Museu da Pessoa

O verdadeiro Deus

autoria: Museu da Pessoa personagem: Adriano da Silva

Conte a sua História – 20 Anos Museu da Pessoa no Brasil
Entrevistado por Thiago Majolo
Depoimento de Adriano da Silva
São Paulo, 03 de Julho de 2012.
Realização Museu da Pessoa.
Entrevista PCSH_HV_351
Transcrito por Iara Gobbo.
Revisado por Carolina Cervera Faria

P/1 –A gente começa perguntando o seu nome completo e a data e local de nascimento.

R –Bom, meu nome é Adriano da Silva, eu nasci aqui mesmo, na capital de São Paulo mesmo, né, no Hospital Santa Terezinha, em São Miguel Paulista, hoje já não mais existente, às oito horas e quarenta minutos da manhã do dia três de julho de 1972. Sou filho primogênito, né, sou filho mais velho. Sou filho de Manoel Almeida e de Antonia Maria da Silva. Samos em dois filhos, tem eu e tem o outro, o Jânio.

P/1 –Como é o nome dele?

R – É Jânio. E, como é que se diz? Atualmente assim eu to enfrentando um pouco de dificuldades financeiras e também quero, pra começar, já dando início, agradecer, muito obrigado, né, por vocês terem aceito o meu convite. Obrigado pelo carinho, né, pela gentileza, obrigado por essa oportunidade e peço desculpas por alguma coisa, por às vezes ter acontecido um imprevisto assim, de uma ocasião assim meio inesperada, mas não teve jeito, né?

P/1 –A gente agradece a sua vinda e vamos ouvir um pouco sua história, Adriano. Eu queria que você contasse sobre a sua mãe e seu pai. Conta o que eles faziam, qual era o emprego deles. Como que era a vida deles?

R – Eles… A minha mãe é, bom, o meu pai ele veio pra São Paulo no início dos anos 60. Meu pai, ele perdeu os pais ainda criança, meu pai era paranaense, perdeu os pais ainda criança e foi criado pelos tios e aí cresceram, né, os tios dele criaram ele no catolicismo. Inclusive, até tenho uma foto do meu pai assim, mais ou menos com uns dez ou doze anos de idade, isso na primeira comunhão, né, isso a foto pequena preto e branca, que os parentes dele veio do Paraná pra São Paulo há nove anos atrás, meses antes do falecimento dele e aí ele cresceu, ele e o irmão dele mais velho. E serviram o exército, tiveram um bom comportamento, criaram a irmã deles. Meu pai parece que não sei se ficou, não sei dizer se ele ficou um ano, não sei, só sei que teve um bom comportamento, né? Aí depois eles saíram, aí parece que não sei se ele ficou, não sei quanto tempo ficou, sei que ele saiu, né? Casou-se pela primeira vez aos vinte e um anos de idade, teve a primeira mulher e dois filhos, aí ficou um bom tempo. Aí se divorciaram, houve muito desentendimento, então eles se divorciaram e aí nunca mais se viram. Aí não sei dizer que ano foi que minha mãe conheceu meu pai, acho que deve ter conhecido meu pai mais ou menos no final dos anos 60 pros anos 70, né, que meu pai morava em quarto de aluguel, morava só e aí sei que não sei dizer. Bom, eles não chegaram a casar, só chegaram a morar juntos e, como é que se fala? Ele era assim um tanto... como é que diz? Autoritário, né, muito exigente, ele, devido ter servido as Forças Armadas. A minha mãe já é mais tranquila, mais calma e também a minha mãe, ela, como é que se diz, ela é semi analfabeta. Ela nasceu na Bahia, né, passava a maior parte do tempo sendo criada pelos avós, aí tanto que eu não tenho foto nem dos meus avós. A única pessoa que tem foto é, não do meu avô e não da minha avó, mais do meu avô materno, né, que é pai da minha avó e avô da minha mãe, que era o Sr. Pantaleão, que o senhor Pantaleão era o personagem do Chico Anysio, não sei se você deve lembrar, né? Então, acho que o Chico Anysio deve ter conhecido ou visto falar do meu avô materno aí, deve ter conhecido, não sei, né, e aí no personagem dele adotou esse nome, Pantaleão, que é... Aliás, muito engraçado esse Pantaleão aí, tenho muita saudade desse Pantaleão. Agora meu avô materno não cheguei a conhecer. Dizem que ele morreu com noventa e poucos anos de idade. Uma prima carnal minha tem uma foto dele, né, sentado numa cadeira, uma foto preto e branca, sentado numa cadeira. Então é a única foto do meu avô materno que essa prima carnal tem. Agora meus avós paternos não conheci nenhum. Como falei no início, já faleceram. Agora…

P/1 –Eles faleceram quando chegaram aqui, foi isso?

R – Quem?

P/1 –Seus avós?

R – Não. Morreu tudo lá pro Paraná, que meu pai era paranaense, né? Certo? E meu pai perdeu eles depois que... quando eles eram crianças, foram criados pelos tios, como eu já falei, né?

P/1 –Seu pai veio pra cá por quê, assim?

R – Bom, ele veio pra cá… Bom, pelo que eu ouvi dizer uma vez, ele veio pra cá para… Primeiro ele foi pro Rio de Janeiro e do Rio ele veio pra São Paulo. Segundo uma vez ele contou, que primeiro ele veio pra Rio de Janeiro nos anos 50, aí depois veio pra São Paulo, depois voltou pro Paraná e aí depois no início dos anos 60 voltou, veio pro Rio e do Rio ele veio pra São Paulo, né, e ficou até o dia que faleceu. E como é que diz? Aí depois não sei em que ano foi que meu pai se “ajuntou” com minha mãe, não sei se foi em 70 ou 71, não sei dizer, não sei informar. Sei que eles se ajuntaram, tiveram eu, tiveram o Jânio, e…

P/1 –E eles viveram do quê?

R – Quem?

P/1 –Seus pais.

R – Não, meu pai trabalhava. Quando eu nasci meu pai trabalhava na Polidura. Não sei quanto tempo ele ficou lá, sei que acho que ele deve ter ficado poucos meses lá. Agora, onde ele ficou mais tempo foi na Goodyear, né, ele entrou na Goodyear dia dois de abril de 1975. Eu já tinha nascido, tava com três anos incompletos, e aí ele entrou pra Goodyear e foi o único e o último emprego que ele ficou mais tempo, né, foi na Goodyear, emprego registrado. Ele ficou na Goodyear mais ou menos, pelo menos uns treze anos. Treze anos ele ficou, de 75 a 88.

P/1 –O que ele fazia lá?

R – Ele era mecânico de manutenção e sempre eu achava legal, que sempre no final do ano eles lá davam um monte de coisa, dava brinquedo, dava carrinho lá, tudo, né, dava panetone, dava caixa de bombom, esses bombom Garoto, dava castanha, dava um monte de coisas. Folhinhas da Goodyear, que é o que mais me marcou, é aquela enorme folhinha da Goodyear lá, chique lá, né, que inclusive eu tenho essas folhinhas guardadas. Pouco e raríssimas vezes eu mexo nela. Tá lá no maleiro velho lá, guardado lá, abandonado lá. Eu sempre penso pegar pra querer dar uma olhada, mas eu me envolvo com uma coisa, me envolvo com outra e nunca dá. Então...

P/1 –Você disse que seu pai era autoritário?

R – Era. Ele era meio assim meio... muito mandão, né? Mas digamos que não foi assim... digamos, altos e baixos, né, não foi muito bom nem foi ruim, certo? Pra eu chegar e falar a fundo quem eles são, é, como filho, até meio delicado, sensível pra mim nessas horas, sabe? É meio sensível.

P/1 –E sua mãe?

R – A minha mãe, ela é pessoa simples, né, minha mãe, ela, como é que diz? Tem um temperamento meio forte. Minha mãe é pessoa simples, né, não teve leitura. Ele é uma pessoa assim um pouco sossegada. Ela tá aí, né, tá bem, tá com quase... Já passou dos setenta anos, minha mãe, ela já é avó. O filho dela já ganhou neném, já tem um ano já, fez um ano em Abril, o neto dela. E, como se diz, ela é avó pela primeira vez. Então, como é que se chama? Ela tá ali com seus problemas, tudo, suas dificuldades, mas estamos levando. Mora só eu e ela no momento e, como é que se diz, falando de mim, como é que chama, eu posso dizer que a minha vida é como qualquer uma, de altos e baixos, né? Eu confesso que a minha vida é uma vida assim de luta, dor e sofrimento, que eu tive uma vida muito sofrida. Eu sofri muito na infância, na adolescência e aí mesmo depois de adulto, sabe? É lamentável ter que falar isso, ter que dizer, mas só que eu tive uma, como é que diz, uma juventude mais sofrida. Mais angustiante e triste do que feliz, certo?

P/1 –Adriano, você tá falando dessa infância e juventude, eu queria, se você pudesse contar um pouco, o que que era esse momento triste que você vivia na infância que você lembra.

R – Bom, eu vou tentar contar porque, eu não sei o que acontece rapaz, que todo dia, sempre quando eu to fazendo ano rapaz, eu não sei, parece que é incrível, parece uma espécie assim... Parece que de uns anos pra cá, sempre quando eu to fazendo ano, me ataca assim uma tristeza, assim uma angústia, me bate uma tristeza, uma falta de coragem. Eu não sei, que de uns cinco anos pra cá eu venho sentindo isso, sabe? Me bate assim uma falta de coragem, quando não é uma coisa é outra, sabe? Quando passa não, quando passa parece que aquela tristeza, aquela coisa passa. Não sei o que é isso, não dá pra explicar. Hoje mesmo eu pensei comigo “Hoje mesmo eu tenho que dar essa entrevista. Essa entrevista aí eu tenho que falar. Essa angústia aí, essa tristeza, tem que cair por terra, tem que sair fora, porque hoje é um dia, é uma ocasião especial”. Eu venci, né, mas o mal também tem sua força. Por exemplo, sabe que se tratando de minha história, eu, quando eu nasci, eu tive assim uma dificuldade pra aprender, eu tive uma dificuldade pra ler. Nos estudos eu tive muita dificuldade. Cada ano que se passava eu repetia de ano e quando eu tinha... e até os nove anos de idade eu levava uma vida tranquila. Aí, com nove anos de idade, meus pais acharam de me pôr numa classe especial, que a classe especial era uma classe pras crianças que têm dificuldade de captar as coisas, de entender, de aprender. Então eu fui pra essa classe especial. Aí eu confesso que a primeira vez foi muito sofrido, os alunos me maltratava muito, era muito maltratado, me chamavam de vários apelidos lá, né, nunca me chamavam pelo nome. Era neguinho, um monte de coisa, e parece que quanto mais eu chamava a minha mãe pra ir lá reclamar não adiantava, ficava do mesmo jeito, tudo, né? E só sei que ninguém ali gostava de brincar comigo. Então foi uma classe ruim que hoje, é claro né, já se foram trinta anos, hoje não tenho sentimento. Me vem assim uma lembrança muito clara daquela época, vem como uma câmara, uma imagem assim, sabe, mas isso é um passado que eu não tenho ressentimentos, né? E aí com dez anos eu troquei de classe, e aí, como se chama? Aí eu peguei uma turma até boa, diferente, mudou alguns, outros não, mas foi até suave. Melhor do que um ano antes, de quando eu entrei. E só sei que eu fiquei nessa classe especial de 81 a 84. Em 85 meus pais me tiraram dessa escola, da classe e da escola após o quê? Eu entrei nessa escola com quantos anos? Foi com seis, sete anos de idade, porque primeiro eu tava no prézinho, mas como eu bagunçava muito no pré, né, eu fui expulso, então aí eu fui pra essa escola, né, a escola Davi de Queiróz, e lá a coisa já era mais rígida, lá eu não tinha a moleza que eu tinha antes. E só sei que meus pais foram para uma escola, me tiraram da escola, né, da classe especial, que também não tava aprendendo nada. E aí uma curiosidade: eu não me lembro com quantos anos que eu aprendi escrever. Eu me lembro que quando eu não sabia escrever eu via meu pai assim escrever uma coisa, assim, ele tremia assim a mão e ele escrevia, meu pai, e escrevia bem. Meu pai sabia tudo, meu pai sabia ler, sabia escrever, sabia tudo, né? E tremia o dedo assim e escrevia normal, e eu, quando chegava no pré ou mesmo na escola, quando eu fui pra escola, eu na hora de tremer era uma dificuldade pra escrever, porque eu não sabia escrever nada. Olha só, porque não sabia escrever nada, a vontade que dava era pegar e riscar tudo, porque eu não sabia escrever nada. Isso é uma coisa que eu tô contando lá do... Então aí como eu aprendi a escrever eu não me lembro, isso eu não me lembro. Agora, ler, porque eu sofri muito pra aprender a ler. Pra aprender a ler, decorar uma conta, uma tabuada, porque meu pai sempre ficava de cima, né? Agora pra mim aprender a ler eu aprendi com onze anos de idade.

P/1 –Com quem?

R – Eu aprendi a ler com uma cartilha, né, que um ano antes as professoras sempre ficavam no pé “Ah, Adriano, você não tem jeito, você não estuda em casa, não sei o que, você não estuda em casa”. O nome da professora eu me lembro que o nome dela era Cleuza, que inclusive ela só ficou na... isso foi em 1982, nessa época eu tinha meus nove pra dez anos. Ela ficou até quase o final do ano, mas ela teve que sair, porque não aguentou alguns alunos que bagunçavam na classe, tudo, que davam muito trabalho pra ela. Essa professora saiu e ficaram outras, entrava e saía, entrava e saía, e substituta e tudo, essas coisas. Eu só sei que quando acabou eu não aprendi nada. Eu aprendi um ano depois somente, com onze anos de idade, indo, claro, direto pra escola, e lendo ali a cartilha Letrinhas Amigas - eu tenho ela até hoje, que a professora pediu. Porque a professora antes pediu um livro, a Cartilha da Narizinho, mandou nossos pais comprarem, meu pai, minha mãe, compraram a cartilha, aí tava ali. Depois a professora olhou e aí perguntou pra nós qual a cartilha anterior que a gente lia. Aí um aluno da classe falou que era o Letrinhas Amigas do ano passado, de 82. Aí falou assim: “Você traz ela para eu ver?”. Aí trouxemos, ela falou assim: “Faz o seguinte, deixa essa pra lá e vocês continuam nessa aqui”. Aí continuamos, falei com a minha mãe. Minha mãe falou: “Ah, mas pô! Mas se é assim, por que que manda comprar então? Pra jogar fora? Encapa, tudo, e...” Aí ficamos. E uma curiosidade, eu aprendi a ler lendo ali a lição da rosa. Rosa, rosado, um monte de coisa. Aí uma coisa que muito me chamou atenção, muito me marcou, é que eu tava uma vez na classe, a professora faltou, né, aí uma de minhas proezas ali nas classes ali, quando a professora faltava tinha que mudar de classe, ir pra uma outra classe. Aí eu tava ali, tava eu e um aluno sentado na frente, o nome dele era Carlos, aí eu falei assim: “É Carlos, eu to estudando em casa”, “Ah é? Você tá estudando em casa, é? Também nem careço estudar todo dia, porque a professora quase não pede pra gente estudar em casa, e tomar nossa lição. Mas agora eu já sei, eu não preciso mais não. Mesmo que ela pedisse eu não preciso mais, porque eu já sei”, “Ah, você não estuda mais não, é?”, “Não, não, eu já sei já, de cor”, “Ah, já aprendeu a ler?”, “Já”, eu aprendi a ler assim, lendo as páginas, ali a cartilha. E o Jânio foi no alfabeto, A B C D, que no final da cartilha tinha. Pois bem, aí o fato é que também continuou assim, eu estudava, mas não passava. Aí eu fiquei nessa classe, nessa escola, até os doze anos.

P/1 –Só pra entender. Como que era na sua casa nessa época? Você brincava com seu irmão? Tinha alguma coisa que vocês faziam?

R – Não, normal, como qualquer menino, criança normal. A gente brincava em casa, brigava, brincava na rua. Essas fases que eu tô contando são as melhores fases que eu passei.

P/1 –Seus pais te apoiavam pra estudar? Pra ir, pra...

R – Ah, isso! ficava muito no pé, tudo, eles pegavam muito no pé pra estudar a tabuada, decorar a tabuada. Sempre, assim, quando a gente bagunçava, brincava, a primeira coisa que quando ele não punha de castigo, ele punha pra gente estudar. Tanto ele como era comum naquela época. Hoje já não sei, né, porque eu não tenho filho, não tenho mulher, não sei como os pais tratam os filhos. Sei que ainda bate, né, mas sobre esse gesto, falar assim “Ô moleque, pô, vê se se aquieta, pô, senta num canto e vai estudar! Pega um livro aí, uma cartilha aí ou uma coisa aí, senta e vai ler aí, ô!”. Ouvia muito isso aí, tanto do meu pai como dos outros, os pais dos outros meninos também. Hoje já não sei como que funciona mais. Então aí eu confesso, foi a melhor fase, porque rapaz, quando eu penso nessa fase aí, me enche de emoção. Eu fico “Meu Deus!” Olha, sei lá rapaz, foi uma época tão boa, tão feliz quando eu era criança, adolescente, que eu brincava. Uns tempo que a gente não tinha passado nem futuro, era só presente e alegria. Quando passava uma coisa não deixava saudade, não deixava nada, pra foto, não ligava pra nada. E mesmo que se tivesse uma câmera dessa, sair registrando também não ligava, só ia ligar anos depois, né, se é que existisse essa imagem dessa fita, né? Bom, então aí foi uma época feliz. Foi uma época que a gente era imortal, não tínhamos doença... Entre aspas, né? A única doença que eu tinha era isso, era a falta de eu captar as coisas, das pessoas acharem que eu era doente, que eu era uma pessoa fechado e o Jânio já era uma pessoa assim mais simples, mais aberta, tudo, e eu uma pessoa mais fechado. Mas depois... calma aí que eu vou chegar lá nesse detalhe aí, calminha. E quer ver? Eu era uma pessoa assim que era desse tipo, o meu irmão, o Jânio, ele sempre passava na minha frente. Ele sempre passava de ano na minha frente e eu sempre atrás, mas isso eu vou contar depois. Voltando, eu tinha também um problema de bronquite, bronquite alérgica, e tomei tanto remédio, remédio de farmácia, xarope, remédios caseiros, tudo para eu curar dessa bronquite. Porque essa bronquite não tinha hora pra me pegar, era de manhã, era de tarde, era de noite, não tinha horário. Muitas vezes quando eu tinha um compromisso pra ir pra um lugar, eu desfazia desse compromisso, por causa desse problema de bronquite. E hoje, graças a Deus, sou curado, me curei mesmo da bronquite. Então, a única coisa que eu era mortal era a bronquite, porque quando ela me pegava mesmo, de madrugada, era terrível. Aí minha mãe, ela pegava, fazia ali

uma inalação, ela enchia a caneca de água, não sei se isso já aconteceu com você, ou com você aí que está me assistindo ao vivo, né, e punha Vick com um palito dentro e eu respirava aquele ar. Ficava lá horas e horas, ali respirando aquele vapor da água fervendo com o Vick, que era o inalador que ela fazia. Então ficava horas com aquilo ali. E depois de muitas horas e horas com aquilo ali, respirando aquilo, aí eu melhorava. Aí quando era o outro dia assim, eu... mas isso era durante a noite, quando não tinha como sair pra... Aí quando era outro dia ou eu ia no pronto socorro tomar injeção, porque quando eu ia no pronto socorro pra tomar injeção, ave Maria, aí era terrível rapaz, aí não tinha jeito. Era injeção, injeção mesmo, de cavalo, daqueles compridos, viu? E tomava era nos braço, era nas nádegas, no traseiro, tudo, e eu chorava por causa disso aí. Fora isso aí, fora a bronquite, é só. E também quando eu pegava gripe, quando eu me resfriava. Porque quando eu me resfriava a bronquite me atacava. Aí misturava tudo, ave Maria! Aí nem remédio, nem comprimido, nada! Aí tinha que ir pra um farmacêutico, que ele é vivo até hoje, graças a Deus, eu falo o nome dele aqui porque é uma pessoa que eu tiro o chapéu, vale a pena. É uma pessoa maravilhosíssima, o nome dele é Rui. Minha mãe levou eu pra farmácia dele quando eu tinha onze anos, é vivo até hoje e até hoje eu vou na farmácia dele. Só os vizinhos da minha casa, todos elogiam esse farmacêutico. E é claro, a pessoa, quando é boa, já viu como é que é. Perseguido, fala que não pode, porque na farmácia dele tinha inalação. A vigilância... Como é que chama? A vigilância de saúde foi lá e tirou a cama, tirou o inalador, tirou o negócio de medir a pressão, tudo. Eu não sei como é que não tirou os remédios e a farmácia dele e tudo ali. E, aliás, a farmácia era do pai dele, que o pai dele, segundo consta, é uma pessoa bacana. Bom, então a minha mãe me levou pra lá, aí eu me lembro que a primeira vez ele falou assim: “Tá, dona Antônia, eu vou fazer o seguinte. Eu vou preparar uma vacina pra ele e essa vacina é leve. Pode ficar tranquila que é leve. Eu sei que essa você vai aguentar, agora a do pronto socorro você não aguenta. A do pronto socorro aí é brava mesmo”. Aí, o homem era danado, o homem já sabia a quantidade. Ele dava injeção, essa parte dava pra aguentar, eu não chorava. E depois ele dava o inalador. Ele já sabia a quantidade de inalação suficiente pra eu tomar ali na farmácia dele. Era muito bom ali. Pois bem, e eu era assim, eu só ficava bom da bronquite junto com o resfriado, a gripe, quando me medicava na farmácia dele. Aí a bronquite ia passando, saía um pouco o catarro dos brônquios, porque quando vinha a bronquite junto com a gripe, era uma coisa terrível.

P/1 –Como que ele era, o Rui? Conta um pouco como ele era como pessoa.

R – Pessoa bacana, pessoa simples, humilde. Um homem alto. Ele parece que já é até avô, os filhos já cresceram e tudo, né? A farmácia dele é pequena, não é antiga, é uma farmácia até... Foi vítima de vários assaltos ali, aí teve que ficar afastado, porque foi até ameaçado. Passou por um drama terrível, aquele homem passou. E ele não merecia aquilo. E tinha outros empregados, tinha um japonês que trabalhava pra ele, tinha um rapaz moreno, uma senhora que trabalhava pra ele, já saíram tudo. Agora é só uma senhora mais um outro farmacêutico e a mulher dele que trabalha junto

P/1 –Tinha uma cama pra fazer...?

R – É, tinha, mas não têm mais, eles tiraram.

P/1 –Fiquei curioso. Você tinha contato com os filhos do seu pai, do outro casamento?

R – Ah rapaz, boa pergunta! Olha, você foi até direto. Eu só vim descobrir que meu pai foi casado pela primeira vez, quando eu tinha dezoito anos. Porque foi assim, a gente tava “futucando”...Para dizer a verdade não, nunca tivemo contato, mas escuta, a minha mãe, ela tava mexendo nos documentos ali, aí eu tava junto com ela, tava também o meu irmão junto. Aí nós vimos ali uma certidão de nascimento, falamos assim: “Mãe, que certidão é essa aqui? Paulo não sei do que! Oxe, não é do filho do Almeida?!”, “É mãe, é dos filhos do pai?”, “Ah, você acha que eu sou a primeira mulher do seu pai? Seu pai já casou já com outra mulher”, eu falei assim: “O quê? Sério? Ah... Ah mãe, eu não sei, eu to sabendo agora.” “Pois é, pois esse aqui é o filho mais velho, Luiz Pedro”. Esse Luiz Pedro hoje tá com cinquenta e dois anos, o Luiz Pedro, e o Paulo, que é filho caçula, esse mês de Julho vai pra cinquenta anos de idade. Ele é solteiro, não tem filho não. Aliás, os dois filhos quase não se vêem, porque o caçula viaja direto, é caminhoneiro, viaja muito, quase não tem tempo, parece que mora sozinho, a última vez que eu soube morava sozinho. Aí miha mãe falou o seguinte: “Pois é, pois seu pai... E se um dia eles quiserem vim aqui, quiserem alguma coisa, eles tem direito. Aí o meu irmão falou assim: “Aqui eles não tem” “Claro que eles têm, eles são filhos dele, claro que eles tem direito aqui, eles têm direito sim”.

P/1 –E seu pai não falou nunca sobre eles pra você?

R – Não, nunca falou. Nós é que descobrimo com o tempo. Eu tinha dezoito anos quando eu descobri essa certidão. Minha mãe foi mais além. Minha mãe falou assim: “Inclusive, ele tinha foto dela aqui, mas ele pegou e consumiu com a foto dela aí.” Porque aconteceu o seguinte, resumindo, eu queria até deixar isso aí por último, se você me permitir, mas eu vou falar logo já que você tocou. Em 2003, quando veio e irmã dele pra cá, pra São Paulo, veio com a equipe da Rede Bandeirantes, que a Band andou lá onde o meu pai trabalhou a última vez, né, de plaqueiro na Barão de Itapetininga, aí entrevistou o meu pai, aí a irmã do meu pai viu ele pela televisão e aí entrou em contato com a Band, a Band foi lá, levou eles pra onde o meu pai trabalhava. Aí foi lá, viram, a irmã do meu pai foi correndo abraçar o meu pai, que não se viam há muito tempo, né? Meu pai se levantou da cadeira com a placa e abraçou ela, parecia até novela. Abraçou ali, dando tchau, e daí a pouco a Band levou eles tudo de carro lá pra casa. Meu pai até preocupou se isso não ia atrapalhar o serviço, mas não ia atrapalhar não. Aí levou lá pra casa, ficou lá. O cunhado do meu pai, que é marido da irmã dele, levou um monte de foto lá de infância, de quando ele foi no Paraná a última vez e vice versa, né? E aí, o que esse cunhado do meu pai fez? Foi atrás até da ex-mulher e dos filhos, e até da ex-sogra, que a sogra era viva e já faleceu já. E foi uma reviravolta. Aí eu também já descobri coisas que eu nunca tinha visto, fui na casa dessa sogra, conheci ela. A sogra mostrou ali pra nós as fotos do meu pai quando tava no exército, da filha dela quando era casada com meu pai. Porque lamentavelmente, é até delicado o que eu vou falar. Eu nunca cheguei a conhecer os filhos dele, mas o que aconteceu foi o seguinte: é que meu pai brigava muito com a ex-mulher dele. Ele bebia muito e batia nela. Então o que aconteceu? A mulher não aguentou mais e foi-se embora e largou os filhos com ele. Aí segundo conta o filho mais velho, depois que ela foi embora o meu pai ainda andou com eles pequenininho numa praça. Andou tudo com eles pequenininho numa praça, depois voltou, deixou eles em casa, aí saiu. Parece que foi trabalhar, não sei pra onde é que foi. Aí passou um tempo, a mulher chegou, viu que ele não tava em casa, aí catou os filhos e levou embora. Aí o que que aconteceu? Meu pai nunca mais quis saber de entrar em contato com os filhos dele. Teve casos que ele trabalhou na Goodyear, né, ele se encontrou com o filho dele, mas ele nunca quis falar nada com o filho, nunca quis, como é que chama, debater, nada com o filho. Nunca quis saber de contato.

P/1 –Então, a gente tava falando um pouco da história do seu pai com a outra família. Você tava dizendo que seu pai nunca mais falou com os filhos dele.

R – Ah, sim, aí ele via, mas nunca entrava em contato e os filhos também não ficavam atrás também, não entravam em contato. Então aí o que aconteceu? Nesse vira e mexe, aí depois a Irmã do meu pai mais o marido foram embora, aí demorou um pouco meu pai foi pro Paraná, né, foi a última viagem dele antes de ele falecer. Depois ele voltou e depois faleceu, aí só tava o Jânio em casa, só, porque tinha saído eu, tinha saído minha mãe, tínhamos ido pra Igreja, ficou só o Jânio. Então de repente, depois de – o filho dele, Luiz Pedro, o mais velho, ele foi advogado e tinha uma firma. Não sei se ainda tem, uma firma no Brás. Minha mãe já chegou a ir lá pra se encontrar com ele, pra ver se eles queria ter alguma coisa na casa, se eles queriam ter algum direito. Eles falaram que não, que “A gente tá sossegado, a gente não quer nada de vocês”. Esse Luiz Pedro é casado e é pai de dois filhos, se eu não me engano. Pra encerrar, ele tava lá, diz o Jânio que a fala do filho dele é igual do pai, igualzinho a fala. Porque ainda hoje eu falo assim, tô em casa ali, penso, normalmente a gente, que é filho, né, sempre vai relembrar da fala da mãe, fala do pai. Penso assim, eu escuto o meu pai falando, parece até que tô ouvindo, até vendo falar, e a voz é igual. Tava ali fumando um cigarro, né, aí ele sentado na mesa, esse filho do meu pai, o Luiz Pedro, e minha mãe e o Jânio de frente a frente com ele, né, aí fez a pergunta, “Não, pode deixar, não esquenta não, não estamos preocupados”. Eu só sei como eles são por causa que eu vi a foto dos dois, porque o cunhado, o marido da irmã do meu pai, levou as fotos lá pra gente conhecer quem era e a ex-mulher do meu pai também, que mora na Bahia. Aí depois de tudo foi esse Luiz Pedro, nós tínhamos sabido, eu e minha mãe, como eu já havia dito, e foi esse Luiz Pedro mais a mulher e os filhos, não sei se a sogra foi... E a mãe desse Luiz Pedro, foram tudo lá pra casa, e quem tava era só é o meu irmão. Aí o Jânio atendeu, conversou, “Fica a vontade. Não, o Adriano deu uma saída, minha mãe também saiu, eles foram pra igreja deles. Eles saíram, mas daqui a pouco eles tão aí, vocês não querem esperar?”, “Não, Jânio, a gente não vai demorar muito não, que a gente vai ter que ir pra uma viagem”, porque sempre viajavam, né, eles sempre viajavam nos finais de semana, eles nunca estavam em casa de fim de semana. Pois é, e a última vez que eu soube ele morava em Artur Alvim. Agora já não sei mais, porque é um povo tudo desunido, é um povo tudo pra lá e pra cá. Minha família infelizmente não é uma família unida, né, um fato chato lamentar isso aí, mas não é, né? Então, voltando... Eu, na minha infância, até os meus dezesseis anos de idade, foi o ano mais feliz da minha vida, foi o ano que a minha vida começou a mudar. Eu tava conhecendo o mundo, com dezesseis anos. Aliás, eu comecei a ficar feliz dos quatorze anos pra cá, mas aos dezesseis anos, esse levou prêmio. Porque eu fui feliz em todos os sentidos, fui feliz em tudo. Além de não ter passado e nem futuro como um menino, uma criança, eu ainda tava na adolescência, uma fase como todo jovem, namorar, brincar, essas coisas. Eu entrei pra Escola Adventista aos dezesseis anos e nessa Escola Adventista é que foi uma espécie de, eu não sei, um tabu na minha vida. Foi como se alguma coisa tivesse vindo desse ano pra lá ou de dois mil e alguma coisa pra lá.

P/1 –Como assim?

R – Eu vou explicar. Porque foi o ano, foi uma infantaria. Foi uma escola boa, uma escola marcante, tenho saudade, até hoje eu guardo o uniforme da escola, só a blusa e a calça, porque a camisa e meia já foi tudo já. Foi o estopim pra eu entrar pra uma religião que me marcaria pro resto da minha vida. E vamos ver se vocês adivinha que religião que é. Ah sim, que falando em religião, a minha família era católica, mas era também da umbanda. Nasci num centro de umbanda, porque quando a minha mãe tava… Mas eu vou chegar lá. Porque a princípio a minha família era tudo católica, meus avós católicos, minha mãe... Mas a minha mãe tinha, diz ela, né, muitos anos depois, que na Bahia tinha lá uma uma igrejinha protestante que ela ia lá, enquanto que as irmãs dela tudo iam pra igreja católica ela ia pra lá. Depois, quando ela veio pra São Paulo, tudo, resumindo tudo, teve internada, ela conheceu uma colega de nome Dona Raimunda. Essa Dona Raimunda ela frequentava centro de umbanda. E como minha mãe vivia meio... tava com uns problemas, essa Raimunda levou minha mãe pra lá.

P/1 –O quê que sua mãe tinha de problema?

R – Ah, problemas financeiros, dificuldades, né, nessa época tinha muito problema financeiro, morava de aluguel, ainda tem até a casa aonde eu nasci, depois que eu nasci, né? Fica perto do pronto socorro. Segundo conta minha mãe, se eu não me engano, quando eu nasci a casa era pequena, que é aluguel. Hoje é um casarão, que parece uma mansão. Não tenho certeza, isso segundo ela. Aí só se eu levasse ela pra lá de novo pra ela poder me esclarecer melhor. Pois bem, e aí o que aconteceu? Eu nasci nessa religião e conforme o tempo, minha vida era assim, nem era pra bom nem era pra ruim, certo? A dona do terreiro era uma tal de Tida, que é viva até hoje e é dona de centro até hoje, tá bem. A única coisa que aconteceu é que separou do marido, o marido largou dela, foi embora, mas, pelo que eu vejo lá, tá bem. Não que eu entre, né, que, aliás, eu preciso ir lá uma hora. Eu tenho passado em frente e no tempo que eu ia com meus pais, era bem diferente, mudou muito. Eu só voltei lá em 2001, mas eu vou chegar lá. Então o quê que acontece? Minha vida era assim, minha mãe chamava, o meu pai chamava ela de madrinha, o nome era Tida, mas os meus pais chamavam ela de madrinha. Era uma mulher autoritária, mandona, sabe como é que é? Parecia até que era mãe do… Minha mãe era uma espécie assim de... tudo que ela pedia minha mãe fazia, aquela coisa, ela era muito mandona e é ainda, essa Tida. Minha vida era assim, eu cresci praticamente... e só mudou a partir dos dezesseis anos de idade, quando eu entrei nessa Escola Adventista, que foi uma infantaria e a partir dela eu entrei pro protestantismo.

P/1 –O quê que mudou na sua vida?

R – Quando eu entrei pra…? No começo, ó, eu vou falar, porque é uma coisa que todo mundo sabe, vocês aqui sabem, ninguém aqui é criança, todo mundo sabe, né, todo mundo conhece. Você que tá me vendo aí, me assistindo, conhece também, certo? No começo foi bom. No começo foi aquela maravilha, foi aquele sonho, aquele romantismo, né, foi aquela a benção, certo? Eu tinha o que? Quinze para dezesseis anos. Eu me lembro que quando eu entrei pra essa religião eu entrei com o dono da igreja, presbítero lá, eu tava ali assistindo – porque antes eu só ia de visita. Aí esse presbítero, o nome dele é Ferreira, ele já morreu, num acidente de carro, perguntou: “Se alguém aqui que nunca levantou a mão pra Jesus e deseja aceitar, viu, levante a mão.” Aí eu olhei pra trás, o menino levantou a mão, mas depois abaixou. Aí “Quem nunca aceitou Jesus e quer aceitar hoje, pode levantar a mão” Aí eu levantei e por meu descuido eu deixei. Daí ele: “Vem aqui na frente. Você que levantou, vem cá.” Aí eu peguei e fui. Cheguei lá na frente lá, ele botou o microfone assim, e falou assim: “Você, diga assim, ‘ó Senhor Jesus’”, eu falei “Senhor Jesus”, “eu te aceito”, “eu te aceito”, tal e tal. A minha mãe ali, sorrindo, e tinha outra pessoa sentada ali que tava de gravata também, perguntou o meu nome. Eu falei assim: “Meu nome é Adriano tal tal”, ele pegou e anotou ali, só que eu não gravei bem que era essa pessoa, né, ele anotou meu nome. Só gravei a pessoa que me chamou lá na frente. Os dois já estiveram na minha casa pra queimar alguns objetos lá de umbanda que minha mãe frequentou. Minha mãe tava saindo, tudo né, que, aliás, quando foi pra nós entrarmos pra seita evangélica, foram tudo através de mim. Primeiro foi minha mãe, que minha mãe já havia falado com uma senhora que se fosse seguir de uma vez que ia pensar, e depois foi meu pai. Meu pai foi o último. No começo comecei a participar ali do coral, que o coral eu achava bonito. Comecei a visitar todas as igrejas, que é uma exclusividade, porque eu nunca saio de casa, de menor ainda não podia. E o que que foi bom também? Foi bom em tudo. Meu pai já tinha sido dispensado da Goodyear, o negócio já começou a ficar ruim a partir daí, mas aí eu tava muito longe de ser observado, de ter sido enxergado. Então aí participei de umas peças lá, peça do Herodes, no final do ano. Enfim, foi um momento assim inesquecível. Porém, infelizmente, durou pouco tempo. Um ano depois a realidade, a dureza, a dura realidade. Eu, na minha alegria, ainda conhecendo, né, cheguei a me batizar pela segunda vez, porque eu fui batizado a primeira vez aos três anos, na Igreja Católica, na Igreja Nossa Senhora de Fátima. Fui batizado aos três anos, em 1975, até hoje eu tenho o… Eu trouxe inclusive a foto aí, vocês vão ver depois a foto. E na Igreja Protestante Evangélica, essa não tem a foto, graças a Deus, só tenho ainda o livro sagrado, a bíblia e o cartãozinho. Aí eu comecei, meu amigo, a sentir as primeiras injustiças. Eu comecei a ver que o que era bom virou pesadelo, um ano depois. Comecei a ver meu pai desempregado, nós começamos a passar a primeira necessidade. Nunca antes na vida, se é que eles passaram eu era bem pequenininho, nenezinho, e depois de quase dezessete anos eu vi meu pai ali, desempregado, e também com uns comportamentos esquisitos, uns comportamentos estranhos, o Jânio também com uns comportamentos estranhos também, certo, que parecia um comportamento de pessoa não evangélico, não protestante, uns comportamentos feios, umas atitudes feias.

P/1 –O quê, por exemplo, Adriano?

R – Assim, como é que diz? Tudo que eu perguntava pra ele já era um motivo de ofensa: “Ah, não interessa. Você quer saber demais, você não sei o que”, não era assim. “Ah, você tá me achando bonito com essa blusa aqui, você já tá com inveja já”. Ele não era assim! E minha mãe muito acomodada, demais, muito assim doente, triste demais, e ela não era assim. E aí, como é que diz? Resultado: quando eu completei dezoito anos, que foi o mesmo ano que eu descobri que meu pai tinha casado com outra mulher, o que antes era sonho, maravilha, virou pesadelo. Todo domingo eu era obrigado a levantar cedo pra ir em uma igreja, ir lá tomar ceia, Igreja (____?) de São Miguel tomar ceia, todo domingo. Amanhecia aquele domingo ensolarado e eu era obrigado a levantar cedo, como quem tava indo pra uma escola, botar ali a camisa social, o colarinho, calça, tudo, né, e a bíblia aqui ó, pra mostrar que era crente, que se vê que naquela época não era fácil. Porque Brasil era um país católico. Hoje em dia o Brasil é praticamente um país protestante, e se é assim hoje será sempre assim daqui a dez, vinte, trinta, talvez mude daqui a quarenta anos, não sei. Mas naquela época era um país católico, da umbanda, espírita e curandeiro. Ah, uma coisa é se dizer assim “É evangélico? Crente”, é uma coisa muito, “Ah, ser crente não. Ser crente não pode assistir televisão, ser crente não pode falar isso. Virar crente não pode isso, aquilo, outro”, e hoje em dia nego vira evangélico aí a torto e a direita. Então era assim, pra eu assistir uma televisão, era com a maior restrição. Pra mim ir pra uma festa ou fazer uma amizade, de preferência que fosse da mesma religião. Por exemplo, se você fosse meu amigo, ia perguntar se você é crente. Se você falasse que não, aí você já não prestava mais e também não podia ter assim certas brincadeiras e liberdade e intimidade com você, não podia, de jeito nenhum, e por mais que você fosse bom pra mim, naquela época você não prestava. Nem você, nem ele, nem ninguém, por melhor que seja. “Mas aquela pessoa é tão bacana”, “Mas é, mas tem aquele negócio, não tem Jesus, a pessoa pode fazer a maior bondade, viu, não tem Jesus, não aceitou Jesus, ele é condenado e levado pro inferno, ele é ímpio, ele é mau e não sei o que”. Pelo menos é o que passaram pra mim naquela época. Entendeu como que é as coisas? Aí você pergunta pra mim o porquê que eu to falando, me expressando isso. Por quê? Porque o seguinte, a verdade tem que vir à tona. Além de a gente ver os exemplos que a gente vê por aí, das rádios, das televisões, tudo, um detalhe: quando eu era menino, criança, adolescente, quando meus pais eram da umbanda,a religião não me dominava, eu era livre, era liberal. Eu fazia o que eu bem quisesse. Quando entrou a seita evangélica na minha vida, foi o mesmo que o império romano invadir Jerusalém no tempo de Jesus. Foi a mesma coisa. Praticamente a seita evangélica invadiu minha vida, invadiu minha moral, invadiu, destruiu minha juventude, destruiu minha maneira de ser, de me expressar. Acabou comigo. Como é que chama? Tirou tudo o que eu tinha, minha liberdade de expressão, minha liberdade de pensar. Tudo essa seita maldita, desculpe a expressão, fez comigo. Porque antes era livre, era liberal e quando entrou foi um império romano, eu posso dizer, foi uma ditadura. Eu era fechado pro mundo, era fechado. Não tinha liberdade de nada. E foi durante... isso foi durante sete anos, que para mim parece que foi vinte e tantos anos.

P/1 –E nessa época, você tava com a sua família também com problemas, não é? Dificuldade de falar com seu irmão, com sua mãe, com seu pai…

R – Tudo, tudo. O meu irmão já aprontava comigo pelas costas, mais os colegas de igreja dele, e eu não desconfiava de nada. Eu sentia, mas não podia fazer, porque é irmão, da igreja, não sei o que, não pode brigar, não pode chamar atenção.

P/1 –Mas você trabalhava nessa época? Com

dezoito anos começou a trabalhar?

R – Nada! Quê? Só fazia bico. Eu com dezoito anos cheguei a fazer, a trabalhar de pedreiro. Ali, dentro da igreja ali, uns cara ali que não eram evangélicos, eu quase quebrei a cara, de tanto de “xingo”, de nome que eles faziam comigo ali, não tava escrito. Nego, no fim não aguentei, caí fora dali. Enfim, eu com dezoito anos, olha, é triste, é lamentável, mas dezessete, dezoito anos eu era o cara mais triste, mais infeliz que se pode imaginar. Você olhando, se você vê uma foto, um vídeo meu daquela época, olha, você olha assim, não diz, mas por dentro eu chorava e gritava, por dentro. Como eu havia dito, eu com dezoito anos, que antes era uma pessoa livre, eu levantava cedo, debaixo de bronquite, falta de ar - o que era uma pedra no sapato esse bronquite, não me deixava em paz de jeito nenhum - punha a camisa de colarinho social e a bíblia, como eu já te falei, ia tomar a ceia. Quando eu chegava ali, que eu sentava assim na galeria, sentava ali e tudo, olhava o pessoal ali, o pastor pregando, fazendo os seus trabalhos, tocando, cantando, e eu lá assim, sério, aí eu olhava assim para a janela ali e eu pensando assim, e eu olhava a telha, do lado de fora, e eu pensando: “Os passarinhos nessas horas tão voando livremente. Por que eu não nasci um passarinho?”

P/1 –E como resolveu sair da igreja?

R – Olha, meu amigo, quando foi pra eu sair... Boa pergunta, viu? Não foi fácil não. Como tão essas luzes acesas, eu tive que ter muita coragem, muita decisão própria pra mim poder sair. Porque eu saí? Como é seu nome?

P/1 –Tiago.

R – Tiago, eu saí mesmo na pior. Eu saí ruim mesmo, eu saí, ó, nas trevas, entrevado mesmo. Eu saí ruim, certo? Eu saí com dezoito anos. Depois, com vinte anos eu mudei pra uma outra igreja, de um pastor que se vestia todo de branco. Fiquei dois anos e tive que sair por motivo de briga, contenda, essas coisas, ele já não era legal da cabeça também. Não era e não é até hoje, se você chegar agora lá não tem mais ninguém mais, só ele mesmo. E qualquer um que vai não fica. Depois fui pra uma outra igreja igual da minha mãe, Brasil Para Cristo, igreja pequena. Como diz o padre da minha paróquia, essas igrejinhas de botequinho, sabe? Igreja pequena, fiquei ali. Ah, quando foi pra eu entrar ali é que o bicho pegou rapaz. Olha, eu já entrei ali rapaz, perdidinho, perdidinho. Em 93 completou cinco anos. Foi até gozado, que quando completou cinco anos que eu tava na seita, vira e mexe eu ia lá pra igreja do outro lá, Davi Miranda, Deus é Amor, que em junho completou seu jubileu de ouro, cinquenta anos. Vira e mexe eu tava ali. Aí eu vi um rapaz ali em cima do altar, falando assim: “Ó meus irmãos, eu to aqui, né, pois são meus irmãos amados, eu to completando cinco anos que eu to nos caminhos de Deus. É! Cinco anos que eu to aqui, que o Senhor vem me sustentando até aqui”. Só que não fui eu não, foi o rapaz da igreja dele lá, Deus é Amor. Aí, eu assistindo, vendo aquilo lá, eu pensei: “É mesmo, eu também. Agora em Agosto eu completo cinco anos também. Acho que eu vou fazer uma surpresa lá pro meu pessoal da igreja lá que eu to indo”. Não deu outra, eu fui mesmo. Fui, falei e tudo, falei as mesmas coisas que o garoto falou tudo, essas coisas, né, e no meio disso, vira e mexe eu vivia assim, amargurado. Eu vegetava, vinte e um anos de idade, certo? Pois bem. Resumindo, passou, foi uma formatura de um colega meu, aí intrigas, discórdias lá com o pastor lá. Peguei, falei pra mãe: “Mãe olha - falei - acontece assim, assim lá dentro”. “Uma coisa eu te falo Adriano, se eu fosse da igreja desse homem, eu frequentando igreja, eu não saía da igreja do Olímpio nunca, viu Adriano. Eu não sei, porque esse homem toda hora tá discutindo, tá arrumando contenda, tudo. Adriano, ora a Deus aí prá ver a igreja que você vai frequentar”. E era tão chato, rapaz, e você ficar pulando de religião. Sabe quando você tá num lugar assim que você quer ter paz? Quer ter sossego? E eu não tinha, porque esse véio não dava, não dava paz. Pois bem, aí eu planejei o seguinte: em Janeiro de 94 eu vou sair fora daqui, vou falar pra ele: “Ó, eu vou sair, porque não tá dando mais”. Eu não vou falar os detalhes, porque... Mas antes disso eu já comecei assim a sentir uma espécie de síndrome do pânico, sabe, uma leve síndrome do pânico, digo, por conta... Porque a igreja dele ali era quase que uma espécie de centro espírita, porque toda hora ele tava vendo espírito. Espírito de animal, espírito disso, espírito daquilo. Quando não era espírito de animal, era espírito de imagem de quem tem centro de umbanda. É uma coisa apavorante. Pois bem, chegou já pra terminar o ano, fui em Santana ver um serviço lá, pra trabalhar na Nitro Operária, não deu certo. O cara me reprovou por causa que na foto da minha carteira profissional na época não tinha carimbo, e por conta disso não fui aprovado. Voltei chateado, tudo, né? Resumindo, em Janeiro de 94 eu cheguei nele e falei: “Ó, eu vou sair fora dessa igreja porque não tá dando”, “Ah, você vai sair? Você vai voltar lá pra igreja lá da sua mãe?”, Falei assim: “Vou”, “É, você pode ir, mas...”, e eu já esperava o que ele ia me responder, “É, você pode ir pra lá, mas Deus tá me mostrando um abismo”. Sabe essas pessoas assim, igual cartomante? Que joga búzios? Que nunca te vê uma coisa boa futuramente, só se vê acidente de carro, tragédia? Assim era ele. Então, aí até “tropiquei” um pouco no tapete, ele falou: “Olha aí ó”. Aí um outro pastor, amigo dele, que inclusive saiu de lá, falou assim: “É Adriano, você vai lá, mas muitas vezes a benção não tá lá, a benção tá aqui”. Falei assim: “Ah, mas eu vou assim mesmo”, “É, você pensa direitinho, porque a benção pode tá lá” e esse que me falou não tá mais lá, já saiu. Separou da mulher, foi-se embora pro Rio de Janeiro, um rolo danado. Só sei que aí eu fui pra essa igreja, essa Brasil Para Cristo, que foi a última igreja protestante que eu frequentei. Fui pra lá em Janeiro de 94. Entrei mal, cheguei ruim, ruim. Aí, nesse meio tempo, eu faço visita daqui, faço visita dacolá, e vou daqui, vou dacolá, sem ter paz comigo mesmo. Do meio pro fim eu cometi um delito e paguei um preço caro.

P/1 –Que delito?

R – Eu não sei se eu posso falar aqui. É meio delicado, né?

P/1 – Você que sabe..

R – Eu não sei se eu posso falar. Deixa eu pensar aqui se eu posso falar no que eu fiz. Deixa ver daqui. Não sei se eu falo... É, acho que eu vou falar por que... É, foi de um fato de eu ter roubado, de eu ter tentado roubar um chocolate, pela segunda vez, num mercado que tinha lá num bairro onde eu moro lá, que e no Cofu, e os caras me pegaram. O chocolate era até chocolate Bis, os caras me cataram. Botei no bolsa da calça social e já ia saindo, o cara descobriu, me pegou pelo braço e me levou lá escondido lá. Ixe Maria, rapaz, ave! Lá foi uma tragédia. Foi a pior coisa, foi coisa terrível. E os caras me bateram, os caras me humilharam, os caras me puseram pra baixo. Ó, eu já tava meio mal emocionalmente e acontecendo isso aí. Aí que o bicho pegou mesmo pra valer. Aí eu fiquei quase uma hora lá, viu, só levando tapa, “xingo”, eles jogando detergente em mim. No fim eles me liberaram. Mandaram pôr o chocolate lá no lugar, aí me liberaram. Falou Assim: “Vai embora”. Aí peguei, fui embora. Quase que eu fico sem fala. Eu quase que eu perco a voz do choque que eu levei, né? Aí eu fui até uma praça ali, uma praça antiga ali, da praça que tem até hoje. Sentei ali no banco ali e fiz uma coisa que eu nunca fiz na minha vida. Eu ali chorei, botei tudo pra fora. Chorei assim igual um menino de dez anos. Aí que eu me perdi mesmo, aí que eu caí num abismo mesmo. Mas eu chorei que as pessoas perguntaram “Por quê você tá chorando?”, “Não, não quero falar”, “Mas fala, o quê que foi? A gente pode ajudar”. Uma senhora tava varrendo rua ali, perguntou, aí eu peguei e falei. Aí ela falou assim: “Ah, mas ergue a cabeça, não esquenta não. Isso aí passa. Ó, toma aqui ó, aí me deu um tíquete de almoço, deu pra mim”. Aí eu peguei aquele tíquete, botei no bolso, e fiquei horas ali sentado pensando como é que eu ia chegar em casa, contar isso pro meu pai, pra minha mãe, pro Jânio, certo? Aí não tive escapatória, eu tive que ir lá, peguei e fui, aí cheguei em casa, falei tudo. “Ah Adriano, você tá louco, você não tem juízo, como é que você faz uma coisa dessa?” Não sei o que, tudo. “Você tá louco? Você tá doido?” Porque aquilo que eu falei, sabe, nessas horas aí eu não tinha apoio de ninguém. Hoje mais ou menos, fraco, né, mas naquela época eu não tinha apoio de ninguém, não tinha apoio de pai, não tinha apoio de mãe, não tinha apoio de irmão, não tinha apoio de ninguém, era eu sozinho. Nem de namorada, nada, nem de amigo, nem de ninguém, era eu sozinho e Deus. Aí eles pegaram e falaram assim: “Ó, isso aí, eu tava sentindo que isso aí uma hora ia acontecer. Eu tava sentindo isso aí uma hora.” Agora, veja a minha situação: eu já não tava bem na minha religião que eu tava. Pra piorar as coisas, desempregado. Eu não me dava bem com minha família, não tinha apoio, acontecesse o que acontecesse eles não viviam do meu lado, e por fim a velha vida, eu era evangélico. “Que isso escandaliza”, aquela coisa toda ali.

P/1 –Adriano, eu queria voltar. Eu queria fazer uma pergunta pra você, que fiquei curioso. O que que você tava pensando? O que que passava na sua cabeça quando você tava pensando em cometer esse roubo desse chocolate? O quê que você tava pensando, qual era o motivo, assim?

R – Não, é... como é que diz? Quando eu fiz isso, umas duas vezes, era pra comer só. Eu não tinha dinheiro pra comprar. Eu pedia em casa mas a resposta era sempre que não tinha, e aí quando aconteceu esse tipo de coisa que eles lá me flagraram, aí pronto, me desmoralizou todo. A mesma coisa de eu pegar assim, cometer um crime e ser preso pela polícia. E mesmo que isso tivesse acontecido, eu não ia ter apoio de nada, de ninguém, eu ia ter apoio, apoio psicológico, apoio moral, “Ah, mas você sai dessa daí”, mas não. Quando eu cheguei em casa, que meu pai falou um monte pra mim, minha mãe e tudo, né, aí peguei e fui tomar banho. Aí no chuveiro eu vi o braço até meio inchado dos socos que eles me deram, do monte de besteira que eles falaram e aí pronto. Você vê que coisa interessante. Antes, quando eu entrei, quando eu tinha dezesseis, cinco anos atrás, era alegria, felicidade, vê como é que é as coisas são, paz, tudo, minha alegria, eu era feliz em todos os sentidos. Cinco anos depois era tristeza, infelicidade, terror, medo em todos os sentidos também. E uma curiosidade, eu tava aqui pensando, teve uma colega da minha mãe que falou pra mim que, alguns anos depois, se eu não tivesse virado protestante evangélico, naquela época eu teria morrido. Ela perguntou pra mim: “Você já é batizado?”, eu falei “Sou”, “Então você já batizou, assumiu compromisso com Deus”. Isso uns anos antes de cometer esse delito. “Aí você já batizou, assumiu compromisso com Deus, você tem que ficar firme, viu? Porque se você não tivesse aceitado Cristo pra você, já teria morrido, viu?”. Aí minha mãe falou assim: “É, teria ficado aleijado, um braço, uma perna...”, “Não! Teria morrido. Teria morrido se não tivesse aceitado tudo, né?”. E aí naquele momento, anos depois eu me via perguntando: “Mas morrido por quê? Eu não era bandido, eu não era ladrão, eu não era criminoso. Eu nunca usei droga, eu não devia nada pra ninguém. Por que morrer? Morrer por quê? Tudo bem que o único problema, o que me faltou, foi segurança, quando eu digo assim, segurança, eu era um garoto, um menino muito inseguro, sabe? Eu não tinha assim, um apoio, nada. Era muito inseguro e aí com a minha entrada na religião, na Igreja Evangélica, como muitos por aí, foi a minha chance de eu ser uma pessoa segura. O que aquilo talvez poderia ter me dado uma depressão, uma síndrome do pânico naquele instante, não me deu pelo fato de eu ter virado evangélico, ter virado crente. Só que cinco anos depois o negócio mudou. Mesmo eu estando evangélico me deu tudo. Me deu depressão, me deu síndrome do pânico, que eu sentia dores terríveis de enxaqueca, dores de cabeça que eu desconhecia. Só que dor de cabeça de enxaqueca, deixa aquela depressão e o medo de morrer, de achar que a vista tá pegando fogo, tá queimando, deixa que tudo isso aí era depressão, certo, e eu não sabia. Aí nesses idas e vindas eu pensava comigo, o que antes era seguro, agora virou medo. Aí Brasil torna-se tetra. O Brasil ganha a copa depois de vinte e quatro anos. Eu ainda fui na igreja da minha mãe, da igreja da minha mãe eu fui lá no… eu vivia perdido, vivia pra lá, vivia pra cá, eu não tinha paz. Teve uma vez que eu fui com meu colega evangélico, que já faleceu, visitar a mãe dele que tava doente, aí nós visitamos depois nós viemos embora. Aí falei assim: “Ó Natan, você vai pra casa?” “Eu vou, e você vai aonde?” “Ó Natanael, eu vou por aqui. Eu vou passar aqui, depois eu vou ver pra onde é que eu vou”. Aí eu ali, andando e pensando comigo: “Meu Deus, pra onde é que eu vou agora?”. Não voltava pra Umbanda, porque eu ficava com medo de chegar lá e o pai de santo não me aceitar, a mãe de santo, que eu via tantas e tantas apologias, tantas coisas, de Crente que se afasta, aquela coisa toda. Não ia pra uma igreja católica porque achava que o padre ia me conhecer e ia me expulsar também. Então eu vivia uma pessoa assim, preso, engarrafado, perdido, em trevas. Aí, desse jeito aqui ó, camisa de colarinho, calça marrom social, uma botona preta de couro, que é do meu pai. Totalmente perdido, perdido mesmo. Eu pensando assim comigo: “Olha, como eu queria descobrir uma maneira, uma coisa assim, qualquer coisa que desse assim à minha vida algum sentido, alguma coisa que eu pudesse sair desse problema, desse mal, dessa depressão. Preciso de liberdade, qualquer coisa, uma palavra amiga”. Como me faltou uma pessoa católica, alguma coisa que viesse chegar em mim e vinhesse falar “Ah Adriano, você não quer ir lá na minha comunidade? Você não quer ir lá na minha igreja? Sair dessa vida?”

P/1 –E como chegou isso em você? Como você saiu?

R – Ó rapaz, hoje eu tô comemorando, como eu já havia dito, o meu jubileu de ouro. Meus quarenta anos de idade, quarenta anos de vida eu estou comemorando hoje. Às vezes eu pergunto, será que é quarenta mesmo? Não é trinta, não é vinte não? Não é dezenove, vinte e cinco? É quarenta mesmo? Caramba rapaz, estou com quarenta anos de vida. Rapaz, como eu passei por tantas coisas e sobrevivi e hoje eu tô comemorando o meu jubileu de ouro, quarenta anos.

Foi assim, chegou um momento que eu só vim sair – isso tudo que aconteceu comigo foi em 94, só vim sair em dezembro do outro ano. Tive que tomar coragem e falar assim: “Ó, meu pessoal, não dá mais. Não dá mais, porque, olha!”, “Não, você não pode se afastar, não sei o quê, que Jesus tá chegando, Jesus não sei o quê!”, “Olha, tenho que sair, não dá mais, tenho que sair senão...” Aí o pai da gente quis até culpar o Jânio também, né, que o Jânio teve a culpa de eu ter saído da igreja e tudo. Aí eu peguei e fui. Aí eu cheguei lá na igreja lá, e assistindo o culto, aí começou a me vir as recaídas. Aí eu pensei “Ai, ai meu Deus do céu! Eu tenho que sair daqui.” Aí eu olhava pra um e uns me olhavam com cara feia, olhava não sei o que. Aí eu peguei e saí fora. “Pessoal, quer saber? A partir de hoje não sou mais crente.” Vinte e três anos de idade. Aliás, foi Cristo que me tirou dali, o verdadeiro Cristo que me tirou dali. Essa foi a realidade, porque eu me via...

P/1 –Mas o que você foi fazer depois disso?

R – Bom, depois disso aí, vê como é que são as coisas. Eu tive que... eu parei com tudo. Parei com esse negócio de ceia, de andar de terno, blazer e gravata ou simplesmente de colarinho. Quando eu parei com isso mesmo, olha como é que é as coisas são, aí veio, como é que diz, as coisas ruins começaram a sair de mim. Eu comecei a ter pesadelos, eu sonhava eu posando em lama, eu sonhava com eu indo na casa do meu amigo, que meu amigo morava em favela, e ali era cheio de coisa ruim, braba ali. Depois vira e mexe tinha sempre o mesmo pesadelo e pisando em lama e afundando e saindo todo sujo e por fim, de tanto sonhar com isso, eu sonhava era com cachorro, com um monte de coisa, e eu sentia que existia algo, espíritos ruins da opressão, que me oprimiam a cada momento que eu ficava ali. E por fim, eu sonhando com banco de igreja. E aí com o tempo, pra você ver como Deus é bom, como o tempo foi indo, foi indo e aqueles sonhos acabaram, foram embora. E aí o resultado, tive que esperar mais quatro anos pra eu decidir que religião eu ia seguir ou se eu ia seguir uma coisa ou nada. Aí eu passando sempre em frente a uma igreja católica ali, eu pensei assim: “Aquela igreja ali, eu preciso entrar naquela igreja”, porque eu não ia em religião nenhuma, nem católica, nada. Era só igreja evangélica. Aí pensei: “Tenho que entrar nessa igreja”. Aí eu percebia que na sexta feira ali era vazio. Pensei: ”Parece que ali tá vazio, vou vir numa sexta feira aqui”. Aí vira e mexe, vira e mexe, “Olha Deus, o senhor me perdoa, mas eu tenho que tentar entrar nessa religião”. Porque até aí, o bom disso aí, é que eu já era uma pessoa livre. Eu era liberal, eu fazia amizade com qualquer um, eu andava a vontade.

P/1 – E a sua família? A família também saiu?


R – Não, continua, mas sempre com aquela esperança, expectativa de um dia eu voltar. Ou voltar doente, ou voltar na pior, ou voltar chorando e bla bla bla. Tanto eles como o pessoal deles lá também. Aí quando foi, não me lembro a data, não me lembro o mês, 1997, eu pensei: “É agora.O momento é agora! Eu vou entrar” Aí eu peguei e entrei. Ali no quintal da igreja católica tinha uma cruz de madeira, não tem mais, e pra lá tinha uma farmácia e tem ainda, mas ali é mais vestiário, onde o pessoal se reúne, farmácia, essas coisas. Ali tinha um muro, não tem mais aquele muro. Aí entrei dentro da igreja. Quando eu entrei dentro da igreja católica pela primeira vez, em 1997, óia rapaz, eu me deparei com a coisa mais bela da minha vida. Toda aquela coisa que tava em cima de mim aliviou. Eu deparei com um povo mais feliz da Terra. Um lugar que as pessoas assim, são iguais, se respeitam. Aí entrei ali, vi uma moça com um jornal ali, catei o jornal da mesa, peguei o jornal e fui sentar perto de uma mulher que tava com uma criança no colo. Eu perguntei pra aquela senhora se eu podia ficar ali. “Pode ficar”, “Não tem problema, não?”, “Não, por quê? Você é crente?”. Aí eu menti pra ela que não. Mas de fato não era mesmo, porque tinha parado. Aí falou assim: “Pode sim”, aí eu perguntei: “Que idade tem essa criança aí?”, “Tem cinco ano”, “Ah é? Cinco anos, idade boa heim! Queria ter essa idade, viu?”. Aí beleza, aí chegou a hora do padre entrar e o padre entrou. O padre era um homem branco, baixinho. Já não é mais da nossa paróquia, já saiu já há muito tempo, né? Aí o padre – eu sentado no banco de trás - aí o padre entrou, fui lá na frente, eu peguei, e ali no mezanino - que pros evangélicos é galeria - é mezanino que chama ali, né, ali era de concreto, agora é de madeira, construiu ali, mas na época era de concreto. E quem dava hóstia era um senhor moreno, não eram os seminaristas. Pelo menos no momento que eu fui a primeira vez ali. Aí assisti, não teve padre que me expulsasse, não teve padre que dissesse: “A gente conhece você, aqui você não fica”. Não teve nada disso, mas sim teve a palavra de Deus, o amor de Cristo, o cordeiro de Deus que, esse sim, tira o homem mesmo das trevas e o conduz à luz da vida eterna. Pois bem, nesse meio tempo eu entrei e gostei. Aí me despedi dessa senhora, nem lembro mais quem era essa senhora, não me lembro mais. Aí eu fui, eu senti que não era nada daquilo. O quê que eu dei pra fazer? Eu dividia o meu tempo, igreja católica, evangélica, católica, evangélica… e eu ia assim, de qualquer jeito pra igreja católica. Eu ia de camiseta regata, de short, bermuda. Eu ia à vontade mesmo, coisa que eu não fazia. Eu ia totalmente à vontade. Mas comungar, quando as pessoas iam lá eu não ia, porque eu temia ainda o padre, mesmo sabendo que tinha trocado de padre. Até que quando foi Janeiro de 1999, com vinte e sete anos incompletos, eu dizia: “Não, já que eu to aqui” - sem ninguém me chamar, porque quando eu fui pra igreja católica ninguém me convidou, eu mesmo fui - “Eu to aqui, é aqui que eu vou ficar. A partir de hoje eu sou católico. A partir de hoje eu me oficializo católico praticante,” Então ta aí. São o quê? Jubileu de ouro, quarenta anos to fazendo hoje, três de Julho, 2012, treze anos de catolicismo e faço parte, por enquanto, de uma pastoral, Pastoral da Acolhida, já tem nove anos.


P/1 – Deixa eu perguntar, e os trabalhos, bicos, o quê que você faz pra ganhar dinheiro?

R – No momento eu não to fazendo nada. No momento eu só to apenas comandando uma rádio que eu tenho em casa, que é uma rádio onde eu arquivo gravações das rádios, anonimatos de colegas, inclusive eu até tenho fitas de colegas que já faleceram, tá gravado lá. Inclusive, ontem, antes de ontem, eu ouvi essa fita, esse meu colega junto comigo, o sobrinho dele, que agora é casado e ele já é falecido, e tenho fita minha eu comemorando os meus vinte e cinco anos de idade, que hoje logo mais eu vou ouvir quando eu chegar em casa, e algumas gravações minhas em fita. Talvez hoje ou dia sete eu faça uma gravação minha, comemorativa desse quadragésimo aniversário, porque dia sete de Julho também, uma coisa marcou. Dia nove é o dia da revolução, né, os oitenta anos da Revolução Constitucionalista, e dia sete também faz quarenta anos, eu era recém-nascido, quando minha mãe mandou meu pai ir no cartório me registrar. Eu era recém nascido, eu tinha quanto? Eu tinha quatro dias de nascido. Não tenho foto nenhuma dessa época aí, infelizmente, né? Aí o meu pai fala pra minha mãe: “Ó, eu vou lá registrar o Adriano”, eu era nenezinho, dentro de um berço. O berço era de ferro e cheio de arame, tipo varal, né, aquele berço. Então eu era recém-nascido naquele dia, quando meu pai foi fazer o registro. Eu já peguei nesse registro, já vi, pena que o registro original, que ia fazer quarenta anos dia sete agora, sumiu, não existe mais. Só os recentes. Então eu faço gravação de outras rádios como a extinta Rádio Cidade, Rádio Sucesso, que já não tem mais, e atualmente a minha companheira, né, que sempre me acompanha, que é a Rádio Alfa.

P/1 - Você vive com a sua mãe agora, é isso?

R – Por enquanto eu to vivendo com a minha mãe, por enquanto, né, tô nas mãos de Deus. Porque nesse quadragésimo aniversário, como eu já falei, eu venci a primeira depressão, eu venci o fanatismo e eu sou católico e só um lembrete, eu quero até deixar claro pra você que tá me vendo, até vocês aqui. A palavra é bem clara, não julgueis para não ser julgado. Todos nós diante de Deus somos iguais, certo? Seja na religião que for, seja a cor que for, todos nós somos iguais. Eu, que antes, vinte anos atrás, não aceitava ninguém me convidar pra ir pra uma outra religião a não ser evangélica, hoje, anos depois, eu procurei quem me convidasse e me chamasse pra ir pra uma outra religião e não achei. Eu mesmo tive que tomar decisão e a coragem de ir. Eu fui, deu certo e o Senhor me aceitou. E todos aqueles que me criticavam, até o próprio meu irmão mesmo, eu me lembro que uma vez ele falou assim: “É, Adriano, você é, você saiu da igreja católica, né?”, “É, eu saí sim, saí”, mas eu não saí, permaneci. Todos esses aí, muitos saíram, outros tão lá, mas não muda nada, continua do mesmo jeito e eu digo sempre, “Não julgue para não ser julgado”.

P/1 –Adriano, eu queria perguntar. Ficou no ar aí, quando e como seu pai faleceu? Como que foi esse momento na sua vida?

R – Meu pai, ele... Aí é uma outra história. Depois de quatro anos de catolicismo, meu pai faleceu doente, morreu no sofá. Infarto fulminante, ele já não queria se tratar, já não queria nem viver. Andava muito desgostoso, mas por culpa dele mesmo, e aí ele preferiu morrer no sofá da sala, infarto fulminante. Aí tivemos que pegar, socorrer, chamar o vizinho de lá perto de casa. O vizinho veio, botou no carro... Esse vizinho, um ano antes eu havia ajudado a socorrer ele, porque o filho queria matar ele. Então foi lá em casa esse vizinho, botou no carro, meu pai até assim já morto e a baba descendo aqui e levou de pijama lá pro hospital. Quando chegou no hospital, o médico falou assim: “Quem é esse homem aqui? Esse aqui já era pó!”, aí meu irmão falou assim: ”Meu pai!”, “Ah, seu pai? Ah então você me desculpe a expressão, mas lamento, mas seu pai faleceu”.

Meu pai tava até com uma pele diferente, já tava até cheirando. A impressão que dava é que parecia que já tinha morrido já há muito tempo.

P/1 –E o que ele tinha, ele era doente antes, né? Ele já era doente?

R – É, ele já sentia dores no peito, aí ele sentiu, foi infarto agudo fulminante. Ele sentia dores muito fortes no peito, já tava magro, já não queria se cuidar. A gente falava: “Pai, vai no hospital”, “Que hospital o quê? Vou no hospital coisa nenhuma. Que hospital o quê!”. Morreu com sessenta e cinco anos de idade. Ele faz ano em Janeiro, ele só veio a falecer em Maio, 17 de maio de 2003. Sessenta e cinco anos de idade ele tinha. Se estivesse vivo completaria setenta e quatro anos.

P/1 –A gente já tá no final da entrevista, queria perguntar uma coisa. Qual é o seu sonho hoje?

R – É, já tá chegando no fim…

P/1 –Se quiser falar outra coisa também…

R – Eu queria só fazer aqui dois lembretes, não sei se vai dar tempo, né.

P/1 – Dá sim.

R – Pra você que tá vendo aí do futuro, de 2032, 2042, e 52, você que é à frente de seu tempo, eu só quero apenas deixar claro uma coisa, que em termos de registrar, filmar, cinema, todas essas coisas, quando foram inventadas... O passado é como se fosse assim uma máquina do tempo, a câmera de filmar e a foto, aonde você vai pro passado, mas não volta pro presente, só vai apenas o passado e desde que o mundo é mundo, o homem custou a necessidade de ser fotografado e ser filmado. Porque aqui, por exemplo, esse trabalho aqui, eu considero assim, é uma foto três por quatro. Porque é uma câmera que filma só esse perfil, não filma no lado, não filma. Então é só esse perfil, então eu comparo com uma foto três por quatro e é um bom trabalho, né, ou seja, é um trabalho não só aqui. Como em emissora de televisão, que é mais avançado, né, que posso dizer que é à frente do seu tempo. É o futuro, o presente e o passado. Agora, se eu esqueci mais alguma coisa vai ficar pra próxima vez, porque só pra terminar eu quero lembrar de um filme que eu assisti, não sei se vai dar tempo.

P/1 –Não, pode falar. Vai falando.

R – Um filme que eu assisti que eu havia planejado falar aqui, voltando vinte e quatro anos atrás, em 1988, você vê como é que era época boa naquela época. Eu tava em casa assistindo televisão e passou um filme e esse filme não sei o nome, onde o ator coadjuvante era o ator e saudoso já falecido Telly Savalas, que fazia o seriado Kojak. Já morreu infelizmente, né, de câncer, aos 70 anos de idade, e ele era ator coadjuvante, até mais novo. O filme era preto e branco. Passa assim, não sei em que país, acho que nos Estados Unidos, acho que 1918. Veja bem, o filme era preto e branco, aí o que aconteceu? Ocorreu que um homem foi preso, parece que foi por assassinato, não sei como é que foi, ele foi preso. Aí ele tava na prisão e na hora do refeitório ele se desentendeu com o carcereiro, que os carcereiros naquela época usavam um uniforme preto de civil, né? Ele discutiu com esse carcereiro e sentou a faca no carcereiro e o carcereiro caiu, caiu assim e morreu com a faca enfiada, caiu morto assim. Aí rapaz, pegaram esse prisioneiro e levaram ele pra um quartinho, uma sala, e puseram ele ali no escuro. Ele ficou horas ali no escuro. Aí abriu-se a porta, quando abriu-se a porta ele deu uma olhada assim ó, aí era um homem de terno e gravata com uma pasta debaixo do braço – parece que era promotor, não sei o que ele era - falou não sei o que, uns negócios pra ele, né, falou assim: “Levante-se que você vai ser julgado por dois homicídios, vamos”. Aí pegou e levou. Aí diante do júri, de terno e gravata, né, aí o juiz decretou pena de morte pra ele. Ele ia ser enforcado, condenado a morrer na forca. Beleza. Construíram a forca, não sei o que que houve ali, houve um problema ali, aí a pena de morte foi cancelada. Aí ele foi levado pra uma outra cela e ficou preso. Aí parece que era promotor, né, chegou ali, enquanto o prisioneiro tava vendo ali os homens desmontarem a forca, né, chegou e falou assim: “Fulano, presta atenção. Eu soube que você vai ser absolvido, mas eu vou fazer de tudo pra que você seja condenado à morte. Não se esqueça disso.”. “Ah é?”, ai ele deu uma olhada e falou assim: “A forca tá ali, por que você não pede logo pros homens me enforcarem? Tá alí a forca.”, “Pode ficar tranquilo que eu vou fazer de tudo pra você ser morto. Aguarde.” Pois bem, aí pegaram o homem e levaram pra uma prisão. Enquanto ele esperava uma outra sentença, o que que acontecia? Ele pegava, colocavam ele num pátio, ele sozinho, ao ar livre, e caiu a chuva. Mas choveu, choveu pra caramba e ele ali tomando aquela chuva e andando pra lá e pra cá com o uniforme, né, o sapato preto, o uniforme e tudo. E batia na porta ali pedindo pros homem tirarem ele da chuva, abria uma janelinha, mas depois fechava e ele ficava andando em círculo, sozinho. Andando, andando ali e tome chuva! Aí ele andando, nisso que ele olhou ele viu no canto da parede um filhote de passarinho, um filhote bem pequenininho. Aí ele pegou, abaixou e pegou aquele passarinho e colocou dentro de um buraquinho. Colocou ali pra ver se ele ia sobreviver. Passou uns dias e aí ele foi ver, o passarinho sobreviveu. O que que ele fez? Das vezes que deixavam ele ali no pátio, ele sempre cuidou daquele passarinho. Quando aquele passarinho ficou bom, aí parece que ele arrumou uma gaiola, uma coisa, um bebedor, e botou ali dentro. A notícia se espalhou pelo presídio todo. Todos os prisioneiros, inclusive esse ator que faleceu, o ator coadjuvante Telly Savalas, até ele ganhou umas gaiolas de passarinho. Então todo mundo ali, cada prisioneiro tinha uma gaiola de passarinho através desse camarada aí, que ele que foi o inventor disso aí. Aí depois, pra terminar, o ator Telly Savalas falou assim que o pássaro dele tava com problema, não sei o que, aí ele pegou e falou assim: “Então me de aqui, me deixa ver”, Aí ele pegou, colocou na cela ali, falou assim: “Tá bom, mas amanhã é a minha vez, heim!” Parece que foi isso, que eu me lembro. Aí deu o comercial e nesse comercial, parece, que eu fui dormir. Vinte e quatro anos depois, até hoje eu nunca mais assisti esse filme.

P/1 –Não esquece também.

R – Foi um momento, olha! Por isso que eu digo que aquele ano foi um ano maravilhosíssimo. Cem anos da libertação da escravidão, os quarenta anos da morte do Monteiro Lobato, os quarenta anos da morte de Gandhi, né? Que mais? Ano que eu entrei pra seita foi um ano... olha...

P/1 –Inesquecível.

R – Inesquecível. E sempre na hora do sofrimento, das dores, tudo, de vez em quando eu me lembro desse filme aí. Pena que vinte e tantos anos se passaram e nunca mais voltei a rever e assistir esse filme. Pra quem era um condenado à morte, na forca, foi absolvido e fez toda esse reviravolta nesse presídio aí, que cada prisioneiro tinha uma gaiola de passarinho.

P/1 –Adriano, pra gente finalizar, qual o seu sonho hoje em dia?

R – Meu sonho? Bom, o meu sonho hoje em dia, comemorando hoje, manhã de três de julho de 2012, aniversário dos meus quarenta anos, quarenta anos de vida, de luta, meu maior sonho é que haja muito emprego, que assim como a escravidão acabou que acabe a desigualdade social, o preconceito, que as pessoas voltem a se entender, que no momento eu espero um dia eu ser feliz, ter mulher e ter filhos, ser independente. Eu ainda tenho um pouquinho, tomo remédio pra problemas emocionais, tomo remédio pra dormir, tomo remédio pra pressão. Eu sofro de transtorno obsessivo compulsivo, é TOC. Ainda tenho um pouquinho disso aí, tô assistindo uma coisa tenho que voltar a fita pra poder rever de novo. Eu tenho um pouco desse TOC ainda e eu tenho um sonho de viver muito, nada mais me faltar com a nova família, porque quando eu terminei os meus estudos, o meu irmão, que sempre passava de ano na minha frente, no final eu terminei os estudos antes dele. Depois bronquite, eu, que achava que eu nunca fosse ficar curado, hoje estou curado praticamente de bronquite. Foram trinta anos de sofrimento. Chegava morrendo no pronto socorro, tudo como eu já contei aqui, né, chegava morrendo no pronto socorro e hoje tô praticamente curado, depois de trinta anos. O inalador tá lá, tá jogado lá e esse é o meu sonho e esse é a minha história, ou melhor, dizendo, a nossa história. Meu nome é Adriano da Silva e embarcamos num tempo e voltamos pra quarenta anos atrás. Olha, espero viver uns cem anos, ou cento e cinco ou mais. Vamos embarcar no futuro.