Museu da Pessoa

O tempo ensina e o sentimento constrói

autoria: Museu da Pessoa personagem: Simone Camargo Rocha

Entrevista de Simone Camargo Rocha
Entrevistada por Luiza Gallo
São Paulo, 30/06/2022
Projeto: Inclusão e Diversidade - Ernst & Young
Entrevista número: PCSH_HV1218
Realizado por: Museu da Pessoa
Transcrita por Selma Paiva
Revisado por Luiza Gallo

P/1 – Vamos lá! Simone, pra começar, eu gostaria que você se apresentasse, dizendo seu nome completo, data e local de nascimento.

R – Eu sou Simone Camargo Rocha, eu tenho 45 anos, eu nasci no dia três de agosto de 1976, na cidade de São Paulo.

P/1 – E qual o nome dos seus pais?

R – Minha mãe chama Evandira Jesus de Camargo Silva e o meu pai, Joaquim da Silva.

P/1 – E com o que eles trabalhavam, trabalham?

R – Meus pais vieram do Paraná, casaram-se e vieram morar em São Paulo. Meu pai trabalhava em indústrias, fez diversos trabalhos pra indústrias automobilísticas, como funcionário, operário mesmo e a minha mãe sempre trabalhou como doméstica. Meu pai faleceu, eu tinha seis anos e aí a minha mãe teve alguns trabalhos como cozinheira, em uma empresa, indústria também e grande parte do tempo dela como cozinheira foi numa creche próxima de onde nós morávamos.

P/1 – E você... já aqui em São Paulo, tudo isso?

R – Tudo isso em São Paulo. Depois que eles casaram, eles vieram pra São Paulo, acho que um mês ou dois depois do casamento.

P/1 – E você sabe como eles se conheceram?

R – Eles moram numa cidade muito pequena... moravam, chamada Nova Fátima, no Paraná e se conheceram assim, nas festas, no dia a dia da cidade.

P/1 – E como foi, você sabe, a decisão deles virem pra São Paulo?

R – Meu pai sempre quis ter e dar uma vida melhor pra família. Então ele acreditava que aqui em São Paulo estavam oportunidades maiores, de desenvolvimento, de crescimento profissional, estudar e reverter isso em um trabalho melhor, em uma condição de vida melhor. E a minha mãe comungava, claro, da opinião dele. Foi por isso que eles vieram pra cá.

P/1 – E quando que foi?

R – Olha, eu nasci em 1976, acho que foi em 1973. (risos) Boa pergunta! Não sei exatamente. Eu nasci, eles tinham... não, mentira, deve ter sido em 1974, porque quando eu nasci, eles tinham dois anos de casados.
P/1 – E você tem irmãs ou irmãos?

R – Eu tenho um irmão. Ele é mais novo do que eu, três anos.

P/1 – E como você descreveria seus pais? O jeito deles.

R – Ah, meu pai, eu acho que se eu pudesse defini-lo, eu acho que ele era um amante da vida. Ele era um homem muito alegre, expansivo, adorava unir pessoas, gostava de fazer festas na nossa casa, excursão, pegar, alugar um ônibus, ‘botar’ todo mundo dentro do ônibus, ir pra praia ‘farofar’ e meu pai teve uma participação muito importante porque, na minha vida, mesmo eu tendo podido viver com ele apenas seis anos, em virtude do falecimento dele, mas ele sempre foi uma pessoa que me motivava, impulsionava, me levava pra parque. Sabe aquela pessoa que não tem tempo ruim? ‘Catava’ minha bicicleta, de ônibus mesmo a gente ia pro parque andar de bicicleta, subia em árvore. O fato de eu ser uma pessoa com deficiência, de eu ter baixa visão, na época eu não era totalmente cega, mas tinha baixa visão, então foi uma coisa que eu nunca senti essa dificuldade mostrada por ele. Ele sempre tentou encontrar meios pra que eu pudesse fazer tudo aquilo que uma criança da minha idade poderia fazer. Então, eu acho que ele era um amante da vida e ele deixou muito disso em mim.
E a minha mãe é uma mulher muito carinhosa, muito amável. Ela já é mais introspectiva, mais tranquila, mas também eu acho que o que eu poderia definir, se meu pai era um amante da vida, a minha mãe é uma cuidadora da vida. O cuidar, na minha mãe, é uma característica muito marcante. Cuidar da gente, dos filhos, do marido, da casa, das pessoas, que todas as pessoas que ela sempre pôde ajudar, ela sempre ajudou e cuidou da minha avó, até os últimos momentos de vida da minha vó. Minha vó sempre morou com a gente, desde o falecimento do meu pai. Na verdade, nós é que fomos morar com ela. Então depois ela passou os momentos finais de vida dela, ela esteve doente por muito tempo, acamada e minha mãe sempre cuidou muito dela, então eu acho que o cuidar é uma característica e acho que uma outra coisa que eu poderia dizer da minha mãe, é uma pessoa assim: ela não tinha instrução, na propriedade da palavra, quando você fala de educação formal, mas ela foi uma pessoa que teve muitos desafios na vida, muitas situações desafiadoras. Por exemplo: ela teve dois filhos com deficiência visual e isso era uma coisa que ela mesma fala: “Eu não sabia como é que eu ia fazer pra ajudar vocês a andar”, só que ela enfrentou e eu acho, na minha opinião, ela foi muito bem-sucedida. Eu acho que ela perdeu meu pai, o parceiro de vida dela, o parceiro de família, ela tinha uma filha de seis anos e um filho de três e ela enfrentou também. Então, eu não sei, eu não gosto muito dessa palavra guerreira, porque pressupõe luta, mas a minha mãe soube superar e ultrapassar com êxito todos os desafios que a vida trouxe pra ela.

P/1 – E como foi a chegada do seu irmão, na família de vocês?

R – Ah, foi uma alegria, né? Eu era pequena ainda, tinha dois pra três anos e eu lembro pouco da chegada. Eu só lembro muito de um momento que eu e minha estávamos discutindo o nome que a gente ia dar pro meu irmão, (risos) a folgada discutindo o nome do irmão com dois anos (risos) e a minha mãe queria dar Zé Roberto e eu não deixei. (risos) E aí a gente estava no quarto - eu lembro muito dessa cena - em frente ao bercinho dele e a gente definiu que seria Eduardo. E eu não sei, porque é estranho, talvez pela pouca diferença de idade, eu tenho poucas lembranças do meu irmão bebezinho e parece que ele sempre foi da minha idade, assim. (risos) Não sei explicar muito bem, mas a gente sempre se deu muito bem, sempre tivemos uma relação muito afetuosa. Ele sempre, nossa, é muito carinho que existe assim, entre a gente.

P/1 – E qual é a origem da sua família? Você sabe a história?



R – Não. Em termos de árvores genealógica, não. Eu só sei que a minha família veio do interior, que meus avós trabalhavam a terra, sei que meu avô morreu também, minha avó tinha dezoito anos de casada, então ficou com quatro filhos e lutou ali. Naquela época morreu o esposo, a mulher não se casava novamente e ela foi até o fim fiel ao marido. (risos) E, enfim, criou os quatros filhos com muita dificuldade, trabalhava numa escola como zeladora, lavava roupa pra fora. Depois que as meninas, ela tem três meninas e um homem, tinham idade, já, de trabalhar, começaram a trabalhar pra ajudá-la, mas em termos genealógicos eu não conheço, não sei.

P/1 – Esses são seus avós maternos?

R – Maternos. Os meus avós paternos eu não sei muito da história de vida deles, talvez até por conta do falecimento meio que precoce do meu pai, eu era muito nova, então tem coisas que a gente só vai aprender no decorrer da vida. Então não o tinha pra contar essa história e acabou que a gente se afastou um pouco da família de origem do meu pai, da minha família paterna e também meu avós vieram a falecer muito próximo do falecimento dele, enfim e aí houve essa quebra de vínculo e consequentemente a história vai se perdendo.

P/1 – E, Simone, quando você pensa na sua família, na sua infância, você lembra de costumes familiares, desde comida, algum prato específico, ou festas?

R – Eu lembro muito das excursões que eu falei, do meu pai. Eu lembro a primeira vez que eu pisei na praia, foi em uma dessas excursões e eu amava aquele clima, aquela coisa de todo mundo junto e tinha muito orgulho de saber que meu pai era o líder daquilo que eu gostava tanto. As festas que ele dava na nossa casa, juntava e não era nada chique, nem com muita gente, era simplesmente o fato de juntar pessoas da família, amigos, alguns mais próximos, estar ali, ouvindo música, comendo e bebendo alguma coisa. Eu, na época, era muito pequena e ficava ali, no meio de todo mundo e achava aquilo tudo muito gostoso e o sabor aí já é uma coisa muito marcante pra mim. Você fala de pratos, mas na minha vida de atleta a gente viajava e passava muito tempo fora, em outros lugares, comendo comidas diferentes da nossa comida aqui e a coisa que eu mais sentia saudade, quando eu estava fora, em termos culinários, era o prato de arroz, feijão, ovo e salada de tomate da minha avó e arroz, feijão, batata frita e bife. (risos) Era a nossa tradição e o sabor, talvez, da minha infância.

P/1 – Sua avó que cozinhava bastante, da família?

R – Depois que meu pai morreu a gente passou a morar com ela e a minha mãe passou a trabalhar fora, passava o dia todo fora, então a minha avó que fazia ali aquele papel da... vamos dizer: a minha mãe virou pai e a minha avó virou mãe (risos).

P/1 – E você sabe a história do seu nascimento, como foi esse dia?

R – Eu sei não muita coisa, mas eu sei que minha mãe trabalhou até os últimos momentos. Eu não vou lembrar agora exatamente se ela começou a sentir as dores do meu nascimento. Eu sei que ela estava fazendo faxina, mas eu não me lembro se ela estava fazendo faxina na casa de uma pessoa que ela trabalhava, ou na nossa casa. E eu sei que ela começou a sentir as dores e um vizinho nosso que a acompanhou até o hospital, levou, e eu nasci de parto normal. Ela conta que eu pus a cabeça pra fora, depois não queria mais sair. (risos) Mas, assim, foi muito rápido, um processo bastante natural.

P/1 – E você sabe como o seu nome foi escolhido?

R – Meu nome, ela conta muito isso, eu acho muito legal, porque era pra eu ser a Jaqueline. Como ela veio de Nova Fátima, então na época eles trocavam cartas e nas cartas: “Como é que está a Jaqueline?” “A Jaqueline está mexendo, não sei o que, vai nascer” e na última hora ela viu o nome Simone, a cantora Simone, tinha até aquela novela Selva de Pedra, se eu não me engano, era da época e tinha a Simone também, na novela. Eu sei que o nome passou a fazer parte ali de uma hora pra outra e de Jaqueline eu virei Simone.





P/1 – Se encantou pelo nome.

R – É, ela se encantou.

P/1 – E eles te contaram como foi a chegada de um bebê na família, a mudança de rotina?

R – Eu acho que eu fui um bebê muito esperado. Eles falam que eu fui aguardada com muita felicidade, muita alegria. Porém, isso é uma coisa que eu fico tentando imaginar, como é pra uma família receber uma criança com deficiência visual, sabendo que aquela criança não vai enxergar. Vou contar um fato aqui, depois vocês veem se vocês entendem pertinente ou não, tá? (risos)

P/1 – Tudo que você quiser contar é pertinente.

R – É que é uma coisa... bom, é assim: porque, o que acontece? Quando eu nasci, de parto normal, como eu falei, então minha mãe estava lúcida, consciente e o médico perguntou pra minha mãe se ela gostaria que ele desse uma injeção em mim, que eu não sentiria dor e eu deixaria de existir, porque eu não ia ter vida, ela não ia ter vida, porque eu era uma pessoa com deficiência. E a minha mãe, na hora, ele explicou pra ela que eu não enxergava, enfim, que eu não ia conseguir viver e que ela, a partir daquele momento, teria que viver em função de mim e que, se ela quisesse, ele poderia fazer isso, enfim. E eu acho que tudo isso… ela falou na hora que não, que ela me queria da forma como eu vivesse, como eu fosse e que se Deus permitiu que eu viesse com alguma deficiência, é porque ele sabia que ela e eu teríamos condição de lidar com isso e que se alguma coisa acontecesse comigo no hospital, ela os responsabilizaria, porque a partir daquele momento eu estava sob a responsabilidade deles e que ela não ia aceitar que nada de ruim me acontecesse. Então eu fico imaginando, ela fala, ela conta que ela não sabia como seria, porque é uma coisa diferente, né? Eu acho até que essa questão é importante, porque muitas vezes a gente costuma não enfrentá-la e acha que porque nasceu um bebê, puta, você tem que ficar só feliz, você não pode ter ali angústias e ansiedades por não saber lidar com aquilo e eu acho que isso é uma coisa completamente normal, quando se tem um filho com deficiência, porque a principal frase que se diz quando uma mulher está grávida, é: “Que venha com saúde” e muitas vezes a deficiência é considerada pelas pessoas, como falta, ausência de saúde. E embora a deficiência não seja ausência de saúde, é diferença e nem sempre as pessoas estão prontas pra lidar com a diferença. Então eu acredito que sim, existe um momento ali de dificuldade pra pessoa, pra família que está recebendo uma pessoa com deficiência. Entretanto, acho que isso não diminui o amor que se sente. Às vezes a gente tenta ser polar, né? Polarizar as coisas. Então, ou você está feliz, ou triste; ou você ama, ou odeia e eu acho que faz parte da humanidade conviver com sentimentos paradoxais. E eu acho que a minha chegada na minha família foi paradoxal. Eu acho que eu fui motivo de muita alegria, de muito amor, mas também de insegurança, porque eles estavam diante de uma situação diferente pra eles, que talvez eles tiveram muito medo e incerteza de como eles lidariam com ela.

P/1 – Quando sua mãe te contou essa história, como foi pra você receber, ouvir tudo isso?

R – Ela me contou, eu era adolescente, então estava naquela fase, eu falei: “Cadê esse palhaço, que eu quero mostrar pra ele quem sou eu” e eu acho que foi isso, uma situação que eu achei bacana que alguém, um dia, achou que eu não seria nada, ninguém, e graças a Deus eu sou muita coisa (risos).

P/1 – Você nasceu com uma deficiência visual, é isso?

R – É, eu nasci com uma deficiência visual chamada glaucoma congênito e não vou colocar aqui como regra, porque eu não sei, mas no meu caso eu tinha os olhos bastante altos e esbranquiçados, então causava uma impressão ruim pra quem visse. Então esteticamente não era bonito (risos) e eu acho que talvez tenha sido isso que impactou aquele cidadão.

P/1 – E você logo bebezinha começou algum tipo de tratamento, ou não?

R – Eu, logo. A minha primeira cirurgia foi com 27 dias, porque uma das grandes dificuldades da pessoa que tem glaucoma é o controle da pressão ocular e então eu fiz várias e várias cirurgias pra controle da pressão ocular e pra tentativa de melhora da visão. Nesse tratamento, a minha última cirurgia foi quando eu tinha seis anos, poucos meses depois do meu pai falecer e eu tive uma melhora, na época, bastante significativa no que eu via, porque eu não tenho lembranças de visão antes dessa época. São pouquíssimas as minhas lembranças de visão, mas eu lembro que quando eu fiz essa cirurgia, eu estava no metrô com a minha mãe e eu: “Mãe, eu estou vendo aquela placa, aquele código, aquela luz na escada rolante, aquela luz no bloqueio”. (risos) Eu parecia, assim... eu tenho essa lembrança muito forte, de estar descobrindo um monte de coisas que até então eu não via. Então, eu acho que essa cirurgia foi bastante significativa, por essa lembrança que eu tenho. E aí depois eu passei um período, dos seis aos doze anos, no qual eu não fiz nenhum tipo de cirurgia, fui vivendo com aquela visão que eu tinha adquirido, fui estudar numa escola especial, pra pessoas com deficiência visual, chamada Instituto de Cegos Padre Chico. Nessa escola eu comecei a fazer um trabalho de estimulação visual, que eles falavam que era pra desenvolver a visão que a criança tinha. Inclusive passei alguns dos anos escrevendo em letra convencional, na escrita convencional, parte do meu ensino foi no Braile e parte foi na escrita convencional. E aí com doze anos coincidiu que eu saí dessa escola e nas férias, no período de férias entre uma escola e outra eu tive um acidente, uma brincadeira de criança, uma bola bateu no meu olho e aí eu perdi a visão que eu tinha até então.

P/1 – Simone, tem recordações, memórias, alguma história marcante desse período entre seis e nove anos?

R – Seis e nove anos? Ai, tem muita coisa. Foi o período que eu perdi o meu pai, então foi uma situação bem difícil, o período que eu entrei numa escola especial pra pessoas com deficiência e a gente morava num bairro e a escola era muito afastada, assim, era distante do bairro que a gente morava e minha mãe precisava trabalhar, então eu tinha que ficar, eu fiquei num sistema de internato, ficava a semana toda no colégio. Ia ou no domingo à tardezinha, ou na segunda-feira pela manhã e saía só na sexta-feira, então também foi um período de uma transformação muito grande, muito aprendizado, muita saudade de casa, também muita alegria, porque você estava ali, com crianças da sua idade, aprendendo um monte de coisas novas, então foi um período bastante cheio de descobertas e de experiências. Eu acho que teve o meu aniversário de sete anos, que eu nunca vou esquecer, que como fizeram uma festa pra mim, eu acho que foi a única festa temática que eu tive na minha vida e foi muito legal, uma vizinha se vestiu - o tema era Sítio do Pica-Pau Amarelo – de Emília e estavam ali todos os meus amigos, meus primos. Enfim, foi um momento muito marcante. Eu acho que é isso.

P/1 – Essa festa foi na escola?

R – Não, foi na minha casa. Os amigos da minha vizinhança.

P/1 – E como foi esse período do falecimento do seu pai e aí logo vocês foram morar com sua avó?



R – Foi muito difícil. Embora eu estivesse com seis anos, eu tenho recordações, eu tinha preocupação como seria pra gente viver sem meu pai e a saudade, como eu falei, ele foi uma pessoa muito importante pra mim e eu acho que eu tentei colocar a saudade num canto, guardado lá dentro do meu coração e tocar, porque mesmo sendo nova, eu tinha a sensação que era eu e minha mãe, a partir daquele momento (choro).

P/1 – Tem um lencinho, se você quiser.

R – E aí eu tinha que ser forte por mim e por ela, né? Então, vamos tocar! (risos) E aí, se eu fosse dizer, assim, não teve choro, não teve muito luto, eu me apeguei muito ao novo momento de vida, à escola e à certeza de continuar, seguir. (Choro). Ai, vocês devem estar acostumados (risos) com isso, né?

P/1 – Sim, fique tranquila. São recordações, né? Memórias.

R – É.

P/1 – E com seu irmão, nessa época, vocês ficaram próximos? Você lembra desse momento?

R – Então, meu irmão era pequeno, tinha ainda... quando meu pai morreu ele já tinha feito, deixa eu ver, três anos, tinha três aninhos e pouco. Como eu acabei indo pra escola e passava grande parte do tempo na escola, então eu não posso dizer pra você que a gente se aproximou tanto, por conta disso. Eu passei a viver um momento muito diferente, foi tudo muito junto ali e eu acho que a gente não se aproximou mais do que a gente era próximo (risos).

P/1 – E nessa escola, tem algum momento muito marcante pra você, alguma lembrança desse período, de algum dia, ou de algum professor, de algum colega?

R – Eu acho que quando você é uma criança com deficiência, eu falo da visual, mas eu acredito que seja deficiência de uma forma geral, você recebe muitos: “Você não consegue, não vai conseguir, isso não dá pra você”. Enfim, as pessoas não sabem o que realmente é possível e o que não é possível pra uma pessoa com deficiência fazer. Então elas transpõem o que elas conseguiriam ou não fazer, se elas tivessem aquela dificuldade, sem ter. Então quando eu entrei na escola, eu acho que o mais legal pra mim foi encontrar pessoas que tinham a mesma deficiência que eu e que tinham uma vida, com aspas, eu vou colocar, ‘normal’, ‘comum’. Eu vou colocar com aspas porque existem limitações provenientes da deficiência, mas não são essas limitações, dificuldades que vão ditar a sua vida, o que vai ditar a sua vida é aquilo que você consegue fazer, porque a vida não é um não fazer, ela é um fazer. Então, ali, vendo aquelas pessoas... porque quando eu entrei lá eu conheci pessoas desde a mesma idade que eu, até mulheres e homens de dezoito, vinte anos, que estavam se formando, às vezes até pessoas mais velhas, porque as pessoas ficavam sabendo da possibilidade de educar um filho e às vezes aquele filho já tinha doze anos, treze anos, enfim, entrava lá na escola e ia até o final do ensino... na época não era chamado assim, mas hoje é chamado ensino fundamental, que lá só era até o ensino fundamental. Então o fato de ver essas pessoas, saber que elas andavam sozinhas, trabalhavam, enfim, e aí você vai sabendo de histórias de outras pessoas que casaram, tiveram filhos, que têm sua casa, cuidam da sua família, é libertador, uma coisa assim muito... não tem palavras pra descrever, porque você sai de um lugar que muitas vezes as pessoas te dizem só: “Não, você não consegue”, “pra você não dá” e descobre as possibilidades. Então, pra mim foi esse o significado que teve. Claro que tiveram momentos de dificuldade, saudades de casa, uma escola interna tem regras, então eu tinha hora pra dormir, na minha casa eu não tinha. Eu tinha - nossa, isso me irritava muito - que usar a mesma roupa por dois dias, três dias (risos) e na minha casa não era assim. Eu tinha hora que eu podia comer, brincar, enfim, são regras e você tem que passar por aquilo. Tinha momentos que eu tinha saudade da minha mãe, ficava cinco dias longe dela, da minha avó, do meu irmão, chorava, mas também teve muita coisa boa. Era um colégio de freiras. Embora a minha família sempre foi religiosa, lá eu tomei muito contato com a religião, porque era uma prática constante ali, pra nós. E talvez ali foi onde eu me apaixonei por Deus e Deus é fantástico na minha vida, é tudo pra mim, meu apoio, meu esteio, meu guia e isso eu tive lá, então eu tive muita coisa boa lá.

P/1 – Como era o seu dia a dia? Cheio de regras, tinha hora pra acordar? Queria saber. E as atividades que você mais tem recordação.



R – Olha, a gente acordava às seis horas, tinha que ir na missa, aí o café da manhã era às sete, você entrava na aula... porque eu estudei lá até o quinto ano. Então até o quarto ano eu entrava às sete e meia, a partir do quinto ano eu entrava às sete, aí você estudava, depois você tinha o almoço, uma hora que a gente chamava de recreio, que era o intervalo, a gente podia ficar ali, tal, à tarde a gente ia pra sala de estudos e ali a gente fazia a nossa tarefa. Não, antes da sala de estudo a gente tomava banho, tinha horário do banho, depois a gente ia pra sala de estudos, tinha os nossos momentos de fazer tarefas e às vezes a gente ouvia lá, na época não tinha DVD, era um historinha no compact disc, aqueles disquinhos bem pequenininhos, (risos) peça de museu, ou brincava com massinha, enfim, montava joguinhos, fazia alguma atividade ali. Às três horas tinha outro intervalo, a gente tomava um lanche, aí depois a gente voltava pra esse esqueminha, nessa sala de estudos, fazia lição ou continuava com essas atividades alternativas. Por volta de cinco horas a gente tinha um outro intervalo, jantava, era hora da janta, não lembro se cinco ou cinco e meia, alguma coisa assim, aí a gente ficava das seis até um determinado horário, que eu também não me lembro qual é, eu sei que entre sete e sete e meia a gente tinha que dormir. Então a gente subia, se trocava, escovava os dentes e ia dormir e aí tem aquelas coisas, bagunças que a gente fazia no dormitório, enfim.
E uma coisa que foi muito legal foi uma pessoa muito especial que eu conheci lá, que era a que cuidava... foram duas pessoas muito especiais que eu conheci lá, uma delas cuidava, era a freira responsável por cuidar das pequenas, que era a faixa etária, o grupo do qual eu fazia parte. E a partir de um determinado momento, eu sempre fui muito agitada, muito ativa e essa freira teve essa percepção e começou a me colocar pra ajudar nas tarefas que ela tinha pra fazer, porque ela também, como pertencente à instituição, tinha tarefas e ela me levava pra ajudar a limpar os pós, que às vezes eu não queria ir na missa, então ela me levava pra ajudar a limpar o pó da sala de aula, antes da aula começar, eu comecei a ajudá-la a servir os pratos das outras crianças, eu comecei a ajudá-la na lavanderia, em um monte de tarefas que ela tinha pra fazer e isso, pra mim, foi muito bacana. Eu não sei porque ela teve essa iniciativa, mas eu me senti muito útil, enfim, foi muito bom. Quando algumas pessoas podem entender: “Estava sendo explorada”, eu não, entendi aquilo como uma forma de canalizar ali um pouco a minha energia, de acordo com aquele ambiente que a gente vivia.

P/1 – E nessa época você comentou que você tinha uma pequena visão.

R – Isso.

P/1 – E aí, logo em seguida você teve um acidente. Como foi esse período? Como você se sentiu? Como foi esse momento pra você?

R – Então, o fato de eu ter uma visão, principalmente, como dizem: “Em terra de cego, quem tem um olho é rei”, eu tinha meio, mas eu já era rainha, (risos) me sentia rainha, porque eu conseguia ajudar as pessoas, fazer um monte de coisa e a visão, em si, me ajudava muito. Aquilo que eu enxergava, pra mim, era ‘ouro’. Era pouquinho, mas era muito. E foi bastante difícil, porque nessa época eu também saí desse colégio, eu tive que entrar em um colégio estadual, que tinha o que a gente chamava, na época, de sala de recurso, que eram alguns colégios espalhados em áreas, regiões estratégicas de São Paulo, pra atender o maior número de pessoas possível, mas ficava uma hora, uma hora e meia da minha casa, não lembro exatamente. Então eu tinha a questão de ter que me locomover até lá e o fato de estar num ambiente no qual, pra mim, aquele pouquinho de visão que eu tinha seria primordial, porque é o que me faria me sentir um pouco mais incluída, né? Então, foi muito difícil, porque no meu primeiro dia de aula eu acordei... o acidente aconteceu um pouco antes, mas o que causou a minha cegueira foi o descolamento de retina, ele não acontece assim pá, pum, aconteceu, descolou, perdeu a visão. Aconteceu, depois de alguns dias eu acordei, que foi esse meu primeiro dia de aula, eu comecei a ver tudo embaçado, eu olhava assim, na minha cozinha eu lembro que o móvel da cozinha era amarelo, todos os móveis e a parede era azul clarinha e eu olhava na cozinha, não via mais a cadeira, a mesa, o fogão, a geladeira, eu via uma faixa amarela e uma faixa azul, porque tudo se misturou, enfim, e foi um período muito complicado, porque ao mesmo tempo que eu estava entrando numa escola nova, que eu queria conquistar o meu espaço, eu nunca aceitei a pena das pessoas. Eu acho que se tem uma coisa que é a pior coisa que você pode fazer... despreze, mas não tenha pena de uma pessoa com deficiência. Eu nunca aceitei a pena de ninguém, nunca quis ocupar um lugar de coitada. Eu sempre quis lidar com as situações que a vida me pôs. Então, eu cheguei lá, eu queria conquistar o meu espaço, mostrar pras pessoas, primeiro, que eu conseguiria estudar, que eu seria uma boa aluna, que eu era uma pessoa inteligente, eu só não tinha visão, mas eu tinha capacidade cognitiva e teria condição de aprender tudo aquilo que estavam me ensinando, queria fazer amigos, queria ter pessoas do meu lado, que gostassem de estar do meu lado, não: “Coitadinha, vamos ficar com ela no recreio, vamos levá-la pra lanchar”. Não. Eu queria conquistar, fazer amigos e ao mesmo tempo eu tinha que lidar com o fato de enxergar um pouco e ter que fazer as coisas a partir daquele momento, sem enxergar nada e da maneira mais autônoma possível, porque enfim… e eu acho que, nesse ponto, o fato de conhecer outras pessoas sem visão, a experiência que eu tive nessa escola especial que eu estudei antes de ir pra lá me ajudou muito, porque eu sabia que era possível, era só uma questão de eu saber como e eu ia saber como. O tempo iria me ensinar o como. E ao mesmo tempo que às vezes eu chorava, eu ficava quietinha e chorava muito: “Por que isso foi acontecer comigo?” Porque eu tinha uma força muito grande em: “Tá, se é isso que eu estou tendo, vamos lá, vamos superar”. E uma coisa que talvez tenha me ajudado também, bastante, é as pessoas dizerem muito pra mim assim, às vezes elas diziam: “Ai, se você não ouvisse a gente, você não estava assim” e aí quando eu escutava essa frase, eu falava: “Oi, eu estou assim como?” Eu não falava pras pessoas, mas eu falava pra mim: “Estou assim. Você não sabe nada” (risos). E aí eu queria não depender dos outros. Então isso por um lado é ruim, mas por outro lado é bom, porque você busca sua autonomia, então eu não queria que ninguém tivesse pena de mim, lutei muito por isso e acho que consegui. Quer dizer, não tanto, porque pena a pessoa com deficiência está sujeita, ela sai na rua e as pessoas olham pra ela com pena, né? Mas, assim, das pessoas que me conhecem eu acho que eu consegui.

P/1 – E, Simone, esse processo de adaptação, que recordações você tem desse período?

R – Eu tenho uma que foi muito marcante, que foi o dia que eu descobri que eu não estava enxergando mais, porque você não sabe exatamente quando você perde a visão. Tipo assim: não ficou tudo escuro pra mim. Eu estou aqui conversando com vocês, eu tenho uma imagem formada na minha cabeça. Não uma imagem com detalhes, nítida, mas não está tudo escuro. E naquela época principalmente, porque tinha coisa que eu não sabia se meu cérebro estava me mandando imagens ou se eu realmente estava vendo. E aí, um dia, nesse período todo, eu comecei a ir pra escola sozinha. No começo a minha avó me levava e depois eu comecei a ir sozinha. E aí eu tinha uma referência, porque quando você tem baixa visão, você não enxerga exatamente, você tem referências visuais, então tinha uma placa que eu passava por ela, que era azul e amarela - azul e amarelo de novo - e aí eu via aquela placa, eu sabia que eu tinha que levantar e dar sinal, porque o próximo ponto era o meu, então eu ficava esperando ali, atenta - depois de um determinado tempo que eu estava no ônibus – àquela placa. É lógico, a gente vai criando outras referências: a curva, a lombada, subida, descida, mas aquela placa era a minha referência visual e aí um dia eu peguei, levantei, dei meu sinal, que eu tinha visto a placa, desci, andei e despenquei num degrau, caiu meu material, minha pasta abriu, caiu tudo no meio da rua, foi uó e aí eu falei: “Mas caramba, esse degrau não estava aqui, ele não existe no meu caminho”. (risos) Depois de eu levantar, as pessoas ajudarem: “Se machucou?”, me ajudaram a pegar as minhas coisas, tudo, eu perguntei pra alguém onde eu estava e a pessoa me falou que eu estava acho que a uns dois ou três pontos antes do lugar onde eu imaginava que eu teria que descer. E aí eu peguei e falei: “Bom, então eu não vejo mais. Eu acho que eu vejo, mas não vejo mais”. E aí foi a hora que eu falei: “Bom, a partir de hoje eu sou cega e vou viver como cega”. Esqueci que eu tinha, que eu também nem sabia mais se eu tinha aquela visão e aí passei a viver como cega, foi o marco, vamos dizer assim.
Houve outro período também, outra situação bem marcante, porque a minha mãe combinou comigo: como eu acordei cega no dia de iniciar as minhas aulas, a minha mãe estava de férias e falou assim: “Eu vou com você por uma semana”, que eu queria ir sozinha pra escola, não queria ir com alguém e ela falou: “Eu vou iniciar com você, vou fazer uma semana o caminho com você, tá bom? Aí, depois você vai, tá bom?” “Tá bom”. Aí ela fez e no primeiro dia ela falou assim: “Hoje você vai” - que seria o último dia de férias dela – “sozinha, tá bom? Eu vou com você só até o bloqueio do metrô”, porque a dificuldade maior era um caminho que eu tinha que fazer do metrô até a escola, andando. O resto era tranquilo. Aí ela falou assim: “Então eu vou te deixar no bloqueio e de lá você vai sozinha”. Eu: “Beleza”. Aí peguei minha bengala - porque eu achava ainda que eu enxergava, mas eu já sabia que eu não enxergava no nível que eu podia andar sem a bengala – saí do metrô, fui, aí já comecei a errar. Eu imaginava que o caminho era um e comecei a esbarrar. Enfim, não estava certa no meu caminho. Achei o caminho, fui indo, fui indo, esbarrando em tudo que eu pudesse imaginar, porque com o tempo você passa a criar referências, habilidades e deixa de andar tão perdida que nem eu estava naquele momento e fui, fui, mas consegui chegar num semáforo que eu tinha que atravessar pra começar a subir a rua da minha escola. Era uma rua assim, um tanto movimentada e eu parei no semáforo, aí uma pessoa pôs a mão no meu braço e falou assim: “Moça, você precisa de ajuda?” Era minha mãe (risos). Eu queria ser um tatu, pra me enfiar assim, debaixo da... (risos) porque eu falei pra ela que eu ia conseguir. Eu tinha feito um papel ridículo, feito tudo errado. (risos). Falei: “Ai meu Deus, ela nunca mais vai me deixar sair sozinha” e aí eu: “Ai, mãe, eu não acredito que você me seguiu”. Ela me seguiu quietinha, enfim, aí ela foi lá e falou: “Não dá pra você ir sozinha, a vó vai vir te trazer ainda”, tal, não sei o quê. Eu: “Tá bom”. (risos) E aí foram acho que esses dois momentos marcantes.

P/1 – Quantos anos você tinha?



R – Doze.

P/1 – E você sente que você foi acolhida pela família, pelos amigos, ou não?

R – Então, eu não sei. (risos) A minha família, nossa, não tem o que falar, né? Sempre fui muito acolhida, enfim. Eu acho que todos os lugares, talvez pelo meu jeito, não vou nem dizer que seja... porque às vezes, o fato de você não querer que as pessoas tenham pena de você, de você querer ter sua autonomia, sua independência, muitas vezes é tido como orgulho, uma pessoa que não gosta de ajuda, enfim, é interpretado de diversas maneiras. Então eu acredito que, num primeiro momento, eu possa ter sido meio conceituada dessa forma, principalmente nos meios nos quais... fora da minha família: na escola, trabalho etc e tal, mas eu conquistei amizades maravilhosas, então tem pessoas que fazem parte da minha vida desde a escola, pelos diversos lugares pelos quais eu passei, até hoje, você vai criando aqueles laços que o tempo não rompe. Às vezes você pode até estar longe, pode ficar um tempão sem ver, mas quando você vê, a conexão se estabelece imediatamente. Então eu acredito que sim, que eu fui acolhida, construí grandes amigos, em todos os lugares que eu passei.

P/1 – Tem algum que você lembra em especial, dessa época?

R – É a Bete, Elizabete o nome dela. Foi uma grande, grande, grande amiga. Principalmente foi acho que a primeira amiga que eu fiz nessa escola, depois o tempo vai passando, às vezes a gente se afasta um pouco, vai fazendo outros amigos, enfim, mas é uma amizade, um carinho, uma relação até que eu tenho até hoje.

P/1 – E, Simone, você se lembra da sua casa de infância?

R – Olha, quando meu pai era vivo, a gente parecia nômade, vivia mudando, então eu lembro de todas, talvez eu lembre com... eu lembro de todas, mas a que mora no meu coração como a minha casa de infância é a casa que a gente foi morar depois que meu pai faleceu, talvez pelo tempo que a gente morou lá, era uma casa... a gente acabou indo morar na casa... ao invés da minha avó vir morar com a gente, a gente acabou indo morar na casa que ela morava. Então era uma casa numa rua sem saída, no começo era uma rua... como minha vó já morava lá, eu tinha muitos amigos lá, eu me sentia... nossa, e era uma rua sem saída, era a Vila do Chaves, muito legal, tinha até a Dona Florinda, (risos) a Bruxa do 71, (risos) tinha todo mundo lá. Então quando eu fui morar lá eu fiquei muito feliz e foi ali que eu passei a viver muita coisa, então era a casa da minha infância. Dois cômodos: um quarto e uma cozinha, o quarto a gente fazia de quarto e sala, tinha guarda-roupa, sofá, televisão, cama. O banheiro não era dentro de casa, acho que é uma coisa que nem existe mais hoje, um banheiro fora de casa, mas ele era fora de casa. A gente não tinha máquina de lavar. A gente passou muita dificuldade, não no sentido de passar fome, a gente nunca passou, mas a gente teve sempre o essencial, não sobrava. E eu lembro de tudo isso com muito carinho. É um sentimento de união muito grande (choro). É um sentimento de todo mundo junto: da minha mãe, da minha vó, cada um dando sua contribuição pro outro, então é muito legal.

P/1 – A gente se transporta, né?







R – É. (risos)

P/1 – Eu estou conseguindo imaginar aqui na minha cabeça essa vizinhança.

R – Era muito legal, muito gostoso.

P/1 – Quais eram as brincadeiras favoritas dessa época?

R – A gente brincava de pega-pega, de pipa eu brincava muito, mesmo sem enxergar, (risos) brincava de bola, de queimada, algumas coisas eu brincava com um pouco mais de facilidade. Por exemplo: queimada era uma coisa que eu gostava muito de brincar, mas já o vôlei não ‘rolava’, principalmente depois que eu fiquei cega totalmente, mas essa fase bem infância mesmo eu tinha baixa visão, então é até uma coisa engraçada, porque em muitos momentos eu me achava retardada, eu não aliava o fato de eu não conseguir fazer as coisas... retardada nem é uma expressão muito legal, mas eu achava que eu tinha algum problema de cabeça, cognitivo, enfim, motor, qualquer outra coisa, mas eu não conseguia aliar o fato de eu não conseguir fazer as coisas como as outras pessoas com a minha dificuldade de visão, porque eu enxergava, do meu jeito, mas eu enxergava (risos). Só que eu não enxergava como as outras pessoas, eu enxergava menos, então a bola vinha na minha direção, eu não conseguia desviar com tanta facilidade e rapidez, quando eu ia ver a bola estava em cima, batendo em mim já, então já era. Quando eu ia jogar vôlei, eu via a bola, mas também já não dava mais tempo de eu correr atrás dela, pra poder pegar um passe, enfim. Então eu achava, eu aliava muito mais isso à minha condição intelectual, de aprendizado e capacidade motora, do que ao próprio fato da visão. Aí com o passar do tempo, você começa a crescer e entender que tem coisas que você não consegue igual as outras pessoas, que a sua letra talvez possa não ser tão bonita como a da sua colega. Quando eu pintava, eu pintava mal e era porque eu não enxergava como as outras pessoas, então eu não conseguia fazer as coisas como as outras pessoas e isso foi uma coisa que eu fui aprendendo só com o tempo. E aí quando eu perdi a visão, com doze anos já, num primeiro momento eu me afastei muito dos meus amigos que eu tinha nesse local, porque eu tive que usar bengala, eu tinha muita vergonha de ter que usar bengala, então - na minha escola, que eram amigos novos, ok, mas nos amigos velhos, não - eu acabei me afastando muito das pessoas. Com o tempo eu fui, depois, retomando as relações, mas me afastei bastante e também foi uma transição, no sentido de que a escola mudou, eu comecei a fazer amigos, então muitas vezes, nos finais de semana, eu ia pra região onde eles moravam. Então mudou muita coisa também, mas com o passar do tempo eu acabei assimilando melhor essa questão de ser agora uma pessoa sem ver nada e fui novamente me aproximando das pessoas, que eram os meus amigos da vila.

P/1 – E nessa época você pensava no que você queria ser ou fazer, quando você crescesse?

R – Não tinha a menor ideia. Eu sempre quis trabalhar em escritório. Eu queria trabalhar em escritório, eu queria ser atriz, eu queria... enfim, mas o que eu vou fazer quando eu crescer não, porque as minhas primeiras identificações foram com a área de professora. Eu achava que eu seria professora, porque eu gostava de tudo: Português, Matemática, Química, Física. Então, teve uma hora que eu queria fazer todas as faculdades. (risos) Aí depois eu comecei a me identificar bastante com inglês, então: “vou ser tradutora e intérprete”, porque uma pessoa que não enxerga pode ser tradutora e intérprete. Ai eu vou fazer qualquer faculdade que me permita prestar um concurso, porque naquela época as oportunidades pra pessoa que não tinha visão, em termos de trabalho, eram muito restritas, então ou você ia ser câmara escura, que era uma profissão que tinha muito na época pra pessoas cegas, porque era uma sala escura, não sei se vocês conhecem o procedimento de revelação de filme.

P/1 – Hum-hum.

R - Então aí o cego podia fazer aquilo sem dificuldade, porque não precisava enxergar mesmo, pra estar lá, então muitas pessoas eram empregadas nessa área. Área de ser telefonista, porque você só precisava atender o telefone e transferir a ligação, então eram áreas que tinham muita oportunidade de trabalho. Mas a gente não tinha lei de cota, então não eram muitas as empresas que contratavam, então o serviço público, nessa época, quando eu comecei a pensar em trabalho, era o que se destacava pra mim: “Eu vou prestar um concurso e aí não importa a área, vou trabalhar. O que importa é eu trabalhar e receber meu salário no fim do mês”. (risos)

P/1 – E no período saindo, se formando da escola?

R – No ensino médio?











P/1 – Isso.

R – Bom, o que aconteceu? Eu saí dessa escola que eu falei que eu fui estudar, quando eu saí do Padre Chico, que essa escola se chama Dom João. Quando eu entrei no ensino médio, eu vim estudar numa escola perto da minha casa, chamada Amélia. Aí, nessa época eu comecei a pensar no vestibular, comecei a pensar especificamente o que eu poderia fazer pra ganhar dinheiro, porque desde muito nova eu sempre gostei de ter meu dinheiro pra fazer minhas coisas. Minha família, como eu falei, a gente nunca passou falta de nada, mas não sobrava, às vezes você queria uma roupa, alguma coisa, então eu comecei a ‘me virar’. Eu passava fralda pra minha tia, ela me dava um trocado, aí depois eu descobri umas pulseirinhas, que tinha uma vizinha que montava umas pulseiras, bijuterias e aí ela me pagava pra eu fazer um dos processos de montagem daquela bijuteria. E aí eu comecei a ganhar também, e aí quando eu tinha uns quatorze ou quinze anos, o meu irmão é um músico fantástico e a gente começou a tocar em barzinho, festa junina. Enfim, tudo que recebesse a gente pra tocar, a gente tocava, tinha o sonho de ser a Sandy e o Júnior (risos). E aí eu comecei também a ganhar um dinheirinho com isso, com a música. Meu irmão hoje seguiu a carreira, porque o talento era dele, o meu só era a vontade (risos) e eu não, e aí quando eu terminei o ensino médio, aconteceu o quê? No ensino médio eu retomei contato com o pessoal do Padre Chico, os colegas que eu tinha no Padre Chico e aí já num momento diferente da vida, eu queria trabalhar e um desses colegas meus falou: “Eu vou te apresentar pro David”. O David era o presidente do Cesec [Centro Emancipação Social Esportiva Cegos] na época. O Cesec é uma instituição de pessoas cegas, uma ONG, existe até hoje e nessa instituição eles faziam um trabalho pra arrecadação da instituição, no qual, na época não era todo mundo que tinha computador, então a gente vendia etiquetas pra colocar no verso do cheque (risos). É, nessa época tinha cheque. E aí eram umas etiquetinhas que a gente ia nas empresas, levava um formulariozinho e as empresas tinham que preencher aquele formulário com os dados que iriam na etiqueta. Quem tivesse interesse, é claro, preenchia o formulário, a gente ia lá, levava o formulário, depois ia lá, recolhia, depois ia lá, levava as etiquetas e recebia, enfim, eu era tipo a vendedora. E nessa instituição eu conheci o esporte e conheci uma pessoa, nessa época, que era policial civil, agente de telecomunicações da Polícia Civil, na época e trabalhava meio período. Eu falei: “Eu vou ser agente de telecomunicações desse lugar aí, eu vou ser isso aí”. (risos) Porque eu queria trabalhar meio período, ser atleta, conheci o esporte, me apaixonei, queria treinar, enfim. E aí o meu ensino médio, o final foi meio assim: eu estudando pro vestibular, porque aí, logo que eu saí, o que eu vou fazer? O que está dando dinheiro? Ciência da Computação. Então eu fui fazer Ciência da Computação, prestei o vestibular, passei numa faculdade que dava bolsa pra pessoas com deficiência, entrei, fui fazer Ciência da Computação, só que ao mesmo tempo eu conheci o esporte e ao mesmo tempo eu consegui um trabalho lá naquela instituição e ao mesmo tempo eu estava novamente num ambiente muito legal, cheio de pessoas cegas, que a gente fala que às vezes é questão da segregação, mas não é. Ali ninguém tem pena de ninguém, você aprende uns com os outros. Eu lembro quando eu aprendi com uma amiga minha como é que fazia pra pingar remédio, porque eu não sabia e aí você aprende uns com os outros, é um ambiente ali onde você não é estranho, naquele ambiente você é uma pessoa como outra qualquer. Então, eu acho que isso traz um conforto legal, entendeu? Em alguns ambientes não, porque por mais que muitas pessoas te tratem de uma forma espontânea e normal, sempre vai haver aquelas pessoas que não conseguem assimilar, que têm os seus preconceitos, que têm a pena. Às vezes vê... porque eu costumo dizer que pro cego é normal esbarrar nas coisas, não tem problema esbarrar para um cego, mas às vezes a pessoa vê uma pessoa indo na direção de esbarrar ou esbarrando e aquilo, pra ela, é doloroso. (risos) E ela, mesmo sem querer, transmite isso pro cego. E a gente vai vivendo. Então, nesse ambiente que eu estava novamente, principalmente nessa época de adolescência, era de novo o ambiente no qual eu não me sentia um bicho estranho. Então foi muito legal tudo isso junto e aí aconteceu minha saída da escola, com a minha entrada na faculdade.





P/1 - E por qual esporte, modalidade você se encantou?

R – Eu comecei com goalball. Na época a gente jogava tudo junto, os meninos, as meninas. Na verdade, aí, quando eu conheci o goalball, o esporte e o esporte me conheceu, também eu fui pro atletismo, daí eu saí fazendo goalball e o atletismo e se tivesse a natação, eu faria natação; se tivesse o judô, também faria o judô. Tinha, existia, mas não tinha o treinamento pra isso na instituição que eu estava, que eu pudesse participar. Aí eu acabei ficando no goalball e no atletismo.

P/1 – Como era sua rotina de treinos? Como isso entrou na sua vida?

R – Então, foi até muito interessante, porque como eu falei eu cantava com meu irmão e grande parte, a gente passou a ajudar minha mãe, a nossa família, passamos a contribuir com a nossa casa de forma determinante com a música. A gente começou a trocar móveis, compramos o nosso primeiro aparelho de som, na época era o três em um, que todo mundo fala, que tinha o gravador, o toca-discos e o rádio embutido no mesmo aparelho, então, enfim, era um sonho que a gente tinha e a gente conseguiu comprar nessa época. Porém, o que começou a acontecer? Eu comecei a trabalhar, então comecei a ter também uma outra fonte de renda e os treinos eram de sexta-feira à noite e de sábado de manhã e muitas vezes de domingo de manhã. E quando você vai tocar? Na sexta-feira à noite, às vezes você passa a noite toda tocando, como é que você treina no sábado? Você até pode treinar antes do show que você vai fazer, mas no sábado você não tem vontade de sair da cama, no domingo de manhã, se você passou a noite toda cantando, também você não vai ter disposição pra treinar e aí começou a chegar o momento no qual eu vivia assim: ou eu treino ou eu continuo com a música. E aí cheguei pro meu irmão, falei: “Mano, você vai seguir sozinho”. (risos) E aí eu perdi sua pergunta. (risos)
P/1 – Mas é isso mesmo, eu só queria perguntar...

R - ... a rotina de treino, né?

P/1 – É.

R – Então, aí era assim: a gente treinava sempre à noite, normalmente de segunda-feira, quarta-feira e sexta-feira, ou no sábado, ou no domingo de manhã, quando tinha próximo de competição, ou terça-feira, quinta-feira e sábado, eram horários assim, à noite e nos finais de semana, porque a instituição que a gente fazia parte não tinha condição de remunerar um treinador. Então os treinadores eram voluntários, nós não éramos remunerados, então a gente tinha que trabalhar, então os treinos eram conciliados aí com a carga de trabalho de cada um.

P/1 – E você cantava ou tocava algum instrumento?

R – Não, eu cantava. Cantava não, eu tentava cantar.

P/1 – E seu irmão?







R – Meu irmão, eu falo que, pra mim, ele é um gênio, sabe? Meu irmão tocava. Como que foi? Ele sempre gostou muito de música, sempre ouvia muita música e no começo a gente falava que ele ficava batucando. Então ele encontrava uma superfície e ficava lá, batendo na superfície, no ritmo da música. Enfim, quando eu fiz mais ou menos uns onze anos, eu entrei na aula de violão na escola que eu estudava, aí eu peguei um violão emprestado e levei esse violão pra casa pra poder treinar as duas notas que eu tinha aprendido lá na aula de violão e aí meu irmão me viu com aquilo lá na mão, fazendo barulho, tal e ele: “Que legal, não sei o quê”. Ele era tão pequenininho, era bem magrinho, não conseguia nem fazer as notas no violão, os dedinhos dele não faziam as notas no violão. Só que aí eu expliquei pra ele como funcionava as casas, os traços, as cordas, tudo que eu tinha aprendido na minha aula eu falei pra ele e expliquei pra ele as duas notas que eu tinha aprendido na aula. Daquelas duas notas que eu mostrei pra ele, ele tirou todas as outras notas e qualquer música que eu quisesse tocar ele falava pra mim: “Você vai fazer assim, assim, assim” e me ensinava as notas, porque ele não sabia tecnicamente, mas de ouvido ele conseguia construir as notas, tanto que, quando ele começou a tocar, daí, já, as pessoas que iam acompanhá-lo, então vamos supor: ele estava fazendo a guitarra e tinha alguém acompanhando-o no baixo, aí a pessoa: “Cara, maior difícil te acompanhar”, porque ele não fazia as posições na guitarra da forma como as pessoas fazem. Então muitas vezes o baixista ia acompanhando pelo dedo da pessoa nas cordas e o meu irmão punha os dedos tudo diferente, mas fazia o mesmo som, porque tecnicamente ele não aprendeu, ele aprendeu dessa forma. E aí foi o violão, que daí, com o passar do tempo, ele já passou a conseguir ele mesmo tocar, depois ele foi pra guitarra e aí com o passar do tempo ele evoluiu pro teclado, e hoje, sei lá, se der bateria ele toca; se der baixo, ele toca; se der piano, ele toca, enfim.

P/1 – Músico?

R – Ele é um ‘músico de ouvido’, é um dom.

P/1 – Enquanto estava acontecendo essa entrada no esporte, você começou a fazer faculdade de Ciência da Computação?





R – Isso.

P/1 – Como foi?

R – Na verdade, eu entrei no esporte em 1994, ainda estava no terceiro ano do ensino médio e aí eu participei de uma competição, que foi a única no Brasil que teve de torball, uma modalidade bem similar ao goalball, mas é diferente e aí a gente foi e conseguiu ser campeões. Daí, além do gosto do esporte, fui ‘picada’ pela vitória. (risos) Daí no outro ano, 1995, eu comecei a treinar mais - daí eu já tinha saído da música – certinha e fui pra minha primeira competição de goalball e a minha primeira competição de atletismo, que graças a Deus também me saí bem e foi o mesmo ano que eu entrei na faculdade. Aí no final do ano eu recebi uma convocação pra Seleção, eu ia disputar o Pan, os Jogos Pan-Americanos na época, na cidade de Buenos Aires e eu fui chamada pra jogar e correr, eu ia completar a equipe de revezamento, e a faculdade acabou pra mim (risos), Primeiro que eu tinha feito a escolha errada, escolhi não pelo que eu gostaria de fazer, mas pelo que eu achava que estava dando dinheiro na época, que era Ciências da Computação, então eu já não estava identificada com o curso, isso é um ponto e estava totalmente identificada com o esporte, então eu saí, abandonei a faculdade e fui aí participar da minha primeira convocação pela Seleção Brasileira, no caso não aconteceu o goalball, porque nós não tivemos número de países inscritos suficiente, mas eu fui lá compor a equipe de revezamento.

P/1 – Como foi?

R – Foi, pra mim, um sonho, né? Era uma coisa assim, muito legal, embora desse medo, aquela coisa: “Ai, meu Deus, eu vou correr, eu vou correr”, porque embora eu estivesse treinando, tivesse sido campeã, sido convocada pra Seleção Brasileira, eu não tinha uma estrutura de treino. A pessoa com deficiência visual, pra correr, precisa de um guia, uma pessoa que vai correr do lado dela, ela vai estar segurando a cordinha, o guia também segura a cordinha e aí ela consegue manter ali o percurso que ela tem que fazer. Então pra você treinar, você precisa de uma pessoa pra treinar com você, então eu não estava treinando da forma como deveria, enfim, meu desempenho foi horrível, (risos) mas a equipe era muito boa, então a gente conseguiu, eu não lembro, na época, qual foi nosso resultado, porque a gente fez o revezamento quatro por cem e o quatro por quatrocentos, mas a gente conseguiu ganhar a prova e eu não me lembro exatamente, acho que a gente ganhou a prova dos quatro por cem. É, foi isso. Eu fui mal, mas minhas amigas foram muito bem (risos).

P/1 – E tiveram outras competições importantes pra você?

R – Bom, depois que eu entrei nesse meio, eu sou atleta, fui atleta, minha primeira competição foi em 1994 e a minha última competição oficial foi no ano passado. A minha última participação na Seleção Brasileira foi em 2019. Aí eu tive várias competições ali que foram marcantes pra mim, porque daí depois eu mudei, no final desse ano eu fui morar na cidade de Maringá, aí fiquei, vivi lá quatro anos da minha vida jogando, porque lá não consegui dar prosseguimento ao atletismo, na cidade a gente acabou sendo campeãs por duas ou três vezes, três vezes campeã por Maringá, de goalball, mas não tive nenhuma convocação pra Seleção Brasileira. E aí em 2000 eu voltei pra São Paulo, a morar com meus pais e aí tive a minha primeira convocação pra Seleção em 2001, num Parapan[-Americanos] também e aí não parei mais, fui pra mundiais, três jogos paralímpicos, um pelo atletismo e dois pelo goalball, os últimos jogos paralímpicos que eu participei foram em 2016, no Rio, que a gente conquistou o quarto lugar e aí a gente é bicampeã... eu fui, porque a Seleção hoje, já é tri... não, a Seleção é bi ainda, porque o terceiro Parapan vai ser agora em 2023, em Lima. Então eu sou bicampeã Parapan-Americana com a Seleção, temos um vice-campeonato mundial da Ibsa, que foi a primeira vez que o Brasil conquistou a vaga pros Jogos Paralímpicos, esse campeonato foi em 2003 e aí acabou que eu participei da equipe que conquistou a vaga, mas acabei indo pros Jogos Paralímpicos pelo atletismo, então em Atenas eu participei do atletismo e desde 2007, 2008 mais precisamente, que eu estou só no goalball. Aí eu fui em 2008 pra Pequim, em 2012 eu não fui, eu tive meu primeiro filho em 2010, não consegui ser convocada em 2012 e voltei pra Seleção ali no Mundial de 2014 e os Jogos Paralímpicos de 2016.

P/1 – Uau!

R - Tenho onze títulos brasileiros de goalball, tenho várias medalhas no atletismo, mas de competição marcantes são essas.

P/1 – Simone, imagino que tenha um milhão de histórias pra contar de todas essas competições. Queria que você contasse pra gente umas mais marcantes, alguma viagem ou alguma competição específica, não sei, preparação. Não sei, o que você quiser, que foi bem marcante pra você.

R – Eu acho que a vida é uma coisa legal, né? Acho que história marcante, que nem você falou, tem muitas e com certeza, quando eu lembrar desse momento, eu vou falar: “Puts, mas eu podia ter falado sobre isso, sobre aquilo, sobre aquilo outro”, (risos) mas é o que vem no meu coração agora, então é o que eu vou falar, acho que uma das histórias mais marcantes que eu vivi foi a primeira vez que a gente conquistou a vaga pro Brasil, nos Jogos Mundiais. A nossa modalidade era bastante desacreditada. A gente participou de um mundial aqui no Brasil, em 2002, principalmente o feminino. Esse era o meu sentimento na época, não posso dizer que era assim. Eu sentia que o goalball feminino era desacreditado aqui no nosso país. Era tido como um goalball em desenvolvimento, as meninas estão aprendendo, estão começando a ter contato com o goalball internacional agora e nesse ano a gente passou por grandes baixas na Seleção, a gente tinha uma Seleção formada, uma atleta desistiu, outra atleta sofreu uma lesão prestes a ida pros jogos e eram atletas ‘de peso’ da nossa equipe. A gente falou: “Estamos lascadas”, mas tá, fomos pra competição e aí muitas vezes eu acho que no esporte isso tem um ponto muito positivo: quando você tira o peso de cima de você e você vai e fala assim: “Eu vou e seja o que Deus quiser!”, você consegue colocar ali o seu melhor. Então eu acho que a gente conseguiu colocar o nosso melhor, a gente foi avançando na competição com muita tranquilidade e quando a gente viu, a gente estava na semifinal e aí a gente ia jogar contra um gigante na época, do esporte, e se a gente ganhasse aquele jogo, a gente estaria com a vaga, não precisava ganhar a competição, a gente iria, os dois primeiros países, os dois primeiros colocados na competição iriam pros jogos. E aí a gente jogou, começou a jogar, tal, tal, tal, estava dois a zero e eu escutei... porque no goalball você não pode falar, só quando a bola... na época, hoje até não, mas na época não podia falar, a arquibancada não podia falar, os técnicos não podiam falar com o atleta, só na hora do tempo técnico, enfim, e aí a gente jogando, jogando, jogando e de repente eu escutei da arquibancada assim: “Faltam dez segundos”, daí eu falei assim: “Meu Deus!” E a gente podia permanecer um certo tempo com a bola na mão e a bola estava na equipe adversária, eu falei: “Vai ser a gente receber essa bola, segurá-la e a gente vai estar nos jogos”. Então esses dez, essa voz, essa fala foi até a fala de um grande parceiro do esporte paralímpico, o professor Alberto, foi chefe de inúmeras delegações, enfim, uma paizão, uma pessoa que está comigo no esporte desde quando eu comecei, essa fala dele mora na minha imaginação até hoje, vira e mexe, quando a gente perde o sono, que a gente fica lembrando as coisas da vida, eu o escuto gritar que faltam dez segundos e sinto aquela alegria grande, porque já estava ‘na nossa mão’, a gente já estava na final. E aí, bom, eu falo que a gente já foi pra final com aquela sensação de dever cumprido. Então embora a gente tenha feito uma final maravilhosa, a gente perdeu da Finlândia faltando dez segundos pra acabar o segundo tempo da prorrogação, a Finlândia também é um time de muita tradição no goalball, ainda mais naquela época, a gente perdeu ali faltando dez segundos, mas eu acho que a gente entrou na quadra já com aquela sensação: “Pô, (risos) a gente não precisa de mais nada aqui”, tal. Não consciente, mas talvez a gente estivesse muito feliz pelo resultado que a gente tinha alcançado no dia anterior. Então esse é um momento muito marcante do esporte pra mim.
E a final B, que a gente chama, porque nos Jogos Paralímpicos a gente precisa de oito raias pra quatro atletas. Não é como no olímpico, que cada atleta corre numa raia, então são oito atletas. Na final paralímpica só vão quatro atletas, porque precisa do espaço pro guia. Então eu participei, em Atenas, da final B. Se você fica em quinto lugar pra final, você não tem a possibilidade de disputar o ouro, só vai disputar o outro as quatro. E aí, enfim, eu larguei, tinha ido machucada pra Atenas, fiz uma competição muito difícil, porque você quer correr, quer fazer o seu melhor, mas você está ali, vindo de lesão, com medo de estourar tudo de novo, enfim, e quando eu entrei na pista, pra final B, iria ser a minha última prova, minha última participação, então eu falei: “Eu vou fazer o máximo que eu consegui aqui” e foi uma final muito legal, eu corri muito bem, fiz o melhor tempo da minha vida e foi transmitido, na época, pelo Sport TV, minha família viu, os amigos da minha mãe, e a sensação de você ir ali e dar o seu melhor e conseguir seu melhor resultado, eu acho que também é algo que eu nunca vou esquecer. E acho que algo que eu não posso deixar também de falar, os jogos do Rio de 2016 foi um momento, uma recordação triste que eu tenho: a gente estava jogando a semifinal e a gente foi pra prorrogação contra a China, ganhando a prorrogação a gente estaria na final, seria a medalha ‘dentro de casa’ e na prorrogação a bola - eu sou pivô, minha posição no goalball é central – bateu na pontinha do meu pé e aí eu desviei a bola da jogadora que estava atrás de mim e a China fez o gol da vitória dela e ali eu calei o estádio (risos). Mas ao mesmo tempo tinha minha família, o aplauso das pessoas que entendem que o atleta vai ganhar e perder também e, mesmo saindo de uma derrota, foi um momento muito emocionante sentir o carinho da minha família e de todas as pessoas que estavam lá no ginásio aquele dia. Eu acho que é isso (risos).

P/1 – Teve algum título, ou medalha muito impactante, muito marcante pra você?

R – Olha, essa medalha de prata que a gente ganhou em 2003, que foi o vice-campeonato mundial da Ibsa... eu falo mundial da Ibsa, porque a gente tem dois torneios mundiais, então tem um torneio que chama só mundial e outro que é mundial da Ibsa e a última vez... deixa eu ver se eu não vou ser injusta, (risos) mas acho que a última vez, sim, em 2016, que eu fui campeã brasileira e a gente tinha passado, eu tinha passado por esse momento difícil nos jogos, tirar o Brasil da final, vamos dizer assim, (risos) ter grande participação na saída do Brasil, da final e o meu time e eu fomos campeões brasileiros também naquele ano, no mesmo ano dos Jogos Paralímpicos.
E também, como eu falei, eu fiz atletismo e a medalha de ouro que eu conquistei no salto em distância, quando eu bati o recorde Parapan-Americano, em 2007, também é uma medalha que eu guardo no meu coração.

P/1 – Como foi essa sensação? Não consigo imaginar!

R – O salto em distância?

P/1 – Não, de ganhar e fazer um recorde. Como foi pra você?

R – Olha, é uma das melhores sensações da vida. O salto em distância é uma prova muito gostosa. Não sei se pra pessoa com deficiência visual, talvez... porque quando você corre, você corre com o auxílio de um guia; quando você salta, você corre sozinho. Ainda que seja uma distância pequena, você corre sozinho. E a sensação de liberdade que o salto te dá é uma coisa fantástica. É como se você pudesse voar um pouquinho. Você voa um pouquinho, ainda que sejam pequenos metros, então por si só essa sensação já é maravilhosa e aí você salta e quando você salta você já tem mais ou menos uma noção se você fez um bom salto ou não, de acordo com aquilo que você conhece, da forma como você salta e aí você sai pro lado, pra não queimar, porque você tem que sair pro lado e aí fica esperando ouvir o árbitro dizer o que você saltou. E nesse dia, quando eu ouvi a minha marca, de quatro metros e 66 centímetros, eu fiquei assim, não acreditava que eu tinha conseguido aquilo. Eu estou falando essa marca aqui, eu não me recordo exatamente se foi essa marca que foi homologada da competição, mas essa é a marca que me trouxe essa recordação, que me traz até hoje essa recordação e se não foi essa que foi homologada, foi outra - porque aí você faz vários saltos na mesma competição - bem próxima dessa, que eu não vou me recordar agora, aqui, qual é o valor, mas foi recorde Pan-Americano, e quando você escuta no alto-falante da competição, que está aquele ginásio e tal: “Novo Pan-American record”, fala seu salto e seu nome, eu não sei, são momentos que ficam eternizados, ainda que na sua lembrança.

P/1 – Com certeza! E me conta, Simone, você começou, então, a fazer faculdade de Psico?

R - Ah, então, eu falei que eu ia me formar especialista em assuntos gerais, porque eu comecei Ciência da Computação, fiz quase um ano, parei, aí depois eu fiz Letras no período que eu morei em Maringá, então quando eu voltei pra São Paulo eu estava no terceiro ano de Letras, só que aqui em São Paulo o curso era muito diferente do de lá, então eu não terminei, porque eu teria que fazer praticamente o curso novamente, porque lá tem muitas disciplinas que aqui não tem e essas disciplinas são dadas nos primeiros anos, aí beleza, mais pra frente eu fiz Jornalismo, também desisti da faculdade e aí comecei Psicologia, me apaixonei e aí terminei, no ano de 2010, e foi muito legal porque fiz o meu TCC grávida, bem grávida e o apresentei com meu bebezinho com quinze dias (risos).

P/1 – Como foi? Qual era o tema do TCC?



R – O meu TCC foi assim: “Como você vê quem não enxerga?” Então foi muito legal, porque eu perdi o sono, por causa do tamanho da barriga, (risos) eu ia escrever o TCC, então imagina você pensar no parto e no TCC ao mesmo tempo, no mesmo ano, acontecendo simultaneamente, então foi muito legal, a gente fez, além das questões teóricas, pesquisa de campo, ficou um trabalho bem bacana e principalmente eu consegui falar de um tema que pra mim é muito... dá ‘muito pano pra manga’ essa questão da aproximação do universo das pessoas que não têm visão, que é uma coisa tão importante. 75% das informações de quem enxerga são recebidas através da visão. Então eu acredito que quando uma pessoa que enxerga vê uma pessoa que não enxerga, ela tem um monte de inferências de como é o universo daquela pessoa sem visão e eu acho que um ponto muito importante pra gente aproximar as realidades é entender o que cada realidade significa pra cada um. Então quando eu perguntava pras pessoas, perguntas na pesquisa de campo que a gente fez: “Como que é pra você ver isso? Como que é pra você aquilo? Como você vê quem não enxerga?”, eu acho que eu estava tentando colocar no papel ali um pouquinho desse universo, de como é pra uma pessoa que enxerga ver uma pessoa que [não] enxerga, porque muitas vezes a gente se preocupa com a pessoa que não enxerga, mas como é pra pessoa que enxerga, uma pessoa que não enxerga? Acho que até pra gente conseguir conscientizar, construir, informar, educar, a gente precisa saber isso.



P/1 – E esse trabalho foi individual ou em grupo?

R – Foi eu e um colega da faculdade que fizemos juntos.

P/1 – E depois, como foi o desenrolar da sua trajetória profissional? Você continuou no esporte?

R – Quando eu entrei no esporte, o esporte não remunerava as pessoas. Eu entrei lá em 1994, 1995, então a gente não tinha patrocínio e aí eu precisava trabalhar. Como eu falei, eu já trabalhava e continuei trabalhando. Enfim, eu trabalhei esse tempo que eu comentei com vocês, vendendo etiqueta no Cesec, aí quando eu mudei pra Maringá eu entrei em dois concursos públicos lá, um deles no estado e o outro na prefeitura, não concomitantemente, eu tive que ‘abrir mão’ de um pra ir pro outro e aí eu resolvi voltar pra São Paulo, tentei entrar no mercado CLT aqui, mas não consegui, mas graças a Deus eu estava há quase um ano aqui, eu entrei em um outro concurso e com quase um ano que eu estava nesse outro concurso, apareceu a oportunidade - daquele concurso que eu falei lá atrás, que um dia eu ia ser aquilo, (risos) – pra eu prestar, no ano de 2002, o concurso pra Polícia Civil, na carreira de agente de telecomunicações. Aí eu consegui, passei e entrei na Polícia Civil. Eu não lembro agora se foi isso. Foi em 2001, não foi em 2002. O processo durou o ano de 2001 inteiro e no finalzinho de 2001 eu fui lá pra academia da Polícia Civil e fui levando em paralelo, por ser funcionária pública eu tinha direito ao afastamento pra participar das minhas competições. As competições que não eram internacionais, porque a lei só te garante a possibilidade de afastamento para representação internacional, então aí eu pegava as minhas férias, tentava conciliar, porque você faz plantão, eu fazia, então não tinha que trabalhar exatamente todos os dias, então eu tentava conciliar ali férias, plantão, coordenar. Sempre tive muito apoio dos meus amigos de trabalho, dos meus gestores, das pessoas que eram meus superiores. A Polícia Civil sempre tratou com muito carinho a minha carreira esportiva e aí eu consegui levar isso em paralelo, até o início do ano passado. No início do ano passado eu me afastei, eu peguei um afastamento por dois anos no estado, que até eles chamam de afastamento sem remuneração, e ingressei num novo desafio profissional, no Comitê Paralímpico, como coordenadora de um programa chamado Atleta Cidadão e, nesse programa, a gente cuida justamente da preparação do atleta em termos pessoais e profissionais durante e para após carreira esportiva.



P/1 – Que legal! Então antes da gente entrar nessa parte, eu queria saber dos concursos públicos que você entrou, qual foi o mais significativo. Se tem como dizer isso.

R – A Polícia, né? Acho que foi o mais significativo. Primeiramente pelo fato do tempo que eu passei, vinte anos, praticamente, na carreira policial. Você está em contato direto com uma área da população, que ainda que não na linha de frente da investigação etc e tal, que a carreira de agente de telecomunicações é mais interna da Polícia, mas você está ali constantemente lidando com uma área da nossa sociedade que é muito sensível, que é a da Segurança Pública e ali você vivencia muitas experiências, aprende muito, então eu sempre tive muito na minha consciência que eu queria ser uma boa servidora pública. As pessoas que buscam serviço público já buscam por necessidade, então o nosso papel ali é, na minha opinião, tentar ser... ajudar o máximo possível, servir, porque muitas vezes a gente olha a palavra servidor público como se fosse uma coisa só, mas é um servidor público, então isso é uma coisa muito gostosa, é muito bom você saber que, de alguma maneira, você está contribuindo ali, pra sociedade. Eu acho que a gente sempre contribui, mas quando você é um servidor público, é a sua obrigação.

P/1 – E, Simone, desses vinte anos na Polícia Civil, teve alguma história que você se recorda que foi muito marcante, ou de muita dificuldade, enfim?

R – A história mais difícil que eu vi na Polícia foi uma denúncia que a gente recebeu, de uma mãe que fazia uso de drogas e a denúncia era que ela tinha um bebê e por conta do tempo que ela passava nas crises etc e tal, dos cuidados que ela prestava, o bebê estava num estado que ele estava comendo as próprias fezes. Então você receber uma situação dessa forma é muito difícil, porque você tem vontade de ir lá e, enfim, né? E as coisas têm, todas elas, que seguirem seus cursos.

P/1 – Hum-hum. Mas essa foi bem marcante?

R – Muito, muito, muito, muito, muito. Eu chorei. (risos) Eu fui pro banheiro, comecei a chorar, (risos) foi muito difícil.



P/1 – E nesse tempo, pensando agora em todos os seus trabalhos, você já enfrentou algum tipo de preconceito, ou dificuldade de entrar no mercado de trabalho?

R - Muito preconceito, muita dificuldade. Por isso que eu tenho tantos concursos públicos no meu currículo. (risos) Porque hoje a gente tem essa questão da lei de cotas, mas a nossa sociedade, infelizmente, está se preparando. Eu não posso dizer que a gente não evoluiu. Sim, a gente evoluiu, mas a gente tem muito pra caminhar pra conseguir absorver uma pessoa com deficiência no mercado de trabalho, absorvendo toda capacidade produtiva daquela pessoa. A gente ainda tem muitos conceitos estabelecidos, pré-julgamentos, enfim e falta, na minha opinião, um pouco mais de diálogo, dizer: “Eu não sei, posso aprender, vamos aprender juntos? Vamos construir juntos?” Então você encontra muitas coisas que poderiam facilmente ser solucionadas, mas que não são: “Deixa pra lá! Faz isso, faz aquilo”, sabe? Enfim, tem um caminho muito longo ainda pra ser percorrido, pra que a inclusão seja real.

P/1 – O que você acha que as instituições, de uma maneira geral, poderiam fazer pra fazer uma inclusão com qualidade, absorver mesmo, como você falou, pessoas com deficiência?

R – Eu acho que o primeiro ponto e aí eu não sei se é nem da instituição, se é campanha, o que é, enfim, é que as pessoas deixem de ter pena de uma pessoa que tem deficiência. Muitas das vezes, a última das coisas que ela lembra, no cotidiano dela, é que ela tem deficiência. E aí é um diálogo a quatro mãos, eu acho. Se você é um empregador e quer ter dentro da sua empresa um colaborador com deficiência, você precisa dialogar com esse colaborador: “O que eu preciso é isso. O que você pode fazer, dentro disso que eu preciso?” Porque não existem situações, na minha opinião, pré-estabelecidas: a pessoa que tem deficiência visual pode ser isso, pode fazer aquilo. Hoje uma pessoa que tem deficiência visual consegue fazer muita coisa que qualquer outro colaborador faz num computador, por exemplo, se ela tiver à disposição dela um software de voz, que hoje você encontra no mercado de forma gratuita, não precisa pagar, porque antigamente era um software supercaro, então ela consegue. Hoje muitas das coisas são feitas pelo WhatsApp (risos). Qualquer cego lida... qualquer cego não, não posso generalizar, mas é possível qualquer pessoa com deficiência visual, que não enxerga, usar o WhatsApp, quer seja no computador, quer seja no celular. Então, enfim, isso eu estou dando um exemplo do WhatsApp, é claro que ninguém trabalha só com WhatsApp, mas hoje nós temos muita acessibilidade, principalmente pras pessoas com deficiência visual. E aí com deficiência física, intelectual, eu acho que o principal ponto é o diálogo, porque cada caso é um caso. Cada pessoa com deficiência vai apresentar potencialidades e limitações e aí não há como se generalizar. Tem que haver primeiramente a abertura e depois o diálogo, pra entender de que maneira aquela pessoa pode se transformar num colaborador da sua empresa, porque a pessoa com deficiência é… o maior presente que pode se dar para uma pessoa, na minha opinião, com deficiência, é que as habilidades, as potencialidades dela sejam postas em ação. Você não faz inclusão colocando na mesma sala uma pessoa sem deficiência com uma pessoa com deficiência, ganhando o mesmo salário, quando as atribuições da pessoa com deficiência são infinitamente inferiores às atribuições do colega do lado. Isso não é inclusão. Isso, na minha opinião, é uma inclusão perversa, por que você só vai o quê? A pessoa que está ali do lado do deficiente... da pessoa com deficiência vai achar o quê? “Ele ganha o mesmo que eu, mas ele não faz nada, ou ele faz muito menos que eu. Ah, coitado, mas também ele não consegue”. Ou então a pessoa com deficiência vai chegar na casa dela e vai falar: “Pô, estou empregada, mas eu não dou a mesma contribuição que o meu colega dá pra empresa”. Então isso não é inclusão. E eu acho que o caminho pra inclusão é o diálogo, porque nós somos todos diferentes e cada um vai ter ali a sua especificidade.

P/1 – E pensando na sua trajetória profissional, quais foram os maiores desafios no trabalho?

R – Na minha trajetória profissional eu acho que foi a possibilidade, ali, a burocracia, muitas vezes, que a gente enfrenta, no estado, de trazer a tecnologia que eu precisava pra poder fazer aquilo que os meus colegas de trabalho faziam. Acho que esse foi o meu maior desafio que, ao longo do tempo, a gente conseguiu contornar. E muitas vezes a própria questão social, né? Por exemplo: eu sou uma psicóloga, então muitas vezes o fator de ser uma pessoa com deficiência impacta no número de clientes, nas possibilidades de atendimento que você vai ter, não na forma como você vai realizar, mas: “Será que aquela psicóloga sabe muito bem o que ela está falando?” (risos) Então eu acho que essa pré-visão, esse pré-conceito. Eu não gosto nunca de usar a palavra preconceito. Eu acho que é um pré-conceito, o conceito que as pessoas estabelecem antes. Isso é muito complicado.

P/1 – E os maiores aprendizados?



R – É que todo problema tem uma solução. Eu acho que esse é o meu maior aprendizado da vida. Sempre que existe um problema, você tem uma solução. Muitas vezes a gente pode demorar pra encontrar a solução, mas tem uma solução. Tem uma forma, um jeito. Muitas vezes aquela forma, aquele jeito não são da maneira convencional, como sempre foi feito, mas se tudo fosse feito como sempre foi, não existiriam as descobertas, né? Então, muita coisa... eu acho que você olhar pras coisas como de que maneira eu posso resolver isso, de que maneira eu posso solucionar isso, o que eu posso fazer diante disso, eu acho que foi a coisa mais libertadora que eu aprendi na minha vida.

P/1 – Eu queria só voltar um pouquinho pra faculdade, se teve algum encontro muito marcante pra você, desde colegas, professores, estágio...

R – Eu acho que o meu grande amigo foi um encontro muito especial... o grande amigo que eu falo meu, não, porque eu tive muitos amigos, graças a Deus, na faculdade, mas o Claudinei, que foi a pessoa que fez o TCC comigo, foi uma pessoa muito especial que eu conheci na minha trajetória e eu acho que o encontro que eu tive com o conhecimento, na faculdade, foi muito especial, porque você aprende muita coisa. Isso é redundante dizer, você está na faculdade, é claro que você está pra aprender, mas é diferente você dizer assim: “Eu aprendi teorias, aquilo que o livro ensina”. Eu aprendi uma coisa que, puts, na minha vida foi transformadora, na minha opinião: é você ouvir. A gente, muitas vezes... eu costumo dizer que eu descobri na faculdade que a verdade não existe e talvez isso tenha um significado pra mim, porque é pra mim, porque pra mim isso foi um aprendizado, né? Mas antes disso eu acreditava que existia uma verdade das coisas, um jeito certo das coisas e quando eu passei por esse percurso de cinco anos na faculdade, você começa a compreender que a verdade minha é uma, a sua é outra, a dela é outra, de cada pessoa é uma verdade, porque cada pessoa tem uma história de vida, uma experiência, os seus aprendizados. Então ela vai ter a verdade dela. E a gente conseguir ouvir, estar aberto pro ponto de vista do outro, pra história do outro sem julgamento, acho que foi o maior encontro que eu tive na minha faculdade.

P/1 – E, Simone, como foi participar do Programa de Transformação Profissional da EY?

















R – Foi muito legal, um processo de reflexão muito importante pra mim, porque eu estava num momento, talvez, quase igual lá da minha juventude, querendo ser tudo e sem um caminho, porque eu acho que quando... a indecisão é um dos maiores paralisadores que pode existir, porque você fica olhando: “Não, eu posso ir por aqui, mas eu também posso ir pro aqui, mas eu também posso ir por ali” e aí você fica parada, você não vai. E eu estava nesse momento na minha vida e os processos de reflexão que eu vivenciei na Transformação Profissional, o meu parceiro foi o Daniel, ele me permitiu enxergar possibilidades e principalmente definir um caminho. Não significa que, ao tomar um caminho, você não possa seguir outros lá na frente, mas me senti impelida a tomar um caminho, que foi o que eu tomei e grande parte disso tem influência no processo de transformação profissional que eu passei com a EY.

P/1 – Que ano foi isso?

R – Eu iniciei em 2019 e finalizei em 2020.

P/1 – Em que momento da vida?

R – 2020 não, eu acho que... é isso mesmo. Eu estava, tinha acabado de passar pelos jogos de Lima, já começando a perceber que o meu desempenho estava caindo. A idade, a vida de atleta de alto rendimento passa pelo início, o ápice e o declínio próprio. Alguns atletas não chegam no declínio, eu acho que eu comecei a chegar. (risos) Então eu estava nesse momento: fui pra uma competição, percebi que: “Puts, eu podia ter sido bem melhor, podia ter rendido muito mais”. Então você começa a perceber, e também o tempo que você está naquilo, e começa a falar assim: “Será que não está na hora de mudar o curso da história?” Porque, independente de você deixar de ser convocado pra uma Seleção Brasileira, eu acho que tem muito aquela questão interna, sua, porque você pode deixar de ser convocado pra uma Seleção Brasileira e continuar tentando: “Não, eu quero, eu vou, eu vou, eu vou, isso ainda é o meu caminho”. E naquele momento eu comecei a rever se aquilo continuava fazendo sentido pra mim. Seja pelas minhas questões físicas, que eu comentei, seja pela questão do momento de vida, o tempo que eu já estava dedicando àquilo, seja pela minha família, meus filhos - porque depois eu tive mais um - seja pelo que for. E aí esse processo veio, nesse momento.







P/1 – E aí, em seguida, você entrou para o Comitê Paralímpico?















R – Em seguida veio a pandemia e aí eu finalizei o processo, entrei no Comitê Paralímpico mais ou menos um ano depois.

P/1 – Então, antes da gente chegar na pandemia, eu queria saber como você conheceu o seu marido e se ele é o pai dos seus filhos, como foi esse período de gravidez, maternidade. Como vocês se conheceram?







R – (risos) Bom, eu conheci meu marido por conta de amigos em comum. Eu fui para um aniversário na cidade, ele é do Rio de Janeiro, do estado do Rio e eu fui para um aniversário na cidade do Rio de Janeiro e ele estava lá e a gente se conheceu, começou uma amizade e depois essa amizade se transformou num namoro e esse namoro se transformou aí em quatorze anos a completarem-se no dia vinte de dezembro de 2022. Vai fazer quatorze anos que a gente está casado. Aí a gente teve o nosso primeiro filho em 2010, ele nasceu no dia dois de dezembro de 2010, o Thiago. A gente planejou, queria ter, foi um ano que não houve... eu falo que atleta planeja seus filhos de acordo com os ciclos olímpicos. (risos) No meu caso paralímpicos, mas atleta convencional ciclo olímpico. Mas foi um ano que a gente falou: “Vamos ter?” “Vamos” e tal e tivemos o Thiago. Eu sempre quis ter um parto natural, nunca consegui, o Thiago foi um parto normal e o Nícolas, que é o meu segundo filho, que nasceu em 2017, eu tentei até um parto normal, mas acabou virando uma cesárea. É muito difícil dizer sobre minha família, meus filhos. O meu marido sempre foi um parceiro muito grande nessa vida, vamos dizer, de doze anos que a gente foi casado, mais um ano de namoro, treze, enfim, você tem que passar períodos longos longe. Você tem os filhos, depois que os filhos vêm, você precisa de alguém que te ofereça segurança de que seus filhos vão estar bem cuidados no tempo que você tiver fora e alguém, não é fácil uma pessoa te apoiar em passar tanto tempo longe e ao mesmo tempo oferecer a segurança de que os seus filhos estão cuidados, protegidos, sendo tratados com carinho e amor, porque depois que você tem filho, ir pra uma competição também vira paradoxal, porque você tem a alegria de estar indo pra competição e a dor de estar deixando os seus filhos. Eu acho que essa dor acompanha toda mãe que é atleta. É muito difícil você ir pra uma competição e deixar seus filhos por alguns dias. Você vai perder coisas, momentos. E outra: aquela coisa de estar junto, abraçando, beijando, você fica ali um tempo muito grande, na minha opinião, sem. Então foi muito importante todo o apoio, a parceria que eu sempre pude contar com ele. E com relação aos meus filhos eu não tenho palavras pra dizer que vão conseguir expressar o que é, pra mim, tê-los na minha vida. O quanto eu aprendi depois do momento que o Thiago nasceu, porque o Thiago foi o primeiro filho. Então quando ele nasceu, nasceu a mãe. Quando o Nícolas chegou, a mãe já existia. Nasceu a mãe do Nícolas, mas a mãe já existia. E aí é aprendizado, na minha opinião, todo dia. Eu acho que um filho é uma das maiores contribuições pro seu desenvolvimento como pessoa que pode existir, porque quando você tem um filho, você entende que você é responsável pelo desenvolvimento daquela criança, pelo crescimento, enfim, por tudo que ela vai se transformar, você tem grande participação naquilo, você quer se transformar numa pessoa melhor, pra poder ser um exemplo pra aquele criança. Então aí o crescimento não tem fim.

P/1 – Como foi se tornar mãe? O que a maternidade representou na sua vida?

R – É como eu falei: primeiro essa questão do crescimento, do desenvolvimento. Então você tem um filho e você quer proporcionar... é uma coisa assim: você passa a viver por outra pessoa, para outra pessoa. Eu acho que por mais que você tenha mãe, que o vínculo com a sua mãe é muito grande e depois vem o cônjuge, que o vínculo também com aquela pessoa com quem você se casa é muito grande, mas quando você tem um filho, eu não conheço um vínculo igual, porque você quer proporcionar o melhor que você pode pra aquela criança e também vem muito sentimento difícil, porque nós somos seres humanos imperfeitos e quando você quer proporcionar o melhor, você esbarra no ser humano que você é, nas limitações que você tem. Então vem muitas vezes, a culpa, a dor, a tristeza e a alegria que vem ao lado, de você estar ali todos os dias, contribuindo, vendo, observando uma pessoa se desenvolver, um ser desabrochar, um novo ser humano. Não dá pra expressar assim, quando você vê o seu filho manifestando o jeitinho dele de ser, a opinião dele sobre as coisas, as escolhas dele, é apaixonante. Ai, é encantador (risos).

P/1 – Tem alguma... você consegue pensar em alguma história marcante com seus filhos, alguma atividade que vocês gostam de fazer juntos, algum momento...

R – Eu acho que uma pessoa com deficiência nunca vai desatrelar as coisas da deficiência da vida dela, né? Então a história marcante que eu tenho, eu acho que uma das maiores histórias da minha vida foi com o Thiago. Quando você vira mãe, uma mãe com deficiência, no meu caso a deficiência visual, como eu falei, você esbarra nas suas limitações. Em alguns momentos eu me questionava se eu não tinha sido injusta com meu filho em colocá-lo no mundo, sendo eu uma pessoa com deficiência visual, porque eu nunca poderia pegar na mãozinha dele pra poder ajudá-lo de forma correta a fazer uma letrinha. Eu não posso e eu respeito muito as pessoas com deficiência visual que fazem isso, mas eu não me considerava em condições de catar o meu filho sozinha e ir com ele pra uma pracinha, porque primeiro que eu não ia ficar com a mão nele o tempo todo que ele tivesse na pracinha, porque senão não faria sentido eu levá-lo pra brincar e se ele sair de perto de mim numa pracinha, ele fica vulnerável, porque qualquer pessoa... enfim, ele pode cair e eu não vou estar vendo-o cair. Alguém pode vir, pegá-lo, eu não vou estar vendo, então eu não posso, eu não me senti nunca à vontade pra pegar meu filho e ir sozinha com ele pra uma pracinha, pra um parquinho. Então eu esbarrava nessas limitações da deficiência visual e um dia eu tive uma atividade na escola do meu filho e era Mamãe Coruja. E o que acontecia? As crianças estavam num ninhozinho de coruja, no escuro e cada mãe tinha que encontrar o seu filho e ter ali um momento de carinho, de contato, de intimidade com o seu filho e aí eu falei, conversei com o pessoal da escola: “Eu preciso da ajuda de vocês, não vou conseguir encontrar meu filho sozinha, não vou conseguir circular com um monte de criança no chão sozinha, mas eu não quero que vocês falem nada quando eu me aproximar dele, só aperta a minha mão, que eu vou saber que eu cheguei”. E aí elas fizeram assim e as crianças, como estava tudo escuro, estavam com os olhinhos vendados. Aí a pessoa fez da forma como eu pedi pra ela e quando eu me abaixei eu encontrei o rostinho do meu filho (choro) e comecei a fazer carinho nele e ele fez assim: “Mãe!” (choro) E é uma coisa assim que eu contando talvez não transporte o significado que isso teve pra mim, porque nesse momento, com aquele ‘mãe’ gostoso, aquele sorrisão gostoso que ele abriu, eu percebi que não importa tanto o que eu não posso proporcionar pro meu filho, mas vai importar muito o que eu posso proporcionar pra ele, o que eu posso significar na vida dele, o que eu posso representar pra ele (choro). Então eu me apropriei muito mais da minha condição de mãe, me senti muito mais segura, muito mais agradecida a Deus por essa oportunidade e nunca mais eu questionei se eu deveria ter feito essa escolha ou não. Eu não vou conseguir fazer muita coisa com eles, mas vai ter muita coisa que eu vou conseguir fazer.



P/1 – E hoje, como é o dia a dia de vocês?

R – Hoje o Thiago está dando muito trabalho, (risos) eu me acostumei. Eu posso dizer, talvez, que seja um dia a dia normal, um cotidiano normal. O Nícolas está com quatro anos, o Thiago com onze, está começando a entrar na pré-adolescência, está vivenciando... eu falo que ter filho é uma coisa muito legal, porque cada fase é especial. E cada fase vai trazendo seus desafios e é muito legal quando você se permite ter outro filho. Eu acho que quando você é mãe do primeiro filho, ele deve sofrer, todo primeiro filho tem que ter o seu... olha, porque a gente aprende a ser mãe e pai com o primeiro filho. Embora cada filho seja diferente um do outro, é muito mais fácil ser mãe do segundo filho porque, enfim, quando o filho não quer comer, você não vai pra cima dele como se ele tivesse que comer, senão ele fosse ficar sem... você vai saber, já, que vão ter períodos da vida que o filho come, vão ter períodos da vida que o filho não come, vão ter períodos da vida que a criança vai estar de um jeito, mas que aquilo vai passar, enfim. O Thiago foi um grande aprendizado, hoje ser mãe do Nícolas é mais fácil, o Nícolas deve agradecer muito o Thiago, mas é muito legal, eu amo tudo que eu faço com eles, fazer lição com eles, explicar os conteúdos que o Thiago não entende, conversar com o Thiago sobre os questionamentos que ele está começando a ter, em virtude da idade. Cada descoberta que o Nícolas faz no cotidiano, cada coisa que eles aprendem, cada expressão que eles manifestam, porque um filho é diferente do outro e cada etapa que eles vão transpondo, cada momento eu curto muito com eles.

P/1 – E a parceria com o marido, quais são os aprendizados e os desafios de ter uma relação tão longa?

R – É a gente entender que ninguém é igual a ninguém, a gente respeitar o outro. É você conseguir estabelecer, embora sejamos todos diferentes, eu acho que tem coisas que: o que eu consigo suportar e o que o outro consegue suportar e um tem que estar disposto a ir ali, porque se você não for ali, se você ficar expondo o outro àquilo que você não é capaz de suportar, eu acredito que não vá acontecer uma relação. E principalmente muitas vezes… eu acho que esse foi o meu maior aprendizado numa relação: mulher devia ser proibida de ler romance, assistir novela, porque quando a gente lê esses livros, a gente vê uma história ideal, perfeita. Histórias perfeitas são compostas por seres humanos perfeitos. Na vida real nós somos seres humanos imperfeitos, todos nós. E muitas vezes a gente acha que a gente vai casar, entrar num relacionamento e o outro vai nos fazer feliz. Primeiro somos nós os únicos que podemos nos fazer felizes. O outro pode contribuir pra nossa felicidade, mas só nós, em primeiro lugar, sabemos o que nos faz feliz. E dizer ao outro o que te faz bem, o que é legal pra você é um ponto que a gente quer que o outro... pelo menos eu, eu estou falando da minha experiência, achava que ele tinha que adivinhar o que me fazia bem, feliz, então demorou um pouco pra eu aprender que eu precisava falar porque, de repente, o que me faz bem, feliz, pra ele não tem o menor significado e está tudo certo. É de acordo com a experiência de vida dele. Então isso foi um aprendizado muito grande pra mim. E um outro aprendizado é que a gente é muito egoísta, quando a gente imagina que a gente entra numa relação com alguém pra o outro fazer a gente feliz. Então se o outro vai fazer a gente feliz, cadê a nossa parte de fazer o outro feliz também? O quanto a gente pode contribuir, dar de nós pra fazer a outra pessoa feliz. Eu acho que esse é o ponto ideal da situação, né? É claro que a gente vai oscilar muito entre um e outro, mas quando um casal tem a preocupação com o outro, o passo pra ter uma relação duradoura é grande. Hoje, quatorze anos - antigamente era cinquenta, quarenta – a gente já pode considerar (risos) uma relação duradoura.

P/1 – Opa! E, Simone, como a pandemia chegou na sua vida? No caso, estou pensando nos aspectos profissionais e pessoais também, na rotina.

R – Nos aspectos profissionais, pra minha família não impactou muito, porque o meu marido é da Saúde e eu sou da Segurança, então acabou que a gente continuou trabalhando. Quando a gente imaginou que uma quarentena seria composta por quarenta dias eu cheguei a pegar férias no meu trabalho, a gente ficou isolado, eu e os meninos, tudo, meu marido teve que continuar porque ele é da Saúde e tal, a gente foi pra casa da minha mãe, ficou na casa da minha mãe, mas aí quando a gente percebeu que a quarentena não era de quarenta dias, talvez fosse de quarenta meses, aí a gente, bom, então agora pensou em proteger a minha mãe, porque a gente estava na rua e tinha que não ficar levando as crianças na casa dela, não ficar indo na casa dela, então a gente ficou um bom tempo afastado, uma coisa que pra gente é muito frequente, a minha mãe e o meu padrasto, meu pai, que pra mim ele é um pai, são pessoas muito importantes pra que eu e meu marido possamos continuar trabalhando e quando eu falei das minhas competições, eu falei do meu marido, mas a minha mãe também foi muito importante em todo esse processo, então ela fica com os meninos no período em que eles não estão na escola, pra gente poder trabalhar, enfim. Então nesse ponto teve uma adaptação muito grande, porque a gente não podia mais ficar expondo-os ao nosso fluxo, que continuava. E no aspecto familiar eu acho que foi um dos melhores momentos que a gente teve: todo mundo dentro de casa por um tempo muito mais prolongado do que o que costumava-se ter, então a gente ficou muito mais dentro de casa, embora eu e o meu marido permanecêssemos trabalhando, mas sempre a gente organizou os horários pra que sempre tivesse alguém com os meninos, porque os meninos tinham que ficar em casa, não tinha escola. E aí a gente quase teve o terceiro filho (risos) nesse tempo, a gente não teve porque a natureza não quis, mas a gente falou: “Cabe mais um aqui”. A gente adotou um cachorro (risos) e, com certeza, a nossa família se uniu mais.

P/1 – E o seu trabalho no comitê? Como começou, quando?







R – Eu recebi o convite... eu atuo na área institucional há bastante tempo, já fui presidente de instituição, já participei do Comitê em Conselho Fiscal, já participei por longo tempo do Conselho de Atletas e quando você vem de um segmento, participa dele por tanto tempo, você se sente meio que parte dele e eu sempre fui uma pessoa, como vocês perceberam, que fala demais, (risos) então eu não conseguia deixar de dar as minhas opiniões, de manifestar aquilo que eu pensava sobre as coisas, então eu sempre fui muito engajada nas questões do comitê, exceto a questão da prática esportiva propriamente dita, e aí quando eu comecei a finalizar a minha participação em competições internacionais, como atleta de alto rendimento, tal, eu recebi o convite do presidente do comitê, se eu queria atuar nesse programa do comitê, que a ideia inicial dele é a transição de carreira do atleta, e com o passar do tempo, com as mudanças institucionais que aconteceram no Comitê Paralímpico, mais precisamente depois de 2017, além da preocupação com a transição de carreira e até com essa preocupação, a gente percebeu que é necessário um programa que apoie o atleta, enquanto atleta, em aspectos que transcendem a questão técnica e tática e que essa transição de carreira dele só vai acontecer de forma harmônica se ele for se preocupando com ela ao longo da carreira esportiva desse atleta. Então esse é o nosso grande desafio, o escopo do programa: trazer pro atleta essa consciência e também as condições pra que isso aconteça, ajudá-lo nesse processo. É claro que tem coisa que a gente não vai conseguir oferecer pra ele, mas pode ajudar. E quando eu recebi esse convite, eu falei: “Poxa, pra uma pessoa que foi atleta durante tanto tempo, que conheceu tantos atletas, que viviam tantas realidades de pessoas, não tem outra resposta que não o sim” (risos) e aí é um desafio muito grande, porque eu nunca fui gestora, eu sempre trabalhei… então agora, hoje, eu sou uma gestora de um programa e é um desafio muito grande, eu aprendo a cada dia, sofro muito, porque eu sou uma pessoa que me cobro bastante, então muitas vezes o resultado que você tem não é aquele que você gostaria de ter, mas é algo que eu sinto que eu ganhei muito do esporte paralímpico e é um forma de eu trazer, retribuir um pouquinho do que eu ganhei.

P/1 – Quando você fala da transição de carreira, está atrelado àquilo que você estava explicando do declínio do atleta, ou não necessariamente?

R – Não necessariamente, porque o que nós temos muito em mente? Que a vida do atleta, seja ele olímpico ou paralímpico, é curta. Dificilmente um atleta vai conseguir ter trinta anos de carreira como uma pessoa, por exemplo: um advogado, uma pessoa que trabalha no comércio, na indústria, pra se aposentar. Então o que acontece? O atleta depende do corpo, do aparelho físico dele e esse corpo tem um desempenho, fisiologicamente falando, a gente tem ápice de vigor físico, de aptidão física e naturalmente esse vigor vai tendenciar a cair. Isso é um ponto. Outro ponto é o atleta que participa de competição. Imaginemos que ele não espere esse período desse declínio físico que vai acontecer pra todo mundo e ele resolva que ele quer participar de duas paraolimpíadas e quer sair ali no auge. Em ambos os casos essa pessoa vai ter uma vida produtiva muito grande quando isso acontece, mesmo por exemplo, no meu caso: eu participei da minha última competição de alto rendimento com quarenta e... (risos) três anos. É, 43. Então, tá, eu não sou mais uma atleta, mas e aí, o que eu vou fazer com o resto? Porque estou só na metade do caminho. Aliás, antes da metade, que eu quero viver mais de cem. E aí, como vai ser? O que eu vou fazer? Isso porque eu fui até uma idade alta, mas imagina um atleta que se aposenta, para de ser atleta com 35, 32, com trinta, o que ele vai fazer? Ele já está numa idade onde a entrada do mercado de trabalho, se ele for começar ali a fazer uma faculdade, um estágio, se especializar, quando ele vai começar a atingir um nível profissional que o possibilite permanecer no mesmo nível de ganho financeiro, na mesma posição de vida etc e tal? Então são vários pontos que devem ser pensados. Por exemplo: eu, como atleta, ganho X. Será que eu tenho que viver dentro do padrão de vida que o X que eu ganho me permite? Será que eu não posso viver um pouquinho abaixo e construir ali um pezinho de meia, pensar no meu futuro, que não necessariamente eu vou permanecer ganhando o mesmo valor que eu ganho enquanto atleta? Enfim, são vários pontos importantes que a pessoa tem que ter consciência. Por exemplo: eu tenho que estudar ainda enquanto eu sou atleta pra que eu adiante ali o caminho profissional que eu vou exercer quando eu deixar de ser atleta. Como eu posso organizar meu tempo? O que eu posso fazer? Porque a gente, hoje, o Atleta Cidadão, além das questões práticas, têm buscado também encontrar caminhos de melhoria na legislação, porque a realidade do atleta é diferenciada. Você não tem uma profissão, como eu falei... primeiro que a profissão de atleta nem é reconhecida da forma como a gente entende que deveria ser. E embora ela represente aí ganho, sustentabilidade pro atleta e muitas vezes até pra família dele durante um tempo, nem uma pessoa vai deixar de realizar uma atividade com 35, quarenta anos. Então nem uma pessoa participa de longos períodos de ausência pra participar de competição. Tem características, aspectos que envolvem a carreira de atleta que são bem peculiares e a gente tem que ajudar, a nossa ideia é ajudar o atleta em todos esses sentidos, quer seja de forma direta, ou indireta.

P/1 – E, Simone, tem alguém que te inspira, hoje em dia? Ou do passado.







R – Tem duas pessoas que me inspiram. Uma me inspirou muito, que foi uma grande velocista cega, que é a Adria Rocha. Quando eu entrei no esporte ela estava no auge da carreira, ganhou inúmeras medalhas paralímpicas e é uma menina que veio de Minas, num momento do esporte no qual o esporte não possibilitava grandes ganhos, quando ela começou a receber alguma coisa do esporte e pouco, muito pouco monetariamente falando, ela já era uma atleta de nível internacional, uma medalhista, então ela trilhou o caminho dela com muita dificuldade e quando você vê alguém que trilha seu caminho com muita dificuldade e é um caminho que você quer percorrer, você fala: “Se ela conseguiu, eu posso conseguir”. Não significa que eu vou conseguir, mas eu posso. Então ela foi, pra mim, uma grande inspiração. Uma mulher que tinha uma filha e mesmo assim ela foi, lutou, superou todas as dificuldades, saiu da cidade dela, foi pra uma outra cidade, que ela teria uma condição de treinamento melhor. Enfim, é uma inspiração pra mim. E uma outra grande inspiração pra mim é hoje o presidente do Comitê Paralímpico Brasileiro, o nome dele é Mizael Conrado, ele é um ex-atleta no futebol, bicampeão paralímpico, se eu não me engano também campeão mundial e na minha opinião ele vem fazendo um trabalho transformador no Comitê Paralímpico. Eu acho que o ser humano precisa de oportunidade e de inspiração. Quando a gente tem oportunidade e inspiração, a inspiração desperta o desejo de você seguir adiante, te dá força, como se fosse uma cordinha que está lá na frente, te puxando, dizendo que é possível, vai, você vai conseguir. E o que a gente vivencia hoje no Comitê Paralímpico Brasileiro, na minha opinião, é inspiração e vai impactar de forma positiva a vida de muitas pessoas com deficiência e consequentemente de muitas famílias e de forma indireta muitas pessoas, tenham elas deficiência ou não, porque eu acredito que quando você vê uma pessoa que pseudo tem limitações, realizando, e você está lá precisando de um empurrãozinho pra fazer algo na sua vida, quando você vê alguém que você fala: “Pô meu, pra essa pessoa é muito mais difícil do que pra mim e ela está fazendo”, então você se estimula a ir lá e fazer, independente de você ter deficiência ou não, independente de ser atleta ou não. Você vê uma pessoa sem braço, sem perna nadando, você vai se sentir muito mais incentivada, de repente, a começar fazer uma caminhada pra diminuir seu peso, fala: “Pô, ele está sem perna e sem braço e está nadando”. Então eu acho que independente de tudo isso, isso inspira. E hoje o recorte do Comitê Paralímpico Brasileiro, os projetos que são desenvolvidos dentro dele impactam crianças com projetos. Bom, enfim, não vou falar pontualmente cada projeto, mas impactam já hoje, vão impactar futuramente muitas e muitas vidas. E por que o Mizael Conrado é uma inspiração pra mim? Porque, na minha opinião, a guinada do Comitê Paralímpico Brasileiro foi alcançada, principalmente no que se refere a ser um instrumento de inclusão social, a atuar na sociedade, não só no esporte de alto rendimento, que era o que o Comitê Paralímpico vinha fazendo anteriormente, mas com projetos que vão impactar, permitir a prática da atividade física pra qualquer pessoa, mesmo aquela que não quer virar uma atleta de alto rendimento. Projetos como esse… é uma pessoa que tem uma visão a longo prazo, e isso me inspira.

P/1 – E quais são as coisas mais importantes pra você, hoje?

R – Na minha vida?

P/1 – Hum-hum.

R – A minha família. Não, eu acho que Deus, a minha família e aquilo que eu posso realizar, meu trabalho e as coisas que eu posso fazer, independente do meu trabalho, para o qual eu sou remunerada, mas aquilo que eu posso trazer de benefício pras pessoas que estão à minha volta.

P/1 – Simone, quais são seus sonhos?

R – Vixi, são muitos! (risos) Que pergunta difícil! Mas eu tenho o sonho de conhecer muitos lugares, eu amo viajar, eu tenho o sonho de conseguir ver meus filhos homens, com as suas famílias, mas seres humanos bons, justos. Tenho vontade de ter uma casa diferente daquela que tenho hoje, que tem lá os seus requisitos. Eu tenho vontade de escrever um livro. Eu tenho vontade… muito sonho de ajudar pessoas, não porque eu sinta que eu seja melhor do que ninguém e que eu possa trazer coisas pras pessoas e tal, não é isso. É porque eu percorri alguns caminhos e eu tenho vontade de trazer pras pessoas a mensagem de que as coisas podem ser difíceis, mas são possíveis. Alguns caminhos que eu percorri são possíveis de serem percorridos. E eu sei que tem pessoas que estão lá na ponta, querendo percorrer esse caminho: acreditar que podem ter uma vida, mesmo sendo pessoas com deficiência, famílias, enfim, eu tenho muita vontade de levar essa mensagem, seja pras pessoas com deficiência, ou familiares e pessoas que convivem com pessoas com deficiência.

P/1 – E pensando nas viagens que você já fez, tem alguma muito especial pra você?

R – Ai, tem algumas, mas eu vou citar três, pode? (risos)

P/1 – Claro!

R – Uma é a Finlândia, que eu amo frio, então duas delas é o mesmo motivo, vamos supor, que é a Finlândia, eu estive alguns dias em Pajulahti e aquele clima... gente, eu não sei explicar, é uma energia, parece que eu estou envolvida por uma energia que eu não sei explicar. E eu vivi isso em Pajulahti e em Quebec, no Canadá. E a Grécia. Eu acho que estar ali no Parthenon também não tem explicação. É como se você pudesse sentir tudo o que aquele lugar, as pessoas que viveram ali representam. É como se você pudesse, em estar ali, entrar em contato com o passado. Se eu pudesse transformar isso eu ouço ecos de pessoas, situações, enfim, de tudo que aquele lugar traz em si, de coisas que já aconteceram ali, de importância que tem pra nossa sociedade, pra nossa cultura. Então foram momentos muito especiais.

P/1 – A gente está chegando ao fim, mas queria saber se você gostaria de acrescentar algo mais, contar alguma passagem, história, momento da sua vida que eu não tenha te perguntado.

R – Ai, não sei. Eu acho que não. Não sei, eu acho que eu só queria agradecer, agradecer o meu pai, a minha mãe e o meu ‘paidrasto’, o Moacir, o meu marido, os meus filhos, mas principalmente a minha mãe e meu pai, porque se eles não tivessem acreditado em mim, lá no começo, eu não estaria aqui hoje e eu sou muito grata pela vida que eu tenho, por tudo que eu pude viver, pelas experiências e são por causa deles que eu estou aqui. Então não tem palavras que eu possa dizer, que represente a gratidão que eu tenho. E a Deus também, porque se não fosse ele, eu não estaria aqui.

P/1 – Você gostaria de deixar alguma mensagem?

R – Não sei. É tanta coisa que às vezes, quando fala assim: “Você gostaria de deixar uma mensagem?” tem muita coisa que vem em mente, mas eu acho que pela história de vida que eu tenho, pelos desafios que eu tive que enfrentar, se eu pudesse dizer, eu diria pras pessoas sempre acreditarem primeiro nelas mesmas. Acreditar, confiar, para que cada uma seja sua melhor amiga. E segundo pra acreditar no outro, porque é tão importante. Às vezes do seu lado está uma pessoa que tem potencial pra ser muita coisa, que você nem imagina e que o fato de você acreditar naquela pessoa, confiar, pode ser determinante pra ela ser aquilo, pode ser muito importante pra ela ser aquilo que ela pode ser, ou não. E quem somos nós pra acreditar, achar que a gente sabe de todas as coisas, né? Então quando a gente abre a possibilidade de acreditar no outro, a gente está abrindo mão de saber de todas as coisas.

P/1 – O que você vê ou quer ver como seu legado para as próximas gerações?

R – Nossa! Eu acho que é ver as pessoas se vendo enquanto pessoas, indivíduos, singularidades. Eu falo muito que eu gostaria de ver as pessoas com deficiência visual sendo enxergadas na sua potencialidade, não só na sua deficiência, mas hoje eu acho que é um pouco além, porque muitas vezes a gente vê o outro a partir dos nossos olhos, da nossa lente, então vamos dizer assim: “Vamos tirar o óculos para enxergar o outro”, porque daí a gente não vai ter lente e aí a gente vai conseguir ver o outro da forma como ele é. É claro que tudo isso precisa de tempo, pra você conhecer alguém, mas só o fato de você não colocar diante das pessoas julgamento, conceitos seus e se permitir observar o outro e ver quem ele é: “Nossa, quem ele é?”, eu acho que já vai trazer aí um passo muito grande pra que cada pessoa seja respeitada na sua individualidade.

P/1 – Te convido pra fazer uma viagem no tempo, tá? Queria que você tentasse resgatar sua primeira lembrança, primeira memória da vida.

R – É uma casa que eu morava com os meus pais. A primeira casa que a gente morou e eu estou no berço e tem uma pessoa no berço, assim, tipo como se fosse debruçada sobre mim, ali, cuidando de mim. É um momento bom. Eu não consigo saber exatamente quem é essa pessoa.

P/1 – Mas tem muito afeto?

R – Tem carinho, cuidado, proteção. Eu lembro do berço, até as cordinhas, porque o meu berço tinha cordinha. (risos) É ninho.





P/1 – É ninho. Queria te perguntar, por fim, como foi pra você dividir um pouco da sua caminhada, desde muito pequenininha, de antes de você nascer, com a história dos seus pais e avós, resgatar tudo isso e estar aqui com a gente hoje, compartilhando.

R – (risos) Foi emocionante. É muito bom você poder reviver coisas que são tão significativas na sua vida, você tem aí uma pinça cirúrgica (risos) e vai cutucando ali nos momentinhos mais significativos, foi muito emocionante, muito bom, muito gostoso relembrar pessoas, fatos, experiências e eu não sei, é motivo de muita gratidão. Obrigada! Acho que eu só tenho a agradecer por ter passado por tudo isso, como se eu tivesse feito aí um resgate da minha história.

P/1 – Eu que te agradeço muito. É muito maluco, porque todas as pessoas, em momentos, acompanham a nossa história, mas muitas vezes elas só estão aqui, a gente não se recorda sempre, então o espaço pra recordar imagino que seja bem... sei lá, muitas emoções. Mas querida, quero te dizer que agito de vida, acho que teriam muitas outras histórias pra gente compartilhar, pra você compartilhar com a gente, imagino, mas quero muito te agradecer por ter compartilhado todas essas sensações, caminhadas até aqui e continue essa caminhada muito linda. Te agradeço demais por esse tempinho com a gente, mesmo.

R – Eu que quero agradecer pela oportunidade. Como você falou, muitas vezes a gente tem uma história e a gente não... primeiro que muitas vezes a gente não para pra pensar nela. E segundo que muitas vezes a gente não tem a oportunidade de falar sobre ela. E terceiro, de alguma maneira, deixar aquilo que é tão rico pra mim, que é a minha história, a minha vida, de alguma forma registrada, guardada e até como uma forma de agradecimento a todas as pessoas que fizeram parte dela, que me ajudaram, estiveram do meu lado, sejam aquelas boas lembranças, lembranças ruins, mas que fizeram de mim a pessoa que eu sou hoje. Então não tem palavras mesmo pra expressar o quanto eu agradeço vocês por essa oportunidade.