Museu da Pessoa

Olho de Gavião: um indígena de muitas vidas

autoria: Museu da Pessoa personagem: Marcelo Silva

Projeto Banco do Brasil -

200 anos de Brasil

Realização Museu da Pessoa

Entrevista de Marcelo Silva

Entrevistado por Nádia Lopes e Lenita Verônica Catanoso Miranda

13 de novembro de 2008

Código: BB200_ HV038

Transcrito por Rosângela Maria Nunes Henriques

Revisado por Fabíola Lugão C. Viggiano


P/1 – Boa tarde, Marcelo.


R – Boa tarde.

P/1 – Pra começar, eu gostaria que você dissesse seu nome completo, a data de nascimento e local?

R – Marcelo Silva, 1º de outubro de 1965, Corumbá, Mato Grosso do Sul.

P/1 – O nome dos seus pais?

R – Eu não tenho pais. Aliás, eu tenho pais biológicos, mas eu desconheço o nome deles por serem indígenas. Mas o meu nome, que foi dado por uma família que me adotou, é Marcelo Silva.

P/1 – Mas você lembra, apesar de você ter sido adotado, de sua mãe? Ou de sua família? Seus parentes?

R – Sim, até os 13 anos eu tive muito contato com eles, convivi com eles e aí eu perdi minha mãe e meu pai quando tinha 7 anos e perdi meu pai quando tinha 12 pra 13 anos. E aí depois eu fui morar em Corumbá, onde eu comecei todo um processo de uma vida diferente, um trabalho que eu faço até hoje,

P/1 – Antes da perda mesmo, vamos voltar um pouquinho. Qual é a lembrança que vem... Assim, você tem irmãos?

R – Não.

P/1 – Não tem irmãos. Qual é a lembrança que você tem da sua vida até os sete anos? O local que você morava? Se você consegue descrever a paisagem, né?

R – Descrever? É um lugar com muita floresta, muitas montanhas, muita cachoeira, muitos bichos, muitas árvores, quer dizer é uma natureza bem intocada, uma coisa muito preservada.

P/1 – Você se lembra o nome dos bichos?

R – Tudo: tem arara, tinha quati, tinha paca, tinha muito peixe piraputanga, tem macaco prego bastante, que é a característica da região. E acho que é o que mais me lembro assim são essas coisas.

P/1 – Da vegetação, você lembra o nome?

R – A vegetação é isso :tem muita lixeira, muito paratudo, muito cipó imbé que a gente usa pra fazer muita palha, para fazer chapéu, fazer a capa do arco e flecha. Tem muito capim navalha que o índio usa pra cortar cabelo, porque o índio, ele corta o cabelo com capim, ele não tem tesoura. Então ele estica o capim no pau e lá ele vai desfiando o cabelo assim com o capim, ele vai cortando por isso que o cabelo dele não fica com um corte reto, ele fica mais desfiado, né? E que mais? Tinha muito jatobá, manga tem bastante, tem muita fruta assim.

P/1 – Dessa infância você se lembra de brincar? Tipo de brincadeira?

R – Eu brincava muito com a cigarra, a gente brincava muito com bicho mesmo, né? Osso, ossinho de bicho, a gente fazia os brinquedos de osso, que era o que a gente tinha de brinquedos era só isso.

P/1 – E de histórias assim, não sei se assim... Por catolicismo existe a história do Adão e Eva que explica o surgimento do homem e tal...

R – Da natureza, ah da humanidade?

P/1 - Entre os Kadiwéus existe uma história?

R – Os Kadiwéus têm uma lenda, né? A gente fala que é lenda da criação do mundo, que Deus quando chegou, ele jogou todas as sementes no mundo e no chão e dali brotou e veio o Pantanal. Então nasceu o paratudo, nasceu o acuri, nasceu o jatobá, nasceu o... Como é que fala essa planta, eu tenho que falar o nome das plantas para dar o nome das etnias depois, o Cambará, né? E dali ele fala que de cada árvore dessas, ele foi dando, foi crescendo uma etnia, por exemplo, do acuri veio os Terenas, porque exatamente essa palavra de acuri são coisas pequenas bacuri ou acuri e os Terenas têm essa característica física bem de serem bem baixinhos e fortes. E aí depois o paratudo que veio os Bororos, por causa da flexibilidade da coisa do conhecimento que eles fazem de tudo um pouco, né? Então é por isso que chama para tudo o Bororo e o Kadiwéu veio do Vanduzi que é uma árvore que a gente sabe que são coisas que foram contadas desde quando a gente era pequeno vai passando de um pro outro o vanduzi é uma árvore mãe do Pantanal pra nós é uma árvore que de tudo você usa um pouco e

todos os animais gostam dela desde uma onça até uma simples arara que faz o ninho nela e come o fruto, né? Então nós temos essa lenda que Deus foi e fez toda a promoção da humanidade tirada de cada semente de cada árvore que foi desenvolvendo e foi fazendo a população indígena. Porque pra nós,

no nosso mundo só tinha índio, não tinha branco, então tem essa coisa o cambará era o Bororo, os acuris eram os Terenas, o manduvi era o Kadiwéu e assim sucessivamente cada árvore tem uma etnia representada ali.

P/1 – Então desde pequeno existia assim uma certa educação pra essa integração com a natureza?

R – Não digo essa palavra educação, porque eu acho que a gente teve uma orientação dos nossos costumes da nossa cultura como é que foi feito todo esse desenvolvimento, né? Hoje eu acredito que o Kadiwéu tem a coisa assim mais limitada nessa coisa, por exemplo, eu tive visitando há muito tempo atrás, não mais que dois anos atrás a aldeia e eu senti uma coisa muito triste, por exemplo, eu sou um índio que tenho muito mais conhecimento de plantas medicinais do que a geração nova, entendeu? Na idade que eu tinha, por exemplo, quando eu comecei a trabalhar como guia, uma das coisas que mais atraíam os turistas era o meu conhecimento com árvore, igual eu te mostrei hoje quando a gente estavas caminhando,

o paratudo pra que serve, o que faz, a função de cada árvore, cada

planta e isso é uma coisa que hoje eles não têm mais, né? Eu acho que eles estão perdendo um pouco da cultura indígena e um pouco do como é que chama? Eu não sei essa palavra em português o autoconhecimento na verdade mesmo, né? Então acho que é isso.

P/1 – Voltando um pouco quando você era criança, qual é a lembrança que você tem então? Se você não quiser falar também não fala, mas assim desse seu processo assim, você crescendo junto com seu povo? O rompimento?

R – O rompimento veio por um incidente que aconteceu, né? Isso é uma coisa que acontece infelizmente até hoje.

P/1 – Você lembra mais ou menos o período?

R – Olha, foi em torno de 1975 por aí, acontece ainda muito, essas terras indígenas invadidas .

P/1 – Você se lembra disso?

R – Tudo, inclusive nós estávamos fazendo uma caminhada e encontramos pessoas invadindo a terra, porque eles estavam caçando, outras estavam cortando árvores tudo ilegalmente, mas naquele período o que mais tinha antigamente era invasão de terras indígenas pra fazer a caça, né? A caça ilegal, a caça predatória pra venda de couro da onça, do jacaré e nesse momento que foi feita essa invasão foi que aconteceu esse incidente que vieram a matar o meu pai e os caçadores na tentativa de comunicação do meu pai tentar falar pra eles que ali era uma área reservada, que era uma área proibida de entrar, que era protegida pelo governo e que a gente estava ali pra proteger a natureza e que cada animal que tem ali a gente necessita dele como alimento e como uma forma de continuar o ecossistema que a gente vive ali, né? E aí nesse momento que eles mataram meu pai, eles se dirigiram a ele sem nenhuma palavra de perdão, de misericórdia nada, simplesmente vieram e atiraram nele. E aí foi,

acho,

que a partir daquele momento,

quando eu escutei aqueles disparos, foram cinco tiros à queima roupa que me levaram numa fração de segundos... Eu não tinha outra escolha era só correr e mesmo assim eles foram correndo atrás de mim tentando me matar atirando. Quando eu voltei pra buscar socorro que eu queria voltar pra aldeia já estava escurecendo eu tive que dormir no mato e aí quando eu voltei pra ver meu pai, meu pai já não tinha mais chance nenhuma de recuperação, já estava morto. E pra mim esse foi um marco da história, porque dali eu vi, eu já sentia que tudo na minha vida ia mudar, pra mim já estava muito claro essa mudança. É como se eu tivesse tido uma visão que dali estava começando uma nova vida.

P/1 – Você tinha uns dez anos mais ou menos, né?

R – Não, quando mataram ele, eu tinha sete pra oito.

P/1 – E sua mãe?

R – Minha mãe, ela veio depois. Por uma decisão dela se suicidou, isso é uma coisa muito característica de índio também hoje em dia também, nos dias presentes, né? Mas esse é outro problema, hoje em dia o índio, ele se auto-flagela ou ele se mata por questões de envolvimento com drogas, com álcool, isso é uma coisa que eu acho que é muito importante hoje trabalhar em cima disso, né? Que é você tentar fazer do índio que ele venha buscar a auto-estima e não se... Porque hoje em dia o problema é esse, o índio hoje em dia está muito mais dependente, então ele leva uma vida muito, como se fala? Uma coisa inerte, ele não tem nada pra fazer, ele não precisa produzir, ele não precisa plantar, ele não precisa cultivar, então o que ele faz? Ele vai pro primeiro boteco que tem perto da aldeia, pega a bicicleta e vai pra cidade e toma a cachaça ou ele leva a cachaça pra aldeia também mesmo com essa Lei restrita falando que é proibida a venda de álcool pra indígena, mas as pessoas não têm essa consciência, infelizmente o que está mais acima de tudo nesse mundo é o dinheiro e pra ele o que é importante é o dinheiro. Então eles vendem grande quantidade de álcool pros índios, e então eles levam pra aldeia e começam a tomar, ficar bêbado e eles começam entre eles a ter uma discussão com a própria questão deles mesmos, hoje cada um tem um princípio de vida diferente, cada um tem uma ideologia diferente, né? Por exemplo, há dois dias agora antes de vocês chegarem, eu tive na aldeia de novo e nós estamos passando por um processo muito difícil lá pra tentar resgatar essa coisa que tinha quando eu conhecia eles. Eles estão se dividindo é um povo que era muito unido, porque o Kadiwéu tem uma história muito bonita, ele tem uma conexão muito forte entre eles, por exemplo, a monogamia é uma coisa muito característica do Kadiwéu, quando você escolhe um parceiro é pra vida inteira.

P/1 – E como que é a escolha?

R – A escolha é aleatória, não é aquela coisa do pai que mostra pra outro pai que é muito amigo e diz: “Você vai casar com minha filha, porque eu gosto muito de você”. Não é assim a coisa é muito aleatória, as pessoas se conhecem e se unem. Mas aí hoje, eles estão muito afastados por questões de idéias diferentes, inclusive questões até políticas é estranho falar isso, mas por questões políticas eles estão se separando e é muito triste isso, porque antigamente a gente tinha essa convicção, a gente era muito unido tanto que essa união que aí vai mostrar o porquê do Pantanal chegou hoje ao que é, o que o Pantanal é hoje pro Brasil, porque os Kadiwéus, nós somos da raiz dos Guaicurus e os Guaicurus são guerreiros são os índios mais importantes na história do Pantanal, porque eles que ajudaram toda a estratégia da guerra, de como fazer ganhar dos espanhóis, como invadir, como se defender e como contra-atacar, porque nós tínhamos um número menor de Exército, mas nós tínhamos sabedoria, nós tínhamos o conhecimento. Então essa história dos Guaicurus, ele teve uma influência muito forte na guerra por causa disso pelo conhecimento deles que era muito grande. Eu aprendi com um historiador também que pesquisou muito sobre isso que eu achei interessante que o guia Lopes da Laguna quando chegou aqui no Pantanal, ele falou pra certo alguém pela metade do caminho assim: “Existem três pessoas que conhecem muito bem esse Pantanal aqui eu, Deus e os Kadiwéus.” Quer dizer, porque nós conhecíamos muito bem, conhecemos até hoje, né? Toda a geografia do Pantanal rios, montanhas, cordilheira, todos os acessos, nós fomos muito bons cavaleiros, uma coisa que nós aprendemos é dominar o cavalo, né? Na época da guerra nós roubamos os cavalos dos espanhóis para poder usá-los a favor da gente.

P/1 – Essa guerra exatamente é de qual guerra nós estamos falando?

R – Isso foi no período de 1900 e agora eu não me lembro a data, mas foi uma época na Guerra do Paraguai contra o Brasil que os Kadiwéus ajudaram, os Guaicurus ajudaram na guerra.

P/1 – A Guerra do Paraguai?

R – A Guerra do Paraguai. Então acho que a cultura do Kadiwéu é uma cultura muito bonita, muito rica, muito educativa, mas ela está morrendo porque a próxima unidade está se deslocando dentro da mesma área, né? Mas eles estão se dividindo muito, estão fazendo outros grupos da mesma etnia, mas com ideologias diferentes, com características diferentes o próprio dialeto já não se fala mais o Kadiwéu, eu não falo o Kadiwéu. As crianças de hoje em algumas aldeias, elas estão aprendendo o Kadiwéu, agora as outras mais novas por estarem mais distantes da comunidade que está aprendendo que não tem acesso a essa escola que foi introduzida na aldeia pra poder ensinar aos índios o idioma. Então eles já estão crescendo sem falar o Kadiwéu e já outros mais antigos falam melhor e falam um Kadiwéu diferente da geração nova.

P/2 – Eu queria que você explicasse a pintura do rosto, o significado? Como é feito?

R – A pintura é uma coisa que depende muito assim do momento e do que você vai fazer, a pintura tem um significado de acordo com aquilo que você vai fazer, se você vai para um casamento você pinta de uma maneira diferente, se você vai para uma formatura, eu estou usando as palavras em português, mas que não existe na nossa... Só pra você ter uma idéia, a formatura nosso o que é? Quando o índio está pronto pra esse nível que ele é um homem, ele pode ser introduzido na sociedade e ser apresentado como homem, ele está pronto pra casar, pra ter filhos, ele vai sustentar a família. Então ele vai ter que ser um bom caçador, um bom rastreador, um bom marido e aí então você tem uma comemoração, uma cerimônia, vamos dizer uma formatura que você tem um certificado que você se formou. Então ali tem aquele momento que ele vai sair da puberdade, fala puberdade pra maturidade que ele é um homem, então você tem uma pintura diferente assim. Então cada uma tem uma característica diferente, então tem a pintura de caça que é mais ou menos essa que eu uso agora que é a que você vai se embrenhar no mato pra se camuflar, né? Então você risca o rosto pra poder entrar na vegetação e você ficar mais ou menos escondido como a onça pintada é, né? E tem as pinturas de casamento, tem as pinturas de batismo.

P/1 – E vocês usam o que pra pintar?

R – A gente usa ou o jenipapo que é uma fruta do Pantanal que a gente faz a pintura preta e o urucum, o urucum também é uma fruta do Pantanal que tem aqui muito na região do Pantanal .

P/2 – A cor é diferente?

R – Sim o jenipapo é preto, você tira a fruta corta ela no meio e mistura faz uma mistura com a semente e com o miolo da fruta até ter uma fermentação, tem um tempo de espera ou você já pode desenhar direto ali só com água do suco da fruta e depois deixar ele secar e com o tempo essa... É tipo uma reação química que em contato com a sua pele, no seu corpo ele vai dando uma oxidação e vai ficando preto. E o urucum já é o vermelho, então quando você pinta preto sem o vermelho é uma pintura de caça, você vai pra mata pra fazer uma caça ou pode ser uma pintura preta dependendo pode ser pra um casamento, para um batismo ou pra qualquer outra coisa. E a pintura vermelha e preta já é mais de guerra, porque o vermelho representa o sangue, né? Ou você pode fazer uma pintura de vermelho pra celebrar um nascimento também, você pinta só de vermelho sem o preto e quando você põe vermelho e preto é uma coisa mais de guerra, então você faz essas pinturas.

P/1 – Marcelo, vou voltar só um pouquinho. Eu queria saber como que vocês viviam antes? Assim o que vocês comiam? Plantavam? Como que vocês viviam?

R – Até hoje ainda existem alguns índios que eles querem ter uma vida normal de índio como era no princípio, a alimentação é a base de caça ou pesca, pesca com arco e flecha, caça com arco e flecha ou zarabatana e existem muitos assim, não sei se a palavra em português, mas muito trique, muita como eu vou te explicar? A gente tem umas artimanhas de fazer uma pesca diferente também. Por exemplo, a gente usa muito o timbó, não sei se eu tenho aqui, mas acho que está aí, usa muito o timbó, o timbó é uma fruta e é interessante você quebra ela ao meio e joga castanha, espalha na flor d’água o peixe vem e come e aquilo fica meio estranho parece que ele fica meio grogue, fica meio sedado e alguns chegam até a boiar na superfície e outros, eles ficam tão elétricos que começam a pular. Então o que você faz? Você abre uma cesta e fica esperando ele pular pra você jogá-lo pra dentro da cesta ou aqueles que já estão meio grogue assim, você só vai coletando. Então tem a pesca do timbó e tem a pesca do arco e flecha.

Antigamente era tudo mais assim, coisa mais selvagem, coisa mais primitiva, era a pesca normal, a pesca do timbó, pesca de arco e flecha e a caça de capivara, caça de cervo, a gente comia muito cervo, macaco e o índio tem essa coisa que se você comesse o cérebro do macaco pegava o conhecimento do macaco. Então eles comem muito essas coisas.

P/1 – E plantação?

R – Plantação básica era sempre a mandioca é normal que o índio tenha é a mandioca, alguns conseguiam plantar algum tipo de arroz diferente, que não é esse arroz que fica irrigado é um arroz

diferente; tem até uma coloração diferente e o milho, muito milho, muita roça de milho, alguns cultivos e plantam outros comem planta natural, muito coco, acuri, manduvi, buriti e vai colhendo essas coisas da natureza, né?

P/1 – Deixa eu voltar então. Aí você mais ou menos com essa idade de sete, oito anos que teve o episódio lá onde você morava... Afetou todo o povo o que tinha ocorrido?

R – Afetou, porque todos eles se separaram e isso é uma coisa que assustou muito, essa coisa dessa invasão, antigamente não tinha um controle mais rigoroso como tem hoje, hoje quando você marca uma aldeia, o Governo marca, ele põe cerca, ele põe placas de advertência “é proibido entrar.” E antigamente não tinha esse controle como não tinha o controle da caça e da matança do jacaré, matou-se muito jacaré nessa década de 1960 e 1970. Então é por isso que havia muito essas invasões, os caçadores eram muitos estrangeiros que vinham até do Paraguai, eles invadiam muito o Pantanal pra caçar jacaré desordenadamente; Isso é uma coisa que está em todos os jornais que a mortandade de jacaré levou quase à extinção do jacaré e aí quando o governo pegou um pouco mais sério em fazer essa coisa virar Lei e proibir a matança de jacarés e liberar também a criação de jacaré em cativeiro, isso facilitou bastante, aumentou a população. Hoje pra cada pantaneiro, pessoa que mora, nasce e vive no Pantanal como eu hoje,

nós temos 45 jacarés pra cada um.

P/1 – Bastante, né? Mas aí quando aconteceu isso você veio pra cidade? O que aconteceu com você?

R – Aí eu comecei a morar na cidade e...

P/1 – Mas como é que você veio? Você veio a pé?

R – Eu me desloquei e vim a pé.

P/1 – Sozinho?

R – Sozinho, eu tomei uma decisão de sair sozinho da aldeia e vim pra cidade.

P/1 – Pra Miranda?

R – Na verdade a aldeia fica localizada entre Bonito. Toda uma serraria a Serra da Bodoquena fica entre Bonito e Bodoquena perto de Miranda. Então da Morraria você... Exatamente toda essa cordilheira que está no Pantanal, esse é um ponto geográfico que é extremamente importante hoje é o que a gente chama de Campo dos Índios, porque ele divide exatamente o Pantanal ao meio, ali você... Se você está pra trás da Morraria você tem um Pantanal Nabileque se você vem pra cá da Morraria você entra num Pantanal da Acrelândia. Então quando eu desci do lado direito da montanha que eu vim eu falei: “agora eu vou...“ Era a maneira de fugir de tudo aquilo que eu tinha passado, eu não queria mais ficar ali e aí eu saí e nesse período me perdi, fiquei perdido uns quatro ou cinco dias e aí me encontraram, me resgataram e me levaram pra uma fazenda e dali eu tive acesso a essas pessoas.

P/1 – E como eram essas pessoas?

R – Eram pessoas comuns da fazenda, peões, fazendeiros me levaram pra lá me apresentaram a pessoas de lá e fizeram uma entrevista, conversaram comigo perguntaram por que eu estava ali, eu contei pra eles muito superficial. E aí eu fui introduzido a essa família fiquei conversando com eles, comecei a trabalhar ali.

P/1 – Você foi adotado, né?

R – Aí eu fui adotado por uma senhora que ela era muito rica, era uma mulher solteira...

P/1 – Qual era o nome dela?

R – Matilde. Era uma mulher solteira, muito rica e não tinha marido, não tinha filhos, ela tinha um sonho de ter um filho e ela tomou essa decisão que foi muito boa pra ambas as partes. Ela realizou o sonho dela de ter um filho e eu ganhei uma nova chance de ter uma família, de ter outra mãe que olhou muito por mim.

P/1 – Foi ela que fez o seu registro?

R – Ela que me registrou.

P/1 – O seu nome já era Marcelo?

R – Não, ela me deu esse nome.

P/1 – Qual era o seu nome?

R – Existe um nome indígena que as pessoas me chamam muito assim de Tchatchacoa é um apelido que eu tinha na aldeia.

P/1 – Tem um significado?

R – Olho de gavião

é essa coisa que eu tenho de enxergar muito bem de longe, né? E são coisas que você vem... Vai de geração para geração você vai pegando o apelido de acordo com aquele dom que você tem, né? Então eu tinha essa coisa de enxergar muito bem de sair pro mato pra uma caça ou pra uma visualização pra enxergar bem. E aí depois eu fui adotado e dentro dessa família eu fui reintegrado à sociedade, ela tentou muito fazer com que eu estudasse.

P/1 – Mas você chegou a entrar numa escola?

R – Eu fiz até melhor, você não vai acreditar, eu fui pra faculdade sem nem ter ido pro primeiro grau.

P/1 – Não passou nem pela primeira série, segunda, terceira?

R – É exatamente isso, eu não tenho nem o primeiro grau completo, você pode perguntar, pesquisar em todas as escolas de Corumbá que eu estudei o colégio Santa Teresa, Dom Bosco nenhuma delas me aceitava, porque eu pulava o muro e ia tomar banho de rio. Aí eles ligavam pra minha mãe e falavam: “seu filho não tem jeito, não quer estudar” aquelas coisas bem restrita, né?

P/1 – Então você chegou a entrar na escola e sair?

R – Eu entrava sim, ela me matriculou, porque ela queria que eu estudasse, ela queria que eu me formasse essa coisa de branco, ela falava: “eu queria que você fosse um engenheiro ou um advogado ou um médico” e eu olhava aquilo ali e pra mim infelizmente é até difícil falar pra mim entrava por aqui e saía por aqui, não estava nos meus sonhos isso aí. E ela tinha esse sonho, ela queria que eu fosse alguém na vida e pra ela, na ideologia dela ser alguém na vida para os brancos, pra vocês é engraçado isso, né? Se você não tiver o certificado na parede você não é ninguém é estranho isso, né? Então ela falou: “eu quero que você seja alguém na vida” e eu falava pra ela: “Mas eu sou alguém, eu sou eu, eu sou o Marcelo”. E ela falava: “Mas não é isso, eu quero que você seja um médico.” Ela tinha um sonho, quando ela fez um hotel, ela tem um hotel, ela queria que eu fosse tomar conta do hotel ser o gerente ou dono do hotel, tudo aquilo que ela fez durante toda uma vida, esse era o sonho dela de vida era ter um filho pra deixar de herdeiro, porque queria que continuasse a história dela. Mas na verdade isso não aconteceu, porque pra eles eu era vagabundo, porque eu não queria estudar, pro resto da família, não pra minha mãe. Então eles falavam que eu não ia ter futuro, que não tinha jeito que ela estava dando murro em ponta de faca, que ela estava alimentando uma coisa que... Que eu seria uma pessoa perdida que eu era vagabundo e não gostava de estudar e que eu não ia chegar a lugar nenhum.

P/1 – Marcelo eu queria retomar uma coisa pra não passar... Quando você saiu então de junto do seu povo que você tinha mais ou menos 13 anos que você falava Kadiwéu e aí você teve esse contato com o branco mesmo, como é que foi esse choque assim, esse choque cultural? O choque da língua diferente? Como que foi isso?

R – Foi bem grande mesmo, porque teve até um problema de comunicação, né? Na verdade a gente... Existem pessoas... A gente sempre teve contato com português porque lá sempre tem um pessoal da Funasa [Fundação Nacional da Saúde]

e da Funai [ Fundação Nacional do Índio ] que vai nas aldeias até hoje. Mas até então nesse período que eu tinha era um trabalho que era muito restrito, era muito... Primeiro por causa do acesso, era um difícil a Funasa ir lá e depois também porque a gente estava muito mais afastado que as comunidades que ficam mais próximas da cidade. Então a gente entendia mais ou menos o português, mas não falava porque não era nosso costume. Então foi muito difícil essa parte de comunicação e é por isso que teve essa coisa de eu querer fazer essa integração da escola pela minha família, porque eu tinha que aprender português, porque ela queria que eu aprendesse ler, escrever pra eu poder me comunicar e poder ser integrado à sociedade, né? Porque era uma vida diferente, mas teve um impacto muito grande, porque às vezes você quer se comunicar com as pessoas para conhecer melhor até mesmo pra você se expor, para se pronunciar, vamos dizer assim.

P/1 – E você se lembra de alguma situação? Alguma expressão assim que você não conseguia entender?

R – Ah, eu acho que o momento mais difícil pra mim foi quando eles me perguntaram... Primeiro por causa de uma decisão que eu tinha que tomar e segundo como eu ia explicar pra eles isso em português, porque hoje você tem... Quando você vai falar de sentimento é muito difícil, então foi quando eu passei por uma entrevista que eles falaram: “Você realmente quer ficar aqui? Ou você quer voltar pra sua aldeia”? Então eu tinha que explicar e passar sentimentos, né? Era muito difícil pra eu falar pra eles, hoje é mais fácil, mas no momento eu estava muito dividido, eu não sabia realmente se eu queria voltar pra casa, porque tudo aquilo me assustou, todo esse processo me assusta, né? Me assustou bastante essa coisa de ser adotado, a minha mãe teve que esperar todo um processo, você sabe como funciona essa burocracia, ela teve que esperar quase quatro anos pra ter certeza que eu não tinha nenhum parente vivo, nem uma mãe que viesse reclamar e falar: “ele é meu filho, você adotou o cara errado.” Então todo esse processo durante todos esses anos, eu tive que pensar muito a respeito disso e aí foi exatamente nesse dia, nessa conversa como a gente está aqui assim tet a tet eles falaram: “Você tem que escolher, você quer ficar ou você quer ir embora”? Na hora de passar essa comunicação é que foi um momento muito difícil pra mim e foi até engraçado, porque eu queria falar pra eles do meu sentimento que estava um pouco dividido, eu queria ficar por algumas razões, mas eu também queria ir embora pelas minhas próprias razões por outras, né? Então esse foi um dos momentos assim interessantes que marcou bastante essa coisa de comunicação.

P/1 – Deixa eu voltar lá pra sua escola, aí você estava nesse Instituto Dom Bosco e aí você tinha mais ou menos quantos anos?

R – Lá eu passei com 12 pra 13 anos, logo que eu cheguei ali e comecei a estudar, eles queriam que eu fosse estudar, então eu passei lá.

P/1 – E você sentia que já estava mais ou menos integrado? Começou a ter amigos?

R – Não, olha na verdade você fica totalmente isolado, primeiro porque você chega numa comunidade que você não conhece ninguém, você tem costumes diferentes, né? Tem hábitos diferentes, uma coisa interessante quando tinha... A gente se reunia no recreio e lá tem aquela coisa de merenda escolar tudo junto na mesa assim. Aí estava a molecada toda sentada assim aquela coisa de garfo e faca, eu não, eu pegava o prato e virava a sopa e caía tudo e todo mundo ficava olhando, os caras falavam: “esse cara parece bicho” mas eu era um bicho, né? Então não tinha essas coisa, isso foi uma coisa que chocou muito também pra eles e aí algumas pessoas é claro eu fiz alguns amigos que me ajudaram em tudo, né? Inclusive tinha algumas pessoas que eu conheci em Corumbá que me ajudaram exatamente fazer essa coisa... Eu falava assim: “Hoje eu não quero estudar”. O cara falava: “Vamos lá eu te ajudo e assim você faz aqui pula o muro e vai embora”. Aí eu falava: “Tá bom” aí ele me ajudava. E tiveram outras pessoas que me ajudaram assim na parte de escola, de querer entender a matéria que ia estudar, né? Eu me lembro do professor Aluísio que marcou muito pra mim, era uma pessoa muito simpática, um cara muito carismático que conversava muito comigo, ele era nosso professor de Ciências e Matemática, porque essa coisa de escola de Município é assim, né? Às vezes tem um professor e te dá duas ou três matérias, você o vê no dia duas ou três vezes. Então são pessoas que marcaram pra mim bastante.

P/1 – Marcelo, uma curiosidade e o cabelo? Você tinha que cortar o cabelo, não tinha? Eles não cortaram seu cabelo? Como é que foi isso?

R – Você fala aqui na cidade?

P/1 – Vocês tinham um costume antes de você sair de junto do seu povo, né? O cabelo você usava de um jeito, né? Quando você foi morar com essa família, eles não tentaram mudar o seu cabelo? Mudar o jeito de você se vestir?

R – Sim, tudo teve esse choque cultural todo, por exemplo, eu odiava porque ela me levava ao cabeleireiro e mandava fazer aqueles cortezinhos de americano, né? Raspava assim e deixava, então parecia que tinham colocado uma cuia na sua cabeça assim e fazia aquele círculo ridículo, aí você ficava com aquela franja e aquele negocio redondo parecia índio mesmo, aí que eu ficava mais ridicularizado dentro da escola, eu ficava possesso com isso. E teve essa coisa de colocar roupa às vezes eu tinha que...

P/2 – Você se enroscava na roupa?

R – Não, eu rasgava até hoje eu rasgo muita roupa, uma curiosidade isso, eu acho que não me adaptei muito com roupa ainda não, toda roupa minha que eu uso sempre rasga, né? Não sei por que, a calça principalmente aqui no cós, mas eu não gostava muito de roupa mesmo.

P/1 – E o Marcelo jovem já pelos 15, 16 anos porque aí você deve estar começando a mudar um pouco o seu olhar do mundo, né? Tem coisas pra fazer?

R – Esse Marcelo, ele estava querendo buscar uma coisa que ele pudesse ser reintegrado na mata de novo e foi aí que eu descobri esse trabalho muito bonito que pra mim é lindo que eu amo de fazer que é o que eu sou até hoje, né? Tenho muito orgulho de ser guia de turismo.

P/1 – Como você descobriu isso?

R – Trabalhando, a primeira vez foi muito casual, eu entrei numa fazenda que era vizinha da fazenda onde minha mãe tinha lá e a mulher tinha um grupo de estrangeiros que precisavam fazer uma caminhada, eles queriam muito ver bicho e ela chegou e falou assim: “Dá pra você ir lá, porque o guia que trabalha pra mim não veio, ele está doente, dá pra você fazer um guia pra mim”? Eu falei: “Guia, o que é guia”? Ela me explicou com muita calma o que era pra mim associar a palavra guia com o que eu tinha que fazer, era muito difícil, ela falou: “Você só tem que pegar... Você conhece tudo aqui não tem como se perder, então é isso que eu preciso de uma pessoa que levem eles pra ver macaco, arara”. Eu falei: “É só isso”? “É, então não é fácil?”. Eu falei: “pra mim é fácil.” Aí eu saí só que aí o problema ficou um pouco maior, porque todos eles eram estrangeiros, alguns falavam muito bem o espanhol, mas os outros todos falavam inglês e eu até então nem português falava direito o que dirá inglês e espanhol. E aí começou esse meu primeiro contato com estrangeiro, a primeira coisa e aí nesse primeiro passeio que eu fiz com eles aquilo me encantou, porque eles ficaram encantados comigo pelo meu conhecimento.

P/1 – Eles entendiam o que você falava?

R – Não, aí que tá, eles ficaram encantados comigo pela maneira com que eu mostrava e explicava com as mãos, eu dava toda a explicação, tudo que eu queria falar, por exemplo, a gente viu um lobinho guará passar, aí eu falava o nome pra eles e aí eles olhavam assim... Aí o cara é lógico ele sabia, ele via em história e sabia que no idioma dele lobo é Fox, né?

R – E você ia absorvendo?

R – E aí eles falando, eu aí eu explicava, ele o lobo guará ele come, aí eu desenhava um passarinho, ele come um ratinho, eu fazia tudo com sinal, eu queria passar o meu conhecimento pra eles, né? Aí eu falava assim: “Ele anda muito a noite...”. Aí eu desenhava a lua assim, ele caminha muito com lua e tinha um cara que começava a traduzir e falava: “Olha ele está explicando que o lobinho anda muito a noite, ele caça, ele come isso, ele come aquilo, né?” Aí eu falava: “Se você quiser falar com o lobo você faz [barulho com a boca] e ele vem”. Aí ele olhou pra mim e falou assim: “Você fala com ele”. Então esse foi meu primeiro contato assim com esse grupo. E eles ficaram tão encantados com essa maneira de eu querer realmente mostrar e falar, passar informação que eles se encantaram comigo. Tanto que eles vieram pra passar dois dias e ficaram cinco dias, aí o resto do tour quando chegou o guia que ia trabalhar com eles, aí eles falaram: “Não, cadê aquele outro guia? O índio?”. Ela falou: “Não, mas ele não é guia”. “Nós só vamos ficar aqui mais cinco dias se ele for o nosso guia.” Aí ela voltou de novo lá na fazenda me chamou e explicou que eles tinham gostado muito do passeio. E aquilo ali, eu tinha também me encantado, porque foi naquele momento que eu senti que eu encontrei pessoas que realmente gostavam de mim, que se apaixonaram por mim do jeito que eu sou, como eu sou, entendeu? Um cara que não sabia falar, mas estava mostrando tudo que conhecia e de coração, estava fazendo com amor, eu estava ali pra mostrar o que eu conhecia. Eu tirava a casca de uma planta levava um pouco na boca de cada um e aí ele mastigava e vinha aquele gosto de hortelã na boca, ele falava: “Uau.” Aí eu fui mostrando de tudo um pouquinho, aí eles ficaram encantados com o passeio e daí veio esse interesse meu. Então foi uma permuta, foi uma recíproca, eles se apaixonaram por mim pela maneira como eu trabalhei e eu me apaixonei por esse tipo de pessoa. Eu falei: “Pô essas pessoas que eu sinto que gostam daquilo”, porque eu vi dentro realmente falando hoje nos dias presentes que acho que realmente isso que o turista está buscando, o turista ecológico que vem fazer ecologia, ele não quer só vir aqui e pegar um guia pra falar: “Olha lá o macaco verde, macaco prego”. Ele quer uma pessoa que você senta com ele e você passa uma cultura, passa uma vida diferente, uma coisa diferente, uma experiência diferente pra eles.

P/1 – E aí como é que você então chegou e foi mudando?

R – Então aí eu fiz esse trabalho e aí passei esses cinco dias e aí o que aconteceu? Eu gravei aquela palavrinha guia de turismo, aí voltei pra cidade e falei: “Olha como que eu faço, eu quero ser guia de turismo”?

P/1 – Você foi a algum local?

R – Eu fui perguntando em todo lugar assim, aí eu tinha um amigo que ele trabalhava num órgão do Governo, vamos dizer um Comtur, [Conselho Municipal de Turismo] O Conselho, uma Acetur que era alguma coisa de turismo aí ele falou: “Esse rapaz quer ser guia como que ele faz?”. Ele falou: “Oficialmente ainda não tem nada que a gente possa estar pedindo, uma carteira ou um curso a EMBRATUR vai fazer, né”? A Embratur não tinha essa preocupação de fazer, hoje nós temos o curso de PNDPA [Programa Nacional de Desenvolvimento da Pesca Amadora]

o monitor ambiental e guia de turismo oficial registrado na Embratur que eu tenho

minha PNDPA.

P/2 – O que é PNDPA?

R – É um Programa Nacional de Desenvolvimento da Pesca Amadora, eu fiz um curso onde eu até fui convidado pelo Governo Federal para elaborar uma apostila na parte do inglês, porque do jeito que eu aprendi inglês com os turistas é a maneira que eu tentei ensinar os guias novos que estavam vindo pra poder aprender a falar, entendeu? Então eu desenvolvi uma técnica onde eu escrevo pra você, por exemplo, eu escrevo assim good morning, mas em português g u d i m o r n i n, então você vai ler em português, não está escrito em inglês good morning se não você vai ler como está escrito. E aí eu fui ensinando os guias do Pantanal assim como eu aprendi e aí eles foram aprendendo, hoje nós somos

mais ou menos uns 100 ou 120 guias e todos eles falam muito bem o inglês e alguns falam até outros idiomas.

P/1 – Mas aí você foi nesse local e...

R – Então eu fui lá perguntar e ele falou: “Oficialmente não tem curso não, o que você tem que fazer é encontrar um serviço num lugar onde a pessoa está precisando de um guia e aí você vai ser guia, até a gente poder elaborar no futuro, nós vamos... A Embratur vai fazer um curso onde vai certificar todo mundo pra gente ter esse trabalho com mais qualidade.”

P/1 – E você novinho, né?

R – 16 anos. Aí eu fui e trabalhei numa pousada, numa primeira fazenda que eu trabalhei lá e aí eu tinha muito contato com espanhóis, aí foi o meu primeiro contato com estrangeiros. E dali eu comecei a aprender o espanhol, aí aprendi inglês, aí aprendi hebraico, aprendi japonês, aprendi francês, aprendi italiano e agora estou aprendendo suíço alemão e alemão, porque eu casei com uma suíça, né? Então foi assim, aí eu fui crescendo, fui evoluindo, fui absorvendo, então pra mim eu acho que essa... Eu queria muito que... É isso que eu queria que... Hoje infelizmente ela está doente que minha mãe entendesse que a melhor escola que eu tive foi a vida e não foi aquela que ela queira me pôr lá dentro, porque aquela escola que ela queria me colocar lá dentro, eu só tive preconceito, racismo, discriminação, entendeu? Não tive amor, não tive amigos só tive problemas pelo que eu sou e a melhor escola que eu realmente tive... Eu sei é claro, hoje até eu reconheço que é importante num país como o de hoje uma pessoa que não tem escola, não tem estudo não é ninguém mesmo. Mas ao mesmo tempo pra mim, eu acho que vivi uma porção de vida e não dizendo que escola não é bom é muito bom tanto que eu quis fazer a universidade e aí que eu fui ver que já era muito tarde e que eu realmente deveria ter estudado, mas ao mesmo tempo eu fiquei muito feliz em saber que eu tive uma porção de vidas e que eu mostrei pra mim mesmo acima de tudo e pra essa família que eu não ia ser um zé ninguém, que eu ia ser alguém na vida e eu só queria ser um guia de turismo.

P/1 – Marcelo só me diz assim, você começou trabalhar em pousadas e foi conhecendo as pessoas, mas como é que foi o dia que você conseguiu fazer o seu registro como guia, como que foi isso? Porque isso é um marco também, né?

R – Aí foi o seguinte passaram-se o tempo... Eu fui uma das primeiras pessoas a introduzir o mochileiro que eles chamam de backy paker no Pantanal, eu tenho um primo que mora em Corumbá, eu morava em Corumbá e ele estava morando nos Estados Unidos e aí ele chegou dos Estados Unidos com grana com essa idéia de querer montar alguma coisa. Aí ele teve essa idéia de trabalhar com turismo também, aí o que aconteceu? Juntou a fome com a vontade de comer, ele tinha conhecimento, tinha dinheiro, abriu uma agência de turismo, mas não tinha um guia bom e aí ele falou, ele me chamava de Bugrão, né? “Bugrão vamos trabalhar tem um negócio bom assim pra ganhar dinheiro e a gente vai trabalhar junto?” Aí a gente começou a pegar ia na rodoviária, ia lá no trem da Bolívia e pegava os turistas que chegavam lá e explicava pra eles, ele falava muito bem o inglês

ele falava: “Esse aqui é seu guia é um índio, ele é muito legal, é bom, ele não fala inglês, não fala nada, mas ele sabe tudo”. E o cara falava: “É isso que eu quero, não importa ele não falar inglês”. Ele falava: “Mas se você quiser eu vou com você, eu traduzo pra você o que ele fala”. E aí ele falou: “Não, tudo bem eu quero assim, eu quero ele, tudo bem vamos lá.” E aí começou essa coisa e fomos buscar e trabalhar e aí lógico no contato quando começou a ter uma evolução maior, a gente começou a ter mais fluxo e aí você tinha a cada três dias um grupo novo, né? De turista e aí você vai fazendo essa troca de ouvir, quer dizer o dia-a-dia ensina você a se comunicar. Então essa é a escola que eu queria, então eu aprendi o inglês assim às vezes eu olhava pra ele e ele via um macaco eu falava: “bugil”. Ele olhava no livrinho dele e falava: “holler monkey” aí eu gravava. Aí vinha o próximo grupo já via o bugil eu já falava “holler monkey” e o cara falava: “uau”. E ele falou: “mas você falou que não falava inglês”? Eu falava: “estou aprendendo, né”? E aí eu fui crescendo, quando o ecoturismo fez um boom assim há uns

cinco anos atrás no Mato Grosso do Sul,

e eu me lembro muito bem que a nossa secretária ainda era a Marilene Coimbra e aí eles despertaram esse interesse nessa fatia desse bolo aí do estrangeiro e aí eles começaram a ver como é que precisava fazer uma capacitação de guias e viram toda a estrutura das pousadas como elas estavam trabalhando pra dar esse atendimento, ver o perfil do turista europeu, do estrangeiro como é que ele queria ser atendido no Pantanal. E aí veio essa preocupação e daí eles começaram a fazer toda essa restrição falaram: “Olha hoje em dia os guias exigem os registros e vocês vão ter que se filiar a Embratur pra gente ter um controle como é que está indo o trabalho de vocês”. Aí eu fui e fiz o meu primeiro curso de guia de turismo, eu fiz em Corumbá foi com uma organização do senhor Orozimbo e do Major Rabelo com a Marilene Coimbra que era nossa secretária de turismo na época. E aí nós fizemos o primeiro curso de turismo do Mato Grosso do Sul e foi aí que eu fiz a primeira vez que eu ganhei o primeiro certificado sem nenhuma instrução de uma profissão.

P/1 – Que ano foi mesmo?

R – Foi eu acho que em 1998, não 1996, por aí, que eles fizeram esse primeiro curso para oficializar todo mundo como guia, pra ter registro.

P/1 – Então você abriu esse campo aqui, né?

R – Isso. Aí nós começamos a trabalhar mais, mas aí todo mundo... Lógico você vai ver... A pessoa vê você crescer, você vai tendo concorrente foram abrindo outras agências e outra e outra que são as que estão no mercado aí disputando esse bolo, a fatia do bolo.

P/1 – Uma curiosidade Marcelo, das línguas que você foi absorvendo, aprendendo assim qual foi a que você sentiu mais dificuldade? Como foi isso?

R – Olha, quando eu era mais novo, claro quando você é mais jovem sua cabeça é muito fresca principalmente a minha, você sabe o nosso cérebro é como um computador se você não tem muita informação ali fica mais fácil de você inserir mais rápido, um trabalho mais rápido se você não tem nada. Então pra mim tudo era novo, então tudo pra mim não tinha dificuldade, porque você vê hoje eu tenho dificuldade de aprender suíço-alemão com a minha mulher porque eu já tenho uma carga muito grande de informação na minha cabeça, eu tenho aqui hebraico, japonês, italiano, francês, português, espanhol e aí pra entrar o suíço-alemão, ele entra, mas é um pouco mais difícil agora. Mas antigamente como era tudo novo, você é novo, você está crescendo tudo é novidade, então você vai absorvendo muito mais rápido, entendeu? E outra é tudo uma questão de... Pra mim eu digo muito hoje pros meus amigos de trabalho, os guias principalmente os que estão começando, primeiro eu falo pro guia assim: “Você tem certeza do que você quer? Você quer isso pra você?”. Porque guia é o seguinte: não é só você trabalhar e você vai achar que vai ganhar dinheiro e se dar bem na vida, você tem que fazer uma coisa por amor, você tem que fazer o que você gosta se não de outra forma você não vai ser bem sucedido. Eu acho que todo bom profissional, ele é bom naquilo que ele faz, porque ele faz por amor, porque eu jamais seria um bom médico, um bom advogado, um bom... Qualquer coisa que minha mãe quisesse, porque eu não estava fazendo aquilo por amor, eu estava sendo pressionado a fazer. E quando eu decidi é que descobri que o que eu queria era aquilo, que ia fazer eu me reintegrar na natureza de novo, porque até hoje eu gosto de andar no mato descalço, andar, fazer trilhas, subir cachoeiras, tomar banho de rio que eu pudesse estar pelo menos mais tempo em contato com a natureza, então eu decidi que aquilo ali era a minha profissão, aquilo era pra mim.

P/1 – Como é que chegou até o Explor Pantanal?

R - Aí eu fui passando por todas essas operadoras, aí depois eu rompi relações com esse meu primo, né? A Gente se separou e aí eu fui trabalhando, também não é só porque a gente separou não, eu queria é igual te falei, eu sou muito curioso, eu queria buscar mais conhecimento. Então eu vim... Ah tá, antes disso eu passei um período muito importante da minha vida que pra mim foi um marco na história também. Eu trabalhei no gasoduto do Brasil/Bolívia, eu estava na varanda da casa da minha mãe e em frente tem um posto de gasolina e aí lá tinha um cara muito gordo chamava-se (Mark Any Ark?) que é o... Eu não sabia que além dele ser o chefão de toda a coordenação do gasoduto aqui no Brasil, ele era o dono da empresa que é da (Hally Barton que é da IBM Texas Huston?) nos Estados Unidos, ele estava lá em pé batendo boca com o frentista, ele gritando com o cara em inglês e o frentista coitado perdido, né? Aí eu olhei aquela situação assim e eu estava entendendo tudo que ele estava falando e aí eu falei pra minha mãe: “Só um minutinho”. Eu estava de férias, não estava trabalhando, eu estava só curtindo ela ali, essa mãe que eu te falei. Eu desci corri lá no posto e bati nas costas dele assim e falei pra ele assim: “can help you”? Ele falou: “Pelo amor de Deus alguém fala inglês nesse lugar? Ele falou claro que você pode me ajudar, por favor, fala pra ele: ‘eu quero 40 litros de diesel nesse tanque, 30 litros de gasolina aqui, 20 litros de querosene, quero água, refrigerante, coca-cola, quatro sacos de gelo’”. O cara falou pra ele: “Está tudo pronto”. Eu falei: “Está tudo pronto”. Ele falou: “Já?”. Eu falei: “Já”. Ele falou: “Qual é o seu nome?”. E eu falei: “Marcelo”. “O que você faz”? Eu falei: “Nada, eu estou em casa, estou desempregado, eu moro ali.” Ele falou: “Você agora já faz alguma coisa. Entra no carro que você vai trabalhar comigo, eu preciso de você agora”. Eu falei: “como?”.“Você é surdo ou esqueceu o inglês”? “Não eu entendo você muito bem...”. isso tudo em inglês, né? Então ele falou: “Get in the can and come with me now”. Eu falei pra minha mãe: “Tchau”. Ela falou: “Espera”. Aí eu entrei no carro, ele pegou o carro e já dirigiu direto pra trilha onde já estava construindo o gasoduto, o primeiro acampamento e estava aquele reboliço todo e eu como sempre descalço. Aí ele entrou numa sala assim abriu um armário e me deu uniforme, bota, coturno, viseira, aí me chamou me levou pro departamento pessoal e chamou o cara que era um brasileiro o Arnaldo Correia e falou pra mim assim: “Fala com ele agora...” porque eu não sabia que ele era o chefe de tudo. “Fala pra ele agora em inglês, porque eu quero que ele pergunte tudo o que você precisa trazer pra trabalhar pra mim.” Eu olhei pra ele e falei: “Olha ele pediu pra eu perguntar pro senhor tudo que eu preciso trazer, porque eu vou trabalhar com ele”. Ele falou: “Então você traz CIC, RG, carteira de trabalho”. Aí eu falei pra ele: “desculpa, posso fazer uma pergunta pelo menos?”. Ele falou: “Pode”. “O que eu vou fazer aqui? Vocês estão me contratando, você me tirou da porta da minha casa e até agora não me falou o que eu vou fazer”. Ele falou: “Você vai ser o intérprete de Marky Any Arky que é o chefe do gasoduto Brasil/Bolívia. Você quer aceitar? 1500 dólares por mês com tudo pago avião ida e volta pra onde você quiser ir, helicóptero à sua disposição, carro a diesel, a gasolina, apartamento, casa, comida, tudo.” Eu olhei assim e falei: “Tá bom”. Aí foi quando eu me afastei quatro anos do turismo foi de 1998 até 2001, eu fiquei quatro anos com ele viajando toda a América do Sul visitando o gasoduto, ele adorou, gostou muito de mim, não só com ele, porque a cada seis meses eles trocavam de chefe. Aí ele foi embora e mandou outro o Bod. Aí depois ele foi embora e mandou o Mac, quando eu trabalhei com o Mac logo depois de um ano, ele veio a falecer em Corumbá. Aí foi outra coisa que me marcou muito também, porque quando eu já estava muito apegado a esse chefe ele veio a falecer em Corumbá. Isso pra mim foi uma perda muito grande, porque ele foi uma pessoa que mudou muito a minha vida na verdade, porque fez melhorar o meu inglês 100% hoje o meu inglês é muito mais americanizado do que o britânico, porque eu fiquei com um texano três anos trabalhando com eles. E daí eu fui melhorando aprendendo inglês tudo fui aprendendo mais coisa conheci mundos diferentes. Aí eu fui viajar pro Peru voltei fui pra Santa Cruz voltei, fui ao Chile e voltamos. Quer dizer então foi outra fase muito bonita da minha vida também.

P/1 – Com o falecimento dele você saiu desse trabalho?

R – Na verdade eu não saí, eles queriam que eu ficasse pra ir passando de chefe pra chefe, aí chegou uma hora que eu me senti um pouco mais cansado do trabalho, né? Era trabalho de muito... Primeiro eu comecei a ver coisas que me chocaram muito, eu comecei a ver mortes na obra, né?

P/1 – Acidente de trabalho?

R – Acidente de trabalho, decapitação de braço, de perna, o cara trabalhando lá e de repente o cabo de aço arrebenta e tchum na mão do soldador, a mão do cara cai segurando a solda assim. Eu falei: “Nossa!” Isso pra mim parecia coisa de ficção que você tinha visto em filmes, aquela coisa de guerra do Vietnã, eu pensei: “Não é possível isso”. E aí eu vi tudo isso aí e pra mim foi uma experiência de vida muito linda, porque o gasoduto, você pode pesquisar ele foi a maior obra da América Latina foi esse gasoduto Brasil/Bolívia e eu fiz parte dessa história também, você está me entendendo? Então tudo isso pra mim eu fico muito lisonjeado de saber que eu tenho uma história, porque eu ajudei a construir esse Brasil trabalhando no gasoduto como tradutor, eu fiz o gasoduto Brasil/Bolívia, a Conduto Cuiabá, Brasil/Chile, Bolívia/Chile. Quer dizer tudo isso ainda vai... Então cada vez que eu vejo que eu estou bem sucedido em alguma coisa vem sempre aquela voz daquela minha tia que falava: “Você não vai ser ninguém”. E a cada dia que eu escuto ela falar isso pra mim, eu fico cada dia mais forte, cada dia mais feliz e rezo muito pra ela, porque sei que ela precisa de ajuda espiritual muito grande.

P/2 – Você saiu desse trabalho e voltou pra guia?

R – Voltei pro turismo de novo, aí quando eu voltei pro turismo de novo, eu voltei buscando outras fazendas, aí eu comecei a viajar todo o Pantanal, eu queria conhecer, né? Eu falei: “Agora eu quero ver tudo”. Aí fui trabalhar... Aí quando eu passei do gasoduto que eu fui pra Paulínia, nós passamos por Miranda, aí que eu descobri Miranda, aí veio essa história de eu querer morar aqui. Aí eu peguei aqui em Miranda a gente morava aqui no Hotel Pantanal, também na Pousada Águas do Pantanal. E aí chegava na minha hora de folga, a gente trabalhava no serviço, quando nós estávamos no comecinho de tudo era muito bom, era muito mais calmo, né? Aí eu pegava minha bicicletinha aqui que eu alugava aqui de um cara, aliás, ele hoje é meu vizinho aqui do Conrado, foi o primeiro contato que eu fiz aqui em Miranda. Eu falei: “O senhor não quer me emprestar uma bicicleta só pra dar uma voltinha, eu pago o senhor dez reais”. Eu não queria comprar uma bicicleta, eu não podia levar, a cada quatro ou cinco dias eu estava viajando. Aí ele falou: “Tudo bem”. Eu pegava a bicicleta dava dez pra ele e rodava a cidade de Miranda, aí fui descobrindo essas trilhas, essa trilha que te levei hoje, fui explorando a cidade. Aí descobri que aqui tinha muito a ver comigo, uma cidade pequena, não tem violência, não tem uma vida noturna ativa, quer dizer aqui não tem boate, não tem teatro, não tem cinema. Então é um lugar muito tranqüilo, né? Totalmente diferente de Corumbá e Corumbá me assustou bastante também, a maioria dos amigos que eu tinha lá dois morreram de overdose, a maioria está envolvida com droga e esse era outro mundo que eu quis fugir, eu sabia que se eu ficasse lá, eu ia me afundar também. Porque o acesso é muito fácil comprar tudo e quando você não compra tem sempre seus amigos que têm, que compram e te dão e que quer te seduzir, quer te induzir a fazer as coisas e aí temporariamente eu entrei nesse barco furado. Aí eu resolvi realmente dar a volta por cima, eu contei pra minha mãe, eu falei: “Eu sou usuário de drogas, estou dependente, mas eu não quero gastar seu dinheiro, eu não vou pra clínica, eu não quero nada a única coisa que eu sei que eu quero é ir embora daqui” eu falei pra ela: “se você me ama você tem que me ajudar, me deixa ir embora.” Ela não queria no começo, porque a gente sempre foi muito unido, a gente saía pra pescar ia passear... A família sempre falou coisas pra ela que como sempre eu era um caso perdido e eu já estava naquela situação de usuário de droga e não tinha mais volta, eles já tinham me condenado, entendeu? Houve rumores na família de até... Parte da família pediu pra que ela me deserdasse e aí eu resolvi ir embora, procurei outros caminhos fui pra outras cidades, fui morar numa fazenda muito longe trabalhando como guia pra poder ficar bem afastado e não ter mais contato com a cidade para não buscar mais a dependência. E foi daí que eu descobri que eu tinha um grande potencial, eu comecei a ser reconhecido não só pelos proprietários da fazenda, mas pela minha família, né? A minha mãe começou a me ver em jornais e revistas, documentários, projetos no Pantanal que eu trabalho até hoje eu ajudo: o Projeto Arara Azul com a bióloga Neiva, o Guedes, o Projeto Gadonça com o Leonardo, o Fernando, o Silveira, o Projeto Papagaio Verdadeiro todos eles eu ajudei rastreando onça, trabalhando fui bem sucedido fiz muito trabalho pra televisão. E aí fui crescendo e meu nome foi se destacando na mídia e eu fui desenvolvendo, fui crescendo e descobrindo outro Marcelo que eu sabia que existia dentro de mim e saber que eu tinha mais uma chance. Então na verdade, eu acho que dei outra chance pra mim mesmo quando eu decidi sair de Corumbá. E aí eu comecei a trabalhar aqui em Miranda, achei aqui muito lindo, muito calmo fui bem recebido, eu sei que o povo de Miranda gosta de mim, os índios daqui de Miranda apesar de eu não ser Terena têm grande admiração por mim como eu tenho por eles, porque eu ajudo muito a comunidade Terena aqui sem nenhum interesse político, sócio-econômico é uma questão de coração é uma decisão minha de fazer uma parte social que eu sei que... É como se fosse uma obrigação que eu tenho agora é de passar tudo isso que eu passei, das oportunidades e ensinar pra eles de onde eu tiro as minhas deficiências como eu sei que eles têm hoje com o álcool, eu tive com drogas. E mostrar pra eles para os índios, mas não só pros índios que tem esse problema, mas pra todo mundo que é tudo uma questão de você decidir o que você quer pra você, decidir o que você quer pra sua vida e seguir o teu caminho, entendeu? Isso é uma coisa que eu sei desde pequeno, a gente só tem dois caminhos na vida o bom e o ruim, você pode até conseguir ser bem sucedido começando pelo mau caminho, mas vai ter muito mais trabalho, mas se você escolher um bom caminho você tem mais sucesso, tem menos dor, né? Então eu decidi fazer uma mudança no meu caminho, aí fui trabalhando em projetos, trabalhando em pousadas conhecendo cada parte do Pantanal, trabalhando no Plantador do Rio Negro, trabalhei no Plantador do Abobral em Agrolândia, Inhomirim, trabalhei em todos esses projetos aí do Pantanal e aí comecei a ficar conhecido. O governo do Estado de Mato Grosso do Sul confia muito no meu trabalho sempre tem eventos grandes de representação grande, de porte grande como teve a Eco 92 [Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento em 1992]. Eles me convidam pra representar o Pantanal pra falar do peão do Pantanal. Então é isso, eu acho que hoje eu posso dizer pra você de boca cheia: “Eu sou feliz”. Eu tenho hoje a minha família, eu a minha mulher a Miriam...

P/1 – Aliás, como que pintou o amor nisso tudo? Porque só trabalho, batalha, o amor aí a gente...

P/2 – Conta o encontro de vocês, como foi isso?

R – A Miriam é uma história muito linda a minha e a da Miriam. A Miriam, ela já tinha um sonho desde quatro anos, porque ela me contou quando eu a conheci que ela queria ter um jacaré.

Aí eu falei: “Mas como é possível, você é lá de um mundo onde só tem neve, lá não tem jacaré, como é que você vai querer jacaré com quatro anos? É impossível isso”. Mas eu e a Miriam a gente tem um conexão muito bonita, nós temos... As nossas ideias às vezes não batem por causa da cultura, né? Cultura européia com cultura indígena a gente tem um choque aqui em casa muito grande, ainda temos isso, às vezes saem uns quebra paus grandes assim porque a gente quer fazer essa engrenagem rodar, funcionar se a família anda bem o comércio vai bem também, né? Então eu acho que o princípio de tudo a gente quer tentar se entender e se conhecer cada dia melhor e respeitando sempre um a cultura do outro.

P/1 – Mas como foi que vocês se conheceram?

R – Então ela veio... Na verdade ela não queria vir pro Pantanal, ela estava fazendo um tour com os amigos viajando o mundo e quando ela me contou, ela da Argentina ela já queria ir embora pra Bolívia, ela não queria passar pelo Pantanal. Aí o pessoal do grupo dela, alguém estava lendo um guia, aliás, nesses guias que eu tenho aí depois se você quiser, eu te mostro é onde eu estou muito bem recomendado como um dos melhores guias da América do Sul como guia, não como agência, hoje nós já estamos também como operadora desse Pantanal, mas no começo... Porque eles viajam o mundo e os guia, eles não falam, quer dizer eles vão fazendo os tours e andando, né? E aí ela resolveu com esse pessoal lendo esse guia vir por Pantanal, decidiram... Ela não queria, aí chegaram em Campo Grande muito difícil escolher porque lá tinha umas dez operadoras que fazem a captação de estrangeiro na rodoviária e ela com toda essa dificuldade, não sabia nem o que era Pantanal ainda, mas como escolher uma operadora boa, né? Que podia fazer um trabalho bom e por coincidência eu já tinha voltado de novo, porque eu sempre faço a viagem toda de trabalho, voltei de novo a trabalhar com esse mesmo primo meu que eu trabalhei no começo. Eu estava trabalhando com ele e ele tinha um portfólio com as recomendações do meu trabalho e foi e mostrou pro grupo deles, falou assim: “Olha, eu tenho esse stand assim, a cabana o passeio, eu faço isso, isso e eu tenho um guia que é...”. Ela não viu minha foto, ela confiou naquilo e pagou e foi. E era muito engraçado que era o dia de ir embora, eu não queria mais trabalhar nas férias, né? Eu tinha ligado pra ele um dia antes e falei: “Estou indo embora”. E ele falou: “Atende só esse grupo pra mim”. Aí eu falei: “Tá bom.” E aí a Miriam chegou, eu já estava terminado o grupo, não tinha mais nada pra fazer a Miriam chegou com o grupo dela lá e tudo e no começo a gente nem trocou olhar nem nada, eu acho que foi até o contrário, eu acho que troquei mais olhar com uma amiga dela do grupo dela tanto que depois eu falei: “Vocês estão chegando agora, vamos fazer um passeio de barco rapidinho pra ver o pôr do sol” porque eu não gosto de deixar os turistas parados já estão ali já tem pouco tempo, né? Pagam caro pra caramba e pra chegar e o cara ficar parado até o outro dia começar. Então esse é o meu perfil de trabalho também é o que faz a diferença lá no nosso trabalho. Aí eu falei pra ela: “Avisa teu grupo lá e vamos fazer um passeio de barco pra ver o pôr do sol.” Aí nós saímos e fizemos um passeio de chalana, era uma chalana muito típica que eu tinha, aí eu pilotando... Quando foi num dia a noite a gente sentado conversando, aí eu comecei a conversar com a Isalito do meu lado e explicando da minha vida, né? Como é que é, como vive índio, como é que é a aldeia e ela se interessou e falou: “Posso sentar?”. Aí eu falei: “Pode”. No que ela sentou, a gente começou a conversar e a trocar um pouco de olhar assim e aí a Miriam numa fração de segundos assim não sei, ela se desorientou onde era o banheiro, né? Aí eu vi que ela estava indo pra cozinha, eu fui atrás dela. Eu falei: “Posso ajudar?”. Ela falou: “Estou procurando o toilette”. E aí como estava muito difícil acender a luz ali, eu comecei a apalpar assim e ia no banheiro dos homens primeiro. Eu falei: “Não é aqui não”. Ele foi, entrou no banheiro das mulheres que tem uma luz que liga tudo e quando eu estava com ela lá dentro do banheiro. Aí eu não resisti aqueles olhinhos lindos que ela tem azuis, né? (troca de fita)

P/1 – E aí você estava então indo pro banheiro, né?

R – Então ela estava perdida querendo procurar um banheiro e eu falei com ela: “Possa te ajudar?”. Ela falou: “Ah sim, eu queria ir ao toilette”. Aí eu voltei com ela, peguei na mão dela e falei: “É aqui”. Aí estava um escuro assim sem luz, eu comecei a apalpar a mão no banheiro assim e aí levei ela para o banheiro das mulheres lá no fundo. Eu falei: “É aqui”. A hora que eu apertei o botão que eu acendi a luz aí que eu a vi ela bem de perto, aquele olho azul, aquela coisa e ela olhando pra mim assim. Aí eu não resisti, eu passei a mão na cabecinha dela assim e ela falou pra mim assim: “Obrigada”. Eu falei: “de nada” aí eu passei a mão na cabeça dela e dei um beijo nela foi o primeiro beijo que eu dei, né? Aí eu tomei a iniciativa, eu fui o primeiro a flertar a Miriam fui eu, eu que dei o pontapé inicial no romance. Aí ela ficou assim, ela viu um monte de borboletinhas no banheiro, né? [risos]. E aí eu a deixei lá claro e aí eu voltei pra mesa. Aí quando ela voltou a gente... É claro a gente já tinha essa coisa de... Já sabia que ia rolar um clima aí, uma coisa assim. Aí depois tinha uma atividade que eu gosto muito de fazer que eu convidei eles, que eu falei: “Olha tem uma coisa assim que é legal que eu faço muito diferente que todo mundo aqui é uma coisa que todo mundo...”. Tá no pacote, mas eu faço diferente: a gente faz o jipe safári, eu já gosto de nigth walk que é caminhar a noite dentro da mata. E era uma época de cheia quando a Miriam foi e estava forrado de água ali na nossa estrutura em volta do camping. Aí eu falei pra todo mundo: “Vocês querem fazer uma coisa muito interessante, legal? Assim a gente vai sair pra caminhar na mata e vai bichos de hábitos noturnos, vai ter muito jacaré, nós vamos atravessar em água”. Eles falaram: “O quê? Você é louco?”. Essa é a adrenalina do passeio, essa é a ideia, aí alguns queriam ir outros não queriam ir e resolveram ir e foram uns três ou quatro só, resolvemos fazer uma caminhada. Aí nisso a gente foi indo e conversando e tudo e quando chegou lá perto do ponto lá da universidade que a gente estava lá, aí o pessoal resolveu... Eu e a Miriam conversando mais, eu falei: “Aqui acabou daqui a gente volta pelo mesmo caminho”. Aí eles começaram a voltar um pouco sozinho, eles conheciam a trilha, né? Porque era uma estrada muito comum, limpa. Aí eu falei pra Miriam: “Você quer fazer uma coisa mais interessante, uma coisa com muito mais emoção?”. Ela falou assim: “Eu quero”. Eu falei: “Você confia em mim”? Ela falou: “Lógico se não eu não estaria aqui”. Eu falei: “Então tá bom, então vem comigo, me dá a mão, nós vamos fazer um caminho diferente só que eles vão gastar uma hora e meia e nós vamos fazer em 25 minutos”. Ela falou: “Como é possível?”. “Nós vamos cortar caminho por este rio no peito, assim na água”. E ela foi muito corajosa confiou em mim e entramos no rio e pisa em jacaré, pisa em cobra e eu mostrando tudo pra ela, e começamos a andar, andar e ela começou a ficar mais interessada: “Muito louco ele, muito aventureiro”. Era aquilo que ela estava buscando, né? Porque é isso que as pessoas vêm buscar aqui, um passeio assim mais em contato com a natureza. E aí a gente começou a conversar e depois dali o pessoal já voltou, já foi dormir. Aí eu e a Miriam resolvemos ir até um bar que ficava ali perto, tinha uma lanchonete perto da nossa pousada ali e a gente ficou ali conversando até acho que três horas da manhã e aí já comecei a contar minha vida pra ela e aí naquele dia eu decidi que queria ela pra mim e a gente viu que a gente tinha nascido um para o outro, né? É aquela coisa que eu falei pra você, eu e a Miriam temos uma conexão muito forte, porque ela acredita naquilo que eu acredito, por exemplo, eu sei, hoje eu tenho certeza que eu já conheci a Miriam em outras vidas e que a gente aqui só está se revendo de novo pra ficar mais tempo juntos depois a gente vai aproveitar esse momento, nessa vida e ficar cada vez mais juntos, cada vez mais unidos. E aí lá eu peguei e falei com ela naquela noite sentado ali: “Você quer casar comigo?” Ela olhou pra mim assim muito decidida, ela também já sabia... Eu falei: “Você vai ser a mulher da minha vida, você sabe, né?”. Ela falou: “Eu sei e você é o homem da minha vida”. A gente já sabia ali naquela noite, naquele momento que a gente já tinha aquele dia marcado pra se rever na verdade e está se revendo a gente já se conhecia. E dali a gente começou, aí eu tive que montar todo um processo pra sair do lugar com ela, porque aqui em Miranda, eu já estava morando aqui, mas eu estava saindo de outro relacionamento e ela já sabia, eu contei tudo pra ela naquela noite. Eu já tinha terminado o relacionamento com outra pessoa, mas ela era uma pessoa muito complicada, era uma menina que tinha problema com o álcool e eu sabia que se ela me visse com a Miriam, ela ia querer vir aqui fazer bagunça, aquelas coisas, né? E aí eu no meu trabalho eu comecei a explicar pra ela e falei: “O meu trabalho é assim só que agora onde eu for você vai ter que ir comigo". Aí eu saía trabalhando e levava ela pra uma pousada. Eu falava: “Miriam tem isso pra fazer, vamos”. Aí a gente começou a viajar, eu ia pra Bonito ela ia comigo. Até que um dia a gente chegou e falou: “Olha, agora que nós temos esse tempo e que temos um pouco de grana, porque eu fiz alguns trabalhos e recebi de alguns lugares, a gente tem que arrumar um lugar pra morar, né?”. Aí nós fomos alugar a nossa primeira casa e aí morando juntos já e trabalhando assim, ela olhou pra mim e falou: “Olha, eu acho que a gente tem que tomar uma decisão muito importante pra nosso futuro, eu acho linda a sua profissão, mas só ser guia não basta, você tem um potencial muito grande, eu acho que em vez de você ficar saindo e viajando e trabalhando pra todo mundo, por que você não trabalha pra você? Pra sua empresa mesmo?”.

Eu falei: “Mas pra isso a gente tem que abrir uma agência”. E ela falou: “Mas é isso que eu estou falando, vamos montar uma operadora”. Nós conversamos toda essa parte da política de ser operador, porque eu falei pra ela que não é tão simples ser operador de turismo no Pantanal, porque é muito difícil trabalhar com o Pantanal, né? O Pantanal tem uma logística muito difícil de trabalhar o acesso é muito difícil, quando você fala vender Pantanal parece que é uma coisa muito fácil, mas é muito difícil porque o acesso é complicado você faz toda uma programação para um tour e quando você vai fazer esse tour começa a chover, começa a ventar, cai árvore e fecha trilha, cai árvore no rio e você não pode mais ir de barco. Quer dizer então isso é uma coisa que eu tive que ensinar pra ela. Então nós passamos boa parte do começo da nossa vida juntos viajando, eu mostrei todo o Pantanal que era possível mostrar pra ela, pra ela aprender onde ela está morando, onde ela está vivendo e o que ela vai viver, porque de outra forma não tinha como ela ter uma operadora. Então eu a levei nas melhores pousadas do Pantanal, porque todos são amigos meus que sempre que eu liguei pra lá todos foram sempre... Nós ficamos tudo de graça, nos deram cortesia pra conhecer tudo lá, ela conheceu todo lá o Pantanal o Rio Negro, o Abobral, Acrelândia fiz travessias com ela de tudo que você imaginar pra ela realmente sentir o que é um Pantanal, porque essa é a filosofia da nossa empresa hoje você vê ali :to feel, to see, to touch, to smell, to hear, to test, enjoy. A gente quer que o turista sinta, que ele veja a gente quer que os turistas toquem e seja tocado pelo Pantanal, que eles sintam o cheiro, você está caminhando e sente o cheiro do bicho. Eu falei pra ela: “Respira aqui”. E ela falava assim: “Muito forte, o que é isso?”. “Isso é onça”. Aí eu andava com ela mais um pouquinho e falava pra ela: “Respira”. ela falava: “Nossa que fedido”. Eu falava: “Isso é porco do mato.” Eu andava mais um pouquinho com ela e ela falava: “Que estranho, o que é isso?”. “Isso é macaco”. Quer dizer isso aí é que é lindo na nossa empresa é o que faz a diferença as pessoas não vem só pra ver o Pantanal, vêm pra sentir, pra comer, eu faço comidas indígenas pra eles, tem uma comida que eu faço assada dentro da terra, entendeu? Tipo assim você sai pra caminhar e a hora que a gente volta eu falo pra vocês: “Vamos almoçar?”. “Vamos”. Aí eu começo a cavar o chão e o cara fala: “O que é isso?”. Eu falo: “Você não vai almoçar, você não está com fome?”. Aí eu tiro a panela de dentro do chão abro e lá dentro tem uma moranga com carne seca, com creme de leite, um peixe assado na folha da bananeira. Quer dizer isso que faz hoje o diferencial nosso, né? Da Explor Pantanal a gente faz a coisa com muito mais amor, a gente faz as coisas com um direcionamento mais voltado pra cultura, não só a cultura pantaneira, mas pra cultura indígena e mostrar como é realmente o Pantanal na verdade não só sair pra mostrar bichinho, né? Porque pra mim é uma coisa muito Robótica, você vai nas outras operadoras isso não é falar mal das outras operadoras, mas mostrar... É uma crítica construtiva de um trabalho diferenciado, de uma operadora pra nossa, eles te vendem um tour e o guia só falava assim: “bom dia, hoje vamos fazer um jipe safári” aí você entra no carro, ele senta na frente da Toyota dá as costas pra você e sai apontando os bichos: “arara, arara azul...” e a hora que acabar o tour ele fala: “muito obrigado, acabou, tchau e três horas da tarde tem um passeio de barco" e isso com a gente não acontece, a gente sai, explica tudo de biodiversidade, planta medicinal, cultura indígena, pintura, cerâmica e tudo que é possível mostrar e a gente faz eles interagirem com a gente, faz eles participarem, a gente leva eles pra pescar, pra olhar, pra fazer, eu faço ali no mato arco e flecha, eu faço colar na hora, eu tiro a folha da natureza, eu corto planta tiro a folha, eu corto a fibra “eu posso fazer pro senhor aqui rapidinho.” E é isso que dá a diferença é o toque da diferença da nossa empresa.

P/1 – Vocês inauguraram a empresa quando?

R – Nós abrimos em outubro de 2006, 15 de outubro 2006 a Explor Pantanal nasceu e daí pra cá e a gente tem trabalhado bastante, estamos sendo muito bem sucedidos claro, porque a gente trabalha com amor, né? É como eu te falei que a gente gosta muito do que faz, a Miriam é a conexão Brasil/Europa porque ela é de lá e ela traz as pessoas de lá pra cá pra gente e aqui eu faço o show. Aqui eu faço literalmente o show, eu mostro tudo, né? A cultura, o idioma, as tradições, porque hoje vocês tomaram um tereré comigo, provaram, né? Mostra toda a cultura indígena, eu faço toda parte de planta medicinal, vocês provaram hoje comigo o Guaratu. Quer dizer então é esse que é o meu trabalho e a gente está aqui pra fazer isso e cada vez mais... A gente tem o nosso trabalho social que ajuda as etnias indígenas...

P/1 – Como que é que você ajuda? Isso que é uma pergunta como que é?

R – A ajuda é assim: na verdade todo o problema do índio vem tudo gerado pelo próprio Governo, o Governo não dá subsídio e nem a assistência adequada que deveria dar, então o que a gente faz? A gente vem como se fosse um antibiótico, um reforço por trás de tudo isso. Então a gente vê onde está a parte mais fraca daquela aldeia, o que mais está precisando e dá um suporte pra eles.

P/1 – Por exemplo, o que é o antibiótico?

R – Está no nosso site, há três anos atrás os Terenas aqui em Miranda tinham uma grande dificuldade porque eles queriam ser um pouco mais independente, porque é como eu te falei no começo da nossa conversa, o índio ele está muito dependente do Governo, ele tem cesta básica, tem cartão de crédito vai lá e tira 100 reais todo mês e isso faz com que ele fique mais preguiçoso. Quer dizer ele leva uma vida totalmente inerte, então como ele não tem nada pra fazer, não precisa produzir, não precisa plantar, tem tudo pronto é esse que dá o problema do índio dele vir a se alcoolizar, beber, brigar, matar um ao outro e até mesmo se matar, entendeu? Quer dizer ele está perdendo essa auto-estima porque não tem o que fazer. Então eles decidiram aqui que eles queriam produzir, mas eles não tinham o subsídio, por exemplo, eles queriam muito um trator com uma grade pra poder arar, limpar toda a área pra eles poderem plantar e hoje eles estão fazendo graças a nós. Então eu conversei com a Miriam e ela é uma pessoa que é muito emotiva pra essas coisas, ela se toca muito com isso pela minha história e também pela história dos índios todos no Brasil, aqui no Pantanal. Então nós começamos a visitar as aldeias e perguntar onde estava a deficiência de cada um e esses índios daqui dessa aldeia da Cachoeirinha perguntaram pra gente o que a gentes poderia fazer, eles tinham tratores parados numa oficina que precisava de 1800 reais pra tirar o trator pra poder usar e a Funai disse que não tinha esse dinheiro pra tirar, o Governo não tinha como tirar, assim eles nos passaram. Então o eu fez? Eu documentei tudo, peguei todos os documentos, escaniei botei e mandei tudo para a Europa para amigos da Miriam, parentes pessoas que pudessem, porque eu sei que tem pessoas que ajudam por que existem hoje as ONGs? Porque querem ajudar por ajudar sem interesse nenhum. E nós mandamos isso pra Europa e quatro dias depois já havia resposta 1800 em suíços francos pra gente poder tirar os tratores dos índios. Aí nós fomos lá na oficina pagamos, mandamos consertar e hoje eles estão produzindo, eles estão plantando e nós vimos, eu fui lá depois ver o resultado. Hoje eles usam pra transporte, pra fazer plantação, eles estão plantando hoje cana, feijão, milho, mandioca e estão vendendo manga, eles fazem... Nessa época do ano você vê o meu quintal está forrado de manga, eles coletam toda essa manga põe numa carretinha, fazem saquinhos plásticos e saem na cidade pra vender. Quer dizer, então eu acho que isso é importante você dividir um pouco daquilo que você tem, um pouco de conhecimento e até um pouco de grana que você ganha pra poder ajudar uma comunidade é uma parte social da nossa empresa, isso vai fazer sempre parte do nosso currículo. A gente não quer só explorar... A nossa idéia de Explor Pantanal não é explorar o turista e nem o turismo pra poder ser bem sucedido, mas é uma maneira da gente poder mostrar que se todo mundo fizesse um pouquinho pra outra pessoa, esse mundo seria melhor, muito melhor essa é a nossa filosofia.

P/2 – Bom, Marcelo agora a gente vai começar a chegar ao final e eu gostaria que você dissesse assim olhando toda essa sua trajetória de vida que é isso que nós fizemos aqui. O que você diria que foram as principais lições da sua vida?

R – Principais lições?

P/2 – Ou aprendizado? Uma coisa que foi importante?

R – Eu entendo sua pergunta. Eu aprendi muito durante toda a minha vida, eu conheço muito bem dor de todas as maneiras física, porque me bateram muito nessa família que eu fui adotado e dor emocional, claro as duas estão sempre juntas. E eu aprendi com tudo isso que você pode com as coisas ruins que acontecem com você na sua vida que você não pode se entregar e achar que ali acabou tudo, eu aprendi que você pode usar todo esse processo dessa vida que você tem, todo esse problema, essa fase ruim, vamos dizer que foi uma fase ruim na minha vida e você aproveitar tudo isso pra você usar como ferramenta pra você construir uma vida melhor, entendeu? Não se entregar e falar: “eu já estou danado vou deixar isso pra virar de vez” não pelo contrário, você tem que usar isso daí como uma fórmula, uma gasolina, uma injeção de força e de ânimo é difícil, entendeu? Parece fácil você falar, falar é muito fácil pra tudo, mas o mais importante é você fazer e fazer de coração, você tem que ser determinado, você tem que seguir aquilo que você quer. Eu posso dizer em várias palavras muito curtas, mas que é o resultado de tudo isso são coisas muito importantes que é perseverança, força de vontade, necessidade, mas que tudo isso tem uma só palavra e essa palavra e essa palavra eu aprendi com uma pessoa que até hoje amo que é a Miriam, que é o amor, ela me mostrou que com amor você pode fazer tudo o amor é muito importante, você tem que primeiro amar você mesmo, se respeitar, dar-se ao respeito pra depois você conquistar de volta o amor, o respeito e aí você vai ter sucesso e é por isso que eu amo a Miriam. Ela me ensinou bastante também em tão pouco tempo e a vida, né? Eu amo a vida.

P/2 – E o que você diria assim... Quais são seus sonhos?

R – Meu sonho? Eu tenho um grande sonho, eu sempre tive e acho que agora eu posso realizar, eu precisava de uma mulher pra ter um sonho, né? Que era ter uma filha, aliás, eu tenho dois filhos, eu não falei isso pra você.

P/2 – Qual é o nome?

R – Vitor e Lucas, eles moram em São Paulo...

P/2 – A idade?

R – O Vitor tem 15 e o Lucas tem 14.

P/2 – Devem estar estudando então?

R – Estão estudando, eles moram em Campinas. Mas o meu sonho mesmo era ter uma filha, porque pra ela eu vou passar todo o meu conhecimento antes de morrer pra dar essa continuidade dessa história do Pantanal e do guia do Pantanal, porque existe uma coisa muito... Outro preconceito que não aquele que eu passei dos índios, mas existe um preconceito muito forte no Brasil até hoje que é o contra a mulher, que é contra você, entendeu? Eu acho que graças a Deus hoje o mundo seu está mudando bastante, antigamente mulher, aliás, até hoje eu vou te falar de coração, é verdade a Miriam um dia falou pra mim assim dentro do Pantanal que é a pura verdade, ela olhou pra mim

e falou assim: “Marcelo, its very sad woman in Pantanal”. É muito triste ser mulher no Pantanal e eu falei assim: “Por que, Miriam”? Porque nós vimos juntos e isso é uma coisa que ela mostrou pra mim e eu há trinta anos no Pantanal e não tinha visto isso. Ela falou: “Porque aqui eu vejo, eu fui com você pra todo lugar aqui no Pantanal as mulheres...” Por exemplo, fizemos um tour com um grupo lá e aí quando nós voltamos e sentamos na sala de jantar ali na mesa pra ver as fotos de tudo que a gente viu e uma menina de oito anos do nosso lado que chamava-se Geovana. Ela não sabia o que era um tatu, não sabia o que era um tucano, não sabia o que era uma arara. Eu falei: “Como é possível você no meio da selva não saber o que é um tucano?”. Mas por quê? Porque existe esse preconceito o homem quando tem um filho homem, ele pega o menino e leva pra vida, leva pra aprender a laçar, a ordenhar, a conhecer tudo, aprende tudo e a mulher fica em casa com a mãe e aprende só o quê? Aprende a cozinhar e lavar roupa. Então realmente é muito triste ser mulher no Pantanal e eu vou mudar essa história, eu vou escrever uma história diferente a partir de hoje quando eu tiver minha primeira filha com a Miriam ela vai ser... Ou eu posso fazer a história como eu passei, eu vou adotar uma menina também, porque eu acho muito bonito isso também se eu fizer, porque assim como eu fui adotado, eu posso adotar uma menina que precisa do que eu precisava de uma família, de carinho, de amor e de alguém que dê uma estrutura pra que ela seja alguém na vida, né? E aí eu aprendi muito com essa família de tudo como se deve fazer, porque eu vou fazer tudo ao contrário do que eles fizeram comigo, eu vou dar amor, não vou empurrá-la pra escola, eu vou ensinar tudo em casa, ela vai escolher o que ela quer ser pra ser feliz, mas acima de tudo eu vou dar a ela o que nunca me deram o respeito de escolher o que eu quero ser na vida, de escolher o que eu quero comer, beber, entendeu? Eu acho que isso é que é importante na vida. E aí o meu sonho é esse fazer no Pantanal talvez no Brasil a primeira guia mulher de toda a história do Pantanal, porque não tem pelo preconceito, porque eles acham que pra mulher não é possível pegar jacaré como eu pego na mão assim, pegar sucuri, porque eles acham que é isso trabalho de homem, são tudo uns macho man, mas pra mim são todos galinhas também, entendeu? Porque tem guia que não faz metade do que eu faço e eles se acham lá no Pantanal. Então esse é um grande sonho que eu tenho e o outro sonho também é no futuro se possível eu queria muito ter o apoio de entidades não governamentais ou até mesmo do Governo não sei montar um laboratório, uma oficina onde as pessoas possam ter... Eu diria assim que acho que o importante hoje na vida eu aprendi muito, porque não é você só dar dinheiro ou dar as coisas pra alguém, eu acho que o que falta no Brasil é que as pessoas precisam de oportunidades, entendeu? Eu acho que é uma coisa que eu aprendi muito com meu pai assim, meu pai falava muito assim pra mim: “Você está com fome?”. Eu falava: “Tô”. Ele nunca vinha pra mim e falava: “Come toma arco e flecha, macaco, mata”. Quer dizer você não tem que dar o peixe, você tem que dar a vara de pescar, ensinar como ele pescar, porque é muito fácil você dar tudo na mão assim. Então eu acho que é isso que faz essa diferença maior pra vida de você no futuro, você vai dar muito mais valor às coisas que você tem quando você conquista com o seu próprio suor, aí você vai dar muito mais sentido na tua vida e eu acho que isso é que é importante.

P/1 – Marcelo, uma coisa que passou e eu não posso deixar de falar, 30 anos de Pantanal que você tem, você viu nesses 30 anos uma modificação muito grande?

R – Muito em tudo.

P/1 – Você pode falar um pouco disso?

R – Infelizmente foi assim pra pior, por exemplo, nessa área onde eu trabalhei que eu conheci a Miriam que hoje se chama Estrada Park você vai passar por lá, na Estrada Park não muito mais do que 15 anos é exatamente o período que construíram essa estrada nova, essa BR que vai até Corumbá, essa estrada velha que você vai pegar a Estrada Park é a antiga estrada que vinha de Campo Grande até Corumbá que você fazia só tinha esse caminho. Então você vai atravessar a balsa como a gente atravessava antigamente e tudo, isso somente 15 anos atrás quando você fazia esse caminho de ônibus ou de carro ou de qualquer coisa você via muitos animais silvestres na Estrada Park, muito bicho inclusive onça às vezes você tinha que parar e buzinar pra onça sair, porque ela estava deitada numa ponte pra sair pra poder ir embora. Hoje pra você ver um macaco nessa Estrada Park você tem que parar o carro na estrada e andar pelo menos duas horas dentro de um capão na beira da estrada pra você ver um macaco. Essa é uma das mudanças muito grande que eu vi muito grande no Pantanal a evolução das coisas, da pecuária que eu acho que é uma... Pra mim em minha opinião me desculpem os pecuaristas, o maior predador do Pantanal é o pecuarista me desculpe, mas é a minha visão, porque eles fazem uma pecuária totalmente desregulada onde existe uma queimada totalmente incontrolável onde tem a maior mortandade de bicho que é a grande queimada do Pantanal. Eles não queimam só por terra, mas eles queimam por ar, porque quando tem o processo da queimada você queima todo o Pantanal e aí vem a chuva agora e todas aquelas terras cinza, aquele aglomerado de sujeira, ele vai descendo para os rios. E aí tem outro processo no Pantanal que todo mundo conhece que se chama adequada que é a falta de oxigênio e alimentos não vivos por causa da queimada. Quer dizer então o homem não só mata os animais fora da água, mas ele está matando os peixes também com o fenômeno da adequada. Quer dizer então pra mim uma das grandes coisas que está mudando o Pantanal e cada vez mais que é essa coisa da carne, né? Todo mundo quer comer carne, eu adoro carne, mas eu já quase virei vegetariano de tanto ver tanta coisa que o gado faz com o Pantanal, entendeu? Essa coisa ajuda, claro tem pecuarista que já me ensinou, já me explicou, ele ajuda bastante no processo de toda a limpeza da área pra manter o Pantanal a própria alimentação que a vaca faz do mato já com os acuris, ali onde elas defecam ali brotam outras árvores nascem acuris e tudo . Mas eu acho que tem muito mais desvantagens do que vantagens e nesses 30 anos eu vi que mudou muito a parte do ecossistema, a poluição das águas, essa coisa de cortar muitas árvore... Quanto mais gado você tem mais árvores você tem que cortar, né? Outro grande problema que está tendo muito agora no Pantanal, eu não só li, mas eu vi agora há dois dias atrás na aldeia Kadiwéu são pessoas invadindo terras no Pantanal por causa de carvoaria, são empresas multinacionais muito grandes como a própria MMX [Mineradora] que tem em Corumbá, ela causou muito dano pro Pantanal, deve muito pro Governo, bilhões de reais e não se fazem nada, infelizmente esse mundo do branco é muito triste onde o dinheiro é que manda, se o cara tem dinheiro... Ele deve sete bilhões pro Governo, mas ele tem muito mais pra pagar um cara que ele vai corrompendo do que pagar pelo crime que ele fez.

P/1 – Tem um episódio da mudança do curso d’água, né?

R – Exatamente isso, por exemplo, eles invadiram as terras indígenas agora, porque eles estavam fazendo um atrativo turístico lá na aldeia e aí quando eles quebraram essa relação com o branco, porque o branco prometeu pagar aos índios um percentual daquilo por pessoa que eles iam ganhar só que nunca foi repassado esse dinheiro. E agora os índios me pediram socorro, estão pedindo ajuda estão todos os documentos aí pra ajudar pra encaminhar pro Governo pra dar uma olhada e ver como é que é. E aí quando eles quebraram esse acordo e o que o fazendeiro fez? Ele foi lá na nascente do rio e mudou o curso do rio pro rio passar só na fazenda dele agora, porque aí ele pode usar...

P/1 – Qual é o nome do rio?

R – É o rio, puxa vida agora eu... Ele fica entre o Salobra e o Rio Formoso na verdade é uma nascente que passa ali e aí ele mudou o curso do rio pra essa água passar dentro da fazenda dele e ele poder usar e agora os índios estão sem água. Quer dizer, eles estão com uma água contaminada, estão com uma água que não tem vida, não tem peixe e aí fica toda essa coisa, entendeu?

P/1 – Obrigada, agora sim a gente está finalizando, Marcelo esse trabalho que nós estamos fazendo faz parte de um projeto de comemoração dos 200 anos do Banco do Brasil. Bom, eu sei que a sua relação com o Banco do Brasil é apenas de cliente que é uma coisa curiosa como é que você chegou a ser cliente de Banco?

R – Bom, cliente do Banco do Brasil ainda não sou, eu tentei ser, mas... Essa coisa de Banco começou assim quando eu abri essa Explor Pantanal, eu nunca tive conta em Banco, não precisava todo dinheiro que eu ganho é pago em cash e aí eu gasto em cash também. Então quando você vai abrir uma empresa você precisa abrir CNPJ, alvará e aí é claro você precisa de uma conta não só pra fazer os seus movimentos de pagamento dessas coisas, mas é lógico para o próprio controle do Governo pra saber quanto você está ganhando pra pagar os impostos. E aí eu tive que abrir conta em Banco pra poder... Como a Miriam está num processo de transição de país e como ela não tinha CPF, hoje ela tem, porque hoje já regularizamos a vida dela. Então ela não podia abrir conta em Banco, então nós abrimos tudo no meu nome, a empresa está no meu nome, as contas estão no meu nome e agora que ela já tem CPF nós vamos reverter esse quadro, agora é claro nós vamos mudar o estatuto da empresa, o contrato e tudo. Eu quero fazer por uma medida de segurança e botar tudo no nome da Miriam pra ela poder ficar com mais uma coisa a favor dela, né? Porque ela está fazendo alguma coisa aqui no Brasil, ela está investido, ela está produzindo que isso é importante por Governo também ver pra poder dar o visto de permanência pra ela definitivo mesmo, né? Então foi isso que aconteceu, essa coisa foi mais por causa da empresa mesmo, porque da outra vez eu não ia precisar de conta em Banco, né? Mesmo porque no mato não tem caixa eletrônico.

P/1 – Mas voltando então, essa idéia aqui da gente estar conversando, você estar compartilhando a sua história de vida com a gente faz parte desse projeto de comemoração dos 200 anos do Banco, né? Aí a ideia é a seguinte: Como é que você se sentiu assim participando desse projeto? Como é que você se sentiu contando a sua história aqui pra gente?

R – Ah, eu me sinto assim feliz, lisonjeado, porque é mais um ponto histórico da minha vida, um marco pra mim muito grande, vai ser um dos grandes momentos que eu tive na minha vida como eu tive outros também como tradutor e essas coisas, mas eu fico mais emocionado de saber porque eu sou Brasil, né? Acho que eu sou mais Brasil do que qualquer um, porque eu sou índio e tenho orgulho de ser índio e é isso que eu queria que todos eles vendo hoje como eu sou que eles colocassem muito mais na cabeça, não só na cabeça, mas no coração e falar de boca cheia com orgulho e quando alguém falar pra você: “Ah você é índio”. Você fala: “Sou sim com muito prazer, com muito orgulho”. Porque eu acho que cada tem que ter orgulho daquilo que ele é e não correr, fugir porque você tem uma cor mais escura você tem medo de ir a um bar a um restaurante, entendeu? Porque aqui até mesmo aqui em Miranda logo que eu cheguei muitas pessoas que quando eu saía assim tinha aquele zum, zum zum,

eles falavam: “olha esse cara, ele está sempre descalço, sempre sem camisa, ele parece índio” aí eu olhava e falava assim: “eu não pareço, eu sou índio” “ah desculpe

senhor escutou”? “Escutei, mas não tem problema é só pra te falar, eu ando assim porque eu sou índio e índio anda descalço, índio não anda de mocassim, não anda de Pierre Cardin, não tem Giorgio Armani é descalço, entendeu?”. Quer dizer então eu acho que o importante é isso, eu acho que é você impor o seu respeito, se dar ao respeito e não fugir daquilo que você é entendeu? Não é esconder, não ter vergonha do que você é e eu sou índio qual é o problema? Problema nenhum e índio Kadiwéu, eu nasci índio e quero morrer índio e vou morrer no Pantanal. Essa é uma coisa que eu tenho muito medo assim eu sempre falo pra Miriam: “Quando você dirigir Miriam, dirige devagar, porque eu não quero morrer dentro de um carro”. Quando ela me fez ir pra Suíça, foi o primeiro vôo da minha vida que eu fiz foi agora por causa da Miriam, sabia?

P/2 – Isso você não contou?

P/1 – Não tem problema ser no final pode contar?

R – Foi o meu primeiro vôo que fiz na minha vida foi quando eu fui ver a Miriam, eu tinha pânico de andar de avião, eu odeio andar de avião. Primeiro porque num carro você tem muito mais chance se você bate, você ainda tem chance de quebrar a cara ficar todo quebrado, mas mesmo numa cama ou numa cadeira de rodas você está vivo. Agora avião pra mim você não tem chance, a hora que ele cair mesmo acabou. Então eu tive muito essa coisa, foi uma experiência muito interessante, porque ela falou: “Você precisa ir pra Suíça...”

P/1 – Você já tinha voado?

R – Eu tinha feito um vôo muito curto assim uma vez de uma fazenda pra outra num avião pequeno bimotor por causa de trabalho, mas esses aviões grandes com aeromoça isso eu nunca tinha visto, né? E aí ela falou: “Então, vamos lá”. Ela explicou pra mim: “Você tem que ir com calma é uma viagem um pouco longa”. Eu falei: “Quanto tempo, umas duas horas?”. Ela deu risada e falou: “Você está louco, a Suíça são 16 horas daqui”. Bom, aí eu falei: “Tá bom”. Eu com muito medo, mas como que eu vou aguentar 12 horas, 16 horas dentro de um avião, não é possível, eu não vou conseguir. Aí eu falei pra ela: “Você vai, mas eu não vou te dar certeza que vou, eu vou tentar embarcar nesse avião”. Aí ela até me ajudou, ela até me deu um calmante. Ela falou: “Você faz o seguinte: pega esse remedinho leva ele com você, quando você entrar no avião, você toma um, metadinha assim coloca na boca e tenta ficar calmo”.

A hora que eu estava dentro... Na hora de embarcar mesmo que começou a chamar eu peguei o saquinho e virei tudo na boca, eu tomei tudo e aí eu entrei no avião... E quando eu entrei no avião essa que foi a coisa mais estranha, eu não consegui dormir mesmo tomando tudo aquilo, eu não dormia, eu fiquei muito excitado com medo. E aí por azar a minha janela era A alguma coisa, era na janela, era a primeira na janela, aí eu fiquei na janela e falei: “Meu Deus, eu vou ver tudo isso” eu vou ver o avião levantar e ver tudo isso, eu não vou aguentar, aí eu cheguei pro cara e falei pra ele assim: “Dá pro senhor trocar de lugar comigo?” Ele falou assim: “Não, eu não gosto de janela”. Eu falei: “Eu também não”. Aí eu falei: “Como eu faço pra trocar?”. Ele falou: “É difícil”. Ele olhou pra mim e falou: “O avião está meio cheio”. Eu falei: “Quem é o responsável aqui?”. Ele falou: “Como responsável?”. “Eu preciso falar com alguém, eu preciso trocar de lugar”. Ele falou: “O senhor aperta aquele botão ali”. Aí eu apertei e veio a aeromoça e ela falou: “Pois não”. Ele falou: “O rapaz está com problema”. Eu falei: “Olha, eu queria trocar de lugar, eu não gosto de avião, eu tenho medo”. Ela falou: “Fique calmo”. Eu falei: “Me tira da janela, pelo amor de Deus”. Ela pediu pra uma senhora lá e falou: “Eu vou trocar agora, mas depois não quero problemas.” Quando o avião levantou vôo aí ficou aquela coisa muito nervosa, muito excitada, a hora que levantou o avião eu vi gente andando no avião e eu falei: “Eu vou andar também aqui dentro”. Aí comecei a andar no avião e deixei todo mundo louco lá e eu tomei aqueles comprimidos. Aí veio uma francesa e falou alguma coisa vin rouge e eu falei: “Eu quero vin rouge” e era um vinho e aí eu comecei a misturar tudo vinho, uísque eu queria arrumar um jeito de dormir e aí eu fui ficando mais doidão, né? Fui ficando mais elétrico lá dentro e deixando as aeromoças loucas. Aí quando a aeromoça saia ali de perto eu entrava pra dentro das cabines, entrava lá onde fica os catering onde ficam todas as comidas. Aí lá eu me senti confortável peguei uma cadeira onde ela senta e fiquei sentado lá tinha bolachinha, tinha biscoito, uma televisão e eu fiquei sentado dentro da cozinha, né? Aí a aeromoça chegou pra mim e perguntou: “O senhor está bem aí?”. Eu falei: “Estou muito bem”. Ela falou: “Então o senhor vai viajar aí não tem problema, mas não saia mais daqui”. E fiquei lá dentro da cozinha da aeromoça pegando uns biscoitinhos, sorvetinhos, guaranazinhos e tudo mais. Aí na ida foi meio assim...

P/2 – Mas você foi sem sapato?

R – Não, eu tive que embarcar de sapato, eu fiquei feliz quando eu passei na alfândega da Europa lá o cara falou: “Tira seu sapato, tira seu cinto”. Eu falei: “Oba maravilha”. Tirei só que ele queria me revistar pra ver tudo que tinha metal, eu tirei o cinto e o sapato e ele falou: “O senhor pode ir”. Eu saí descalço e aí quando eu fui mais a frente um cara falou: “O senhor tem que calçar sapato”. Aí calcei o sapato e quando eu cheguei lá aí eu já vi a Miriam no aeroporto e eu fiquei feliz da vida, passei pela alfândega e ia ter a entrevista, né? O cara vai te dar o visto, ele olhou pra mim assim e falou: “Business or pleasure, o que o senhor veio fazer aqui?”. Eu falei: “Eu vim ver uma mulher muito linda, a minha namorada”. Ele falou: “Ela está aqui no aeroporto?”. Eu falei: “Acredito que sim”. E ele falou assim: “E se ela não tiver?”. Eu falei: “Eu tenho a passagem de volta, eu vou embora hoje mesmo”. Ele falou: “Tudo bem, pode entrar”. Aí fui embora, ele queria saber se eu queria entrar pra ficar, pra trabalhar, mas eu falei: “Eu só vim ver uma mulher muito linda, a minha namorada”. Eu não sabia onde era, não sabia onde era a casa dela, não sabia nem como ligar o telefone lá na Europa, né? Eu falei: “Bom ,a passagem está aqui,

eu volto amanhã mesmo”.

P/1 – Você foi pra conhecer os pais dela, né?

R – Fui pra conhecer os pais da Miriam.

P/1 – E como é que foi?

P/2 – Quanto tempo você ficou lá?

R – Eu fiquei três meses na Suíça, eu fiquei lá e a Miriam me recebeu no aeroporto e pra mim foi uma coisa muito louca, né? Pra mim era outro mundo, você sair do Pantanal e ir pra Europa, né?

P/2 – Até pra quem tem a cultura do branco é exótico, imagina, né?

R – Sim, porque depois eu fui ver o mundo totalmente diferente é uma cultura diferente...

P/1 – Porque três meses é um tempo, né? Do que você mais sentiu falta?

R – O que eu mais senti falta, a Miriam sabe, de carne, porque a carne na Europa é muito caro e a minha família da Europa é toda vegetariana aí você imagina, né? Os pais da Miriam são vegetarianos, comem bastante verdura, legume, tinha muito queijo, eu amo queijo, eu me dei bem pra caramba na Suíça tinham as duas coisas que eu mais que é amo chocolate e queijo, eu me dei bem lá é o país do chocolate e queijo. E daí o resto foi tudo bem os procedimentos aquela coisa da mesa, de sentar se você vai na casa de amigos alguns oram antes de almoçar, cantam. Então você vai aprendendo bastante e é tudo legal. Aí eu fui aprendendo, olhando você fica muito ali no stand by só observando pra você ver como você vai reagir depois. Aí fui aprendendo como eles fazem como é que eles comem é muito interessante isso.

P/1 – Marcelo, a gente ficaria dias aqui ouvindo você, mas realmente a gente vai ter que encerrar. Você gostaria de acrescentar alguma coisa que a gente não abordou?

R – Eu queria só comentar uma coisa que foi uma passagem da minha vida muito interessante que eu me esqueci de contar, mas você não vai acreditar, eu já fui modelo, top model.

P/2 – Opa, então você vai ter que contar?

R – Nós temos umas fotos aqui. “Você sabe onde estão aquelas fotos, Miriam?”. Vou te dar depois, vou ver onde está. Eu estava andando numa Rua em São Paulo assim no meio do nada em Campinas quando minha mãe me mandou pra São Paulo pra estudar em Campinas...

P/1 – Você estava com uns 17 anos?

R – Uns 17 pra 18 anos, eu estava andando em Campinas com um cabelão comprido assim, esse meu jeito cabelo... Eu era bem magrinho, um corpo escultural todo músculo e estou andando lá assim descalço, com calça jeans e sem camisa a camiseta só enfiada assim. Aí estou andando lá assim e aí entrei num shopping que um amigo falou e ele falou: “Mas tem que vestir camisa”. Aí eu vesti a camiseta assim, eu andava sempre de jeans básico, calça jeans e camiseta branca, né? Aí eu entrei no shopping estou andando assim e aí vem um cara falar comigo o nome dele é Glauco Mota ele é produtor... Hoje não sei onde ele trabalha, mas ele trabalhava na Ford e trabalhava na Star top models e ele era um stalker, assim que ele se apresentou. E eu sabia lá o que era isso? Ele chegou e falou: “Bom dia, tudo bom?”. Eu falei: “Tudo bem”. Ele falou assim: “Você é índio?”. Eu falei: “Acho que é bem visível, né?”. Ele olhou pra mim assim e falou: “Calma”. Eu achei que ele ia fazer outra piadinha comigo, né? Lá era assim eu estava sempre pronto pra dar porrada já, ele falou assim: “Você tem um biotipo muito diferente assim, você não gostaria de fazer um trabalho?”. Eu falei: “Como assim?”. Ele falou: “Olha, eu vou deixar o meu cartão e vou te mostrar mais ou menos o que é, senta aí”. Eu sentei e ele abriu... Ele tinha um book de uma mulher muito bonita e ele falou: “O trabalho é mais ou menos isso que eu quero fazer com você pra tirar umas fotos, tirar foto de terno, de jaqueta, de sunga e não sei o que”. Eu achei aquilo uma coisa muito estranha também, eu já imaginei que isso era alguma coisa com prostituição, eu pensei: “Esse cara está me levando pra sacanagem, está me vendendo pra alguma coisa”. Aí eu falei: “Tá bom”. Aí no dia ele falou que tinha um desfile, uma coisa interessante e perguntou se eu podia ver era no shopping e eu fui assistir esse desfile lá e aí eu vi como que era um desfile, o primeiro desfile que eu vi na minha vida no Shopping Iguatemi em Campinas. Eu estava vendo o desfile achei bonito me encantei com esse trabalho. [pausa]. Aí ele me deu o cartão e falou: “Olha, se você quiser tudo isso que eu estou fazendo, eu quero fazer com você". Eu falei: “Tá legal”. Aí eu voltei pra casa e joguei o assunto no ar assim na mesa pra minha tia que é irmã da minha mãe e que me cuidava em São Paulo, estava vendo televisão e estava passando um desfile na TV eu falei: “Olha que bonito”. A minha tia olhou e falou: É muito bonito”. Eu falei: “Olha a roupa desse cara que legal”. Eu joguei no ar pra ver o que ela achava, né? Aí a hora que passou o cara com a mão no bolso desfilando assim, ela falou: “Ih, mas esses caras aí são todos veados”. Eu pensei: “Ih aí a casa caiu, eles não vão querer deixar eu fazer isso” e eu queria experimentar, eu sou muito curioso. Aí ele tinha me dado um papel que a minha mãe tinha que assinar pra ela dar autorização pra eu poder trabalhar, pra fazer a primeira fotografia. Aí o que eu fiz, eu fui pra escola e no outro dia ele me ligou: “E aí você já conseguiu?”. Eu falei: “Está quase pronto, mas eu só posso te entregar no outro dia”. Ele falou: “Não tem problema você vem aqui no shopping e nós vamos começar a fazer uma sessão". Aí o que eu fiz? Fui pra escola simulei um acidentezinho lá comigo aí a mulher foi fez uma observação e me mandou pra casa e era exatamente na época de pegar o boletim e aí o que eu fiz? Mostrei pra minha tia e falei: “Dá pra senhora assinar aqui no boletim e essa folha da licença da escola que eu vou ter que ficar uns dias fora e não posso ir, estou machucado”. Aí minha tia foi e assinou lá e aí eu vi a assinatura da minha tia, eu peguei o papel dele botei em cima do meu boletim e passei a caneta em cima da assinatura dela. Aí eu fui e entreguei pra ele, aí ele foi e me levou pro estúdio e fizemos a fotografia e tudo. Aí o primeiro trabalho que teve foi muito interessante vendeu minha capa, minha foto e eu saí na primeira capa de revista que eu tive foi a Benetton que na época ela estava no auge, aí era United Colors of Benetton e aí foi o primeiro trabalho internacional que eu fiz e eu não sabia, minha foto foi pra Milão pra uma agência lá e os caras falavam assim: “Esse cara é muito bonito, ele tem um tipo exótico é aquilo que a gente procura”. A Benetton trabalha muito com esse estereótipo, né? Colocar etnias diferentes, ela põe um asiático com um preto ou uma coisa assim. E aí começaram a me ligar, eu não pra agência. “Olha eu quero aquele cara” e aí começou essa coisa do meu nome hoje Marcelo índio, porque todo mundo ligava pra agência e falava: “O índio, cadê o índio?”. Ia ter um desfile em são Paulo eles falavam: “Eu quero o índio”. E ficou aquela coisa: “O índio, que índio?”. “Marcelo, o índio”. E veio essa grife Marcelo índio, porque desde a escola todo me chamava de índio. E aí eu fiz esse trabalho e aí quando o negócio começou a desenrolar mesmo, aí tive que falar a verdade que não ia poder viajar mais, aí o cara falou: “Mas sua mãe autorizou”. Eu falei: “Me desculpe, minha mãe não autorizou, eu tive que fazer uma coisa assim e assado”. Ele falou: “Não é possível”. Eu falei: “É.” Bom, aí o que aconteceu, eu já tinha um compromisso com um desfile lá em Campinas mesmo e aí... Quando era pra eu ir pra aula, eu ia fazer os ensaios da coreografia e eu falava que ia pra aula. Aí um dia quando eu fiz esse desfile, eu convidei a minha tia e minha mãe pra ver o desfile, eu falei: “Olha, vocês tem que irem lá ver, eu ganhei um convite pra gente ir lá ver, vamos lá?”. “Vamos” aí entrei com ela lá e ela não sabia que eu ia desfilar, aí eu entrei coloquei elas na mesa e falei: “Só um minutinho, eu vou ao banheiro e já volto se eu demorar a começar vocês fiquem aí” e começou e a primeira entrada quem fazia era eu por causa do meu tipo exótico e a hora que eu entrei assim foi uma mistura de medo e da reação com a minha mãe, uma mistura de emoções de estar fazendo um trabalho diferente, mais um desafio que eu tinha, uma coisa que eu estava experimentando fazer. E ela ficou super alegre, ela ficou quase em pé e ela nem piscava, eu ali fazendo coreografias, caras e bocas e olhando pra ela e ela assim parada, não falava nada. Aí quando passou todo mundo levantou pra dar os parabéns e tudo ela estava muito emocionada e falou: “Olha, é muito bonito, não sabia que você tinha esse talento”. Mas no fundo ela não queria mais e falou: “Olha, mas eu não gosto pra mim isso é coisa de veado”. Eu falei: “Tudo bem, mas o que eu queria era

a experiência”. Aí eu não segui essa carreira, eu tinha muito futuro se eu seguisse a carreira de modelo talvez eu não estaria aqui com vocês contando a história do guia,mas aí eu ia conhecer um mundo totalmente diferente. Mas houve um tempo que eu não queria, quando ele começou a falar: “Se eu te chamar agora você vai ter que ir pra Milão”. Eu falava: “Onde que é Milão? Aqui pertinho?”. Eles riram, e falaram: “Você não faz nem ideia de nada”. E eu falei: “Essa praia não é minha, desculpa e obrigado por tudo, desculpa pelos transtornos que causei, pelas coisas que eu fiz, mas...”. Foi um momento da minha vida que eu passei que foi muito interessante, como modelo durante dois anos eu fazia desfile escondido da minha mãe.

P/1 – Mas na região de São Paulo?

R – Na região ali de Jundiaí, Campinas, eu fazia feira a Fenit em São Paulo, a Feira Nacional de Tecelagem. Eu fiz duas Fenits.

P/1 – Então Marcelo, mais uma vez obrigada por ter compartilhado mais esse episódio da sua vida.

R – Obrigado a vocês, eu fico muito feliz de saber que eu estou fazendo parte dessa história aí de vocês e do Banco do Brasil, obrigado mesmo.

P/1 – Obrigada.
























----------- EXTRA------------


R – A gente começa onde? Terminou onde?

P/1 – A gente parou quando você ia falar dessa coisa da escola que você não entrava... A coisa da sua formação.

R – Ah tá.

P/1 – Então continua falando da sua formação?

R – Então, eles achavam que... Eu tive esse problema com essa família que era muito grande, eu tenho certeza que muitas pessoas gostavam de mim me queria naquela família, me aceitaram, mas tinham outras pessoas que não gostavam pelo próprio preconceito, primeiro porque eu era índio e acho que o motivo maior, acho que eu ia ser o herdeiro de toda a grana que aquela pessoa tinha e que na verdade eles estavam esperando exatamente isso, né? Porque era uma mulher muito rica e eles eram parentes de verdade de sangue, então existia essa coisa de querer me repugnar mesmo, né? Então eu passei por momentos muito difíceis com essa família, eu fui criado com um pouco de amor, mas ao mesmo tempo tinham pessoas que me chamavam num cantinho da casa e falava assim: “Você é um filho bastardo, você sabia disso? Você não é dessa família”. Eu me lembro muito bem de um primo que numa partida de futebol, ele olhou pra mim e a gente num momento de choque no futebol é normal, ele ficou muito bravo, porque eu machuquei ele e eu fui pedir desculpa eu falei: “Pô, cara, nós somos primos”. Ele levantou muito sério e me olhando no olho assim e falou assim: “Não, você não é meu primo, você não tem meu sangue”. Aquilo acabou comigo, né? Então são essas coisas...

P/1 – Você sentia muito preconceito?

R – Sempre, esse era um dos motivos que eu não queria ir pra escola, eu entrava na sala de aula e era motivo de risada, primeiro porque eu gostava sempre de andar assim, descalço, minha mãe me colocava bonitinho, colocava o uniforme, sapato e eu chegava na sala de aula já descalço e ficava tudo no caminho, eu tirava o sapato, a meia e aí eu ficava só de short com um caderno de baixo do braço, aí eu já era motivo de risada, né? Eles falavam: “olha o índio” e faziam assim uh, uh, uh e tiravam sarro e aquilo me deixava muito revoltado. Na escola eu quebrei o braço de um menino que chamava Fernando e nunca mais eu vi. Eu quebrei o nariz do Renato Teixeira que hoje é um grande amigo meu, é policial inclusive, a gente brincando no playground lá só pra brincar na hora do recreio, porque a gente comia bastante e brincava. Aí eu brincando de escorregador o Renato veio e falou: “Vai logo seu índio mole”. Aí na hora que ele falou índio mole, eu joguei ele do escorregador lá de cima e ele caiu de cabeça no chão e era um piso cascalhado, ele caiu de cara e quebrou todo o nariz dele. E aí às vezes até hoje... Por acaso eu fui pra Campinas num evento lá, eu encontrei com ele lá, aí ele veio na rua e me abraçou: “Oh índio, que bom ver você”. Aí eu olhei e falei: “E aí como é que está o seu nariz?”. Ele falou: “Oh, agora eu sou polícia, não bate em mim.”

P/1 – E professores, você...

R – Professores, eu tenho grande memória, muito boa assim, mas acho que a melhor época da minha vida em escola foi no final agora é igual eu te falei, eu não tenho o primeiro grau completo, eu não quis ir pra escola, então eu não tenho o segundo grau completo. Aí um dia de tanto o pessoal me chamar de vagabundo e que eu não ia ter futuro, eu botei na minha cabeça, eu falei: “Eu vou mostrar pra esses caras, não pra eles, eu vou mostrar pra mim que sou capaz”. Eu não tenho nem a quinta série do primeiro grau pode pesquisar no colégio Santa Teresa em Corumbá, colégio Dom Bosco em Corumbá, eu não cheguei nem até a sexta série.

P/1 – Mas aprendeu a ler?

R – Aprendi a ler tudo assim, claro, mas eu não queria estudar, entendeu? Eu não queria mesmo, uma coisa que eu decidi pra mim, não vou estudar e não vou estudar. Mas aí eu sou uma pessoa muito curiosa mesmo eu não sabendo ler, escrever tudo que eu queria aprender eu perguntava muito. Então quando eu comecei a trabalhar com Puris eu conhecia gente do mundo inteiro, então eu perguntava, eu conheço o mundo sem tirar o pé de dentro do Pantanal, eu sei onde é a Quinta Avenida nos Estados Unidos em Nova York, eu sei andar em Israel, eu digo andar em Israel sem ter saído daqui. Eu te dou notícia de Paris, de um Museu sem sair daqui, porque eu pergunto muito, né? Eu falo: “o que você tem no seu país de bonito? Porque você veio pra cá”? Então essa era uma coisa que eu... Aí o que eu fiz? Eu fui agora faz quatro anos, acho que foi quatro, não lembro, acho que foi um pouco mais, eu decidi literalmente estudar, eu pegava livros de amigos meus assim e falava: “fulano...” o cara falava: “mas por que você quer saber”? “Eu só quero ler, só folhear um pouquinho” aí dava uma olhadinha assim, olhava bom, Matemática nem pensar eu fechava os livros e jogava fora, mas aquela coisa de História, Geografia... Uma coisa que eu aprendi muito e gostava muito com uma pessoa que marcou muito na minha vida foi um padre e ele dava a disciplina de Filosofia o padre Amauri, ele era da Fundação da UCDB que é a Universidade Católica Dom Bosco, eles têm meu registro lá no UCDB, eu fiz o vestibular e passei. Eu queria fazer Turismo, porque eu trabalhava na área de Turismo e passei, eu me lembro muito bem sexagésimo lugar onde tinha mais de 4000 candidatos pra tão poucas vagas.

P/1 – Mas eles não pediram o histórico escolar?

R – Aí é que está, quando começava a entrar na sala de aula... Passou o primeiro semestre quando eu estava fechando o segundo semestre já, eu chegava na portaria e o cara falava: “Marcelo, tem que trazer o modelo 19”. Eu coçava a cabeça e pensava: Que porra que é essa? Eu falava: “Tá bom, amanhã eu vou trazer”. Aí um dia o cara me pressionou: “Se você não trouxer hoje à noite o seu modelo 19, você não entra mais em sala de aula”. Aí eu não entrei mais na faculdade, mas até então eu frequentei. Eu tenho todos os amigos meus que estudaram comigo e hoje formaram e eu encontro com eles na rua e eles falam: “A gente se forma esse ano agora”. Eu falo: “Que legal”. E de 60 pessoas que estavam na sala de aula só cinco se formaram em Turismo, entendeu? Quer dizer, então...

P/1 – Você fez quanto tempo?

R – Eu fiz dois semestres, quer dizer um ano certinho, né? Depois começaram a pedir, eles falam modelo 19 deve ser de segundo grau, né? Imagina eu não tenho nem do primeiro o que dirá o do segundo, quando eu vi que a pressão era muito forte, chegou na hora eu falei: “Não vou mais”. Aí um dia quando eu estava lá em Corumbá, depois que eu conheci a Mira, eu falei: “Vamos lá na faculdade que eu vou te mostrar uma coisa que você não vai acreditar”. Eu pedi uma cópia do meu histórico, da minha matrícula e do resultado das minhas provas e eu falei: “Eu estive na faculdade, mas eu não posso fazer faculdade, porque eu não tenho segundo grau completo”.

P/2 – Quer dizer foi uma vitória, né? O teu problema não era o conhecimento, era a forma que você era educado na escola?

R – Exatamente. E a forma com que eu procurei buscar todo o conhecimento que eu tenho, né? Não só o conhecimento de natureza, de terra, de tudo, de trilha, de animais, de plantas, de plantas medicinais. Mas aí quando eu vim pra esse mundo agora que vim trabalhar, estudar e queriam mesmo que eu fosse estudar me mandaram pra São Paulo e eu não ia na escola, então...

P/1 – Até então você estava vivendo com a família? Fazendo a faculdade e vivendo com a família?

R – Isso, eu morava em Corumbá e aí eu fiquei muito interessado em tentar ver até onde eu podia ir pra aprender mais, eu gostava muito de Filosofia e é por isso que marcou bastante o padre Amauri, porque ele conversava muito comigo e ele era da Missão Salesiana e você sabe os Salesianos sempre tiveram esse contato com o índio desde antigamente pra fazer a catequização indígena no Brasil, né? E aí eu fui levado para outra escola que é da Missão Salesiana, são sempre missionários que ficavam com a gente Dom Bosco em Corumbá, a Escola Dom Bosco e lá foi um processo também muito interessante pra mim, porque lá eu tive que apresentar as aulas e ao mesmo tempo aprender um pouco de religião, aprender o catolicismo e era uma coisa que pra mim era muito estranha.

P/2 – Como é que foi pra você essa experiência de aprender religião?

R – Pra mim foi interessante, porque eu não tenho um Deus, quer dizer eu tenho um Deus, o meu Deus é diferente do seu, mas eu aprendi que Deus aqui, ele é um homem barbudo lindo de olho azul, né? Que não sai do cabeleireiro, porque está sempre com o cabelo em ordem e acho que é uma questão só de respeito, assim como eu podia realmente te mostrar quem é o meu Deus e você vai dar risada também e dizer: “Esse aí é que é o seu Deus?”. Mas eu acredito. Eu acho que o importante acima de tudo, eu acho que cada pessoa ela tem que acreditar em alguma coisa e isso é o que eu acho que me fez ficar cada vez mais forte todos os dias da minha vida é você acreditar, você querer alguma coisa e realmente acreditar que aquilo é possível e foi por isso que eu fiz esse vestibular, porque eu sabia que eu tinha potencial, eu acreditava em mim. Eu acreditei que podia fazer e fiz e quando me mostraram as coisas, aí eu falei... Ás vezes eu comentava na sala de aula, nas aulas de religião tem a matéria de religião é estranho isso e aí tinha uma coisa de opiniões numa roda de conversas e eu falava que o nosso Deus maior é a natureza são os cinco elementos é o deus sol, a mãe lua, o rio, o vento que é o ar certo? E o fogo, isso é o que a gente acredita e pra cada um a gente tem uma orientação diferente de Deus, né?

P/1 – E tinha algum culto, alguma coisa?

R – Existem... Na verdade são cultos muito estranhos, cada cultura tem uma coisa diferente, tem culto de sacrifício de animais, tem culto de...

P/1 – O sacrifício é feito pra que Deus, por exemplo?

R – Olha, isso é uma coisa assim... Os animais a gente sacrifica em forma de pedir é uma forma de agradecer e pedir mais alimento, né? Você sacrifica um animal dá ele para ao seu Deus pra você falar: “Está aqui obrigado pela comida”, mas pra manter a gente de uma forma sempre rica pra ter sempre mais. E então...

P/1 – Tinha nomes específicos para esses deuses?

R – Não.

P/1 – Um nome Kadiwéu mesmo?

R – Tem, mas pra mim é difícil lembrar essas coisas. [pausa].