar, é onde literalmente estamos em contato com outros, que têm os mesmos direitos e com os quais vamos ter que aprender a conviver. É nesse espaço, sobre esse tecido, sobre esse cenário, que tem já que se assinalar aquelas violências que às vezes se carregam de casa, que se trazem do filminho de televisão, de todos esses brinquedinhos eletrônicos, em que parece que destruir é uma vantagem. Mas a pior desvantagem que você pode ter na vida é ter que carregar nos teus ombros o fardo de ter destruído algo.

P1 – É muita coisa para pensar, né?

R – É, e podemos levar para o universo da economia. Por que cultura de paz não é economia?

P1 – Como que é? Você tem um grupo?

R – Minha base é a Palas Athena. A Palas Athena é o espaço onde tudo é possível de ver, então, tanto é possível organizar os primeiros grupos inter-religiosos que tivemos aqui em São Paulo e consequentemente também no setor, de alguma maneira, no Brasil, porque a partir daqui foram espalhando as ideias para outros lugares, que foi quando estavam organizando a cerimônia de celebração, porque Dom Paulo Evaristo Arns tinha ganhado o prêmio Minuano, que é um prêmio muito significativo do Japão para questões de paz e de direitos humanos. Então, iam fazer uma homenagem para ele, e me chamaram: “Lia, será que você pode chamar outras denominações religiosas, não apenas aquele núcleo ecumênico.” Os grupos ecumênicos são monoteístas. “Você poderia chamar outro grupo religioso para que façamos algo na Catedral da Sé?” E, de fato, chamei todos os grupos budistas, com as diferentes denominações, depois os hinduístas. Já tinha naquela época amizade com pais e mães dentro do setor do candomblé. Os xintoístas. Conseguimos uma representação xintoísta, um pequeno templo lá na Liberdade, belíssimo. Então, fizemos uma grande comemoração. E a partir daí também se começou a compreender que poderíamos fazer coisas em conjunto, o diálogo inter-religioso começou a tomar corpo, a tomar volume, não no sentido de negar as diferenças. Isso é importante. Existem diferenças profundas na compreensão de realidade dos monoteísmos e na compreensão da realidade dos politeísmos. Sem sombra de dúvida tem questões estruturais muito difíceis, às vezes, de se fazer conciliar, mas que as conheçamos é importante conhecê-las. E a Palas Athena decerto permitiu fazer os primeiros seminários de reflexão sobre a complexidade com Edgar Morin, fizemos antes que saísse o último volume de O Método, que é dedicado à ética. Ele deu um seminário de três dias na Palas Athena sobre a ética no mundo complexo. É suficiente pautar uma nômina de princípio que legitime uma convivência? Não, não é suficiente. A complexidade na qual vivemos hoje é tamanha que há situações que literalmente nos tomam de calças curtas. Como dar conta dessa situação? O que é correto de fazer nesse momento? Atender meu interesse particular ou atender o interesse coletivo? E, se eu atendo o meu interesse particular, de algum modo não estou traindo o meu compromisso como cidadão? Eu não estou beneficiando uma sociedade que me ofereceu sua ciência, que me ofereceu sua arte, que me ofereceu oportunidade para me desenvolver? Posso trair meu compromisso como cidadã? Eis as grandes questões. E depois tivemos a alegria de poder trazer a Henri Atlan, com uma visão totalmente científica, realmente pautada na ciência. De chamar Jean-Marie Muller, o filósofo da não violência por excelência, e David Adams, que é o pai, que concebeu na Unesco [Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura] todo o programa mundial de cultura de paz. Também deu um seminário belíssimo durante três dias para a gente. E entre todos eles pudemos também trazer o Dalai Lama por três vezes para a América do Sul, e foi uma grande satisfação pra gente, uma grande satisfação. São figuras que não têm um discurso, elas mesmas já transpiram, manifestam aquilo que me atrevo a dizer que é uma aspiração universal da maneira de ser e estar no mundo. Eles são a corporificação daquilo que entendemos como salutar para estarmos nesse mundo e sabemos que estamos transitoriamente, então, fazer desse trânsito algo benéfico, algo construtivo, edificante, inspirador para os outros. Eu sempre costumo dizer que, quando chegamos a este palco da vida, recebemos tudo, absolutamente tudo, desde o cuidado de nossos pais ou de qualquer outro que nos pode oferecer seu tempo, sua atenção, sua diligência, até as coisas mais refinadas que a humanidade foi criando no transcorrer de sua cultura. Tudo está aí disponível como um imenso banquete, como um imenso estande no setor de manjares, está aí disponível. E agora o que vou somar? Quando chega o meu momento de sair deste palco da vida, qual é o meu banquete? Qual foi o meu aporte para os que estão vindo? Eu creio que isso deve estar permanentemente, não numa paisagem de nossa vida. Temos que ter isso sempre como horizonte na nossa vida, eu recebi tantas oportunidades, tantas experiências de magnificência, exaltações espirituais, de delícia, no sentido de “o que eu vou somar a isso?”. Para que os outros também tenham a possibilidade de desfrutar dessas delícias, e essas pessoas têm, essas pessoas como Dalai Lama, como Desmond Tutu. Desmond Tutu é um gigante, como é um gigante Dom Hélder Câmara, a presença dele, apesar de que é pequenininho, muito frágil, mas a gente se sente na presença de um gigante. Ou seja, há uma condição muito acabada do que é o humano, eu estou em presença de algo muito aperfeiçoado, muito burilado. Então, a gente sente esse fluxo, essa inspiração.

P2 – Eu me vejo também diante de uma gigante e aí eu gostaria de conhecer o seu pensamento, a sua ideia sobre a Lia. O que você poderia dizer da Lia?

R – Posso dizer que é a Lia que se vem trabalhando, isso sim eu posso dizer, trabalhando interiormente. Há um repertório de práticas, chamem de espirituais, chamem de meditativas, que permitem acompanhar como é a qualidade do pensamento, não o conteúdo do pensamento, qual é a qualidade do pensamento. Eu estou pouco familiarizada com essas práticas de fato inteiras no meu cotidiano e eu consigo ver, consigo enxergar como testemunha, como aquele cego, eu consigo enxergar uma capacidade de sentimentos, de pensamentos edificantes, construtivos, sadios, que me fazem sentir gente, mas também eu consigo edificar coisas tenebrosas, literalmente tenebrosas, sentimento de vingança, de retaliações, de cobrar dos outros, coisa que não é de meu direito. E vejo que duro, que isso de ser amassado, que duro que é isso de ser trabalhado. Ele me pega, às vezes, desprevenida, por exemplo, acordando de manhã, que a gente está com a guarda baixa, e às vezes vem esse pensamento tenebroso, e quando percebo, já estive trabalhando, já estive, já estive edificando, já estive criando uma arquitetura perversa, para cobrar algo, para atingir um objetivo cuja finalidade pode ser saudável, mas cujo meio para atingir não é nada saudável. Então, a essa altura de minha vida, com 57 anos, eu consigo ver isso, eu consigo internamente ver isso e eu trabalho. Então, eu posso dizer que a Lia é uma operária, uma operária que às vezes sai tranquila, confiante, conseguiu um bom dia, uma semana boa, construtiva, com nutrientes, e outra que se sente absolutamente fracassada, porque ainda essa parte tenebrosa é muito dura. Eu sei que se pode trabalhar. É algo assim como o trabalho dos ratinhos, os ratinhos comem o queijo pelas bordas. Eu sei que posso trabalhar porque alguma coisa eu consegui retirar desse capital, desse capital negro, desse capital não saudável, doentio. Mas ainda falta. Então tenho também muita confiança no ser humano. É possível educar-se, todos nós temos capacidade de nos educar, todos nós temos a belíssima oportunidade de nos melhorar. E isso está à disposição de todos, não interessa quão detestável tenha sido a experiência ou aquilo que tenha praticado um ser humano, se lhe der instrumento para que ele possa observar, possa ver as consequências de seus atos, esse ser busca outro viés, busca outra maneira de se expressar, essa criatura compreende o princípio natural da vida que é, sem sombra de dúvida, o que tem que nos orientar sempre. Como a vida se articula? Como a vida se comporta, independentemente que seja a vida desta maneira, como ela se comporta? Então, sou uma operária. Uma operária, volto a dizer, que às vezes fica feliz. Às vezes, eu fico muito feliz. Eu penso: “Consegui.” Ia dizer uma palavra áspera, ia dizer uma palavra rude, ia cobrar algo realmente indevido, porque não tinha o direito de fazer esse tipo de cobrança, ou ia fazer uma imposição em vez de um convite ou uma ação conjunta. “Consegui desta vez.” Então, também celebro. “Hoje consegui.” Mas é um cenário exigente, o cenário interno meu é um cenário exigente não é um cenário assim tranquilo, é um cenário que exige.

P2 – Você falou da Palas Athena e contou pra gente como foi essa construção e a apreensão de cultura de paz, de que você fala tão bem. Que expectativa você faz da cultura de paz no Brasil? Como você vê que o nosso país está em relação à cultura de paz? Como é que você vê isso? As expectativas do ser humano de futuro?

R – Eu vejo oportunidades, condições naturais ou historicamente construídas, extraordinárias. Chame-se isso de cultura de paz, chame-se isso de cultura de convivência, como se queira. Não queria circunscrever somente a um arcabouço de princípios e de metodologias. A mobilização que existe, por parte da sociedade civil, no Brasil, me atrevo a dizer, não existe em outro país no mundo. Talvez o mais próximo seja a Colômbia, por uma necessidade de urgência. Mas a capacidade de se organizar, a capacidade de levar para frente propósitos, objetivos, ideais, sonhos que tem o povo brasileiro dificilmente se encontra em outro lugar. Mesmo no relatório oficial do programa da Unesco de cultura de paz, apresentado nas Nações Unidas, o maior número de ONG [Organização Não Governamental] ou de grupos de ação, grupos da sociedade civil que tiveram uma ação concreta, um projeto concreto levado a cabo, nesse relatório, a maior quantidade de centros de ações são os brasileiros.

P1 – A maior quantidade de quê?

R – Porque, nesse relatório de organizações e de ações, é o setor do Brasil. É extraordinário. O próprio relatório, eu volto a dizer, isso apresentou as Nações Unidas e logicamente tem os cinco continentes. Foi de fato o Brasil. Esse relatório foi compilado, e as informações foram recebidas via internet, ou seja, que haveria outros países, por exemplo, europeus ou Estados Unidos, Canadá que teriam condições muitíssimo mais favoráveis para compilar e receber essas informações do que o Brasil. Onde nós sabemos, nem todo mundo tem acesso à internet, nem todos os grupos sociais, nem todas as ONG ou Oscips [Organização da Sociedade Civil de Interesse Público], como queiram chamar, têm acesso à internet. Então, também vejam que, não tendo as condições de outros países, fomos o país que o maior número de ações relatou, descreveu e documentou para esse relatório internacional. Então, eu vejo uma grande oportunidade, vejo uma condição muito singular no Brasil para isso. O que nos falta um pouquinho é metodologia no trabalho. Nós ainda somos muito confiantes no improviso, nós confiamos muito no que Deus dará. Claro que vai dar, sem sombra de dúvida, mas não joga o fardo para ele, por favor, trabalhe um pouco mais sistematicamente e mais metodologicamente a tua parte. Deus dará lá na frente. Nos falta um pouco sair desse espaço de muita confiança no improviso. Precisamos um pouquinho mais de formalidade, um pouquinho mais de compromisso com essa formalidade. Por quê? Porque isso pode às vezes criar confiança nos parceiros. E, havendo confiança nos parceiros, é fácil que tudo se vá propagando, todos vão se unindo.

P1 – Continuando um pouco a pergunta dela, e o futuro disso? Quer dizer, tem todo esse potencial o Brasil, enfim, todas essas ações sociais, essa preocupação, mas também essa informalidade. E cada vez mais a gente vê os problemas crescendo, então, não basta ter esse grande número de ações, mas é isso, se não tem nenhuma forma de ser mais eficiente, né? Então, como você vê esse futuro?



R – Nas últimas décadas, tem nascido um universo de disciplinas que têm organizado conhecimentos que estavam totalmente dispersos. Hoje temos carreiras profissionais que literalmente há dez anos não existiam, não havia nome para dar para elas. E toda essa disponibilidade de instrumento e de ferramentas tecnológicas, ferramentas de comunicação estão permitindo uma fecundidade dentro da área de criação de conhecimento que jamais se viu. Não existe precedente, historicamente falando. Todo esse conhecimento que se gera precisa um tempo de decantação para ver como esse conhecimento vai se organizar e, entre aspas, o nome que vamos dar a esse conhecimento. Imagina, fazer uma faculdade de Hotelaria, nunca vi na minha formação um curso de Hotelaria, curso de Moda, Culinária, Nutrição. Não existia nada disso décadas atrás. Também não existia a gestão do conhecimento, quando existia isso? Não estava disponível esse repertório de conhecimento, mas eles vão girando, girando e vão de alguma maneira decantando, vão apurando seus conteúdos, e se formaliza alguma disciplina, algo que é possível de ser transmitido ao outro. Nós estamos tendo espaços, dentro da própria universidade, para a formação das novas gerações, justamente o mecanismo que vai organizar todo esse ímpeto, esse entusiasmo, toda essa vontade de querer fazer e transformar que antes não tinha continente. O conteúdo existia, mas não existia o continente. Nós temos formações de gestores do terceiro setor, metodologia para trabalhar com a sociedade civil tem dezenas, mas é muito novo, isso é realmente muito novo. Captação de recursos. Quando que existiu uma maneira organizada de captar recursos? Eu me lembro perfeitamente que nós construímos lá o Centro Pedagógico Monteiro Lobato, que perguntávamos ao vizinho, e o vizinho: “Será que o teu tio pode nos dar um pouco de semente, um pouco de tinta, será que o chefe de tua empresa poderia dar algumas centenas de tijolos?” Foi assim que se construiu o Centro, não havia nenhuma formalidade, primeiro porque eu não conhecia nenhuma outra maneira de organizar para a construção disso e foi construído assim. E sejamos honestos: é bonitinho. E além de ser bonitinho é seguro. Eu me lembro: a Eternit deu todas as telhas, o Cimento Santa Rita deu-nos parte do cimento, todas as peças do banheiro foram dados pela Deca, ela não era nem sequer famosa e nem sofisticada como é hoje. Eu poderia citar todo o repertório de quem deu o material e cada coisa, porque tudo foi conseguido através de doações. A abertura da estrada, que hoje é um pouquinho mais acessível, foi dada pela Techint, que é uma firma italiana de tratores e macrotratores. Foi quem fez a abertura dessa estrada e colocou rípio no trajeto desde a grande estrada que dá para Campos do Jordão até o Bairro do Souza, colocou rípio em toda a estrada. Mas temos a dizer que poderia identificar quem deu as portas e as janelas. Não havia nenhuma maneira organizada de fazer isso. Hoje você tem, além de planejamento, você tem alguém de recursos financeiros para otimizar todo o movimento, e isso eu acho extraordinário, isso é extraordinário. Entretanto, se não houvesse o conteúdo, esse continente, se não tivesse esse espírito de querer participar, de querer construir, de querer transformar, também não adiantaria de nada. O que temos que preservar é esse conteúdo, essa qualidade que tem o próprio brasileiro em querer fazer, querer participar e também compreender que hoje realmente as mudanças e as transformações não vão ser dadas nem por um governo, nem por um partido, nem por uma empresa financeira. Isso unicamente vai poder ser dado na medida em que todos nós nos apropriamos dessa condição de sermos arquitetos, de sermos engenheiros do espaço que todos nós possamos nos beneficiar igualitariamente, que também causa internamente uma satisfação muito grande.

P1 – Essa rede?

R – Essa rede viva, não? Mas eu sinto uma vocação especial do povo brasileiro para isso. Eu sinto realmente uma vocação, não é um conhecimento, um modismo conceitual no qual ele está transitando, não. É uma vocação para a qual tem talento próprio.

P2 – Tá bom. E tem alguma coisa que não perguntamos e que você acha importante nos dizer?

R – Sim, não é que não perguntaram, mas que eu decerto não coloquei: a necessidade que a cultura de paz chegue ao universo econômico-financeiro. É sem sombra de dúvida um espaço de uma injustiça, de uma omissão brutal. Como alguém pode enriquecer simplesmente por deixar parado o seu investimento, o seu capital, que muitas vezes nem sequer foi construído por ele mesmo? Muitas vezes foi herdado, ou a sorte permitiu ganhar uma loteria, e como uma pessoa literalmente pode enriquecer sem ter participado desse processo? Não existe isso dentro do universo da natureza. Nada há que desfrute de uma condição vantajosa pela qual não se tenha esmerado e propositalmente se dedicado, muito menos imaginar que se possa enriquecer simplesmente numa ciranda noturna, dentro dos investimentos para armamentos, investimento com o narcotráfico, investimento de laboratórios que terminam emplacando e exigindo o consumo de medicamentos totalmente desnecessários. E que vão provocando a grande manifestação da contradição humana de que estávamos falando no início da nossa conversa, entre a pobreza e a obesidade mórbida. Mas que também provocam coisas tão assustadoras como ter que estar dando algo de precioso à criança, entendeu? Como se pode ver criar, através de um laboratório, que são mais pais de família, que são pessoas ilustradas, porque hipoteticamente quem faz ou quem manipula processos medicamentosos é uma pessoa que tem condições ou que tem acesso ao conhecimento. Como se pode haver criado um medicamento para tratar da depressão infantil? Como se pode haver chegado a uma condição em que tenhamos que diagnosticar depressão em uma criança? Alguma coisa está muito grave, justamente uma criança, em que todo o potencial de vida está em processo de expansão, está buscando espaços, como pode estar exatamente no movimento contrário? Isso tem que chamar a atenção. Isso realmente tem que nos assustar, para tomarmos medidas imediatas. Não é da ordem da vida, isso não é decerto da ordem da expressão do universo, muito menos a aspiração do humano. A aspiração da comunidade humana é isso que eu gostaria de dizer. A cultura de paz tem que chegar ao centro da economia, ao universo do financeiro.

P2 – Para finalizar, eu te perguntaria: como é que você se sentiu na entrevista?

R – Extremamente confortável, vocês criaram um espaço, um certo aconchego, uma almofada, um almofadão emocional no qual é muito tranquilo reclinar-se e abandonar-se com confiança e com tranquilidade. Os jogos que se fazem têm nome próprio, mas infelizmente eu não me lembro, quando se juntam grupos de três ou quatro pessoas e no centro se deixa alguém que fica mole e se esparrama e os outros não podem deixar que caia. Os outros têm sempre que criar mecanismos de amparo para que isso não caia, podem orientar para um lado, podem orientar para outro. Como se chama esse jogo?

P1 – Acho que é João Bobo.

R – João Bobo. Então, eu me podia sentir a figura central do João, porque sentia aconchegar de que não me deixariam cair.

P2 – Eu te agradeço de coração.

R – Eu que fico feliz e me sinto muito grata.

P1 – Muito obrigada, foi um prazer imenso te ouvir, eu gostaria de ouvir muito mais.

R – E muito obrigada [para o câmera] por tua presença silenciosa, mas também acolhedora.