Museu da Pessoa

Olhar para frente

autoria: Museu da Pessoa personagem: Francisco Roberto André Gros

Memória Aracruz
Depoimento de Francisco Roberto André Gros
Entrevistado Carla Vidal e Aparecida Mota
Vitória, 24 de novembro de 2003
Realização Museu da Pessoa
Código: ACZ_HV014
Transcrito por Leon Tolentino Bucaretchi
Revisado por Joice Yumi Matsunaga


P/1 – Boa tarde

R – Boa tarde

P/1 – Qual o seu nome, data de nascimento e local de nascimento?

R – Me chamo Francisco André Gros, eu nasci no Rio de Janeiro, 21 de abril de 1942.

P/1 – E seus pais?

R – Meu pai chama-se André Gros, e minha mãe Dulce Simões Correia Gros.

P – Profissão deles?

R – Meu pai foi advogado e juiz, e minha mãe sempre foi do lar.

P/1 – E você teve irmão?

R – Tenho irmão, o Marcelo que tem três anos a menos do que eu.

P/1 – E onde você passou a sua infância?

R – Eu nasci no Rio, em 1942, fiquei no Rio até 1945, quando a família se mudou para Europa. Nós vivemos em Londres durante quase um ano, e depois em Paris durante cerca de dois anos. Família voltou para o Brasil em 1948. E, durante dez anos, eu morei, cresci e fui educado no Rio de Janeiro, até 1958, quando minha mãe, que havia se separado de meu pai, casou com um americano, e a família, quer dizer, ela, eu e meu irmão nos mudamos para os Estados Unidos, onde eu passei os próximos dez anos mais ou menos, terminando o meu curso secundário, o meu curso universitário e a minha pós-graduação.

P/1 – Por que vocês foram morar na Europa na contramão da história, no começo de uma guerra, como foi isso?

R – No fim da guerra, meu pai era francês, e ele veio ao Brasil no final da década de 1930, numa missão francesa em que ele foi, tinha um contrato de professor de Direito com a Universidade do Rio de Janeiro. Quando a guerra estourou em 1939, ele era oficial de reserva, voltou para França. Ele era, na época, noivo de minha mãe. Voltou para França, se alistou, se incorporou ao seu regimento, e eles se casaram em maio de 1940. Alguns dias antes da invasão alemã, as forças francesas foram rapidamente derrotadas, ele conseguiu sair da França, foi para Inglaterra, meus pais passaram praticamente a guerra toda na Inglaterra. E, portanto, a família foi para Europa em 1945, porque era lá que meu pai morava e trabalhava.

P/1 – Você era uma criança de colo?

R – Não pediram a minha opinião, de colo não, porque eu tinha três anos na época, mas meu irmão era uma criança de colo, e nós, portanto, somente nos mudamos, inicialmente para Inglaterra, que meu pai passou o grosso da guerra, e logo em seguida para França

P/1 – Da onde vem o nome Gros, você sabe a origem?

R – Meu pai é francês, a família é do Norte da França, ele nasceu numa cidade chamada Douai, no Departamento do Norte, que é mais ou menos digamos meio caminho, entre Paris e a fronteira alemã, e a família é daquela região.

P/1 – 1958 vai para os Estados Unidos, é isso?

R – É isso.

P/1 – Com quantos anos?

R – Eu tinha dezesseis anos na época.

P/1 – Como foi essa adaptação nos EUA?

R – Foi, eu diria, interessante. Eu, evidentemente, talvez não me desse conta disso na época, eu já tinha uma certa tradição de ter que me adaptar a lugares e culturas diferentes, eu cheguei nos Estados Unidos e achei aquilo muito interessante. Eu, por acaso, cheguei a 4 de julho de 1958, Independência americana, fui para um colégio de verão, meu Inglês na época era muito precário, Inglês de Ginásio, de quarto ano ginasial. Eu rapidamente aprendi melhor a língua, em setembro eu comecei num colégio interno, no estado de Nova Jersey. E daí para frente foi um período de adaptação relativamente fácil, eu me dei conta que, nos Estados Unidos, os estudantes levam uma vida muito específica. Quer dizer, toda vida praticamente você estuda no internato, aquele mundo existia em função do estudante. É muito diferente do que era no Rio de Janeiro, o estudo era uma parte relativamente pequena da sua existência, você morava em casa, você tinha família, você estudava três ou quatro horas por dia e o resto era o resto. Ao passo que, quando você vai para uma comunidade como é um colégio interno, aquilo tudo passa a ser a sua vida toda. Eu me adaptei razoavelmente bem e rapidamente, e tanto que terminei todos os meus estudos lá.

P/1 – Seus pais se separaram aqui no Brasil?

R – Não, eles se separaram na Europa, e em 1948 minha mãe voltou para o Brasil, o divórcio foi prorrogado em 1950, na época isso era relativamente raro, mas aconteceu.

P/1 – E aqui no Brasil, no Rio, o senhor estudou onde?

R – Eu estudei principalmente no Nossa Senhora das Vitórias, depois no colégio Santo Inácio, até o quarto ano ginasial, onde eu levei bomba em Latim, que eu nunca consegui absorver direito, e a regra no colégio é que não podia repetir o ano, então eu tive que recursar o quarto ano ginasial no colégio Amélia e Souza e, ao terminar essa repetência do quarto ano ginasial, é que eu me mudei para os Estados Unidos.

P/1 – Nos Estados Unidos, o senhor completou todos os seus estudos, ficou dessa fase dos dezesseis anos até a pós-graduação?

R – Isso.

P/1 – Além dos estudos, como era sua vida nos Estados Unidos?

R – Olha, você ser estudante, realmente é um emprego, uma ocupação de tempo integral, o único espaço livre que você tem nesse sistema americano, normalmente são as suas férias de verão, e aí cada um segue o seu caminho. Eu normalmente, a maior parte das minhas férias de verão, eu aproveitei para viajar, especialmente pela Europa. Então, em diversos verões, eu viajei pela Europa, conheci um pouco o que era o continente europeu. Fora isso, o foco e a dedicação era integral aos estudos. Você, diferentemente dessa época e de outros da minha geração, nós certamente não tínhamos nenhuma atividade política, não existia, eu diria até muito pouca curiosidade política, os estudantes americanos no final da década de cinquenta, início da década de sessenta, não tinham na sua imensa maioria, nem foco, nem preocupação, nem militância política.

P/1 – Mas os Estados Unidos viviam nessa época um momento bem turbulento com o Kennedy, com os movimentos que iriam começar, como você observava isso?

R – Não, eu diria que o assassinato do presidente Kennedy foi um ponto fora da curva e, digamos, introduziu um choque extraordinário na sociedade americana, que teve muita dificuldade de entender o que estava acontecendo. Eu diria que na minha experiência de vida, um choque só comparável com 11 de setembro, os atentados de 11 de setembro, foi digamos o fim da inocência dentro da sociedade americana. Mas, a militância política nos campos universitários não ocorreu nessa época, ela, efetivamente, ocorreu a partir dos movimentos de 1968, quando eu já era formado e já estava estudando. Quer dizer, as manifestações na minha época de estudante de 1960 a 64 eram absolutamente inexistentes, tanto que o assassinato do presidente Kennedy foi quase que um raio num dia de sol, aconteceu de forma absolutamente inesperada, sem ter um background, o Vietnã, ainda não era uma realidade, a guerra não tinha escalado, os Estados Unidos tinham quinze ou vinte mil assessores, não tinham tropas importantes, o movimento dos Direitos Humanos já estava caminhando, mas era mais localizado no Sul do país, ou seja, não afetava ainda as grandes metrópoles do Nordeste, e a nova Inglaterra, Nova York, onde eu morava, a conscientização política que começou com os movimentos de 1968, Berkeley e na França, ainda era história do futuro, revolução sexual nem pensar, para grande desapontamento da minha geração. Enfim, eram anos ainda na América, eu diria, de muito pouca conscientização política, eram anos ainda da inocência.

P/1 – E, culturalmente, o que o senhor curtia nessa sua estadia nos Estados Unidos?

R – Olha, eu sempre ouvi muito Jazz, Música Popular, era o início da era dos Beatles. Eu diria que todo o movimento de ascensão da Música Popular, baseada no Soul com Elvis Presley, em meados da década de cinquenta, era o que influenciou muito toda essa minha geração.

P/1 – E, as notícias do Brasil, como chegavam?

R – Muito pouco. O Brasil não faz parte desse universo global, os Estados Unidos

se hoje ainda são um país fechado e desligado da maioria do mundo, naquela época, muito mais ainda. Você tinha muito poucas notícias do Brasil, a revolução de 1964 eclodiu quando eu estava a três meses da minha formatura, ou seja, no fim da minha carreira acadêmica. Muito pouco em termos de notícias vindas do Brasil, eu te diria que eu passei realmente um período de quase dez anos muito afastado do que estava acontecendo aqui no Brasil.

P/1 – O senhor voltou para o Brasil em 1965?

R – Não, em 1965 eu terminei a minha graduação. Eu aí passei um ano letivo, ou seja, nove meses trabalhando na África do Sul, num conglomerado típico do país naquela época, conglomerados com base mineira, portanto com minas de ouro e diversificação industrial. Eu usava o produto da mineração para uma diversificação industrial, o conglomerado que se chamava Anglovaal, que existe até hoje, e tinha uma fábrica que detinha praticamente o monopólio da produção de vidros, containers de vidro na África do Sul. Tinha outro que produzia, Formiplac, esse tipo de coisa, tinha usinas de metalurgia, enfim tinha todo um lado industrial e um lado mineiro, eu fiz um estágio de nove meses na África do Sul, antes de voltar para meu curso de graduação em Economia pela Universidade de Columbia, que eu terminei em 1967, quando aí eu voltei para o Brasil.

P/1 – Esse convite para ir para África surgiu na própria universidade?

R – Não, surgiu porque o principal acionista dessa empresa era um amigo de família e, quando eu me formei, eu não tinha muita ideia do que eu queria fazer, estava desligado do Brasil, e me pareceu que um ano de tentar entender o que era o mundo dos negócios, isso seria uma boa oportunidade para ajudar a definir o futuro, como realmente foi, e criou uma certa ojeriza por chão de fábrica por muitos e muitos anos, e eu cheguei à conclusão que não era aquele o meu futuro, eu diria que foi uma experiência muito interessante.

P/1 – Por que uma ojeriza por chão de fábrica?

R – Porque, já é mais difícil explicar, mas eu diria que foi aí que nasceu a minha vocação mais por processos de Administração, mais a área de Administração Financeira e não, por exemplo, por uma área de Engenharia de Produção.

P/2 – Havia na sua família algum incentivo para o senhor seguir alguma determinada profissão?

R – Não, não muito claramente, meu avô e a família do meu avô eram médicos na sua grande maioria, e eu tinha zero de vocação para esse lado. Meu pai e a família do meu pai eram juízes e advogados, e eu, se algum tempo pensei nisso, rapidamente me dei conta que uma educação nos Estados Unidos não me ajudaria nesse setor pela diferença de sistemas jurídicos, então não havia nenhuma lógica de seguir por aí. Eu, quando morava no Rio, cheguei a pensar, e naquela época você não tinha muita opção, era engenheiro, médico e advogado. Engenharia não me tentava em nada, cheguei a pensar em Arquitetura como uma possibilidade, cheguei a pensar no Itamaraty como uma possibilidade, pelo meu padrão de viagens, e de uma visão internacional. O meu padrasto, segundo marido de mamãe, era banqueiro de investimentos, eu acabei fazendo isso, mas certamente não por essa razão, porque não tínhamos uma relação particularmente próxima. Então, influências profissionais na família, nada que eu pudesse identificar como que dizendo: “Foi por aí”. Ao contrário, uma das razões desse estágio na África do Sul foi que eu cheguei aos vinte e um anos formado, e sem nenhuma noção clara do que eu gostaria de fazer no futuro, realmente sem nenhuma noção, e aí passar um ano trabalhando num grupo diversificado, e ver o que é que acontece numa empresa, foi uma opção importante que me ajudou a entender um pouco melhor quais eram as possibilidades disponíveis.

P/1 – 1967, finalizando os estudos, volta ao Brasil?

R – Sim.

P/1 – Como foi essa opção de voltar?

R – Foi, eu diria, não definitiva, foi uma opção no sentido: “Que que eu vou fazer?”. Não tinha uma vocação clara, já estava distante do Brasil há bastante tempo e me pareceu que depois de formado era um movimento natural, voltar ao país e ver, tentar ganhar a vida aqui. Eu diria que foi uma decisão pela não existência de uma opção muito clara, mais que uma decisão de dizer não a outras opções existentes. Voltei para o Brasil e comecei a trabalhar numa companhia de credito, uma financeira, onde o meu padrasto tinha uma participação acionária. Eu trabalhei um ano, tempo parcial, nessa função, até que terminei o meu curso na universidade de Columbia, em 1968, meados de 1968, casei, aí fui trabalhar nessa empresa de forma integral, onde permaneci, contando o primeiro ano que não foi em tempo integral, permaneci cinco anos ao todo, até fins de 1972.

P/1 – E depois?

R – 1972, eu tive aí, uma primeira, eu diria, decisão consciente a tomar, eu tinha passado talvez metade da minha vida fora do Brasil e tinha voltado ao Brasil um pouco por não ter encontrado nenhuma grande vocação, diferente disso, e naquele momento ficava aquela dúvida. Eu tinha casado com uma moça americana e eu tinha um sentimento de que a rigor eu tinha possibilidade de decidir se eu queria minha carreira no Brasil ou nos Estados Unidos, onde eu tinha estudado durante muitos anos, ou até na Europa em função do meu background francês, e a qualidade até. “O que é que eu posso fazer?” E o sentimento que eu tinha a possibilidade de optar, isso foi em torno de 1971, 72, e ficou um pouco aquele sentimento de “será que eu não estou deixando escapar alguma oportunidade”... “Morei lá fora, mas nunca trabalhei, será que não seria interessante ir ver como é que é?” E, nesse momento, eu tomei a decisão de ir trabalhar no exterior, aliás, de trabalhar não, de ir para o exterior. Tinha dois caminhos possíveis: um seria fazer um curso de pós-graduação, de mestrado de EMBA de Business, e cheguei a aplicar e fui aceito numa universidade na Suíça, no (IMI?), em paralelo, eu inscrevi em alguns bancos de investimento, recebi algumas propostas e decidi que naquela idade, eu já era casado, tinha trinta e um anos, que voltar para a universidade não era exatamente o que eu queria e que, portanto, eu preferia trabalhar. E foi aí que eu aceitei a posição, no início de 1973, para trabalhar no Kidder, Peabody and Co., que era um dos grandes bancos de investimento em Wall Street na época, e mudei para Nova York e lá fiquei durante dois anos e meio, digamos, no fundo, verificando-se, eu não estava abrindo mão de alguma coisa ao simplesmente me formar, voltar e permanecer no Brasil.

P/1 – Como foi essa experiência em Wall Street?

R – Foi uma experiência mista, muito desafiadora, de um lado você está no centro do que está acontecendo no mundo das finanças no mundo, gente muito interessante, muito competente, mas, por outro lado, eu diria que algumas frustrações. Primeiro, 1973, 74 e 75 foram anos muito difíceis em função da crise do petróleo, o nível de atividade econômica baixa, o nível de atividade nesse negócio pequena, ou seja, não foi um momento brilhante; segundo lugar: a realização de que eu era bem treinado, era um bom profissional, mas era um igual a dezenas de outros, ou seja, os cinco anos que eu tinha trabalhado no Brasil, não levara nenhuma vantagem real vis-à-vis às pessoas que estavam começando naquele business e que, portanto, do meu ponto de vista, eu seria um banqueiro de investimento na média, tendo perdido talvez cinco anos vis-à-vis os meus concorrentes, e isso ajudou a enterrar de vez aquela dúvida, eu cheguei a conclusão de que: “Olha aqui, eu vou trabalhar em um ambiente extremamente desafiador, com gente muito inteligente, muito competente, no centro global das finanças, mas, dificilmente eu terei uma contribuição diferenciada, a dar vis-à-vis centenas de outros nesse mesmo métier, então digamos que eu enterrei todas as dúvidas que eu tinha quando tinha ido para os Estados Unidos, sobre qual ia ser o meu futuro, me dei conta que as oportunidades no Brasil são muito maiores, muito mais interessantes, e eu tendo enterrado digamos, esse fantasma, da eventual vida e carreira no exterior, pude voltar para o Brasil absolutamente tranquilo quanto ao caminho que eu queria seguir, e isso ocorreu em meados de 1975, quando eu retornei ao Brasil, aí de forma que eu pretendesse que fosse definitiva.

P/1 – E veio com alguma coisa fechada ou veio atrás de oportunidades?

R – Não, naquele momento eu já vim com um entendimento, foi com o pessoal da Multiplic, Multiplic era uma corretora no Rio de Janeiro, que estava tendo um desenvolvimento muito grande, e havia tido um sucesso muito grande em 1974, 75, e estavam se preparando para se tornarem um banco de investimento, e fizeram uma proposta interessante, então eu vim já para trabalhar na Multiplic. Eles..., depois que eu cheguei, fiquei lá de 1975 a 77, eles postergaram o projeto do banco de investimento, demorou mais alguns anos antes deles se transformarem em um banco de investimento, e eu diria que a minha reentrada no Brasil se deu por intermédio da Multiplic.

P/1 – Como foi trabalhar em um banco de investimento no Brasil, com essa economia já pós Milagre Econômico?

R – Foi no meio do Milagre Econômico ainda, meados da década de setenta, foram os anos de maior crescimento. Olha, eu diria que para mim foi uma experiência um tanto quanto frustrante, na medida que eu fui aprendendo que na vida tem certas coisas que você faz bem e outras que você não faz tão bem. Em uma instituição menor, como era o caso da Multiplic, o cerne, a chave do sucesso era a capacidade dessa empresa se posicionar no mercado, de assumir posições de trade, de operar no mercado de open, e que havia muito pouca contribuição que eu pudesse dar para isso, o que eu podia tentar fazer era todo um lado de criações de novos produtos, banco de investimento, relacionamento com clientes, o que, naquela época pelo menos, não era muito importante para uma instituição como essa. Então eu diria que, talvez, eu fui contratado com a expectativa de um futuro, e que não chegou no prazo que os acionistas imaginavam, só chegaria mais tarde, a experiência para mim, profissionalmente, foi um pouco frustrante porque no final de dois anos eu decidi sair, e aí aceitei um novo desafio profissional.

P/1 – Foi onde?

R – Foi na recém-formada Comissão de Valores Mobiliários, a CMV, que tinha sido formada no início de, a lei e de 1976, mas ela começou a ser formada no início de 1977, eu fui um dos primeiros funcionários contratados da CMV, se não me engano, a minha ficha de inscrição era número 08. E era um grupo muito interessante que foi formado sob a liderança do Roberto Teixeira da Costa, realmente com a intenção de se criar a base para um novo mercado de capitais no Brasil, em cima da nova lei de sociedades anônimas que tinha sido promulgada em 1976, e da nova lei de mercado de capitais, que também foi promulgada em 1976, ministro Mário Henrique, era Ministro da Fazenda e tinha uma visão bastante positiva da importância do país ter um mercado de capitais ativo, e a CVM, na época, foi o centro de excitação para nós que acreditávamos no futuro do mercado de capitais no país, então, eu me juntei a eles no início de 1977 e por lá fiquei até o início de 1981, eu comecei como superintendente de empresas, depois eu virei superintendente geral, e finalmente, no último ano, eu fui nomeado diretor da CMV.

P/2 – E o senhor já intuía uma carreira no serviço público?

R – Não, nenhuma, eu te diria que, se não ficou claro ainda, eu, ao longo da minha vida, tive muito poucas intuições, eu diria, assim, objetivos a longo prazo em termos profissionais, a não ser o de busca de desafios, e de sempre buscar as coisas, as oportunidades mais interessantes, mas em momento algum, nem profissionalmente, na escolha de uma profissão, nem na escolha de um local de trabalho, de um país, mesmo na escolha de posições específicas, eu poderia dizer que eu tenho um objetivo: “Nasci querendo ser presidente do Banco Central ou presidente da Petrobras”. Oportunidades que foram acontecendo ao longo da vida, a imagem que eu uso é que você é que nem um jogo de cartas, você joga com as cartas que você recebe, e foi sempre o que eu tentei fazer buscando aqueles desafios, mas sem ter um plano de voo muito claro, sempre questionando, “é isso que eu estou fazendo, aqui vou atingir o meu potencial, aqui que eu estou agregando e contribuindo, se sim, ficamos, se não, vamos buscar outros desafios”. Então eu não tinha, certamente, essa visão do setor público, eu não tinha, esse é o primeiro comentário. O segundo comentário é que a minha experiência de setor público nunca foi o tema principal, então, por exemplo na CMV, eu me juntei a um grupo de pessoas da iniciativa privada, Roberto Teixeira do Unibanco, o Jorge Hilário Gouvêa Vieira, que vinha de uma escola de Advocacia, o Ney Carvalho que vinha de uma corretora, o Geraldo Hess, que vinha do grupo Gerdau. Todos da iniciativa privada que estavam iniciando do zero um órgão que se pretendia público. No setor público sim, mas defendendo pontos de vista, filosofias com envolvimento do setor privado. Não era um órgão público tradicional. Isso foi verdade na maioria dos órgãos públicos onde eu militei, e tanto que eu nunca fiz um concurso público, nunca olhei a hipótese de: “Não, eu vou seguir uma carreira de setor público”. Tanto que, quando essas hipóteses terminavam, eu simplesmente virava a página, e ia procurar emprego no setor privado, como se nada tivesse acontecido. Essa é a razão pela qual a minha trajetória tem alternado experiências do setor público, em função de desafios e convites específicos, com funções na iniciativa privada, que eu diria é o curso normal da minha carreira profissional.

P/1 – Nesses saberes do público e do privado, quem alimenta quem?

R – Saberes como?

P/1 – Na prática, no exercício de fazer uma gestão pública, e uma gestão privada, como acontece a transferência de conhecimento de uma instituição pública para privada e vice-versa?

R – Eu creio que isso é uma grande discussão talvez não resolvida no Brasil, eu diria que, intelectualmente, nós gostaríamos de ter um serviço público europeu, e o que isso quer dizer? É um serviço público profissionalizado, com ótimas escolas no setor público, como é o caso da escola de administração nacional na França, com profissionais do setor público treinados e competentes e com carreiras públicas plenamente definidas. Esse é o ideal que nós almejamos, a realidade é de que nós não treinamos os nossos funcionários adequadamente, nós não damos a eles frequentemente condições de desenvolvimento profissional e de carreira, não os prestigiamos, como deveríamos e, portanto, temos uma carreira pública muito menos prestigiada, muito menos desenvolvida do que gostaríamos de ter na prática. Então frequentemente para postos de maior responsabilidade, no sufoco, você acaba chamando gente da iniciativa privada. Então você tem dezenas de casos, funcionários públicos clássicos, você tem uma série de primeira linha, como foi o caso do ministro Malan, do ministro Pedro Parente, do ministro Martus Tavares, do ministro Guilherme Dias, que são funcionários públicos tradicionais que se desenvolveram na carreira pública. Mas, para cada um desses, você tem pelo menos um que veio da iniciativa privada, seja do meio acadêmico ou do meio empresarial, como é o meu caso, o caso do Armínio Fraga, Pedro Bodin, inúmeros outros, digamos pessoas do setor privado que em algum momento resolveram aceitar um desafio no setor público. E a transferência de conhecimento se dá talvez pela mistura de experiências e conhecimentos, dessas duas categorias de pessoas, a nossa teoria é muito mais próxima do modelo europeu, a nossa prática é muito mais próxima do modelo americano, em que as pessoas desempenham suas carreiras no setor privado são bem sucedidas, e aí frequentemente são convidadas a prestar um serviço militar, a dar a sua contribuição para o país, que em inúmeros casos você tem nos Estados Unidos, o Jim (James Wolfensohn?) do Banco Mundial, foi um banqueiro de investimento bem-sucedido, todos os secretários de tesouro, recentemente, a começar pelo Bob Rubin, foram banqueiros de investimento ou banqueiros comerciais bem-sucedidos, o John (Shepard Reed) depois foi presidente do Citibank, hoje ele está tentando remontar a Bolsa de Nova York que é uma instituição quase pública, e assim por diante, ou seja, isso é absolutamente normal nos Estados Unidos e considerado saudável. Aqui no Brasil, nós vivemos ainda um pouco a dicotomia entre o que gostaríamos de ter e não temos meios de construir, que é um setor público, independente do setor privado, e uma realidade em que essa migração de gente entre o setor público e o setor privado acontece com uma certa frequência.

P/1 – Vamos para Aracruz, e depois entramos no Banco Central, BNDES etc. Porque a gente perdeu um pouco nosso foco.

P/2 – Vamos falar um pouco da Aracruz, como foi que o senhor conheceu o Seu Lorentzen?

R – Olha, eu não tenho certeza exatamente, da primeira vez que eu conheci o Lorentzen, mas, que eu me lembre, foi na época em que eu era diretor do BNDES, responsável pela área de Mercado de Capitais e, portanto, responsável pela relação com a Aracruz. A minha área que travava relações com a Aracruz e foi nessa época que eu tive maior conhecimento da Aracruz, isso certamente foi ao longo dos anos de 1985 e 86.

P/2 – Nessa época já existia essa fábrica lá, então, certamente, o senhor não pegou o impacto desse plantio aqui no Espírito Santo.

R – Não, quando eu comecei a interfacear com a Aracruz, ela já era uma organização estabelecida e com uma história de sucesso eu diria, até do ponto de vista do BNDES, talvez uma das principais histórias de sucesso, a menina dos olhos do BNDES. A Aracruz sempre foi fonte de muita alegria e muito orgulho por parte do BNDES, que desde o início apoiou decisivamente a ideia de instalar uma fábrica de celulose aqui no Espírito Santo, contra a opinião de muitos, inclusive o pessoal do IFC que, como vocês certamente sabem, emitiu um parecer técnico na época dizendo que essa fábrica não teria nenhum sucesso. O BNDES, que teve tantos insucessos na sua carreira política ao longo da década de setenta e oitenta, tinha um orgulho todo especial da Aracruz, a filha que deu certo, essa que foi, eu diria, a minha primeira lembrança de Aracruz, no meio de uma ampla carteira de investimento do BNDES, investimentos no meio de uma ampla carteira de investimento do BNDES, investimentos problemáticos, das dezenas de investimentos, talvez o mais problemático tenha sido a Caraíba Metais, e que literalmente consumiram bilhões de dólares, a alguns anos atrás, quando um bilhão de dólares ainda era muito dinheiro, e no meio disso a Aracruz se sobressaía como uma história de grande sucesso e, portanto, de muito orgulho para o BNDES.

P/1 – Como era a participação do BNDES nesse início, e de certa forma se mantém?

R – Acho que não se mantém não, acho que teve uma mudança muito grande, o BNDES tinha um papel preponderante dentro da Aracruz, ao longo da década de oitenta, ele tinha a maior posição acionária e influenciava muitos destinos estratégicos da Aracruz e, apesar de não interferir diretamente na gestão da empresa, claramente pelo seu peso, seu tamanho, exercia um papel muito importante dentro da Aracruz, uma das minhas linhas principais, funções. Quando eu fui para Aracruz como presidente, foi o processo de encaminhar a venda de uma parcela importante das ações do BNDES na Aracruz. O BNDES reduziu a sua participação acionária, que era a maior, tinha trinta e poucos por cento para doze e meio por cento das ações votantes, vendendo as ações em um leilão público que foi vencido pelo grupo Safra, e onde o BNDES saiu de uma posição em que ele era o maior acionista para uma posição em que ele permaneceu com um acento do Conselho, mas um entre sete acentos e uma posição muito menos importante do que tinha sido no passado, essa foi uma mudança, eu diria, fundamental na Aracruz, que aconteceu ao longo do ano de 1986.

P/1 – Por que o BNDES optou por essa venda?

R – Porque foi ficando evidente que, apesar de ser uma história muito bem sucedida, a Aracruz tinha crescido, ela prescindia de uma presença tão forte do BNDES nessa empresa, ela já estava capacitada para caminhar com as suas próprias pernas, e que não é função do BNDES permanecer a longo prazo com posições acionárias em empresas, é função do BNDES investir, propiciar a instalação e o crescimento de uma empresa, e reciclar essas posições quando essa empresa se torna madura, liberando recursos para investir em novos empreendimentos, e que o processo de investimento do BNDES não pode nunca ser estático. Você entra na empresa quando ela está começando e precisa de você. Quando ela se estabelece, se torna madura, você recicla o investimento e investe em outras empresas. Então ficou evidente, apesar de uma certa nostalgia, por parte de alguns, porque era uma história com grande sucesso, ficou evidente que o BNDES não estava mais contribuindo para o desenvolvimento da Aracruz, talvez até o contrário, aquelas amarras de um grande acionista do setor público, que estava na hora de deixar a filha crescer e sair de casa, e eu diria que esse processo foi bastante discutido, mas não foi particularmente traumático dentro do BNDES, a decisão de venda, ela veio naturalmente, ela foi inteiramente conduzida e apoiada pelo presidente então, que era o Doutor Márcio Fortes e ela aconteceu naturalmente naquele momento.

P/1 – Como era o BNDES em 1986, 87, quais eram as suas atribuições na diretoria?

R – Quando eu fui para o BNDES, eu fui por convite do ministro Dílson Funaro, que era o presidente do banco em meados de 1985. Logo em seguida, o ministro Dílson Funaro foi nomeado. Quer dizer, o presidente, na época Dílson Funaro, foi nomeado Ministro da Fazenda, em setembro de 1985, o BNDES tinha, eu não me lembro agora se cinco ou seis diretorias – eu vou até tentar me lembrar –, você tinha uma área industrial que era chefiada pelo doutor Rômulo de Almeida, Você tinha uma área de estrutura que era chefiada pelo ex-governador Amaral de Sousa, do Rio Grande do Sul, você tinha uma área de intermediários financeiros que era chamada área de Projeto 3, eu estou indo pela ordem, tinha área de projetos até 1 até 2 até 3, que era a área de repasses de responsabilidade do Cláudio Pessanha, você tinha até 4 que era a área social, de responsabilidade do professor Carlos Lessa, hoje presidente do banco, e você tinha a P5, que era a área de Mercado de Capitais, sob minha responsabilidade, e eu acumulava a vice-presidência executiva da BNDES que era subsidiária do banco. Então eram cinco diretorias mais o presidente, eu acho que eu não estou esquecendo ninguém porque eram cinco áreas. Ah não, perdão, tinha uma superintendência jurídica, de responsabilidade do Doutor Ronaldo Mascarenhas, e se eu esqueci alguma, depois eu me lembro. O Dílson saiu em setembro e aí começou uma certa indefinição, como às vezes acontecia no governo Sarney. Quanto à indicação de um sucessor, no BNDES, o Dílson tinha uma visão de mundo, outros tinham outra, o banco passou quase dois anos, uma ano e meio, setembro de 1985 a janeiro de 1987, um ano e meio com o vice-presidente que era o professor André Franco Montoro Filho, exercendo, no exercício da presidência, mas não foi nomeado nenhum presidente até que o Márcio Fortes assumiu, eu não me lembro se em dezembro de 1986 ou janeiro de 1987, mas um ano e meio depois, as minhas responsabilidades no banco, eram essencialmente nessa área de Mercado de Capitais, tanto como diretor do banco, quanto com o chapéu de vice-presidente executivo do BNDES.

P/1 – Foi aí que o Dílson levou o senhor para o Banco Central?

R – No início de 1987, houve efetivamente uma crise, que se aproximou, o Brasil estava entrando numa crise cambial, o presidente do Banco Central era o Doutor Fernão Bracher. E, dentro das discussões do governo, chegou-se a decisão de que o Doutor Fernão sairia da Presidência do Banco Central, e foi nesse momento que o ministro Dílson me convidou a ser presidente do Banco Central, eu já era diretor do BNDES, estava, digamos assim, disponível e assumi a Presidência do Banco Central em 13 de fevereiro de 1987.

P/1 – O senhor ficou menos de um ano nessa função?

R – Setenta e nove dias, oito, setenta e oito dias eu acho.

P/1 – Conta para gente um pouco esses setenta e oito, setenta e nove dias.

R – Olha, foi um momento muito atribulado, eu assumi a Presidência do Banco Central em 13 de fevereiro de 1987, dia 20 de fevereiro o Brasil declarou moratória, e foi uma opção política, quer dizer, frequentemente você não declara moratória, você para de pagar quando o dinheiro acaba. O Brasil fez uma opção política de transformar a sua inadimplência num ato político, foi uma decisão de governo anunciada em cadeia nacional de televisão pelo presidente Sarney, foi uma aposta da equipe econômica na época, liderada pelo ministro Funaro, de que isso daria ao Brasil uma voz maior na discussão do rearranjo do sistema financeiro internacional. Depois da crise dos anos oitenta, isso não deu certo, o ministro Funaro foi perdendo força. No fim de abril ele saiu e eu, como presidente do Banco Central, saí dias depois, o novo ministro era o Bresser-Pereira que encaminhou uma pessoa de sua confiança para o Banco Central, desse período que eu estive lá dos setenta e oito dias, quarenta dias ou quarenta e um dias eu passei no exterior, eu diria que foi um grande esforço de apagar o incêndio da moratória, e impedir que isso assumisse uma proporção ainda maior, com o rompimento total do Brasil com os seus principais credores, teria tido consequências, na minha opinião, muito graves, para o país. Então eu diria que esse período foi mais um período de viagens constantes, de tentar apagar um incêndio e reduzir talvez, um pouco, o pacto político, da declaração política, da moratória e transformar isso simplesmente em uma constatação de que “olha, não é pessoal, mas simplesmente não há dinheiro no caixa para honrar com os sentimentos do país”.

P/1 – E aí, então, o senhor sai do governo, e fica quantos dias antes de entrar na Aracruz?

R – Foram muito poucos dias até fazer a combinação de que eu viria para Aracruz, essa negociação foi intermediada pelo presidente do Banco Central, Doutor Márcio Fortes, que conversou com os acionistas da época, e todos eles se puseram de acordo quanto a um convite que me seria feito, mas isso demorou algum tempo, saí nos primeiros dias de maio, e acho que assumi a Aracruz em julho, ou fim de junho, maio inteiro e junho inteiro, dois meses em que a maior parte do tempo esse assunto permaneceu sigiloso, mas que, surpreendentemente, envolvia algum tipo de negociação política, no bojo do governo. Na medida em que o BNDES era o principal acionista, a empresa não tinha o grau de liberdade de indicar quem quisesse para a sua Presidência, os acionistas privados, apesar de serem majoritários, tinham que se preocupar com qual seria a reação do governo, e naquele momento, note bem, isso é meados de 1987, o governo muito complicado, isso envolveu uma imensa negociação política até que fosse dada a luz verde para que eu fosse convidado com os acionistas privados, com o beneplácito do BNDES. Mas o convite veio dos acionistas privados, para que eu assumisse a presidência da Aracruz. Então é, eu diria, um comentário interessante de como uma empresa privada tinha que pedir licença ao governo para indicar o seu principal dirigente, e eu diria um reforço da lógica de por que estava na hora do BNDES diminuir a sua participação e vender as suas ações.

P/1 – A indicação do senhor para Aracruz repercutiu de alguma forma?

R – Politicamente? Não, foi anunciado, eu não me lembro de nenhuma grande comoção, nem de um lado, nem de outro, quer dizer, eu não me lembro, eu não reli o noticiário da época, mas não me lembro de nenhum… uma vez superada a negociação política dentro do governo, eu não me lembro de nenhum problema político maior.

P/1 – Em sua entrevista ao BNDES, com cinquenta anos, o senhor diz que chegou cedo à Aracruz, pontualmente às nove horas, e se preparou para o primeiro dia de trabalho, conta para gente.

R – Eu cheguei antes das nove horas, eu cheguei cedinho, oito e pouco, e sentei na minha mesa; me levaram para o escritório, mostraram minha mesa, sentei. E aí foi uma experiência muito interessante. Porque eu estava acostumado com o mercado financeiro, onde você começa o dia lendo todos os jornais, dando e recebendo ligações, olhando o noticiário, vendo o que está acontecendo, de modo que você rapidamente está muito plugado com o que está acontecendo no mundo, especialmente naquela época em que a inflação era altíssima, mais de vinte por cento ao mês, você estava ali, muito ligado no que estava acontecendo. Eu cheguei cedinho no escritório, sentei, me deram os jornais, quase nenhum papel, e o tempo foi passando, nove e meia, nove horas, nove e meia, não acontecia nada, não aparecia ninguém, ninguém telefonava, silêncio mortal, não acontecia nada, e eu já estava ficando meio preocupado, em que planeta eu estava. Quando dez e pouco abre a porta e entra o responsável, Doutor Oliveira Santos, responsável pela área de Planejamento do Banco se apresentou, e a companhia se apresentou e disse: “Senhor presidente, é um prazer conhecê-lo, eu estou aqui para lhe trazer o nosso plano estratégico dos próximos dez anos”. Aí eu me convenci que eu estava no planeta errado, e que num mundo em que ninguém consegue prever o que ia acontecer na semana seguinte, tinha ali na empresa um bando de alienados que estavam se preocupando com o que ia acontecer dali a dez anos. E demorou um pouquinho para me dar conta de que a maior diferença entre o setor financeiro e o setor industrial são os tempos, e que no setor financeiro você toma decisões que podem ser revertidas no mesmo dia, no dia seguinte, daqui uma semana, você compra hoje e vende amanhã se quiser, ao passo que, no setor industrial, você toma decisões com as quais você se compromete por décadas. Você constrói uma fábrica que vai continuar com você nos próximos quinze, vinte, trinta anos. Se você tomar a decisão errada quanto à localização, quanto à tecnologia, quanto ao tamanho daquela fábrica, quanto aos custos do investimento, você estará comprometido com os custos dessa decisão errada por dez, vinte, trinta anos. E que, portanto, o tempo no setor industrial é muito diferente do tempo no setor financeiro. Eu, no primeiro momento, fiquei muito impressionado com isso, rapidamente me dei conta de que, se os desafios são diferentes, eles nem por isso são menos desafiadores e menos interessantes. Simplesmente a linguagem é diferente. Desafios são diferentes, mas eles permanecem como sendo desafiadores.

P/2 – Qual foi exatamente o período em que o senhor foi presidente da Aracruz?

R – Foi de julho de 1987 a julho de 1989.

P/2 – E quando foi exatamente que as ações do BNDES foram vendidas?

R – Exatamente eu não me lembro, mas a gente pode checar o noticiário, foram em 1986. Eu tive duas ou três grandes missões na Aracruz, a primeira delas foi a de ajudar a viabilizar esse processo de redução do tamanho do BNDES, não chamo de privatização porque a companhia já era privada, mas a redução do peso do BNDES dentro da empresa, e a efetiva transformação da empresa em uma empresa privada, efetivamente privada, como ela é desde 1987. Essa foi a primeira grande missão lá dentro. A segunda foi ajudar a viabilizar o projeto de expansão, de duplicação da fábrica que operava um pouco mais de quinhentos mil de toneladas/ano, e com a construção da nova fábrica passou a pouco mais de um milhão de toneladas/ano.

P/2 – Então o senhor teve um papel fundamental de colocação das ações da Aracruz em Wall Street, foi a primeira empresa brasileira a fazê-lo?

R – Foi a primeira… São duas coisas diferentes. A venda das ações foi no leilão privado, em que ocorreram grupos nacionais, e que ganhou essencialmente o grupo Safra, e o BNDES vendeu ações do grupo Moreira Salles, vendeu cerca de cinco por cento das ações que detinha na empresa até então. A colocação de ações em Wall Street foi mais tarde, eu iniciei esse processo, mas ele foi efetivamente conduzido e terminado depois da minha saída da empresa. Em fins de 1989, 90, foi quando isso ocorreu, e não dá para dizer que eu tenha sido o principal responsável, o assunto efetivo, a operação foi conduzida na época pelo diretor financeiro, o Mauro Molchansky. Eu iniciei o processo, mas ele foi o principal condutor.

P/1 – Como era essa Aracruz de 1987 a 89?

R – Uma empresa, primeiro, em transição, uma empresa ainda em transição, uma empresa muito comprometida com o setor público, para uma empresa privada, e com tudo que isso implica em termos de processo de gestão. Segundo lugar, um processo de transição na sua gestão. Eu quando assumi, a empresa tinha uma tradição de diretores muito fortes e quase independentes, diretores que vinham na sua maioria, desde o início, da operação, e ao longo do meu período começou a haver um processo de renovação dentro da empresa. O Doutor Leopoldo, responsável pela área florestal da empresa, fundador da empresa, uma figura que eu diria quase que mítica dentro da Aracruz, começou a se afastar ao longo da minha gestão e foi substituído no dia a dia pelo Soresini. Então um processo aí de transferência de bastão, da primeira geração para a segunda geração de executivos da empresa. Da mesma maneira, o (Klaus Haal?), diretor comercial, um outro pilar, que vinha desde as origens da Aracruz, se transferiu para o escritório de Londres, e foi substituído na função de diretor comercial pelo Alexandre (?) , que foi contratado no mercado para exercer essa função, então o Fernando, diretor financeiro saiu, no fim do meu mandato, e foi substituído pelo Mauro Molchansky, enfim, (Marcio Montonni?) continuou, o Carlos Aguiar continuou. Mas, iniciou-se todo um processo de renovações dentro da empresa, da primeira geração para uma segunda geração e já, enfatizando o processo de profissionalização dos quadros, tem sido uma característica da empresa desde aquela época. Eu diria que essa transição foi um segundo grande desafio, o terceiro grande desafio aí de mudanças.

P/1 – Mas essa saída da primeira geração não foi fácil, como foi? Foi tranquila essa mudança?

R – Olha, sempre, como eu diria? Difícil, porque envolve pessoas, pessoas cujo destino estava inteiramente, umbilicalmente ligado com o destino da empresa, com a história da empresa. Mas é um processo inexorável, em algum momento você tem que promover um processo de renovação, meu esforço foi o de conduzir isso com o menor trauma possível e acredito que eu tenha sido bem-sucedido nesse esforço...

P/1 – O senhor estava retomando um pouco, falando...

R – Como era a Aracruz, esse processo de renovação foi um grande desafio, o segundo grande desafio foi a relação com o governo do estado, a Aracruz era, como ainda é, uma entidade muito grande no Espírito Santo. O orçamento da Aracruz é maior que o orçamento do estado, e você tinha um histórico de relações às vezes difíceis com o governo do estado, tanto no que diz respeito ao investimento industrial, quanto, particularmente, o que diz respeito à expansão florestal, a Aracruz, em alguns momentos, se sentia ameaçada em seu futuro por posições do governo do estado questionado a contribuição que a empresa dava ao desenvolvimento do estado. Eu diria que um dos grandes esforços durante a minha gestão foi o de tentar construir uma relação mais saudável, menos conflituosa com o governo do estado, no que nós nem sempre fomos bem-sucedidos. E essa dificuldade de relação talvez tenha sido a principal razão pela qual a Aracruz tomou, na época, uma posição estratégica fundamental, que foi a de começar a comprar terras no sul da Bahia. Esse esforço foi iniciado na nossa gestão, e a lógica foi: “Se não podemos crescer no estado do Espírito Santo, precisamos diversificar as nossas bases florestais”. Começamos a crescer na direção Teixeira de Freitas, de modo que iniciou-se um processo de forma que, hoje, a Aracruz tem mais terra fora do estado do Espírito Santo do que dentro do estado, e é provável que a sua próxima expansão ocorra fora do estado do Espírito Santo. Eu diria que essa iniciativa talvez não tivesse ocorrido se nós tivéssemos conseguindo construir, ao longo dos anos, uma ação mais colaborativa com o governo do estado, que hoje existe, mas que, na época, era extraordinariamente difícil, e que a empresa frequentemente se sentia refém de um estado que dava todas as demonstrações de que não via com bons olhos o crescimento da Aracruz, no estado do Espírito Santo. Então eu diria que essa foi uma questão fundamental na época. A terceira questão fundamental, para gente não perder a memória, era toda a discussão da venda de celulose para o mercado nacional. Nós vivíamos uma época de controle de preços e havia uma obrigação da Aracruz suprir o mercado nacional de celulose, e a preços substancialmente inferiores aos preços de exportação, nós exportávamos celulose a mais de setecentos dólares a tonelada, e tínhamos que vender celulose no mercado nacional a cerca de quatrocentos e quarenta dólares a tonelada, permitindo que os fabricantes de papel usassem essa celulose subsidiada para produzir papel que eles, por sua vez, exportavam. Evidentemente, isso é um exemplo das distorções que são causadas por atividades do governo, nos mercados, e eu me lembro de um esforço muito grande no sentido de ou tentar fazer com que o governo nos liberasse dessa obrigação de fornecer celulose para o mercado nacional, ou que pelo menos liberasse os preços de suprimento no mercado nacional, no que nós nunca fomos muito bem-sucedidos. Você era forçado a subsidiar o produtor local de papel, que hoje é até difícil imaginar como isso funcionava, mas que é um exemplo claro das distorções econômicas que existiam na época em função da intervenção do governo na atividade econômica. Enfim, são inúmeros casos sobre como era a Aracruz na época, mas eu diria que, em linhas gerais, ela tinha muito das características que ela tem hoje em termos de uma empresa extraordinariamente eficiente, voltada para a exportação e sempre administrada com um grupo de profissionais muito dedicados, e muito competentes, isso tem sido uma constante na história da empresa.

P/2 – Quando o senhor era o presidente da Aracruz Celulose, já havia projetos sociais como hoje, que existem nove?

R – Não necessariamente com esse rótulo, mas, claramente, você não tinha a marca da responsabilidade social como você tem hoje, da mesma maneira que você não tinha a marca da responsabilidade ambiental da mesma maneira que você tem hoje. Mas a Aracruz, claramente, já era líder em ambos os setores, na questão ambiental com a preocupação de plantio e manutenção da mata e flora nativa, com a preocupação com as emissões de gases e reduções máximas das emissões de gases, de uma fábrica de celulose que pelo menos o odor é muito agressivo ao ambiente, com um a preocupação com lagoas de aeração e controle de dejetos, com uma preocupação fortíssima com a redução de conteúdo de cloro, e de efluentes de cloro, ou seja, uma preocupação ambiental muito clara. Para Aracruz isso já vão quase vinte anos, da mesma maneira na parte de responsabilidade social, a empresa mantinha uma vila para os funcionários que era, digamos, um exemplo de qualidade de vida que foi desenvolvido pela Aracruz ali no litoral, o nome exato me escapa agora...

P/1 – Coqueiral?

R – Coqueiral, o village do Coqueiral, lugar muito agradável onde o presidente Carlos Aguiar morava, e não sei se ainda mora, acredito que sim, uma preocupação com as comunidades entorno, uma parceria forte de muitos anos com o prefeito Primo Bitti, da cidade de Aracruz, buscando melhorar o atendimento médico na região, buscando melhorar a qualidade do ensino na região, e eu te confesso uma grande alegria, quando eu voltei para inauguração da terceira fábrica no ano passado, de transitar nas regiões pela estrada, e de verificar o extraordinário progresso que aquela região vem tendo ao longo dos últimos anos. Aquilo era terra arrasada, ali não tinha nada, hoje você tem várias comunidades prósperas, Aracruz, Coqueiral, você tem hospitais de boa qualidade, você tem estradas de excepcional qualidade, você tem um aeroporto de boa qualidade, tem um porto que é dos melhores da Costa brasileira, ou seja, tudo isso criado com a riqueza oriunda de uma empresa, produtiva, bem administrada e bem-sucedida. Então, para mim, o maior exemplo de responsabilidade social é o desenvolvimento que a Aracruz promoveu na região de Aracruz.

P/1 – A compra das terras na Bahia já havia sido estudada?

R – Não.

P/1 – Como se deu esse estudo, essa análise?

P/1 – Se deu na evidência clara de sinais que recebíamos do governo do Espírito Santo e que aqui nós não teríamos espaço para crescer, e, como qualquer empresa competitiva quer crescer, nós fomos buscar o nosso espaço para crescimento, espaço mais lógico, mais perto. Chegamos a olhar o norte fluminense, mas nos pareceu que o sul da Bahia era a melhor província para o crescimento futuro da empresa, isso começou na minha gestão sob a liderança do Doutor Leopoldo, que foi quem procurou, identificou, negociou, todas essas terras e que deu para empresa a possibilidade de continuar crescendo porque, naquele momento, ela não tinha nenhuma possibilidade de crescimento dentro do estado do Espírito Santo.

P/1 – De quem eram as terras?

R – De proprietários, era pasto, era basicamente pasto, terras relativamente degradadas, de pecuária extensiva, naquela região, a região de Teixeira de Freitas é o faroeste baiano, e sem nenhuma grande riqueza e da Aracruz e da Bahia sul para lá, eu não tenho ido naquela região, mas aquela região era uma região absolutamente degradada, tenho certeza que hoje é uma região que contribui para criação de riqueza.

P/1 – Na sua trajetória, a Aracruz pode ser considerada a grande experiência industrial?

R – Eu diria que eu tive duas, uma parte da minha carreira foi no serviço financeiro, e eu tive duas experiências industriais, a primeira foi a Aracruz, durante dois anos, e a segunda foi a Petrobras, no ano passado. A Aracruz foi, eu diria que ambas foram experiências muito ricas, a Aracruz por desafios que eu tenha colocado aqui, e a Petrobras por outros desafios, mas a Aracruz certamente foi a primeira, e a primeira a gente nunca esquece, uma coisa muito diferente de tudo que eu tinha feito antes na minha vida.

P/1 – O que esse jogo de lugares, cidades, experiências ajudou na administração dessas empresas? Isso acrescentou algo para o negócio, para o industrial?

R – Olha, cada um eu diria tem uma contribuição diferente a dar. O Doutor Carlos Aguiar por exemplo, que eu convivi ao longo desses dois anos e desde então, foi certamente um presidente da Aracruz que tem muito a contribuir, e o que ele traz é uma experiência industrial de chão de fábrica que eu nunca tive, e nunca poderei ter, então ele tem uma visão muito melhor que a minha de quais são os fatores de sucesso, funcionamento de uma fábrica, e essa é uma contribuição que ele tem a dar, o que eu trouxe, talvez, é uma visão mais ampla e diferente de como uma Aracruz se inseria no seu contexto mais amplo, ou seja olhando para fora da empresa, como ela se posicionava estrategicamente. Então, todas a preocupações que eu falei aqui um pouco são preocupações de cunho mais estratégico, como você sai de um momento atual que ela está muito bem-sucedida, mas que tem que haver uma troca de gerações, como será a Aracruz de amanhã? Como ela vai viabilizar um projeto de desenvolvimento em que ela não vai aumentar a capacidade de cinco a dez por cento e sim duplicar a empresa? Que não pode dar errado, um projeto de investimento que na época custou um bilhão e trezentos milhões de dólares, para uma empresa que faturava trezentos milhões de dólares por ano, um projeto que envolveu quatro anos de faturamento, foi o envolvimento do projeto, me responde como você estabelece uma relação com o estado onde você funciona, se esse estado se posiciona contra o crescimento da empresa, contra o futuro, como você viabiliza uma estratégia industrial de crescimento? Como você viabiliza uma relação com um governo Federal que tenta te impor controle de preços? Então, o que eu trazia para empresa era muito uma preocupação de como é que você insere a empresa num contexto estratégico mais amplo. Cada um enfatiza um pouco aquilo que tem a contribuir para empresa e a minha visão de como eu poderia contribuir era muito por aí.

P/1 – E o lado humano da Aracruz, as pessoas ao seu redor, os funcionários, como era esse contato?

R – Eu achei muito, muito bom, em primeiro lugar pelo extraordinário profissionalismo e dedicação das pessoas, a maioria das pessoas claramente adoravam trabalhar na Aracruz, se sentiam orgulhosas de trabalhar na Aracruz, tanto no Rio de Janeiro, quanto aqui em Aracruz, na fábrica, tanto que a empresa é conhecida como sendo uma grande escola de profissionais, e a maioria das pessoas com quem eu trabalhei continuam na empresa. O Carlos Aguiar foi meu diretor, hoje é presidente; o João Felipe era gerente na época, continua lá; Maria Clara continua lá; os mesmos acionistas membros do Conselho continuam lá. Você tem um processo constante de renovação de pessoas, de promoção de pessoas, mas as pessoas continuam, e isso, as promoções são feitas internamente, então eu diria que é uma empresa modelo em ações de trabalho e companheirismo dentro da empresa, tem sido um exemplo e tem se mantido ao longo desses anos todos.

P/1 – Em 2000, o senhor volta para o BNDES como presidente, é isso?

R – Muito tempo depois, você pulou uma década inteira aí (risos), sim.

P/1 – Sim, só queria fechar uma data, saindo da Aracruz o senhor vai para onde?

R – Eu saí da Aracruz e aí eu tive um hiato, até outubro se não me engano, fim do governo Sarney, 1989, inflação saindo fora de controle, governo acuado, uma campanha eleitoral violenta, e francamente, aí não surgiu nenhuma oportunidade clara, do que fazer, e eu aí decidi tentar uma experiência empresarial. Junto com alguns outros sócios montamos um pequeno banco de negócios em 1989, o BFC, e eu passei aí dois anos tentando viabilizar um projeto de uma boutique de investimentos, no início da gestão do Presidente Collor. Isso foi de outubro, novembro de 1989 até maio de 1991, vai fazer um ano e meio mais ou menos.

P/1 – Mas essa saída da Aracruz para esse tempo de hiato se deu como?

R – Em meados de julho de 1989, ficou evidente de que os acionistas queriam introduzir certas modificações na empresa e que eu não era a pessoa certa para conduzir aquelas modificações. Nós pusemos de acordo que estava na hora de haver uma renovação, eu pedi demissão, a Presidência foi ocupada interinamente pelo presidente do Conselho, pelo Lorentzen, e depois nomearam um outro presidente e eu saí sem nenhum projeto profissional, e tanto que fiquei uns quatro ou cinco meses pensando sobre o que fazer antes de iniciar esse empreendimento do BFC.

P/1 – E como é que foi esse empreendimento?

R – Olha, não foi muito bem-sucedido. Eu me dei conta de que eu já fiz muita coisa na vida, mas você acaba se dando conta de que certas coisas você faz bem e outras você não faz, e eu não achei tão divertido administrar ou contribuir para administração de uma pequena instituição financeira, que não era aquilo que eu sabia fazer bem. Eu fiquei lá até 1991, em 1991 eu saí e fui para o Banco Central durante dezoito meses, quando eu saí do Banco Central eu voltei para o BFC durante oito ou nove meses e aí me desliguei e fui para o Morgan Stanley em 1993.

P/1 – E o Banco Central, tinha alguma gerência, tinha algum relacionamento com a Aracruz?

R – Não. Desde que eu saí da Aracruz, a minha única... relacionamento com a Aracruz eu diria a nível pessoal. Como eu te disse, as pessoas são as mesmas, em muitos casos você mantém um contato. Eu quando fui banqueiro, eu conheci os dirigentes da Aracruz, depois da minha saída continuei em contato com muitos deles, visitei a Aracruz como banqueiro, tenho contato com o Lorentzen até hoje, mas é um contato à distância. Eu, profissionalmente, não tive mais nenhum contato com a Aracruz desde que eu saí da Presidência.

P/1 – Então, _____, talvez eu tenha pulado um pouco ____ BNDES depois de vinte anos (riso). Nem nessa gestão que o senhor teve do BNDES, essa relação BNDES Aracruz já estava resolvida?

R – Eu acho que está inteiramente resolvida, a única pergunta que se coloca hoje é “qual é a justificativa, qual é a lógica para o BNDES – na minha cabeça, pelo menos – para o BNDES manter os doze e meio por cento de ações acionárias que ainda mantém na empresa?”. Eu diria que isso é consensual, tanto o BNDES sente conforto com isso, por razões históricas, como os acionistas privados se sentem confortáveis em ter o BNDES. Mas a rigor, se você for olhar isso meramente como uma pulsão acionária, não tem muita razão de ser. A Aracruz é uma empresa que há mais de dez anos anda com suas próprias pernas e prescinde de qualquer envolvimento maior por parte do BNDES, mas essa é a única questão pendente, eu diria, entre o BNDES e a Aracruz. A Aracruz é um bom cliente, quando tem um projeto de expansão, certamente conversa com o BNDES, mas não precisa mais da muleta do BNDES para seguir o seu próprio caminho.

P/1 – Mas o BNDES anda investindo em algumas empresas assim que... (riso)

R – É, isso aí eu não teria como comentar.

P/1 – E a Petrobras?

R – Mas o que isso tem a ver com a Aracruz?

P/1 – Mudando de assunto, falando da Petrobras para gente encaminhar para o encerramento.

R – Ah. Olha, a Petrobras, em primeiro lugar, foi uma grande surpresa. Eu era presidente do BNDES, estava feliz da vida, tocando o banco com uma equipe excepcional, quando, a um ano do fim do governo, o presidente Henri Philippe Reichstul decidiu sair da Petrobras por razões pessoais. Eu era membro do Conselho da Petrobras por dois anos, porque o presidente do BNDES tem assento no Conselho da Petrobras, então eu já acompanhava, digamos, os assuntos da Petrobras nas reuniões mensais do Conselho e, talvez por isso, eu fui convidado pelo presidente Fernando Henrique para atravessar a ponte da Avenida Chile e me mudar do BNDES para a Petrobras. Eu o fiz com alguma preocupação porque não só o BNDES estava sendo um desafio muito interessante mas estava indo bem, e eu ia para Petrobras num fim de governo, num ano de eleições, o que é sempre complicado. A minha expectativa é que eu estava ali, digamos, para manter o barco no rumo certo, sem criar maiores problemas nos doze meses que restavam ao governo Fernando Henrique Cardoso. Eu diria que a experiência foi muito mais rica do que eu imaginava no início, nós não tivemos nenhuma mudança administrativa, eu fui com três assessores que saíram quando eu saí, a equipe foi exatamente a mesma que eu herdei do Philippe, mas nós tivemos algumas coisas, alguns grandes desafios. O primeiro foi descobrir a Petrobras inserida no bojo da campanha eleitoral, no miolo da campanha eleitoral, tanto na discussão de formação de preços, e que você vê que a Petrobras, esse ano de 2003, tem sido até mais agressiva do que nós na manutenção da paridade internacional dos seus preços, e você não ouve um “ai” nos jornais, e, no entanto, no ano passado de 2002 qualquer um por cento de aumento do preço de qualquer combustível era trompeteado nas manchetes como uma agressão ao consumidor, uma violência do governo Fernando Henrique contra o povo e tudo mais. Ou seja, você tentar administrar a política comercial de uma empresa no bojo de uma campanha eleitoral é algo que realmente era uma experiência que eu nunca tinha tido. Da mesma maneira, toda a política de investimentos e compras da Petrobras que já era bastante firme e estabelecida e de uma empresa muito bem-sucedida, profissional, competitiva e, no entanto, a questão da compra dos seus equipamentos, das suas plataformas, dos seus navios também virou tema de discussões políticas e de campanha eleitoral, eu diria com consequências muito ruins tanto para empresa como para o país. Nós estávamos prontos para colocar as encomendas de novas plataformas que viabilizariam a autossuficiência do país em 2005. No final do ano passado, o novo governo sinalizou que preferiria que isso não acontecesse, as encomendas não foram feitas. Hoje já se passou um ano, elas não foram feitas, estão sendo contestadas judicialmente, não há nenhuma indicação de que a Petrobras conseguirá colocá-las tão cedo, de modo que isso, a politização desse assunto, como a politização da construção de uma nova refinaria, eu diria a politização de todo o processo decisório da Petrobras, que é algo que tinha sido afastado e que foi reintroduzido no bojo da campanha política. Trouxe, evidentemente, muita excitação e desafio ao longo do ano passado, mas trouxe também, eu diria, graves prejuízos para a empresa e para o país. Então, eu diria, a politização da empresa que crescentemente deixou de ser vista como uma empresa competitiva e passou a ser vista cada vez mais como um braço de ação do governo foi um grande desafio do ano de 2000 e, infelizmente, um grande retrocesso, no meu entender. E a terceira coisa é que, apesar dessa confusão toda, nós conseguimos dar um passo fundamental no futuro da empresa, que foi a compra da Pérez Companc, a principal empresa de energia privada da América Latina, uma empresa na Argentina que foi adquirida em agosto do ano passado, no bojo de uma crise na Argentina e no final de uma eleição no Brasil, mas nos pareceu, na Petrobras, que isso era uma oportunidade única, que não deveríamos perder essa oportunidade e que, portanto, nós deveríamos correr o risco de fazer essa aquisição, como de fato foi feita, e você vê hoje por parte de todo mundo na empresa, e até uma oportunidade extraordinária tanto comercial para a Petrobras como uma sinalização importante nesse esforço de uma maior integração na América do Sul que vem sendo defendida pelo governo. Então, eu diria que essa é uma lição de que se você não perde o foco, mesmo num ano difícil, mesmo num ano politizado, é fundamental que a empresa tenha a convicção e a firmeza de tomar as decisões que são importantes para o seu futuro, e claramente a compra da Pérez Companc, que foi uma dessas decisões tomadas num ano muito difícil para a Petrobras e para a sua administração. Eu diria que, grosso modo, em termos de Petrobras, isso é o que eu queria destacar.

P/2 – Desculpe, Doutor Francisco, eu gostaria de retornar a um ponto. Quando o senhor falava da relação difícil entre o estado do Espírito Santo e a Aracruz, quais eram exatamente essas áreas de atrito, no período que o senhor mencionou?

R – Olha, a primeira delas era o plantio de Eucalipto, em que o estado suspendeu o plantio de Eucalipto no estado. A segunda delas era uma tendência das autoridades do estado de cobrar da empresa ações sociais muito além do que seria razoável. Então, você sofria certas ameaças, além de você pagar todos os seus impostos, além de você sustentar iniciativas como o coqueiral, iniciativas da Aracruz, demandas de que a empresa aparelhasse hospitais, construísse estradas ou construísse a ponte lá de acesso, digamos, de graça, além de todas as suas obrigações. O sentimento um pouco de talvez uma visão Robin Hood das coisas. “O estado não pode, a companhia pode, então a companhia tem que fazer.” Mas como? Por quê? Em que contexto? “Não, tem dinheiro, tem que fazer.” E uma pressão constante, quase uma ameaça constante em cima da empresa no sentido de que: “Olha, vocês têm dinheiro e, portanto, vocês têm que fazer isso tudo”, numa lógica inteiramente contrária a toda lógica de gestão de uma empresa competitiva num mercado competitivo.

P/2 – Quando o senhor falava da percepção dos Estados Unidos em relação ao Brasil, na sua época de estudante lá, o senhor usou o verbo no tempo presente. O senhor acha que os Estados Unidos ainda não veem o Brasil?

R – Não, os Estados Unidos veem muito pouco em termos do mundo, a não ser aquilo que reflete na política interna. Os Estados Unidos veem o mundo árabe por causa de 11 de Setembro, antes disso não viam. Os Estados Unidos veem a América Latina em função de coisas muito específicas que dizem respeito à política interna. Então, veem Cuba porque é o que decide o voto na Flórida. Veem drogas e Colômbia, portanto, e um pouco Bolívia porque têm uma influência sobre a política interna americana e controle de drogas, e veem México por causa de uma fronteira de quase quatro mil quilômetros e a imigração mexicana, que afeta quase todos os estados do Sul. Então, não existe a possibilidade de você colocar em discussão qualquer tema de interesse da América Latina se ele não tiver um impacto direto numa política interna americana, e por aí é que o assunto ganha importância. O Brasil não tem nenhum impacto sobre a política doméstica americana, em nenhum aspecto e, portanto, eu diria, países como a Colômbia, Bolívia ou Cuba são muito mais importantes dentro de uma visão da América Latina do que o Brasil. E isso é verdade, sempre foi.

P/1 – E atualmente, como que é a vida do Francisco Gros, onde o senhor está?

R – Olha, eu digo que eu sou um paulista típico porque eu trabalho em São Paulo de segunda à sexta e sexta de tarde eu, como todos os paulistas, vou para minha casa de praia. A minha é no Rio de Janeiro, a deles é no Guarujá, em Ubatuba, a minha é no Rio, mas fora isso eu estou paulista. Você é paulista também, não é, Carla?

P/1 – Eu sou, nascida e criada.

R – É, então. Então você entende como é que é. (riso)

P/1 – Mas eu não vou para o Rio assim com essa frequência. (riso) Quais são seus hobbies, seus passatempos?

R – Olha, eu evidentemente acabo viajando muito. Eu gosto muito de jogar tênis, mas não me organizei para jogar ainda desde que eu me mudei para São Paulo. No Rio, eu jogava três vezes por semana, em São Paulo eu não me organizei ainda, e fora isso eu tento ficar em contato com os meus filhos.

P/1 – Quantos filhos você tem?

R – Três filhos e duas enteadas.

P/1 – E já tem netos?

R – Tenho um casal, uma menina de cinco e um menino de um.

P/1 – Tem alguma coisa que você ainda não fez? Eu estou chamando você de você.

R – Por favor.

P/1 – Que você não fez...

R – Você já me chamava de você, só ficou com cerimônia depois dos netos. (riso)

P/1 – É. (riso) Você ainda não fez o que gostaria de fazer?

R – Ah, uma porção de coisas, milhões de coisas. Eu sou um pouco daquela tese que os velhinhos americanos sempre dizem, que hoje é o primeiro dia do resto da minha vida, então eu sempre tenho a tendência de olhar para frente. E tem muita coisa ainda que eu gostaria de fazer, sempre na linha de buscar alternativas interessantes e desafiadoras, e eu acho que isso é importante. As pessoas, quando eu comecei na Fosfertil, diziam: “Não, mas escuta, você não sente saudades da Petrobras? Era tão maior” e tudo mais. Eu digo: “Ué, Petrobras é história”, o BNDES é história, a Aracruz é história, estamos aqui gravando a história, mas o importante é o que a gente faz hoje e daqui para frente. A história está aí nos documentos e nas fotos.

P/1 – Daqui quem sabe alguns anos estejamos aqui fazendo uma ________, né?

R – Quem sabe.

P/1 – O que você achou de dar essa entrevista, acha desse trabalho da Aracruz de estar resgatando a sua própria história?

R – Olha, eu acho fundamental, a Aracruz é uma grande história de sucesso, não só uma história de sucesso empresarial, mas a primeira história de sucesso, eu diria, em primeiro lugar, da força de vontade do empresário brasileiro face a circunstâncias nem sempre favoráveis. Aquela carta do IFC é um marco histórico, em que um órgão abalizado diz: “Olha, isso é uma grande bobagem”, e os empresários numa parceria do governo com a iniciativa privada foram lá e desconsideraram esse parecer técnico e construíram essa grande empresa que é a Aracruz. Segundo lugar, eu diria que é primeira história de sucesso a que eu aludi, num estado pequeno, relativamente pobre, numa região que era internamente degradada e que era e que hoje é uma região de grande desenvolvimento no cenário nacional. E eu acho que isso é fundamental. Em terceiro lugar, uma história de sucesso empresarial na medida que você tem grupos privados, e vários já passaram por lá, além dos que lá estão hoje, e em parceria com o governo conseguimos construir uma empresa que é sucesso de mercado nacional e internacional. Então, eu realmente tenho muito orgulho de ter tido uma parte da minha história associada com a Aracruz, acho que o estado do Espírito Santo deve se orgulhar da Aracruz, que é uma grande história de sucesso. Esse é, eu diria, o mote principal do que eu teria a dizer sobre essa empresa.

P/1 – Então, eu queria agradecer em nome da Aracruz, a equipe toda também agradece a sua generosidade de estar mais uma vez aqui com a gente contando sempre história em fleches.

R – Muito bem, muito obrigado a vocês.

P/1 – Porque a sua história daria para gente ficar aqui a cada...

R – Vamos ver se vocês vão ser contratados pelo Banco Central e aí a gente dá um outro depoimento.

P/1 – É. (riso) Banco Central... tem tanta história.