Museu da Pessoa

O sonho da sapatilha de ponta

autoria: Museu da Pessoa personagem: Inês Vieira Bogéa

P/1 – Bom, Inês, vou começar a nossa entrevista e vou pedir pra você falar o seu nome completo, o local e a data de nascimento

R – Inês Vieira Bogéa, eu nasci em 24 de julho de 1965 em Vitória do Espírito Santo.

P/1 – E o nome dos seus pais, Inês?

R – É Expedito Ramos Bogéa e Iracema Vieira Bogéa.

P/1 – E em que eles trabalhavam?

R – Os dois eram professores. A minha mãe era professora de Francês, Espanhol e Literatura, e o meu pai professor de Matemática, Micro e Macroeconomia.

P/1 – E o que você sabe sobre os seus avós? Nome deles...

R – Laura Bogéa, mãe do meu pai, Leocádio, pai da minha mãe, são os avós que eu tive contato, os outros dois eu não tenho muito contato.

P/1 – E Bogéa é de que origem?

R – Bogéa é holandês.

P/1 – Você sabe como eles vieram?

R – Eu sei que a família veio na época que os europeus vieram para o Brasil, na época da colonização, e se fixaram no norte do país. Bogéa é uma família única que a gente encontra em Belém, Maranhão, então às vezes a gente fica sabendo de primos. A minha irmã mais velha fez toda a árvore genealógica e tal (risos).

P/1 – Inês, você cresceu em Vitória, né? Fala mais como foi a sua infância na cidade.

R – Nós somos cinco irmãos, era uma família grande com muita brincadeira todo o tempo. Eu lembro dos meus pais lendo muito pra gente, a gente deitava na cama todas as noites pra ouvir histórias e era assim que a gente dormia. E quando eu tinha de uns cinco para seis anos a gente se mudou para uma casa a três quarteirões da praia, que é a casa que eu vivi todo tempo, é uma chácara e um areial. Era um grande areial que a gente foi plantando até que virou uma chácara que dava muitas frutas. E essa casa é onde eu tenho as maiores memórias porque a gente brincava muito nas árvores, ficava pendurado de cabeça pra baixo, ia nadar na praia, sobe e desce de onda. Nós já éramos em cinco, então, já é uma turma pra brincar, né? Não tinha muito vizinho perto, era um espaço da cidade que estava crescendo, mas era pertinho da universidade. A gente saía pra andar de bicicleta. Tinha muita construção, então tinham grandes morros de areias onde eu gostava de dar saltos mortais (risos), que era fofinho e você não se machucava. Ficar de cabeça pra baixo, horas penduradas nas árvores com a minha irmã. Foi uma infância muito rica de brincadeira de rua, brincadeira fora de casa. A gente fugia muito por causa do horário, ia até a bica buscar água. Meu pai ia buscando cada um em um pedaço da praia (risos).

P/1 – Esses cinco são só mulheres, são mulheres e rapazes?

R – Nós somos quatro mulheres e um homem, ele é o caçula. E gostava de fazer muitas partidas de futebol. Não deixava muito a gente entrar, não. A gente queria, mas ele, apesar de pequeno, falava: “Não, não” (risos). Fazia a turma dele pra jogar futebol com ele. A gente construía muita casinha no fundo do quintal com tijolo, fazia historinha de boneca, bastante divertido.

P/1 – E tinha amigos ali na vizinhança ou eram poucos?

R – Tinha amigos na vizinhança e sobretudo tinha o pessoal que catava caranguejo, eram meninos de famílias que moravam na beira do mangue e a gente brincava muito nesses morros de areia. Era um pedaço da cidade que estava em construção, então a gente gostava de descobrir os lugares, e nesse tempo não tinha essa de fechar a construção, você podia entrar, subir no alto, entrar de bicicleta, descer ladeira, fazer malabarismo. E os meninos, comigo e com a Marta, que é a minha irmã mais bagunceira, como eu, eles nos ensinavam muitos truques, nós éramos duas que já fazíamos ginástica olímpica e juntos fazíamos muita bagunça. E tinha os meus primos, família grande, a casa tava sempre cheia, era muita gente.

P/1 – Que bairro que era?

R – Jardim da Penha. Essa casa ficou até a gente ser adulto. E a minha mãe mora hoje lá em um prédio que foi construído em cima desse terreno (risos).

P/1 – E Vitória nessa época? Como você descreveria Vitória?

R – Acho que Vitória é sempre essa cidade com ar de beira de praia, uma cidade calma onde as pessoas se conhecem, se encontram. Você pode andar livremente pela rua, para... É um pouco como uma cidade do interior, mas com a liberdade de uma cidade de praia. Porque acho que a praia é democrática! Quando você está na beira da praia, todo mundo é igual, todo mundo pode brincar das mesmas coisas. E essa chácara tinha essa característica também, era uma chácara que não tinha cerca, então todo mundo entrava, todo mundo saía, era um terreno de todos. Vitória pra mim tem muito essa cara, de encontro de pessoas amigas sem limite de idade ou de profissão. Tanto é que você só se chama pelo primeiro nome (risos). O que pra mim foi engraçado, chegar em São Paulo, todo mundo diz nome e sobrenome. Lógico, né? Tem tanta gente! Inês, que Inês? (risos). Mas eu ainda conservo essa coisa bem de interior, que você fala: “Ah, é a Cláudia”.

P/1 – E os seus estudos, onde você estudou formalmente?

R – Você fala de pequena?

P/1 – Isso.

R – Eu estudei no Colégio Salesiano, no Colégio Santa Bárbara que tinha o método Montessori, e foi onde eu comecei a fazer ginástica olímpica lá com os professores. Depois eu passei a fazer parte do DED [Departamento de Educação Física e Desportos], que era um espaço já do Governo que financiava atletas. Tinha sempre esse sabor também, eu estudei tanto em escola particular como em escola pública. Então eu tenho lembranças de muito rigor dos meus pais com a gente com estudo, mas ao mesmo tempo, muita liberdade. Eu gostava muito de fazer dever no chão, um pouco fazendo ginástica, eu acho (risos). Eu sentava com as pernas abertas, assim, fazendo um grand écart, um espacate, como chama na ginástica olímpica, para que nada saísse de perto, ali era a minha mesinha, o meu mundo (risos). A minha mãe só deixava eu fazer esse dever no chão, fora da mesa, se eu não sujasse nada do caderno, então, tinha que ter um cuidado extremo de limpar primeiro pra depois sentar e fazer dali a minha mesa, que era o chão. O estudo sempre foi algo muito brincalhão porque os meus pais eram professores, tinha um biblioteca enorme nessa casa, na parte de trás, então a gente entrava pela biblioteca que tinha sistema de biblioteca mesmo, onde você se perde entre os livros, assim. Os dois professores universitários tinham muita paciência. Às vezes sentava a filharada toda pra estudar, cada um ensinava um pedaço.

P/1 – Estudava na biblioteca?

R – Eu estudava na biblioteca ou em qualquer outro lugar da casa. Mas na verdade tinha o mistério da biblioteca, quando você ia estudar na biblioteca tinha um ritual. Aí, não podia ser no chão, você tinha que ficar na mesa, e tirar o livro, e devolver pro lugar certo da estante. Mas tinha um espaço grande pra brincadeira, o estudo também era uma brincadeira, o meu pai gostava de fazer desafios matemáticos, eu adorava fazer dízima periódica (risos). Aí, acho que hoje acabo mexendo nos números por causa disso, me lembrava desses desafios. A minha mãe lia muita história pra gente à noite e quando a gente ia aprendendo a ler, uns liam para os outros. Como somos muitos, os pequenininhos às vezes se aproveitavam disso: “lê essa história de novo” (risos). Porque tem o de novo, né? A gente repete muitas vezes. Acho que aprender é uma coisa que faz parte do cotidiano desde pequeninha, de curiosidade, saber novas coisas, na minha vida.

P/1 – E dessa época você tinha um sonho de seguir uma profissão, quero ser professora, quero ser bombeiro? Os meninos tem muito isso. Você tinha algum sonho?

R – Não que eu me lembre, mas eu sempre gostei de biologia, acho que eu gostava dos bichos, dos bichos do mar, principalmente. Gostava de ficar perto dos peixes, porque todo dia no fim da tarde, lá pelas quatro horas, a gente ia pro mar com o meu pai. Ele era professor, voltava, e a gente nadava no entardecer. E tinham aquelas ondas enormes que sobem e descem e a gente gostava de fazer tatu bolinha rolando na areia (risos). Essas coisas me levaram pra próximo desse universo marítimo, morar na beira da praia, ver as conchas. Ao mesmo tempo a chácara tinha muito cachorro, os bichos que nasciam e tal. Mas veterinária não queria ser, tinha medo de sangue. Então acho que fiquei nessa idéia de ser bióloga. Eu fiz Biologia como curso superior só que eu abandonei pra dançar (risos).

P/1 – Um pouco do seu cotidiano. Você falou que no final do dia vocês iam pra praia. Como era o seu cotidiano nessa época, horário de escola?

R – A gente acordava cedo, tomava café todo mundo junto, era o meu pai ou a minha mãe que levava a gente pro colégio. Eu era meio dorminhoca, sempre fui, continuo sendo (risos). Ia no colégio de manhã e quando voltava do colégio todo mundo almoçava junto em casa, de tarde eu tinha muitas atividades, sempre ligada a movimento. Ginástica olímpica eu comecei a fazer com seis pra sete anos, da ginástica fui pra capoeira, da capoeira pro balé. Cada um de nós tinha uma atividade, sempre fazia alguma atividade relativa ao corpo e uma atividade de língua estrangeira. Então, a gente estudava inglês também, eu fugi um pouco, eu gostava mais de dançar ou fazer coisa de movimento. Mas tinha muito espaço pra brincadeira. Duas vezes por semana uma atividade de movimento, duas vezes por semana um curso ou outro que você escolhesse. A minha irmã gostou de estudar piano, cada um de nós fazia alguma atividade assim à tarde. Como o meu pai vem do lado norte tinha sempre uns agregados, pessoas que vinham morar com a gente pra poder estudar, e esses agregados ensinavam costura pra gente, ou a gente gostava de cozinhar, fazer cozinhadinho à tarde. Tinha esse lado do estudo, do movimento, mas tinha esse lado da convivência das pessoas, tempo pra conversar no fim de tarde, tinha uma varanda em frente da casa com as redes em que a gente ficava lá contando histórias. Às vezes chegava gente que gostava de ouvir histórias de assombração.

P/1 – Ah, é?

R – É, porque a casa era uma chácara, em um lugar que ainda não tem tantas casas em volta, tem o barulho do vento, do mar. Em seguida a gente aprendeu a subir no telhado e a gente ficava vendo tudo de cima, dava pra ver o mar. Ficava contando histórias.

P/1 – Você lembra de alguma história de assombração?

R – Não. Na verdade, acho que não era nada muito específico. Era olhar pras árvores, pro horizonte, olhar pras coisas da natureza e encontrar os olhos que tem nesses lugares. Você ouvir o barulho, e esse barulho do vento se torna uma pessoa que já foi e passa perto de você. A gente gostava de sentar no cajueiro. Tinha um cajueiro grande quando nós compramos a casa. A gente sentava lá e lá a gente achava que conversava com gente que não tá mais aqui nessa terra, então, contava casos, ouvia casos.

P/1 – E não tinha medo?

R – Não, não.

P/1 – Que ótimo.

R – O meu pai é ligado ao Espiritismo, então, pra gente era normal, morto e vivo tá tudo junto (risos).

P/1 – Igual (risos).

R – É (risos). Ele sempre dizia pra gente: “Eu tenho mais medo dos vivos que dos mortos. Os mortos não fazem nada, estão aí perto da gente”.

P/1 – Verdade. E você comentou que começou muito cedo a ginástica olímpica, né? Com seis pra sete anos no colégio.

R – É, porque na verdade não é cedo pra esse esporte, é um esporte que tem a vida de pico mais cedo do que a bailarina. Se você pegar um atleta com 18 anos, ela já está velha, você vê como é hoje. A Nádia Comăneci foi campeã com 15 anos. Eu comecei com seis pra sete anos. Gostava muito. Já te contei a história das árvores, né? Eu e a Marta, minha irmã. A Silvia era mais tranquila e os dois pequenos, eu tenho cinco anos de diferença pra minha irmã mais nova. Eles não andavam tão agarrados com a gente, eles eram os pequenos, até determinado tempo. E eu e a Marta andávamos mais agarradas, as duas fizemos ginástica olímpica e a gente passava o dia inteiro de cabeça pra baixo, eu adorava ver televisão de cabeça pra baixo (risos). O mundo fica mais interessante, né? E minha mãe tinha a maior paciência porque de fato a gente ia pra padaria fazendo estrela e voltava dando flic. Então imagina o tempo que levava pra ir na padaria e comprar pão, né? (risos). E tinha a história da trave: você tinha que andar no meio-fio pra já ir aprendendo como você se equilibra naquela trave, que ajuda depois a achar o seu centro, né?

P/1 – O que te apaixonava na ginástica olímpica?

R – Possibilidade de ver o mundo de todos os ângulos. Na verdade, na barra paralela você gira e vê o mundo de cabeça pra baixo, cabeça pra cima, tudo muito rápido. O eixo do seu corpo está relativo ao objeto. O espaço te dá um novo eixo, depende de onde você está, você vê o mundo de uma nova perspectiva. O desafio, risco, e a possibilidade de, pela repetição, você vencer a gravidade. A primeira vez que eu fiz uma estrela sem mão foi um susto e ao mesmo tempo: “Ah, que delícia! Será que eu sei mesmo?”.

P/1 – Mas você tinha um objetivo, você viu uma pessoa. Como é que foi essa história?

R – Da estrela?

P/1 – É, sem mão.

R – A gente tinha um professor muito querido, que era o Paulo Roberto. E o Paulo ensinou a gente a não ter medo, a ter cautela. Ele tinha uma turma muito grande e deixava a gente muito livre. Não era assim: “Todo mundo tem que fazer fila e agora vocês vão fazer e aprender a estrela sem mão”. Não. Ele deixava você por ali, um na barra paralela, outro na trave, e ela ia passando pela gente e criando desafios de acordo com a sua capacidade. E a gente ia aprendendo. Você aprende a fazer parada de mão, estrela, estrela com uma mão, aí estrela sem mão, basta dar um impulso mais forte. Você mesmo vai se pondo pautas para aquele dia. E claro, a gente ia pra competição, muito cedo a gente começou a frequentar competição. Então eu via as outras meninas fazendo coisas diferentes e inventando. E era bom, era bom perceber que o corpo inventa maneiras de se movimentar. E que tinha pessoas muito mais experientes e melhores que eu e que eu podia ser como elas, depois diferente delas, depois a gente se igualava de novo. E essa relação ia acontecendo. Em muito pouco tempo a gente passou a fazer aula de ginástica olímpica das duas às seis da tarde e aí eu me tornei uma atleta mesmo, capixaba. Fazia parte de competições. Lembro da primeira competição que eu fui pequenininha, era mais mascote da turma, que a gente entrou em um grande dormitório e eu achava tudo muito assustador, que nem quando eu ficava em cima do telhado olhando os bichos que apareciam na árvores, os olhinhos. O dormitório enorme com aquele monte de beliche, aqueles olhinhos eram os olhinhos dos fantasmas que eu via e foi muito difícil dormir. E quando eu acordei de manhã toda pintada de pasta de dente como monstro verde (risos), eu tenho uma lembrança de pavor que eu tinha me tornado aquele monstro das árvores (risos), fiquei muito brava. E a gente já estava atrasada pra competição e eu tava tão brava que as minha amigas é que tiveram que entrar no banho comigo porque eu chorava (risos).

P/1 – Era uma brincadeira?

R – Elas fizeram uma brincadeira, um trote de estreia e eu fiquei apavorada quando me vi cheia de pasta de dente verde, a mão também. O monstro verde, a cama toda melada, faltava, sei lá, duas horas pra competição. Eu comecei a chorar e elas: “Não, não, não, a gente ajuda você a tomar banho e vai ser rápido”. Aí, entrou toda aquela mulherada no banho, aquela confusão (risos), pra depois encontrar o técnico como moças comportadas, atletas. Mas eu era pequena, tinha sete pra oito anos. Então a ginástica foi um período muito vivo e quase como um espaço que começou aquela brincadeira e aquela amizade que eu tinha por todas as pessoas que frequentavam aquela chácara. Os meus colegas de time, a minha equipe virou um pouco a minha família, os meus amigos. A gente viajava muito, fazia parte das competições. E era engraçado porque eu tinha uma barriga bem grandezinha, gordinha (risos) e adorava ficar na barra paralela e a barriga ajudava porque eu parava assim, entendeu? (risos). E eu era boa de fazer giros na barra paralela, acho que por causa da barriga mesmo, o lugar certinho de encaixar. Eu era uma atletinha meio barrigudinha nessa época (risos). Mas tinha muita agilidade e em pouco tempo eu fui campeã, fiz muitas competições. O que mais me fascinava era que o dia a dia da sala de ensaio mudava. O grande ginásio ainda era muito pequeno relativo aquele grandão quando você chegava pra competir. Você olhava em volta no ginásio e as caras das pessoas se multiplicavam, as pessoas te olhando. E você andava primeiro em um grande desfile, as equipes se apresentando, e depois você ia pro seu cantinho esperar a sua vez, que chamassem o seu nome e você fosse até o centro, seja do tablado, seja pra se preparar pro salto, e você se encontra com você mesma e o silêncio se faz. Isso é algo também que tem na dança e acho que em todos os momentos você encontra uma página vazia pra escrever, seja com o corpo, seja com a palavra e ele tem esse eixo do encontro individual, mesmo cercado de todo mundo. Era um espaço gigantesco que eu tinha pra percorrer.

P/1 – E você lembra da primeira competição?

R – A primeira competição, quando você começa a andar junto com a sua equipe você está bem, as equipes param uma do lado da outra, tem o hasteamento da bandeira. Eu era sempre a primeira da fila porque era a menor (risos). Aí, dividem as equipes e cada um vai pro seu aparelho. E você fica vendo as suas amigas, enquanto você está vendo as suas amigas você está torcendo por elas, esperando a nota sair e tal. Quando chega a sua vez, você ouve o seu nome e te dá um frio na espinha, você fala, “Ai, é a minha vez”. A mão fica fria e você vai pra lá, pra beira do tablado, ou pra se preparar. Porque na ginástica olímpica tem um cumprimento, você pede autorização pros juízes, eles te respondem e é a sua vez. É a hora que tudo silencia, é um silêncio enorme e eu acho que é a mesma relação de quando você está na coxia e você entra no palco. Quando você está na coxia está tudo turbulento internamente, muitas coisas passando no coração, no corpo, na cabeça. Quando você chega no palco é você com você, na potência máxima, você chegou naquele momento. É um prazer enorme. E eu lembro disso e tudo passa muito rápido, as pessoas te aplaudem e você está de novo do lado dos seus amigos, abraçada pelo seu técnico. Era uma pessoa muito querida, ele tinha essa brincadeira, nada era muito rigoroso, ele achava que tudo era uma brincadeira, que a vida era uma brincadeira e que a ginástica também era uma brincadeira. De risco, mas também era uma brincadeira. E esse risco é que nos punha em alerta, que nos fazia aprender as coisas muito rápido. Ele foi um grande técnico que fez com que a equipe se tornasse campeã brasileira. Foi ele que fez a gente chegar no lugar, com poucas condições, a nossa barra era bamba, aí ele dizia: “Ai, a trave”, que é aquele… “Não tem importância porque assim vocês chegam lá e a trave é ótima e vocês vão ser as melhores porque aqui ela balança!” (risos) E é verdade porque a gente achava até esquisito: “Ah, ela não balança” (risos). E falava: “Agora é você que balança”. Era sempre uma aventura e sempre um acolhimento, sempre voltar pro colo dele. E a equipe toda era muito unida, nós éramos pequenos e muito divertido.

P/1 – Isso tudo dentro do Colégio Salesiano ou já...

R – Na verdade já na estrutura do DED, que era o Departamento de Ensino e Desportos. Eu não tenho certeza desse nome, mas enfim, eu fiz ginástica olímpica de seis pra sete anos até 11 anos. Quando eu fui pra última competição, um pouco antes, o Paulo saiu. Porque era cargo público, acho que trocaram ele, aí, já perdeu a graça, entrou uma professora que tadinha, ela era correta no sentido da disciplina. Então, você tinha que ficar na fila, esperando a sua vez pra fazer um aparelho porque ela tinha medo que você se machucasse no outro. Eu ficava fazendo cambalhota, parada de mão, abertura, porque não tinha paciência pra ficar na fila, aquilo pra mim era uma tortura, eu tava acostumada a fazer tudo ao mesmo tempo. E mesmo com esse rigor dela, porque ela era mais jovem do que ele, acho que ela não tinha essa capacidade de olhar por todos. E foi aí que eu quebrei meu braço a primeira vez. Eu fui fazer um salto na paralela assimétrica, que era o meu aparelho preferido porque ficava girando, a gente tinha que pular com as pernas abertas pela primeira barra e segurar na segunda. E eu era pequena, era difícil pra mim esse exercício. Então eu fui tentando, fui tentando. Você vai, entra na fila de novo, vai, entra na fila de novo, e um hora eu fui, meu pé prendeu, e eu caí entre as duas paralelas e quebrei o cotovelo. E foi uma tristeza porque faltavam só dois meses pra competição, fiquei muito aborrecida. Mas eu tento, eu tento, estico o braço na paralela, aquelas coisas de criança, que tira o gesso e está de novo pulando, pendurada na árvore e tal, o corpo volta muito rápido. E eu fui pra competição com ela, a Penha, e ganhei todas as medalhas, fui campeã brasileira, foi tudo muito bom. Aí, eu peguei, voltei, dei as minhas medalhas pro Paulo e saí da ginástica olímpica.

P/1 – É?

R – É. E aí, acabou, não quero mais. Tinha a ver com ele, com esse espaço de liberdade. Não era um espaço pra competição pura e simplesmente, era um espaço de brincadeira. E quando a brincadeira se tornou disciplina, que ela tem razão, tem a ver com o esporte, você tem que ter disciplina. É que ele entendia a disciplina de uma outra forma. E daí eu falei, não, não quero mais.

P/1 – Quantos anos você tinha?

R – Onze.

P/1 – Onze anos?

R – Onze. Eu acabei a competição, voltei. Fui convidada pra ir pro Fluminense, no Rio de Janeiro, pra ser atleta do Fluminense, mas eu não quis. E a minha mãe também tinha medo de me deixar ir, muito pequena pra morar no Rio de Janeiro. Porque a graça era a equipe do Paulo. E às vezes ele trazia professores, ele trouxe professor ____ e ele era muito engraçado, ele sabia segurar a gente só pelo calcanhar, assim. Você ia na barra paralela, ele era pequenininho, punha um banco e segurava você pelo pé e falava: “Pode fazer”. A gente fazia tudo porque você não caía, você tava segura por ele, sabe? E a gente fazia todas as maluquices, era muito bom. Não tinha preocupação com colchão, nada. Daí eu fui procurar outra coisa de movimento e entrei na capoeira.

P/1 – Por que capoeira?

R – Por que a capoeira? Porque eu vi na praia uma roda de capoeira que era muito animada, que parecia que tinha um rigor, mas também tinha muita liberdade. Era uma dança que tinha as acrobacias da ginástica olímpica, que tinha um ritmo que pulsava muito forte, que tinha uma relação de grupo muito presente, tinha o risco, tinha o desafio, a invenção estava na sua mão, então, acho que era divertido. E foi de novo o Paulo, era o mestre Paulo que era o meu mestre de capoeira.

P/1 – E seus pais? Como eles ____ essa coisa, você parar a ginástica olímpica pra ir pra capoeira?

R – É que eles acompanhavam muito de perto. Todas as competições eles estavam juntos comigo e com a Marta. A primeira viagem que eu fiz eu fui no ônibus como todas as crianças, mas eles foram também (risos). Eles sabiam tudo e quando o Paulo saiu, que foi muito difícil pra gente, porque a gente passava as tardes com o Paulo, passava de duas às seis todos os dias na ginástica olímpica, eu e a Marta. Eles sabiam que a gente não queria mais tanto. E eles começaram a ficar mais preocupados porque quando a Penha entrou, por coincidência, a minha irmã quebrou o pé e em seguida eu quebrei o braço. Então, eles também começaram: “Pera aí, o que isso aí vai dar”. E eles deixavam a gente livre pras escolhas, sempre ponderaram junto com a gente, mas as escolhas sempre foram de cada um. E quando eu fui pra capoeira eles acharam normal, só quando eu comecei a apanhar na capoeira o meu pai começou a ficar (risos). Porque eu gostava do _____, eu rapidamente troquei de cordel porque eu já tinha o corpo treinado na ginástica olímpica. Então eu jogava com a faixa do mais graduado, que significa que as pessoas que estão na roda podem jogar de igual pra igual com você, só que às vezes tinham uns negões, e a capoeira que eu mais gostava é o jogo São Bento Grande, que é um ritmo rápido, bastante acelerado. Gostava da Angola por causa dos malabarismos, das grandes coisas ligadas à ginástica olímpica, grandes acrobacias, dos equilíbrios, mas o São Bento é o que põe o coração pra bater forte e aí o pau come na roda. E você que se defenda e tire o seu rosto da reta e tal. E uma vez eu fui brincar e bati em um amigo meu e sem querer em uma meia-lua eu cortei o supercílio dele. Eu já fiquei um pouco apavorada. Depois eu recebi um pé no queixo que tirou o meu maxilar do lugar. Aí, meu pai falou: “Por que você está gostando dessa brincadeira tão perigosa? Vamos pensar, para de jogar nessas rodas”. Às vezes joga rodas de turmas diferentes e quando eu tomei um pé no peito, uma benção mesmo, de um negão, de um cara que jogava muito bem, a roda estava ótima, mas eu cansei, eu me distraí, e ele me jogou do outro lado assim, eu caí no chão aquele dia com a cara, realmente perdida, magoada, aborrecida comigo porque eu não tinha prestado atenção e que eu tinha que chegar em casa e dizer que tudo doía, tudo girava. Eu fui embora pra casa esse dia andando, cheguei aborrecida, meu pai tava vendo tv, eu deitei no colo dele e fiquei lá vendo televisão e era o Lago dos Cisnes que estava passando na televisão (risos). Eu dormi no colo dele aborrecida, muito aborrecida. Mas a única imagem que eu lembro é a que todo mundo lembra a primeira vez que vê um balé clássico, que é, como elas flutuavam nas pontas dos pés e como tava em um mundo que me permitia voar de uma forma mais suave que aquela da capoeira. Falei, lá vamos lá, mas de outra forma. Aquela sensação da rapidez, do pé que passa zunindo na sua orelha, pelo corpo que vai se aquecendo, pelo ritmo do berimbau, era um novo passo, a época da dança clássica (risos).

P/1 – Mas como você fez, você procurou uma escola, sua mãe te ajudou, como é que foi isso?

R – A minha irmã mais velha já estudava balé.

P/1 – A Marta?

R – A Sílvia, a mais comportada delas (risos). E era na escola da dona Lenira, que também era a escola mais famosa de Vitória. E eu fui fazer balé na dona Lenira, junto com as outras crianças. E foi um novo aprendizado porque aí era tudo muito diferente. Primeiro porque não tem como na ginástica olímpica, dei uma pirueta, pronto, dei uma cambalhota, um mortal, fiz uma estrela, você acabou de fazer uma estrela, agora vamos fazer outra coisa. O que importa na dança é o que liga uma coisa na outra, como você se coloca no intervalo dos passos e não somente atingir o rigor técnico e a destreza. É mais do que isso, é você se colocar nos mínimos gestos. Na ginástica olímpica você tem que se colocar, mas o grande virtuosismo é da essência máxima daquilo, daquele esporte. Na dança, além da destreza máxima, você tem que ter conseguir se colocar no jeito de caminhar na cena, dizer quem é o personagem que você está fazendo, na sutileza de um olhar, no tempo que você imprime naquele personagem. E isso foi um aprendizado bastante interessante e instigante porque eu falava: “Mas eu já fiz”. E ela dizia: “Mas não tá bom” “Por quê?” “Continua com a perna alta!” “Já foi...” (risos). Agora dessa última ____ (risos). Tá bem, mas aos poucos a dona Nira foi me dizendo como é que eu achava a minha personalidade dentro da dança. E novamente eu voltei a fazer como eu fazia na ginástica olímpica, eu fazia aula o dia inteiro. Toda hora que eu podia eu fazia. Fazia uma, duas, três, quatro aulas. Porque eu era velha, eu tinha 13 anos quando eu entrei no balé. Então, perto das minhas colegas, eu era muito velha e eu tinha muita potência muscular, mas pouca sabedoria artística e era isso que eu precisava aprender em pouco tempo. E também o controle fino da musculatura, que cada tipo de atividade física você usa um grupo muscular e isso é muito diferente.

P/1 – Quando você começa o balé, que é uma coisa da linguagem, foi Clássico Royal?

R – Clássico Royal. Em um mês eu fiz o primeiro exame da Royal, eu tava na academia há um mês e ela já me colocou pra fazer. Porque ia ter exame e eu decorava os passos muito rápido: “Deixa ela fazer”. Eu fiz, passei com uma ótima nota e a examinadora era uma delícia, uma senhora mais velhinha, inglesa mesmo. E ela veio conversar comigo quis saber da história e me mandou repetir por mais uma vez a dança do centro: “Mas agora sem fazer tudo com tanta força, fazendo tudo menor”, eu achava aquilo um absurdo, o que ela tá me pedindo, né? Menor, com menos força e prestando atenção só nos intervalos. E aí, foi outra descoberta, mas na verdade, na primeira aula de balé eu sabia que eu ia ter que encontrar um jeito de me achar naquela dança porque ela me trazia a mesma sensação do tablado da ginástica olímpica, a mesma sensação de solidão quando o piano toca. Ali o professor manda fazer a aula, mas tocou a primeira nota, é você com você, desde a barra do balé você tem que ir se descobrindo. Então, quando essa examinadora me disse isso, foi como se eu tivesse retomado o tempo da ginástica olímpica e eu voltasse pro tablado onde um juiz tinha me dito o que fazer. E foi muito gostoso descobrir esse outro jeito de dançar, que foi movido pela ginástica olímpica, lógico, pela capoeira e que agora chegava à dança clássica.

P/1 – Pra gente registrar na entrevista, o que é o Royal?

R – O Royal Ballet é uma metodologia internacional de ensino de dança clássica baseada na técnica do balé clássico inglês. Você tem a técnica russa do balé clássico, a técnica americana, cada uma tem um acento particular na maneira do corpo se colocar no espaço. Então o braço da quinta posição inglês nunca passa da relação com o olho, no russo ele já está mais pra trás. No americano, ele é bem em cima da cabeça e isso vai desde o arabesque, a postura das costas. Tem variações pequenas, variações em nomenclatura e, principalmente, na maneira que o corpo lida com o espaço. Eu fiz toda a formação da Royal, me formei no Advanced, que significa curso superior, tanto em professora quanto em bailarina, em 87.

P/1 – Em quanto tempo você fez tudo isso?

R – É, 13... 65, pouco tempo, 20 anos.

P/1 – Pra quem começou com 13 anos...

R – É, mas é que começar a dança com 13 anos já tendo passado por essas outras atividades é um atalho, né? (risos).

P/1 – Com certeza. E a dona Lenira, descreve como ela era pra gente. E ela era de Vitória mesmo?

R – De Vitória. Ela tem uma grande academia em Vitória, ela é uma professora rigorosa, como toda professora de balé clássico da geração dela, grita muito. Mas quando tocava o piano, como eu disse, eu não ouvia mais a dona Nira, só se ela passasse e pegasse em mim. Eu ouvia nos intervalos dos passos (risos), quando eu parava pra aprender o próximo passo. Mas, ao mesmo tempo, muito amorosa e tinha essa qualidade de nos colocar de novo em contato com o mundo maior da dança, fazia questão que a gente dançasse pelos interiores, mesmo pequenas a gente já dançava. Não era só espetáculo de fim de ano, tinha pequenas apresentações nos teatrinhos de cada lugar, tinha um grupinho sempre profissional que logo a gente chegava lá. Não era uma coisa assim, você tinha que ser a melhor. Não, um grupo sempre profissional, tinha meninas de todas as turmas, as melhores de cada turma, ou aqueles que eram mais expressivos na técnica. E a dona Lenira tinha esse lado de acolher e, ao mesmo tempo, de te deixar ir. Ela fazia questão que você fosse a dona do seu nariz, mas que prestasse atenção no que ela estava te dizendo. Era sempre desafiador, o balé também tem isso, são desafios muito diferentes do desafio da ginástica olímpica, mas mesmo conseguir fazer três piruetas, acabar no balanço e descer, perceber que se você separa um pouquinho mais a sua perna tudo muda de perspectiva, qual é a relação que você tem com o amigo na sua frente, como é que você controla as suas energias, sua ansiedade, pra entrar em cena e não derrubar o seu colega (risos). Coisas que te levam a perceber a sensibilidade do mundo através das relações com as pessoas, o tempo.

P/1 – No balé tem o desafio da sapatilha de ponta.

R – Pois é, o sonho da sapatilha de ponta.

P/1 – Ou o drama, né?

R – Eu acho que a sapatilha de ponta é o ícone, um fascínio, e eu entrei no balé por causa dela, eu queria flutuar. Só que entre a imagem que você vê entre a leveza da cena e o cotidiano de calçar uma sapatilha de ponta, vai quilômetros de distância. E claro que todas nós que usamos sapatilhas de ponta temos memória do primeiro dia que você põe aquele negócio no pé. Primeiro, vai calçar a sapatilha de ponta, que emoção! A professora anuncia e você sai com a sua mãe pra você comprar a sapatilha de ponta. Tem a fita certa, o jeito de pregar a fita na sapatilha, tem todo um ritual, você se prepara pra calçar a sapatilha de ponta. Dona Nira já ensinou: enrola cada dedinho com esparadrapo, traz um paninho pra por em volta do dedo. Muito bem, pusemos tudo lá, sentamos, aprendemos a dar o laço, que tem o jeito certo de dar o laço na sapatilha de ponta, levantamos. Aí o drama começa. Porque é simplesmente impossível andar com a sapatilha de ponta. Se você tenta ficar com o pé todo no chão é um caos, parece uma pata-choca, não se parecia com aquelas moças que eu imaginava. Dona Nira gritava: “Menina, se endireite! Põe essa barriga pra dentro! Estão parecendo uma pata-choca”. E eu falava... “Mas está horrível isso, o pé dói, tudo aperta...” “Anda, sobe na meia ponta!”. Você tenta, só que a sapatilha de ponta tem uma armadura embaixo. Cada vez menos, hoje elas são mais maleáveis, mas continuam duras. E você tenta, aquilo melhora um pouco, você começa a se sentir como uma criança que está começando a andar, mas enfim, você consegue sair do chão e ir até a barra. A gente ia na barra, bota as duas mãos. E agora, vamos subir na ponta. E ela ia dizendo pra gente onde você tinha que ter força, mas em mim, eu me nutria naquela imagem da bailarina que eu via flutuar, procurava encontrar no corpo aonde era a musculatura que ia me levar pra cima daquela sapatilha de ponta, que na época parecia um objeto completamente estranho (risos). E como eu ia conseguir a leveza daquela bailarina, era um turbilhão de coisas acontecendo. E quando você chega na ponta: “Ufa! Realmente é muito mais confortável que o pé no chão”. A sapatilha de ponta você deve ficar sempre na ponta, andar na meia ponta é muito difícil, é mais fácil girar pirueta. Claro que as primeiras aulas são muito difíceis, você vai tentando se equilibrar, enfim.

P/1 – Você estava falando da ponta, o desafio.

R – Você chega na ponta e vai descobrindo cada dia mais que você precisa da musculatura, do equilíbrio. É um enorme desafio você conseguir flutuar na sapatilha de ponta. Porque é uma delícia. É difícil? Sem dúvida nenhuma. Dói o pé? Também, sem dúvida nenhuma, porém é uma maravilha porque você consegue girar muitas piruetas, você tem a sensação, realmente, de flutuar. Quando você domina um pouco a sapatilha de ponta, ela passa a ser uma extensão do seu pé. E aí é muito gostoso porque aquele sonho da menina que deitou no colo do pai e viu, quando você dança mesmo na sapatilha de ponta é muito gostoso. Ainda mais se você dança no palco, tem uma plateia inteira na sua frente que está suspensa, imantada pela sua levitação, pela sua capacidade de estar deslizando naquela sapatilha de ponta. Eu adorava sapatilha de ponta e fiz a minha formação toda em balé clássico, até o final da trajetória da formação do Royal Ballet.

P/1 – Você falou de pessoas que vão se apresentar, tinham algumas coreografias. Eram clássicas, clássico de repertório? O que a dona Nira costumava...

R – Ah, isso era maravilha. A Dona Nira sempre convidava coreógrafos de fora para montar coreografias para a gente, pro grupo. A gente dançou com Renato Vieira do Rio de Janeiro, com um grande bailarino do Teatro Municipal do Rio que se chamava Renato Magalhães. A gente teve um coreógrafo americano que veio ensinar jazz, que foi o Otto, eu não lembro o sobrenome dele. O Renato Vieira era jazz também. A gente tinha aula com a Bettina Bellomo, de Belo Horizonte, ela sempre trazia inúmeras pessoas pra ajudarem na criação. Também era uma delícia essa expectativa: “Que coreógrafo que vai vir? Como é que é a dança que ele vai inventar?” Como que você espera que aquilo se torne parte de sua vida de novo. Tem todo um suspense, você chega pro primeiro dia de encontrar o coreógrafo, é um namoro, você quer ser escolhida pros papéis. Tem aquela tensão e você começa a dançar e começa a descobrir novas maneiras de dançar porque cada um te ensina de um jeito. A aula era sempre de balé clássico, mas as coreografias eram variadas, era tudo. Às vezes tinha dança popular, às vezes tinha cancan, às vezes jazz, dança moderna americana, que a gente não sabia exatamente o que era, muito diferente (risos). Tinha essa liberdade também, e tinha o prazer da dona Nira de apresentar o mundo maior do que a sala de aula pra gente. Foram períodos muito intensos da dança.

P/1 – Você falou do jazz. Teve uma época que foi o boom do Jazz, na década de 80.

R – Exatamente, eu já estava no balé. A gente fez esse jazz mais americano, meio ___ _____, assim. E eu fazia também algumas aulas de jazz, dança moderna, na própria academia da dona Lenira, pra pode chegar o coreógrafo e eu conseguir participar (risos).

P/1 – Inês, você falou da questão da ponta. Mas que passos você gostava? Você falou que gostava muito da paralela na ginástica. E no balé, que passo você adorava fazer?

R – Tem diferentes passos no balé que são do coração. Os grandes saltos como o grand jeté pra mim era o desafiante porque lembrava a ginástica olímpica. Tinha um espelho na dona Lenira que eu gostava de saltar mais alto que o limite do espelho. E tinha a história do Nijinsky que ela me contava, que no Espectro da Rosa ele voava, eu queria também saltar, descobrir como saltar tão alto. Por outro lado a pirueta da ginástica olímpica é muito diferente da pirueta do balé, que tem um acabamento, um jeito de terminar. Fazer pirueta, pirueta, pirueta e terminar no arabesco, numa tutu, que você precisa ter um outro jeito de lidar com o impulso e com a gravidade, isso me fascinava enormemente. Isso foi intenso, né? Aquela coisa que você fica lá horas tentando ficar no mesmo lugar, sem sair do lugar, girando, girando e girando. E aí foi até muito parecido com a ginástica olímpica porque o passo virtuoso em si que você termina e pá (risos). E aí, é ou faz ou não faz, que é como a ginástica olímpica, não tem mais ou menos, a ligação.

P/1 – E o desafio é fazer os 32?

R – Tem que fazer, tem que fazer. E ficava horas e horas girando no mesmo lugar (risos).

P/1 – E Inês, você já pensava em seguir carreira?

R – Então, eu comecei o balé e não tinha certeza que ia seguir carreira. Comecei a estudar Biologia na Universidade. Eu engravidei muito cedo, com 18 anos eu fiquei grávida e eu fui morar um tempo em Belo Horizonte porque o pai do Felipe é mineiro e lá eu continuei estudando Biologia e fui estudar dança no Palácio das Artes com o professor Carlos Leite.

P/1 – Ah, foi aluna do Carlos Leite.

R – Fui aluna do Carlos Leite. Eu entrei já no último ano da escola do Palácio das Artes, era o professor Carlos Leite que estava dando aula ainda. Ele não tava dando aula regular. Mas a gente fazia algumas pequenas montagens com ele, eu dancei em parques e escolas com coreografia do professor Carlos Leite.

P/1 – Que ano que foi isso?

R – O Felipe nasceu em 83, um pouquinho antes, 83, 82, por aí, comecinho da década de 80. E era muito divertido com o professor Carlos Leite, completamente diferente, eu lembro a dona Lenira não dava aulas de varinha, apesar dela ser muito brava. E eu cheguei no Palácio das Artes, fazia aula com vários professores e o Carlos Leite veio fazer essa montagem, foram escolhidas eu, a Alexandra _____

e um menino para a gente dançar nos parques. E ele veio com uma varinha, quando ele bateu a varinha na minha perna eu saí correndo: “Ué, ficou louco, né?” E ele correu atrás de mim na sala com a varinha e eu correndo, os dois correndo pela sala (risos). Mas ele começou a rir: “Essa é louca, nunca fez aula de balé? Quem é ela?” Ele fazia com a varinha eu já arrumava o que ele queria para não apanhar com a varinha (risos). Mas ele ensinava muito, ele tinha muita paciência. Ele fez um solo que eu lembro até hoje, tem uma foto que tá até aí nas fotos selecionadas que foi o solo do professor Carlos Leite e a gente dançou pelos parques. Continuei a Biologia, o Felipe nasceu e eu tive que dar uma paradinha no balé, eu parei já estava com seis pra sete meses de gravidez.

P/1 – Dançou até os sete meses?

R – É. Pequena, né? A barriga era pequena também, o Felipe nasceu dançando (risos). Logo que o Felipe nasceu eu voltei pra Vitória quando ele tinha quase um ano, oito meses. Ele era bem gordinho, eu já tava muito magra, eu fui no pediatra e ele falou: “Olha, vai pra perto da sua mãe que ela vai te ajudar a tomar conta dessa bolinha” (risos). Eu voltei pra Vitória, continuei estudando Biologia e voltei pra academia da dona Lenira e comecei a dar aula. Além de fazer aula, eu comecei a dar aula. Foi aí que eu acho que, de fato, eu comecei a pegar mais gosto pela arte de ensinar a dança, eu dava aula pras pequenininhas como é em toda academia de balé que você faz toda a formação. Na verdade eu terminei essa formação aí, depois que eu voltei de Belo Horizonte que eu fiz a parte dos exames de Advanced do balé. Fiz o Elementary, fiz o Advanced que é considerado curso superior. Eu tinha feito só a parte de graduação, colégio normal de dança. E aí eu larguei a Biologia no terceiro ano, perto de terminar eu falei “não, eu quero mexer com dança”. Eu comecei a dar muitas aulas na academia da dona Lenira e fazer aula loucamente. Porque quando eu voltei da gravidez com o Felipe pequeno, eu fiquei esse tempo, depois que ele nasceu eu não fiz aula em Belo Horizonte e eu tinha que recuperar todo aquele corpo e aquela técnica que tinha modificado. Mas voltei a jogar capoeira, gostava de participar da roda de capoeira, o Felipe pequenininho ficava sempre perto das rodas de capoeira. Foi um período de diversas coisinhas, mas nada com muita sequência, até eu voltar pra dona Lenira e de fato dar sequência à dança clássica. E quando veio a Bettina Bellomo dar um curso na academia da dona Nira, ela falou: “Por que você está aqui? Por que você não vai dançar?” “Ah, com menino pequeno é difícil”. Ela falou: “Ah não, quando a gente quer, não é não”. E ela falou: “Vai ter audição no Palácio das Artes, então, vem fazer”. Aí já é 86, 87. Não sei se a audição foi em 86, eu

começo o balé lá em 87, que é o mesmo ano que eu faço a minha formação, que eu formo no Advanced. Eu passei na audição em Belo Horizonte e volto pra Belo Horizonte (risos). Tenho um “periodinho” que eu fiquei lá, depois eu voltei. E eu entrei no Palácio das Artes em uma época muito turbulenta, começamos e tal, todo mundo super animado e em seguida teve greve. “Ui, greve de bailarino?”. Que não era greve só de bailarino, era greve dos artistas do Palácio das Artes, mas pra mim era muito difícil porque eu comecei tarde, depois eu parei um período, depois eu voltei, porque eu não queria ficar parada. E eu fiquei muito inquieta com aquilo, fiquei um ano, fiz uma temporada, dancei coreografia do Tindaro Silvano, da Susana Yamauchi, (Caradá?). E uma coreografia da Sônia Mota que se chamava Tudo bem, meu bem. Era uma delícia, super gostoso. Mas acabou essa temporada, eu estava muito inquieta, saí e fui até a porta do Grupo Corpo, bati na porta e pedi pra fazer audição. Isso já era 88, foi março de 88, mais ou menos. Fiz audição, pedi para fazer uma aula, eles gostaram e aí foi divertido. “Ah, pode fazer”. Eu comecei a fazer, daqui a pouco apareceu um carequinha e sentou. Apareceu um outro, daqui a pouco apareceu um terceiro. Acabou a aula, eles: “Ah, a gente gostou. Volta amanhã?”. No outro dia eu voltei e estavam lá os três sentadinhos e mais a Macau, que estava fazendo aula no dia anterior, mas nesse dia ela ficou sentada. Eu falei: “Ui, acabou”, eles disseram: “Ah, a gente gostou muito de você, mas não tem vaga. Você pode ficar fazendo aula e no dia que surgir a vaga ela é sua!” “Ah, eu preciso dançar porque eu dancei muito pouco na minha vida, eu sou muito verde pra ficar parada um ano, não sei quanto, até surgir uma vaga!” Ele falou: “Ah, então deixa o seu telefone”. Eu fui atrás do Tindaro que me levou pra dançar no Compasso, que era uma companhia pequena de uma escola de dança e eu fiquei o ano de 88 aí. Quando foi o fim de 88, o Rodrigo ligou pra me convidar pra vir. Só que nesse meio tempo eu achava que não iria conseguir sobreviver na dança e quando deu julho eu encerrei: “Vou parar de dançar e vou voltar pra biologia”. No segundo semestre eu tinha voltado pra biologia (risos). Quando o Rodrigo me chamou, eu estava fora de forma, tinha quatro, cinco meses que não dançava: “Não sei, estou completamente fora de forma, tenho medo de não conseguir sobreviver na dança” “Ah, fora de forma! Você entra em forma rapidinho” (risos). Então eles me propuseram que eu ficasse dezembro inteiro tentando ficar em forma e decidisse o que eu queria fazer. É lógico que dançar. Em janeiro de 89 eu entrei no Grupo Corpo, foi o ano da Missa do Orfanato, que aí é uma outra história (risos).

P/1 – Me fala uma coisa, o Corpo já tinha essa projeção de uma Companhia de Danças nessa época?

R – Tinha. O corpo foi criado em 75, fez grande sucesso com Maria Maria, que é do Araiz, depois ainda fizeram O Último Trem e depois o Rodrigo começou a fazer a coreografia e acho que é em Prelúdios, que acho que é 85, e Prelúdios que faz grande sucesso. E a imagem de Prelúdios que me leva a procurar o Grupo Corpo. É uma dança neoclássica, prelúdio de Chopin, maravilhosa, linda. E eu me lembro do Rodrigo dizendo pra mim: “O que te trouxe aqui?”. Eu falei: “Ah, Prelúdios”. Ele falou: “Ixi, a gente acabou de mudar, a gente tá dançando uma coisa tão diferente”. Eles tinham feito uma coreografia que se chamava Uakti, tinham trabalhado com a Susanne Linke em Mulheres. Eles estavam procurando uma linguagem que não fosse só do neoclássico, que tivesse outras linhas. Eu falei: “Mas vocês ainda dançam aquilo?” “Não sei, tem algumas coreografias e tal”. E o desafio foi muito maior do que eu podia pensar, que foi dançar o Missa do Orfanato (risos).

P/1 – A gente vai falar do Missa do Orfanato. Como você conciliava cuidar do Felipe, estudar e se movimentar no mundo da dança em Belo Horizonte, sem a família, sem o apoio da família?

R – Na verdade, o Felipe sempre foi um grande parceiro. Quando você tem filho muito jovem ele sempre vai com você pra tudo quanto é lugar, é o coalazinho, né? (risos). Ele ia pra tudo. Quando eu estudava na faculdade, tinha berçário, deixava no berçário, na hora de mamar eu ia pra dar mamar e voltava. Quando eu ia pro balé, minha mãe ficava com ele, ou tinha alguém que ficasse com ele em casa, desde amigos a pessoas queridas. E nessa época que eu fui pra Belo Horizonte teve uma pessoa muito importante que foi o Cleber, que foi o pai do Felipe, mesmo, que cuidou dele todo o tempo. Enquanto eu saía pra dançar, ele ficava com o Cleber, que cuidava dele, então, grandes amigos, quando eu podia ele estava comigo. Como disse a Betina, quando você deseja do coração alguma coisa. Filho é só um companheiro, ele nunca vai ser um empecilho pra você traçar o seu caminho, é só conciliar e o tempo que você está com ele, você de fato estar presente.

P/1 – Vamos falar de Missa do Orfanato. Como é que foi a montagem?

R – Quando eu cheguei já estavam bem adiantado na montagem e fazia algum tempo que não entrava um novo bailarino na companhia. E foi um período que eles ganharam pela primeira vez um patrocínio fixo, que foi o patrocínio da Shell. Tinha uma enorme pressão, eu era um ser externo. A coreografia de 45 minutos, já tinha uns 30 minutos de coreografia, então todo mundo já tinha passado por aquela fase de aprendizado inicial e de mudança de corpo. Eles estavam vindo com o Rodrigo, percebendo a mudança de estilo do Rodrigo no próprio corpo. Aquela idéia minha do Prelúdios é porque era uma dança mais próxima da dança clássica que eu trabalhava. Foi muito difícil entender o peso que ele queria na dança, tive que voltar à percepção da capoeira, esse corpo mais aterrado. Tive ajuda muito grande dos bailarinos, o Renato, por exemplo, me contava: “Sabe que cada parte da missa tem uma história” e ia contando as histórias. A Regina Advento que era a grande estrela da Missa do Orfanato, que dançava lindamente, e ela me ajudava muito, ficava hooooras na sala B comigo tentando me ensinar. Pra mim aquilo era o desconhecido, eu não conseguia me achar naqueles movimentos e falava: “Gente, que coisa torta, meu Deus! O ombro alto, um negócio pra dentro, tem que levantar a perna, como é que...?”. Era um negócio muito esquisito (risos). Mas foi uma delícia porque eu fui percebendo no corpo como é que se constrói a cena. O Corpo vai vestindo o espetáculo numa parceria, são os irmãos, um grupo antigo, e ali também se estabeleceu a parceria com a ___, José ___, o Paulo Pederneiras, o Fernando Veloso, o Rodrigo Pederneiras, o Pedro Pederneiras, a Emilinha Pederneiras, eles já vinham juntos todo o tempo, o Paulo, a Freusa, Fernando e ah... Luz é o Paulo, Figurino é a Freusa, Coreografia é o Rodrigo, Cenário é o Fernando Velloso, Fotografia é o Zé Luiz Pederneiras. A Macau é ensaiadora há muito tempo, ela é outra que protegia muito, ajudava a gente a aprender. Mas eu fui vendo como que o figurino chegava e mudava a sua percepção. É um vestido comprido de seda que a Freusa idealizou, não era uma malha justa. Você ganha um personagem. O cabelo era todo despenteado, todo na cara. Pessoas velhas, cara pintada de branco, eu tinha 23 anos, mais ou menos. E você tinha que entrar naquele personagem, sentir o peso do mundo em cima de você. E a luz, ao mesmo tempo de catedral, daquelas peças de vitrais enormes, a finitude do homem, a fragilidade do homem diante do universo, tinha muito a ver como me sentia, absolutamente frágil, absolutamente perdida e foi tentando me encontrar que encontrei a missa como uma nova forma de linguagem na minha carreira de bailarina.

P/1 – A Missa é um marco no Grupo Corpo?

R – É.

P/1 – A mudança de concepção coreográfica, que o Rodrigo vinha procurando?

R – Eu acho que é o momento onde ele... Nada é assim, a gente usa os marcos como grandes referenciais, né? Mas a coreografia, o Uakti já tinha uma coisa, tem percussão, tem elementos construídos pelos próprios músicos, tinha uma coisa do equilíbrio, mas tinha uma coisa de dançar, tinha um grupo muito forte. O Rodrigo sempre organizou muito bem, organiza muito bem as grandes massas de grupo que uma pessoa se desprende e volta pro conjunto. Ele tá ligado muito à música e acho que ele veio numa trajetória que a Missa é um marco por vários motivos: pela união desses criadores, pela possibilidade de um investimento maior por um patrocínio fixo, por poder ampliar o grupo, por fazer mais por mês, ele é um marco de uma nova era que se instaura. E depois tem 92, o 21, que é de novo um trabalho com música do Uakti, e que aí é um marco da relação do Rodrigo com os compositores brasileiros. E é a grande virada dele como coreógrafo, aí, ele já tem toda a movimentação centrada no quadril, tudo parte do centro do corpo, tudo está mais aterrado, tem uma sinuosidade nos gestos.

P/1 – Tem umas quebras...

R – Tem umas quebras, a gente brinca porque ele é cheio de tique, ele conta assim: “i, i, 1, i, i 2”. E cada “i” desse, do tempo musical, tem um movimento. Então, é uma loucura. E a Macau é capaz de dizer: “Cláudia, você está errada no segundo “i” do número sete”, Aí, eu ficava pensando: “Meu Deus, o segundo “i” do número sete, onde será isso?” (risos). E ela fazia, i-i-1. Ah, tá (risos). Tem uma precisão, é uma equipe muito afinada com um jeito muito bonito de pensar a dança no Brasil.

P/1 – O 21 tem um... Eu lembro quando eu fui assistir, as pessoas comentavam um pouco isso em relação ao figurino também, porque ele é completamente diferente. É muito arrojado.

R – As malhas da Freusa e da Márcia que são uma marca muito forte aí. E esse elemento da música na verdade que forma o quinteto inicial, sempre músicos populares ou eruditos brasileiros que transitam no popular que fazem as composições pro Grupo Corpo. E a Creuza é a figurinista que pensa em massas de cor dando quase visualidade àquelas massas que o Rodrigo organiza na cena. Ela acentua essa organização, ela te ajuda a ler o desenho do movimento, e 21 é isso. É que teve Missa, depois de Missa teve A Criação, que é um balé de Haydn que durava duas horas, um enorme desafio, onde eu fiz um pas de deux que eu gostei muito, que era a Eva, foi o meu primeiro pas d deuxzinho”, que foi com o Werner que é um bailarino mais experiente da academia, que era um prazer de dançar, era muito bonito, tinha um luz diagonal assim, e eu ficava um mulherão. E quando eu saía, todo mundo queria saber quem era a Eva e eu fugia, não falava nada. Eu, desse tamanhinho, magrinha, “deixa eles pensarem que aquele mulherão lá é outra, que não sou eu, não”. Que a Inês Daceno que também sou eu, mas... Então, era uma balé que era um desafio pra todo mundo, todo mundo tinha pas de deux, todo mundo tinha muito solo. Essa é uma característica do Corpo, você dança muuuito. Às vezes à frente, às vezes atrás, com papéis mais importantes, mas você está todo o tempo na cena e isso te dá um prazer enorme além da canja de estar no palco. Você se torna mais íntimo do palco, o palco passa a ser a sua casa. Depois teve Variações Enigma, do Elgar, tchutchutchu, assim, era meio uma paródia da dança clássica, teve Teleman, que era uma coreografia bem rapidinha e aí veio o 21, que é uma obra consagrada, das grandes safras. Aí vem Nazareth, com a sainha rodada, Parabelo. Aí vem uma série de coreografias, eu danço no Corpo até 2001.

P/1 – Qual é a coreografia que você comentou que se equilibrava nos bambus?

R – É Bach. É linda.

P/1 – Qual era o desafio também?

R – Bach era um pouco diferente, porque Bach, é 96, Parabelo é 97. Antes de Bach, foi Nazareth, 93. Aí tem uma comemoração em 95 do aniversário do Corpo, de 20 anos. Então, tem uma retomada dos velhos balés. Aí, eu tive contato com aquele Prelúdios que eu tanto queria dançar (risos).

P/1 – Dançou?

R – Dancei, dancei. Já tinha dançado antes, mas a primeira vez que eu dancei Prelúdios, eu só fazia a última cena, Margarida. Era uma loucura, esperava 20 e poucos minutos pra dançar Margarida, era um nervoso horrível, todo mundo já tava quente e eu entrava na Margarida meio fora da cena. Foi logo no comecinho também. Mas nesse período da comemoração dos 20 anos eu já estava há um tempo no grupo, já dançava várias coisas e de fato eu me senti dançando Prelúdios, dançando vários papéis de Prelúdios e foi bem divertido. Dancei Canções, que é outro balé lindíssimo do Richard Strauss, dessa época neoclássica dele. Teve toda essa retomada e aí, veio Bach, que era essa coreografia que de alguma forma guardava a potência dos gestos da dança neoclássica com uma energia ligada à terra e, ao mesmo tempo, uma possibilidade de ascensão pelos tubos. Você entrava nas cenas de formas diferentes e eu fazia um pas de deux que o meu par cai do tubo e eu tinha que encontrar com ele no meio, e eu fazia um momento lindo que é a área onde eu ficava em um tubo sozinha, que é como se fosse os tubos dos órgãos mineiros, né? E tinha só uma luz. Era uma cena que o Rui Moreira me punha lá em cima e ficava embaixo de mim, eu ficava sentada no bambu, assim, sentada em nada, presa com a tensão muscular, pela força muscular, eu ficava lá três minutos e meio e desabava no colo dele pra sair de cena. A cena era isso com uma luz maravilhosa, era muito lindo e era de uma solidão, de uma entrega muito grande. Uma entrega para aquela imensidão que sempre nos cerca, independente do que você esteja fazendo, uma entrega pra dança, pra dança também da imobilidade, não só da dança do movimento, então, foi um grande presente. E depois veio Parabelo, que eu dancei o pas de deux do pássaro do assum branco, que é linnndo, foi outra coreografia que eu tenho muito carinho e que tinha Tom Zé e José Miguel Wisnik na trilha, então, era uma maravilha, tinha umas falas, umas coisas, muita linda a coreografia. O Corpo, que é a última coreografia que eu danço, é de 2000. Muita linda, porque daí eles passam a fazer coreografia de dois em dois anos, deixa de ser anual. Porque uma companhia de autor, o coreógrafo vai ficando exausto de ter obrigação de ter de fazer uma coreografia por ano, né? Depois que saiu o patrocínio da Shell, entrou o patrocínio da Petrobrás e no começo do contrato ele tinha a obrigação de fazer uma coreografia por ano e depois ele conquistou esse espaço de fazer uma coreografia a cada dois anos. E é mais confortável, mais prazeroso. E O Corpo, com música de Arnaldo Antunes, de 2000, foi a última que eu dancei. Eu saí no comecinho de 2001, eles foram para uma turnê americana e eu já não fui.

P/1 – Vamos voltar um pouquinho. No começo, você tinha passagem pelo Palácio das Artes, né? Mas como é se tornar uma profissional de dança, passar a viver de dança. Muda alguma coisa no cotidiano, na dedicação?

R – Desde a ginástica olímpica eu já tinha o hábito dessa entrega muito grande para a arte que eu estava fazendo no momento. Em termos de disciplina, de horário, de entrega, pra mim não mudou. Eu estranhei, como eu te contei um pouco, primeiro de ter greve, eu achava muito esquisito. Era uma companhia que estava se reestruturando, eu passei em um momento de reestruturação, então, eu fiquei pouco tempo e eu tive três diretores. Eu estranhava o mecanismo, faltava pra mim até um cotidiano mais estabelecido.

P/1 – Lá no Palácio das Artes?

R – Lá no Palácio das Artes. Então, passar a ser profissional foi entender esse mundo adulto com todos os seus problemas, todas as dificuldades que é ser artista nesse país, num país que ainda carece muito de educação, de você ainda ter tantas coisas pra cuidar, enfim. Mas encarar isso de frente, o que é ser artista nesse país, como é que eu posso ser artista, me deparar com muitas impossibilidades e muitos desejos ao mesmo tempo, uma época de inquietação interna muito grande porque está fora da sua mão, por mais que você faça direito, que você trabalhe loucamente, não depende só disso. Para uma companhia acontecer, tem que ter muita coisa, tem que ter desde uma estrutura, verba. E o Palácio é uma grande casa da dança no Brasil, que eu venero e venerava, mas que pra mim foi uma passagem muito curta, talvez pela minha condição de vida eu não pudesse ter o tempo de esperar aquela turbulência se acalmar. E eu fui dançar no Compasso que era uma companhia privada e que tinha uma verba pequena e que também não me permitia me sustentar.

P/1 – O Tindaro é de Belo Horizonte?

R – O Tindaro é de Belo Horizonte. O Tindaro ficou dirigindo o Palácio das Artes. Quando eu saí, o Tindaro tava entrando, e ele: “Mas o que é isso, você vai sair?” (risos). Porque o Tindaro tinha feito coreografia pra Dona Lenira também. E eu falei: “Mas eu não consigo ficar”. E o salário era muito pequeno, era uma coisa muito difícil. E eu ficava pensando que futuro isso poderia ter. O Compasso era uma outra estrutura, eles tinham muito... Era um grupo, quase como o da dona Lenira que tem que se produzir, tem que se ajudar. As duas diretoras batalhavam muito, mas era muito difícil. Acho que foi o momento que eu me deparei com isso tudo, me assustei, voltei, retrocedi, já com filho pequeno (risos), e falei: “Bom, como vai ser isso?”. E como eu te disse, eu tentei voltar pra universidade, mas quando eu entrei na estrutura do Corpo, aí é outra coisa. Realmente eles já estavam completamente estruturados, sempre foram organizados desde o começo, tiveram dificuldades, mas eu entrei em um grande período, oposto do Palácio que estava passando por uma crise, eu entrei no Corpo no momento que eles estavam recebendo o primeiro patrocínio a longo prazo, com possibilidade de projetar, né? Um desenvolvimento, um planejamento estratégico de como aquela companhia ia ser dali pra frente. Eles são muito bem estruturados, são grandes profissionais, eu aprendi muitíssimo com eles e admiro muito a capacidade deles, dessa relação entre as artes, de criar uma cena da dança, abrir espaço na dança, eles, o Ballet Stagium, os pioneiros, eles são fundamentais e ralaram muito (risos).

P/1 – Você deve ter viajado muito com eles.

R – Ui, a gente fazia 90 espetáculos por ano, viajava muito, muito, muito. Isso era uma delícia. Viajava, conhecia o mundo e o Corpo sempre teve um horário de trabalho pra bailarino muito tranquilo, as seis horas por dia quando você estava aqui. Aqui, em Belo Horizonte (risos). Quando você viajava, você entrava no teatro às três, quatro da tarde. Então a manhã era livre, você fazia o que você queria. Bailarino lá dança, cuida das suas roupas, mas não carrega nada, está tudo pronto pra você quando você chega no teatro, o que é um luxo e muito bom. Você pode se dedicar só ao seu papel, a sua função mesmo ali. Então, viajei, ai meu Deus que delícia, era muito gostoso. Só que viaja muito. É uma delícia, mas você está sempre no contrafluxo dos seus amigos que tem vida cotidiana (risos). E é difícil, filho na escola, Felipe adolescente, teve épocas difíceis de conciliar todas as coisas. Ele já não queria vir a tudo que eu queria carregá-lo (risos), já tinha a vida dele mais independente. E quando você chega, as pessoas estão trabalhando e você está de folga, em muitas comemorações você está viajando e as pessoas querem que você esteja aqui, como tudo tem um lado bom e um lado ruim, né?

P/1 – E viagens pra fora, apresentações externas?

R – Então, a gente foi pros Estados Unidos, eu fui pra Europa várias vezes com o Grupo Corpo. Era basicamente Europa e Estados Unidos. Alemanha, França, Suíça, Inglaterra. Eu participei desse período que eram esses dois pólos. América do Sul também, Chile, Buenos Aires.

P/1 – E como vocês eram recebidos?

R – Sempre casa cheia, sempre muito bem recebidos. O Corpo é um grande ícone da dança brasileira no exterior. Eles comentavam muito dos corpos dos bailarinos, esculpidos, maravilhosos, com aquelas malhas da Freuza, justíssimas. Da sensualidade da dança, da diversidade do movimento, de um ritmo muito próprio. A gente sempre foi muito bem recebido em todos os países. A Inglaterra que era... Quando a gente dançou Variações Enigma, o programa mais neoclássico, assim, aí, o templo da dança clássica ficou um pouco incomodado (risos). Mas nada que impedisse a gente de voltar no ano seguinte e apresentar. Porque a gente apresentou Variações Enigma e Nazareth, e eles: “Nossa, o que é isso, essa companhia?” (risos).

P/2 – Teve alguma apresentação que foi especial pra você?

R – Olha, a primeira vez que a gente foi pros Estados Unidos, que foi a minha primeira viagem internacional com o grupo, nós dançamos em um teatro pequeno em Nova Iorque. É um teatro que tem dança sempre, é um templo da dança, me impressionou muito, era um palco pequeno, a gente foi dançar, entre outras coisas, A Criação do Haydn. E tudo era suspense, os técnicos eram extremamente organizados, como é que um teatro com um palco tão pequeno podia tudo acontecer? E a turnê americana levou a gente pro circuito universitário também, como as pessoas viam a dança, como os estudantes, o _______ já estava dentro da Universidade, como é que, enfim, a gente tinha uma relação mais próxima entre a academia e as companhias de dança, isso tudo me fascinou muito. E depois quando a gente voltou pra dançar no Jacob’s Pillow, que é o templo da dança moderna, é um espaço perto de Nova Iorque onde o Ted Shawn fez um teatro pra dança. É um festival que acontece todo ano, em julho, no verão, e você tem encontro com muitas pessoas, tanto dança quanto palestra, dança dentro desse teatro específico, dança ao ar livre, é um encontro muito rico pra dança. E quando eu dancei em Paris pela primeira vez no Châtelet também, o palco que tem tanta história. Mas cada palco tem um mistério nele mesmo. Por exemplo, a primeira vez que eu fui dançar no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, gente! É um templo, né? É lindo e o tempo suspende, você entra em outro espaço, você dialoga quase com todos os artistas que passaram ali, em cada palco fica impregnado na memória as diversas artes que preencheram aquele espaço. E você, como artista, chega lá e recebe isso de uma forma encantatória, você se deixa sentir, se deixa acolher naquela energia e compartilha com ela. Então, cada palco, eu posso ficar citando muitos porque cada um tem uma história muito interessante. Em (Parse?), a primeira vez que a gente viajou do outro lado do mundo pra dançar na Austrália, que eu perdi a hora, achei que era a noite e era de dia (risos). E o Pedrinho me ligou, o povo já estava todo no teatro: “Inês, vem pro teatro”. Eu falei: “Ai Pedro, não amola, três da manhã, não vou não”, pum, desliguei. Ele ligou de novo: “São três da tarde, maluca! Vem pra cá!” (risos). Saí correndo, louca, entrando no chuveiro. Eu e a companheira, Paulinha, as duas chegando lá com cara de “Ai, meu Deus (risos). Como é que perde a hora do ensaio? Já entra às três da tarde e perde a hora, criatura? (risos)”. Então, cada lugar tem uma memória gostosa, os amigos vão mudando também, o grupo acaba tendo uma renovação. Tem uns bailarinos que deixam, eu tive o privilégio de dançar ao lado da Macau, da Mirinha, da Paula Bonome, fundadoras do Grupo Corpo, eu peguei essa transição aí. E depois entrar uma turma nova e eu lembrar do meu desconforto, a Regina Advento me ajudando, a Macau perto de mim, ajudar as pessoas novas que estavam entrando a se sentirem em casa, no grupo. Porque é muito tempo, grande, largo, que eu passei junto com eles. É uma vida inteira (risos).

P/1 – E momentos muito intensos, né, de bastante tempo junto também.

R – É, quando você faz parte de um grupo profissional você convive com eles a maior parte do seu tempo, e é com eles que você divide muitas coisas, alegrias, tristezas, profissionais e pessoais, né?

P/1 – Como é que era o processo de criação do Rodrigo? Ele tinha um método de criar, ou cada coreografia ele fazia de uma maneira diferente?

R – Não, ele tem uma maneira muito particular de criar. Primeiro, ele não começa sem a música, sem a música nada começa, é a música que ordena a criação, tanto da coreografia, quanto da luz, do cenário e tudo. Então, quando chega a música, todo mundo deita pra ouvir. E a gente fica ali ouvindo a música, cada um na sua, conversa e tal. E o Corpo tem uma característica particular que eles ensaiam no palco, é um teatrinho no último andar da sede do Corpo e a companhia ensaia ali direto. Você ficava deitada, ouvindo a música e tal, e se você abrisse os olhos, às vezes já via o Rodrigo fazendo pequenos movimentos, mas não era pra ninguém fazer nada, era só... Ele já tinha ouvido essa música muitas e muitas vezes. Depois ele começava a se movimentar e convidava a gente a dançar com ele, então, você ia seguindo os passos dele. Ele é um coreógrafo que tem a partitura no corpo, o movimento é o movimento dele que você copia e se apropria. E sempre teve, mesmo quando a Macau dançava ela já era ensaiadora, a mão muito presente dela no rigor e na capacidade de destrinchar os passos. Ela ajudava ele a colocar na música os passos porque ele sabia intuitivamente, sabia fazer, mas era difícil traduzir, às vezes, pro corpo da gente. Ele tem um movimento picadinho, rápido, cheio de contratempo, que quase suspende o corpo, quase você não pisa no chão, e cada vez mais ele foi acelerando essa capacidade criativa dele. E ele faz isso, depois que todo mundo aprende as sequências, ele dá quatro, cinco sequências diferentes de movimento, ele começa a combinar essas sequências, essas frases de movimento, pra quem não sabe, como frases mesmo de palavras, uma palavrinha do lado da outra forma uma frase e tem a frase escrita e a fase de movimento, um gesto do lado do outro forma uma frase de movimento desde que ela tenha uma coerência interna, assim como uma frase escrita. Só colocar as palavras do lado, sem sentido nenhum, não dá (risos). Então, a dança é a mesma coisa, tem que fazer o encadeamento de movimentos que façam sentido, que tenham um significado mesmo que abstrato, elas contam alguma coisa.

P/1 – Você estava falando do processo de criação do Rodrigo.

R – Depois que ele constrói essas fases de movimento, que todo mundo aprendeu, ele começa a organizar os grupos. E aí, ele bota um bloco de gente aqui, um sozinho lá, uma diagonal e tal, e vai trabalhando com a gente, vai experimentando, ali mesmo, se aquilo vai dar certo ou não. Você fica o dia inteiro lá fazendo isso. Às vezes, no outro dia ele volta e joga tudo fora, começa do zero, às vezes aproveita e modifica e refaz e vai. E é um processo bastante árduo, acho que é o período mais árduo para o bailarino porque tem uma entrega enorme, o movimento ainda é desconfortável, você está descobrindo, então, tem um fascínio, um sabor especial, uma adrenalina ali naquela hora de como descobrir aquilo, como você faz e como você percebe aquilo que você quer, como que você traduz o movimento dele no seu corpo. Mas é exaustivo, você ganha muitas dores musculares (risos), no dia seguinte mal consegue sair da cama, morrendo de dor no corpo inteiro, tem que levantar, aquecer, melhorar a dor muscular aquecendo a musculatura e aí, dançar (risos). Continua. Depois, quando você vai se apropriando mais da coreografia, você vai se descobrindo mais em cada movimento, você vai tendo menos dores musculares, você vai tendo mais conforto e você vai sendo mais dono do seu movimento, que deixa de ser do Rodrigo e passa a ser seu. E o rigor, porque o Corpo dança muito em grupo. Inclusive é difícil você identificar os bailarinos, você dança no conjunto. E a Macau e a Mirinha, que era a iniciadora na época, são peças chaves pra que você consiga. E é tudo através do tempo da música, como eu contei antes, essa história do tempo da música é que dá o tempo do movimento. E às vezes ele falava: “Olha, presta atenção na linha do baixo”. Nazareth tem isso, a gente faz movimentos só na linha do baixo, no resto você silencia, não tem movimento, você tá marcando a linha do baixo enquanto ele ta marcando a melodia. Então, ele ia também mostrando pra gente como a música foi construída e como a dança tava construída em cima da música. E aí, chega a hora dos figurinos.

P/1 – Isso que eu ia perguntar, era a próxima pergunta.

R – É uma delícia porque aí a roupa te dá indicativos maiores de que mundo você vai passear. Às vezes você estranha, às vezes você gosta. E a roupa vem também com uma maquiagem e um penteado, que muda completamente o seu rosto. E vai te dando informações pra você dançar, pra você ser aquele personagem. Porque mesmo sem ter uma narrativa, a coreografia do Rodrigo é abstrata, não tem uma narrativa linear, mas existe uma narrativa que está ligada às imagens, à percepção, que está ligada a origem daquela música, o que nutriu o Rodrigo pra coreografar, que vem tudo isso no figurino e no cenário. Então, se você tiver Parabelo, que é o Zé Miguel e o Tom Zé, e tem lá aqueles grandes rostos que eles botam no fundo, depois tem uma colcha de retalhos que tá também na roupa, que tem as malhas todas. Você vai construindo um universo imaginário. Então, o figurino, de alguma forma, fixa a imagem final da coreografia e é ela que te veste o corpo, com mais uma pele, das muitas peles que você vai vestindo ao longo da sua vida. E aí tem a luz, que quando você chega no palco muda tudo. Primeiro o Paulo não ilumina o chão, então, é muito difícil se equilibrar, a sua percepção fica alterada. Depois ela te dá volume, você começa a sentir o calor vindo de diferentes lugares e aí o pas de deux de Parabelo, por exemplo, era maravilhoso porque eram dois refletores pares com uma roda assim, era uma engenhoca que eles ficavam rolando e parecia uma luz de fogueira me iluminando e a gente tinha que dançar no corredor, ou eles acompanharem a gente com um canhão de luz. É aí que a caixa preta ganha uma tridimensionalidade, quando a dança ganha vida junto com a luz. E você também se torna um ponto de luz no palco, você é o lugar onde a luz incide pra gerar um movimento que leva a percepção da plateia. Essas várias camadas que vão construindo todo esse universo é uma delícia, não é muito conversado qual é o sentido disso, às vezes a gente sabia pelo jornal o que é que o balé queria dizer e também a gente perguntava pro Rodrigo e ele falava: “Eu tinha que responder alguma coisa pro jornalista” (risos). Claro que tudo tinha um fundamento, uma história, e claro, cada vez mais ele vai se familiarizando até com a própria linguagem, que no momento que ele tá descobrindo é muito difícil de falar, mas ele não gostava muito de dizer nada pra gente, não: “Ah, vai aí, percebe pelo movimento”. E você ia encontrando as maneiras de dialogar com ele e com o universo ao redor através do movimento.

P/1 – Inês, você falou de plateia. Como você se relaciona com a plateia, o que muda da época da ginástica, você vê a plateia, porque quando você tá na caixa preta você não vê a plateia, né?

R – Em alguns teatros você vê. Por exemplo, essa coisa do teatro, em Porto Alegre, o Teatro São Pedro é bem pequenininho e você dança, como vocês dois, essa distância aqui não existe entre o bailarino e a plateia. Eu quase dou a mão pra você (risos) quando eu faço um gesto. Então você vê o rosto das pessoas, é divertido. A plateia é um grande parceiro, ele é o espelho onde você se reflete, seja essa plateia que você vê, seja essa plateia que você percebe, que está no escuro, mas ela é o seu espelho. Você está dialogando consigo mesmo, com as coisas mais profundas de você, mas, ao mesmo tempo, você está dialogando com o outro, você está se apresentando ao outro, está mostrando, pelo movimento, pela dança, quem é você. Até porque você passa pelos muitos personagens que cada dança te leva a habitar. Então a plateia é quem dá vida à dança, no sentido de que ela dá continuidade à dança, contando essa dança, percebendo essa dança, e conversando e dialogando com o artista que fala.

P/1 – E você vai no Corpo até 2000. Você falou que na _____ ___ ___ você já não participou. Isso?

R – Do começo, não. Tem uma coisa da plateia, só voltar, que na capoeira a plateia é a própria roda, é um círculo que você faz parte dele, de alguma forma a relação do palco com a plateia, mesmo na escuridão, ele faz parte do espetáculo, cada plateia de um jeito.

P/1 – É uma troca, né?

R – É uma troca.

P/2 – Como é que é no final?

R – O aplauso? É um momento de grande prazer e grande entrega, porque na verdade você teve toda aquela preparação, você vivenciou um momento muito importante, muito rico no palco, muito intenso sobretudo, de relação com as pessoas que estão com você, dividindo essa trajetória. E no final tem uma entrega, uma entrega pro mundo. Você dá um presente a alguém quando você dança e você recebe um presente quando você acaba de dançar. Ou, às vezes, a plateia, como no pas de deux de Parabelo, acabava o pas de deux e praticamente todas as vezes eles aplaudiam. Você recebe aquele presente, uma troca daquilo que você deu. Então, a plateia mais alvoroçada, ou a plateia mais contida, o balé que provoca uma reação imediata, o balé que provoca uma relação mais de suspensão e daí acontece o aplauso. Você vai aprendendo a escutar as diferentes maneiras com que você se insere no mundo com aquela dança. E qual é o tamanho da sua entrega a cada espetáculo. Às vezes você acha que fez um espetáculo “Ai, não deu certo. Amanhã tem mais, ainda bem”, essa é uma das grandes alegrias da arte cênica. E aí vem, as pessoas falam: “Nossa, você estava incrível, foi maravilhoso” “Ah, legal” (risos). E tem os dias que você acha que foi maravilhoso e vem a Macau com um caderninho, 500 correções (risos). “Acho que te soltei demais!” (risos) É essa relação de dar e de receber, de troca. Mas é um momento muito gostoso. E depois, quando você sai ali, que você encontra os amigos, e que você vai fazendo amigos ao redor do mundo, você vai se tornando um cidadão do mundo por dançar em tantos lugares. E com a possibilidade da tecnologia, você continua em contato com eles, ou você fica tempos sem falar, aí, você naquela cidade e: “Ah, aquele amigo!”, e encontra. É uma delícia.

P/1 – Você falou uma coisa, antes do seu encerramento de carreira. E os seus pais te assistindo? Eles viam aquela menina que fazia ginástica olímpica, e que aí foi pra capoeira e resolveu ir pra dança. Como eles...?

R – Os meus pais sempre acompanharam tudo, como eu contei, eles vinham assistir às competições de ginástica olímpica, assistiam roda de capoeira, depois vinham assistir aos espetáculos de balé na dona Lenira. Mas o meu pai faleceu um mês depois que meu filho nasceu. Então meu pai não me viu dançar no Grupo Corpo. Mas a minha mãe me viu sempre dançar no Grupo Corpo, quase todos os espetáculos. Ela vinha a toda estreia e muitas vezes ficava com o Felipe quando eu ia viajar, vó (risos). Ela me ajudou muito a criar o Felipe, ele ficou muito tempo com ela também, enquanto eu viajava e depois quando ele fez faculdade, ele fez morando com ela em Vitória. Minha mãe sempre me acompanha muito de perto, os meus pais sempre me acompanharam enquanto o meu pai foi vivo e a minha mãe até hoje, todas as coisas, ela mora em Vitória, ela deixa um telefonema: “Minha filha, hoje é a sua estreia” (risos). Até acho bonitinho, tá sempre muito perto. Irmãos também.

P/1 – Inês, como você encerra a sua carreira com o Corpo em 2000?

R – Teve um momento, acho que eu estava com 33 anos, por aí, eu comecei a sentir que eu não dava mais conta de fazer o movimento no mesmo tempo que as outras pessoas. Por mais que eu me esforçasse, o meu movimento era um pouco mais lento do que os outros, e cada vez chegava uma turma nova de bailarinos, que era mais rápida ainda, o Rodrigo mais rápido com o movimento, eu falava: “Meu Deus, eu estou sempre atrasada!”. E, às vezes, não era atrasada no tempo, era no ataque do movimento. Então eu comecei a me sentir um pouco deslocada. Nessa época eu dançava muitos pas de deux do grupo, o que me deixava mais confortável porque aí era o meu tempo. Dancei pas de deux de Bach, de Parabelo, porque a Mirinha saiu e eu dancei os pas de deux dela de Variações Enigmas, de Prelúdios, enfim. Nazareth dançava pas de deux, então eu dançava muitos pas de deux e era o lugar onde eu me sentia mais confortável e mais feliz. Antes eu adorava os grupos também, mas aí eu já começava a me estranhar, eu comecei a pensar, então, o que eu queria fazer. E durante toda a minha carreira de bailarina eu gostei muito de comprar vídeos e livros de dança ao redor do mundo. E tinha um grupo de estudos na minha casa, um grupo de estudos de dança, dos bailarinos, que era uma coisa informal. A gente se reunia pra ver vídeo e conversar sobre dança, tomava uma cervejinha e ficava por lá conversando. Então eu comecei a pensar nas muitas possibilidades. O que eu podia fazer? Se eu queria continuar na dança, se eu ia fazer outra coisa. E aí eu pensei que eu poderia ser cozinheira, eu fiz curso de cozinheira na França. Durante as viagens, cada vez que a gente ia pra França, foi um período de 96 a 2000 a companhia foi companhia residente no Maison de La Danse, então, a gente ficava 15 dias lá, fazia a estreia.

P/1 – A Bienal da dança?

R – Isso, a Bienal da dança, em Lyon. A gente fazia estreia lá, então, tinha bastante tempo e eu comecei a fazer pesquisa de coisas e como é que era isso e aquilo, fiz curso de queijo de cabra, comecei a produzir queijo de cabra ao mesmo tempo que dançava. O salário de bailarina não era um salário tão grande, então às vezes eu vendia coisas também, ajudava gente a escrever texto pra faculdade, enfim, fazia mil coisinhas assim, meio inquieta, querendo achar um novo caminho, sem muita certeza do que eu ia fazer. E fiquei esses três anos bastante inquieta. E quando eu fiz 35 eu falei: “Agora chega. Agora não quero mais. Vou sair, seja pra fazer o que for”. Eu comecei a conversar isso no Corpo que eu ia sair, não sabia quando, eles falavam: “Você é nova ainda, fica mais um pouco e tal”. Mas eu tinha uma memória de alguns amigos que pararam um pouco mais velhos, 38, eu já achava meio estranho, eu olhando eles já achava um pouco estranho. Eu estava me sentindo desconfortável, falei: “Não, tá na hora de parar”. Nesse período eu comecei a namorar com o Arthur Nestrovski, que escrevia pra Folha de São Paulo e viu muitos desses encontros de estudos na minha casa e tal. E uma vez eu assisti a um espetáculo do Rui Moreira, da Companhia Será Quê?. E eu escrevi pro Arthur uma coisa, ele perguntou: “Como é que foi o espetáculo?” “Ah, eu escrevi uma coisa. Você não quer ler?” “Ah, quero”, e eu mandei. Ele mandou de volta: “Ah, isso é uma crítica”. Eu falei: “Nãoooo”. Aí, comecei a querer entender, “Por que é uma crítica?”, a gente começou a conversar sobre isso, ele falou, você escreve super bem, você não tem vontade de escrever sobre dança? Difícil, né. Eu sei que ele pediu a minha autorização, pegou esse texto e mandou pro editor da Folha de São Paulo. E o editor leu, era o Sérgio D’Ávila, falou: “Ah, vou publicar”. Falei: “Bom, ok”. Passou um tempo, achei que não iria mais sair no jornal e tal, um dia eu to lá em cima do Corpo ensaiando, a Macau falou pra mim assim: “E agora você escreve na Folha de São Paulo?”. Gente, me deu um nervoso, um frio na barriga, eu falei: “O quê?”. Ela falou: “Vai lá, o jornal tem um texto seu”. Saí, é muito nervoso. Eu abri o jornal, olhava aquilo e não acreditava, o texto que era meu, eu olhava e falava: “Nossa, era meu”, mas era estranha aquela relação. Eu liguei pro Arthur e falei: “Nossa, já não esperava mais que saísse e tal”. Ele falou: “Não, mas o Editor disse que ia sair”. Só que era uma coisa descolada do tempo, o editor, de fato, quis aproveitar uma bailarina que escrevia. E a partir daí eu fui convidada pra escrever na Folha de São Paulo, pelo Sérgio, e eu escrevia sobre espetáculos que eu ia via ao redor do mundo. Eu fazia entrevista, então eu fiz entrevista com a Pina Bausch, vi uma exposição da Silvia (Iguier?) sobre Giselle. Ia fazendo coisas durante a turnê do Corpo, durante aquele ano, em 2000, eu fiz matérias variadas pra Folha de São Paulo. E aí, nisso, eu me descobri. Era uma nova maneira de dançar, de estar na dança. E a história das frases, né? Eu passava a dançar com as palavras e nisso o Arthur me ajudou muito porque eu ficava muito inquieta de achar o ritmo das palavras correspondente ao ritmo da dança que eu tinha visto. E eu mostrava uns pedaços pra ele e dizia: “Vê se tá certo” (risos). Ou seja, se aquela frase batia com a frase do movimento. Ele ficava olhando, olhando. Ele teve uma infinita paciência: “Falta um ponto, onde está o ponto no movimento e o ponto aqui? Não é o mesmo ponto daí, não. Olha onde você corta cada frase, vê qual é a mais ____”. E eu fui criando essa relação de a frase do movimento e a frase do texto. E aí conversei com o pessoal do Corpo que eu queria fazer o meu ritual de passagem, um livro sobre eles, mas que congregasse aquilo que eu via no grupo, que era aquela ideia de que todas as artes estavam juntas e como se constrói a cena. Por que o Grupo Corpo fascina plateias tão diferentes? E aí, novamente auxiliada pelo Arthur, eu convidei Luís Fernando Veríssimo, Maria Rita Kehl, Eliane Robert Moraes, várias pessoas, pessoas de várias áreas pra escrever sobre o Corpo e eu fui pesquisar, fui saber de fato qual era a história daquele grupo que eu tinha vivido intensamente nele, mas não sabia tanto sobre a história deles. E eu fiz o meu primeiro livro que foi Oito ou Nove Ensaios sobre o Grupo Corpo. Eu fiz o texto de apresentação, a cronologia, a organização. O Paulo Pederneiras me ajudou muitíssimo, todos eles foram extremamente carinhosos comigo e esse livro só foi lançado em 2001, quando eu já estava fora do Corpo. E quando deu agosto eu já sabia que ia parar, mas eu não contei pra ninguém. Eles já sabiam também, a gente já estava se namorando também, mas ninguém dizia uma data, que é bem do Grupo Corpo, bem mineiro, ninguém fala, é: “Deixa ela aí, vamos ver até quando ela vai”. Aí, eu fiz vestibular em São Paulo porque eu queria me mudar pra São Paulo, eu fiz vestibular pra Filosofia na PUC e fui pra Paris, meu último espetáculo foi em Paris, a gente passou o Natal em Paris naquele ano e foi lindoooo. E quando eu dancei o último espetáculo, eu sabia que era o último espetáculo, o Arthur sabia também e a gente saiu pra comemorar o Natal juntos, foi o Grupo Corpo.

P/1 – Ele foi junto?

R – Foi. Foi o Grupo Corpo todo, saíram todos juntos. E ali eu sabia que tinha sido a minha despedida. Foi lindo, uma noite linda, enfim, Paris, Natal, né? (risos). E a sensação no palco era de mais um espetáculo, de mais uma entrega, e que eu já sabia que a dança ia continuar porque na verdade eu não sei viver sem a dança, né? (risos). Eu só fui achando outras maneiras de estar viva na dança, dessa dança estar viva em mim e eu estar viva nela. E aí, eu voltei, a gente teve férias, quando eu voltei das férias, em fevereiro, eu soube que eu tinha passado no vestibular (risos) e aí eu fui conversar com os meninos. Mas a gente tinha uma turnê logo em fevereiro, final de fevereiro, começo de março pros Estados Unidos, é que no ano anterior, quando eu sabia que ia parar e eles também, a gente começou a passar os meus papéis assim: “Vai ensinando aí”, eu fui ensinando pras meninas os papéis e em fevereiro eu conversei com eles e falei: “Se precisar de mim eu vou pros Estados Unidos, mas se a gente conseguir que elas dancem eu prefiro ficar, senão eu vou perder minhas aulas”. E a turnê era grande, durava quase dois meses, 50 dias. E aí foi muito bonito, o Rodrigo falava: “Não para agora, fica mais um ano”. E às bailarinas, eu falava: “Vocês precisam aprender depressa, eu preciso sair, pelo amor de Deus!” (risos). “Eu já vou falar de outro assunto agora”. Elas ficavam hora extra comigo, de tarde, a gente ficava ensaiando, ensaiando, ensaiando, pra elas poderem ficar firmes. E aí, teve um dia que o Rodrigo falou: “Bom, agora a gente tem que decidir se você vai ou se não vai”. Aí, a gente se olhou, tinha uma cumplicidade no ar e todo mundo sabia que eu não ia.

P/1 – Voltar um pouquinho: Como você conheceu o Arthur?

R – Ahhhh (risos).

P/1 – Era um momento de virada também, né?

R – Nossa... Não tinha muito tempo. Eu conheci o Arthur em 98, estava voltando de uma temporada em Porto Alegre e eu parei aqui em São Paulo pra ficar com a minha irmã Marta, que já morava aqui em São Paulo, que é arquiteta, pra ficar na casa dela uns três dias, descansando, antes de voltar pra Belo Horizonte pra dançar uma próxima temporada que era no Palácio das Artes. E ela me convidou pra ir: “Ah, vamos no MAM, tá tendo a Bienal e a gente almoça no MAM”. Falei: “Vamos” “Ah, acho que vou encontrar um amigo meu lá” “E onde vocês marcaram?” “Ah não, a gente não marcou”. Eu falei: “Marta, a gente não vai encontrar, né? A gente não marcou, na Bienal, você está louca”. Ela falou: “Ah, também tudo bem, né, vamos passear” (risos). E fomos pra exposição e obviamente não encontramos o Arthur na exposição, quando a gente estava indo pro MAM almoçar a gente encontrou a Sofia, a filha do Arthur, e a Lívia, as duas meninas, e a Marta falou: “Onde está o seu pai?” “Ah, tá lá no restaurante” “Ah, então tá”. Aí, sentamos na mesa

com o Arthur, na verdade só a Sofia saiu e a Lívia ficou. E a gente ficou conversando. Imediatamente a gente teve uma coisinha e ele me disse assim: “Ah, vou te mandar uns livros”. Eu falei: “Ah, que papo de aranha, gente! Tudo bem”. Falei: “Tá bom”, eu tava sem namorado, falei: “Ah tá”. Cheguei em Belo Horizonte, eu estava cansada e tinha uns três meses que eu tinha terminado o meu último relacionamento e eu desliguei o telefone, desliguei tudo, e fiquei lá mais um dia quieta. De repente chegou um pacote, realmente, de livros. Eu tinha acabado de voltar de São Petersburgo e ele me mandou um livro sobre São Petersburgo que contava a história de São Petersburgo e tal. “Nossa, o moço mandou o livro”. Peguei o telefone e liguei. E ele nunca tinha assistido o Grupo Corpo. Aí, eu falei: “Ah, por que você não vem assistir à companhia?”. Ele falou: “Ah, eu vou” “Tá, então vem”. Tudo bem. Isso era quarta e o espetáculo era sexta. Ele veio assistir a companhia e a gente começou a namorar (risos). E a gente já está junto há dez anos.

P/1 – Eu tenho duas ou três perguntas só pra esclarecer. O que você dançou em Paris?

R – Eu dancei em Paris... Parabelo, que é aquele pas de deux maravilhoso e acho que foi Bach, mas eu não tenho certeza, viu? Não sei se tinha Nazareth. Ah, pera, tinha o Arnaldo Antunes, teve O Corpo também. Teve O Corpo porque o Arnaldo estava junto, acho que foi Parabelo e O Corpo. Eu lembro do Arnaldo, assim, no teatro, na hora que ele foi saindo ele tava junto da gente. Então, já tinha o corpo.

P/1 – E em 2002 você vem pra São Paulo.

R – 2001 eu vim pra São Paulo, né? Eu paro de dançar no Corpo, meu último espetáculo é dezembro de 2000, em 2001 eu venho pra São Paulo, o livro sobre ele sai no segundo semestre de 2001 e eu fico estudando Filosofia e escrevendo pra Folha de São Paulo. E logo que eu cheguei aqui o editor já era outro, era o Nelson de Sá que estava formando um corpo de críticos, e aí ele me chamou pra ser crítica de dança, o que me deixou em pânico (risos).

P/1 – Por quê?

R – Uma coisa era escrever sobre espetáculos estrangeiros, fazer entrevista com as pessoas, outra coisa era fazer crítica das pessoas com quem eu convivia, né? Não do Grupo Corpo porque eticamente não é viável, mas de todos os outros grupos. E ele foi muito generoso comigo, o Nelson, ele dizia assim: “Você é a pessoa que mais sabe de dança, um jornalista não sabe tanto de dança quanto você. Você vai ser generosa com eles, você não precisa ter medo” (risos). Mas eu vou confessar, porque era assim, você assistia ao espetáculo, no outro dia até às 11 da manhã você tem que mandar o texto. E aí, o tamanho é um, pode modificar, depende do que entra e é sempre menor que você quer. Tudo pequeno, 40 linhas, 30 linhas. E eu mandava o texto e nos primeiros meses não sem o Arthur ler, ele tinha que ler senão eu ficava em pânico (risos). Ele lia o texto e o Nelson também lia, ele me prometeu, foi a condição para eu ficar crítica da Folha, que ele me ajudasse também. Ele lia, ou pelo menos dizia, que lia todos. Porque o texto na tela é uma coisa. E no outro dia eu acordava bem cedo, corria pra ver o jornal (risos), como se no jornal o texto adquirisse uma vida nova, o que é verdade. O texto impresso no jornal tem outro peso, ele tem outra relação com o mundo. E você vai ver a distância, os ecos, daquele público que você encontrava mais face a face nos espetáculos de dança, ele se torna mais difuso, mas ele aparece pra você em muitos momentos.

P/1 – E por que Filosofia? Como é voltar a estudar, faculdade?

R – Voltar a estudar é uma delícia (risos). Filosofia porque uma vez que eu tinha decidido escrever sobre dança, mesmo antes de pensar em ser crítica, eu queria um maior subsídio e um entendimento mais amplo das questões que cercam o homem. Acho que a arte aponta o cerne da humanidade de uma forma muito transparente, ela te põe em contato consigo mesmo e com os outros, com as questões mais prementes, do momento que você vive, né? E a Filosofia, eu acreditava e acredito, me ajudou a entender os diferentes períodos, a saber respeitar as diferentes idéias, ler o filósofo e saber que aquela é a idéia dele, como vou dialogar com ele. A dança, mesma coisa, ver a coreografia de um coreógrafo “x”, “y”, “z” e ver como é que eu vou dialogar com aquela arte, independente do meu gosto, mas sim a partir de uma perspectiva mais geral e foi maravilhoso porque me deu, acho que um chão complementar aquele que eu já tinha na dança. Me ajudou muitíssimo a me sentir mais confortável na arte da crítica.

P/1 – E a questão de voltar a estudar, fazer prova, fazer trabalho, ter colegas de faculdade, o cotidiano da faculdade?

R – É, eu achava uma delícia. Na verdade o primeiro ano em São Paulo foi muito duro, eu mudei de estado civil, de profissão e de cidade. Eu achava tudo muito esquisito. Saio de Belo Horizonte onde as pessoas tem um tempo de vida calmo, eu era bailarina dentro de uma estrutura muito protegida. Caio no mundo, eu era crítica de dança da Folha de São Paulo, eu chegava nos espetáculos e as pessoas me olhavam diferente. Alguns eu conhecia, outros não conhecia, mas tinha uma identidade distinta. As pessoas em São Paulo tem muita pressa. Mineiro pega o telefone e fala: “Eeeeiiii”, o outro diz: “Ooooiiiii”. E aí, aqui é assim: “Diga aí, tudo bem?”. E o outro já te responde: “Então, te liguei porque não sei o quê, não sei o quê”. Um negócio muito mais objetivo. E eu achava tudo aquilo esquisitíssimo, eu falava: “Meu Deus, como é se relacionar?”. Você anda nas ruas, as pessoas não olham, às vezes passam do seu lado, está tão apressado. Hoje eu sou assim, que não vejo o colega, ainda mais que eu não enxergo tão bem de longe às vezes... E me adaptar a esse novo ritmo da cidade, me adaptar a uma vida de casada (risos), me adaptar a nova profissão. Era muita mudança e me adaptar a essa minha vida de estudante. Eu gostava muito de ser estudante, sempre gostei e continuava gostando, e queria ser como os meus colegas. A Filosofia tem essa vantagem, você não tem só coleguinhas novos de 18 anos que chegaram ali, você tem os mais velhos também. Então, é uma turma eclética e todo mundo se mistura, e todo mundo é igual, na hora da prova todo mundo fica nervoso. Na hora do professor tem aquela coisa, “ah, professor chegou”. Tinha os grandes professores, eu fiz PUC-São Paulo e fui muito feliz na Universidade. E era o lugar de maior aconchego naquele momento, no sentido do poder errar. A faculdade é um lugar de você experimentar e você pode errar que tem alguém que te corrige e isso não tem nenhuma consequência maior. Ser crítica da Folha de São Paulo tinha um peso muito grande (risos) e que eu entendo a crítica como um entendimento da arte, do outro, né? Colocar em cena, contextualizar o que aquele espetáculo quer dizer, apresentar o espetáculo pra quem não viu, falar sobre o diálogo dele com as outras áreas e fazer uma análise daquilo que está em jogo. O quanto aquele criador apostou em determinadas coisas e como essas coisas se apresentaram aos olhos dos outros. Eu sempre pensei na crítica como um diálogo, um diálogo mais fino com o tempo de escuta maior, então fazer crítica significava saber que espetáculo eu iria ver, me preparar, estudar aquele espetáculo, estudar aquele criador, ver qual era a trajetória dele e mapear ele em um contexto mais amplo pra então chegar de frente ao espetáculo com uma possibilidade de dialogar mais de perto com essas pessoas. Mas é um diálogo solitário, muito diferente daquele diálogo da dança que é um diálogo coletivo, né? Esse foi um estranhamento e a faculdade é o coletivo de novo, acho que é isso (risos).

P/1 – O Felipe veio pra São Paulo também?

R – Não, o Felipe com 15 anos foi para os Estados Unidos fazer intercâmbio e aí ele ficou dois anos porque a família lá adotou ele (risos) e quando ele voltou, ele fez vestibular direto. Ele não quis fazer vestibular em São Paulo, ele fez vestibular em Vitória e em Belo Horizonte e acabou optando por ir pra Vitória e ficou com a minha mãe, fez a faculdade dele, de Biologia em Vitória. Mas o Felipe hoje é analista financeiro, trabalha em um outro ramo, fez Mestrado em Administração de Empresas. Uma hora ele vai juntar Biologia e esse departamento mais administrativo-financeiro (risos).

P/1 – Com certeza! E depois da faculdade você fez pós-graduação. Você já foi pra doutorado direto, né?

R – É isso. Quando eu terminei a filosofia, eu prestei prova pra mestrado na Unicamp e eu passei e comecei fazendo mestrado. Quando eu cheguei em São Paulo, eu fiquei um tempo, mas em 2003 eu comecei a trabalhar com o Ivaldo Bertazzo. Então eu fiquei 2001, 2002 trabalhando só na Folha, em 2003 eu comecei a trabalhar com o Ivaldo. Nesse período, 2001-2002, eu fiz a formação dele em Educação do Movimento, fui me aproximando dele. Eu conheci o Ivaldo pelo Corpo, que ele esteve várias vezes lá dando aula pra gente. E em 2003 ele me convidou pra escrever o livro que era a metodologia dele, se chama Espaço e Corpo, em cima do (Samuad?), que era o Grupo Dança Comunidade, aqui de São Paulo. E aí eu me aproximei muito dele, a gente ficou muito próximo, eu tinha acabado de me formar na metodologia dele e a gente foi descobrindo junto como era esse livro, que era de novo um livro organizado por mim, com apresentações de textos meus, mas tinham textos de várias outras pessoas, as pessoas que estavam envolvidas diretamente no cotidiano do projeto. E eu fiquei com o Ivaldo até 2007, quando eu defendi a minha tese de doutorado sobre ele. Então eu entrei pra fazer Mestrado na Unicamp e o tema era Ivaldo Bertazzo, dançar pra aprender o Brasil, e era sobre essa trajetória dele que vem desde a década de 70 também, estudando o corpo em movimento, como a dança pertence a todo mundo, como é que você dança do dia que você nasce ao dia que você morre. Como é que você organiza o seu corpo em pé, como organiza os seus movimentos e como as marcas da vida estão impressas no seu corpo, como você imprime no mundo uma marca através do seu movimento, através do seu corpo. E aí, os projetos sociais também, mas a tese era contar a trajetória dele, descrever ano por ano, e eu queria falar sobre a construção da identidade pelo movimento através da metodologia dele. Comecei o mestrado assim, com a Cássia Navas. A Cássia é uma orientadora bastante generosa, atenta e que te dá muito espaço pra você fazer a sua pesquisa. Como eu tinha facilidade da questão da escrita e estava muito próxima ao Ivaldo, eu tinha acesso a todas as informações. Quando eu fui fazer a qualificação do mestrado eles entenderam que era uma tese de doutorado, e aí eu fui pro doutorado direto com essa questão, como se constrói a identidade através do movimento.

P/1 – Além da Cássia, quem mais estava na banca?

R – Estava na banca, um professor da USP de semiótica que eu não vou lembrar o nome dele, uma especialista de corpo do Rio de Janeiro, que tem um livro muito bonito, Denise, não sei o sobrenome. Estava... que ruim não lembrar os nomes, mas era uma banca muito cordial e muito inquisitiva porque, da dança que não é da dança, só tinha a Denise. A Denise, na verdade, é de Comunicação. Então, eles falavam assim, por exemplo: “Mas por que tem tanta citação de jornal?”, eu falo: “Porque não tem livro” (risos). Onde você vai pegar as referências, né? No jornal. Então foi interessante ver no olhar dos outros como a dança ainda é pouco conhecida mesmo no meio acadêmico.

P/1 – Como uma ciência, né?

R – Como uma ciência. É.

P/1 – Como você conheceu a Cássia?

R – Eu conheci a Cássia em palestra. A gente deve ter se visto muitas vezes nesse caminho da dança, com ela de crítica e eu de bailarina. Mas, especificamente quando eu cheguei em São Paulo, o Marcelo Coelho me mandou um e-mail dizendo do grupo de estudos da Cássia na USP, onde a gente se encontrou (risos). E eu conheci a Cássia de verdade lá, já sabia quem era e tal e fui encontrar com a Cássia lá. Quando eu cheguei em São Paulo eu fui me cercando desses novos conhecimentos, procurando entrar nesse novo universo.

P/1 – A gente estava retomando a coisa do grupo de estudos da USP.

R – Da Cássia.

P/1 – Com a Cássia, daí ela se torna a sua orientadora, ela já está na Unicamp e você monta um grupo de estudos na Maria Antônia.

R – Em 2003. O nosso grupo de estudos acho que juntou com a Cássia em 2002. E em 2003 eu monto um grupo de estudos no Maria Antônia/USP. Na verdade esse grupo começou em 2002, paralelo ao grupo da Cássia tinha um grupo de estudos no meu escritório aqui em São Paulo. E aí, apareceu lá o Jean-Claude Bernardet, que esse grupo começou por conta dele. Ele me encontrou em um espetáculo de dança, tinha lido uma crítica minha e falou assim: “Você não quer me dar aula de dança?”. Eu olhei e falei: “Mas Jean-Claude, pelo amor de Deus” (risos). Um grande crítico de cinema, teórico de cinema. Ele falou: “Não, a gente estuda junto”. E ele me ajudou a montar esse grupo e a gente foi começar a conversar sobre Pina Bausch, e ele me levou pro Maria Antônia. Começou o grupo, na verdade, com ele como coordenador do grupo, que ele dizia que era só pro-forma e eu montei um grupo que durou até 2008.

P/1 – Mas tinham pessoas de várias áreas, né?

R – Era eclético, pessoas não só de dança, fotógrafo, músico, gente do cinema, de literatura e essa era a riqueza do grupo, que tinha um diálogo muito interessante

com todo mundo, uma vez por mês a gente se encontrava pra ver filme de dança e conversar sobre dança.

P/1 – E a São Paulo Companhia de Dança, como que ela surge na sua vida?

R – Eu estava trabalhando com o Ivaldo, ao mesmo tempo fazendo doutorado e durante o doutorado eu participei de um projeto dele chamado Cidadança, que foi uma espécie de estudo de caso para o meu doutorado. Foi um projeto onde ele estava perto, mas quem tocava no cotidiano era eu. E aí, eu fui vendo como a metodologia dele se sustentava sem a presença dele, e fui sistematizando essa metodologia. Ele tinha o pensamento dele estabelecido não só através das aulas de movimento, da reeducação do movimento, mas também através de aulas de Português, Literatura, atendimento psicológico, social, trabalho de sociabilização. E quando eu estava trabalhando no Cidadança, o Luis Nogueira, que tinha sido produtor do Ivaldo por um pequeno tempo, entrou na Secretaria de Estado da Cultura, em 2007. E ele veio junto com a Ana Lúcia em 2007, assistiram a um dia inteiro do Cidadança e me convidaram pra fazer parte do Projeto Fábricas de Cultura. O Cidadança foi 2006, 2007, ele acabou em maio de 2007. Era um projeto que tinha um tempo determinado mesmo. Eu já tinha dito pro Ivaldo que eu iria ter de me separar dele pra defender essa tese, que tinha uma simbiose ali, mas que em algum momento tinha que ter uma ruptura. E foi quando acabou o projeto Cidadança, que eu falei com ele, agora não vou mais continuar aqui porque vou defender tese sobre você. Mas como todo relacionamento muito intenso, tem sempre uma dor da saída, é difícil você romper, como foi difícil sair do Corpo. Mas tem momentos que você tem que ir para um outro lugar. E eu saí do Ivaldo em maio de 2007 e entro na Secretaria do Estado da Cultura, especificamente no projeto Fábricas de Cultura, coordenado pelo Luís Nogueira e pela Ana Lúcia. E aí, os cem meninos do Cidadança viram 1200 crianças (risos), os meninos do Cidadança, muitos deles vieram fazer parte desse projeto porque o Cidadança terminou e eles vieram integrar esse projeto, e trabalho com nove regiões da cidade de São Paulo. Quando o Secretário do Estado da Cultura, o João Saad, que é um amante da dança, começou a entrevistar pessoas da dança para saber o que se faria da dança. Na verdade ele foi convidando várias pessoas para conversar sobre dança, o que você acha da área, o que você faz na área, o que você faria pela dança. E em determinado momento, ele definiu que ele ia fazer uma companhia de dança, ele iria criar uma companhia de dança. E aí, ele reuniu um grupo de pessoas que estavam a Susana Yamauchi, a Iracity, eu, a Mônica Mignon, o Acácio Vallim, a (Tomie Ioka?), tinham mais umas duas ou três pessoas na mesa da sala dele. E ele, bem do jeito do João, fez duas perguntas: Você criaria uma companhia de dança clássica hoje no estado, sim ou não e por que? E foi passando um por um. E acabava, ele falava, vê se eu entendi. Passou um tempo, ele me chamou e me convidou pra ser diretora da companhia ao lado da Iracity Cardoso. Na minha resposta naquele dia eu falei: “Eu faria, sim, uma companhia de dança clássica, desde que se entenda clássico incluindo também o contemporâneo”. Ele não entendeu muito, mas falou: “Sei, mas vai dançar os balés, assim, clássico?”. Desde sempre eu imaginei uma companhia que lidasse com a dança clássica mas que também lidasse com a dança contemporânea, uma companhia de repertório, como muitas que existem no mundo, e aqui no Brasil também. Aqui a gente tem o balé do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, que está em uma fase difícil, mas é uma companhia de repertório, que significa que dança obras de diversos coreógrafos e que dança obras de diversos tempos. E a dança tem às vezes um estranhamento porque é engraçado pensar que ninguém pergunta por que dançar, por que ouvir as músicas clássicas, por que ler Shakespeare, Machado de Assis, enfim. Mas na dança pergunta: “Ah, por que dançar clássico? Isso faz sentido hoje?”. Faz, como tudo faz sentido, passado e presente estão sempre juntos se nutrindo mutuamente aí. Mas não faz sentido uma companhia que dance só as obras de repertório. Ela tem que criar um repertório próprio, que sejam obras criadas especificamente para aqueles artistas que estão ali, com uma linguagem do tempo de hoje, dialogando com o passado, que a gente se nutre dele, apontando caminhos pro futuro, né? Então, depois que foi decidido pelo secretário, foi feito o convite formal pra mim e pra Iracity, a gente nunca tinha trabalhado junto, as duas. Isso foi em agosto de 2007 e ele pediu pra gente escrever um projeto do que seria essa companhia e, de alguma maneira, a gente pode sonhar com tudo que a gente queria que fizesse da dança e a pergunta que eu me fiz na época foi: “Qual o papel de uma companhia de dança do Estado?”, com a verba pública. E nesse sentido acho que é uma companhia que faz produção e circulação de espetáculo, desde obras clássicas, apresentando esse repertório porque a dança só se realiza plenamento na cena, então, ver um vídeo de balé não corresponde a ver um balé ao vivo. Você vê um clássico de Balanchine, ou mesmo um Lago dos Cisnes ao vivo é algo muito enriquecedor e prazeroso pra pessoas de qualquer tempo. Produção, incentivar criação, mais espaços pra coreógrafos brasileiros e estrangeiros fazerem novas obras, com a possibilidade de terem composições musicais originais pra esse grupo, dialogando com figurinistas, com artista plástico, com designer, com escritores, provocando as pessoas a escreverem sobre dança. Mas também tinha que pensar na memória da dança do Brasil, uma vez que a produção aumentou enormemente, quanto escrita, como de vídeo, mas ainda insuficiente pra dar conta dessa nossa dança que é jovem mas que já produziu muita coisa. Jovem se a gente pensar que o Balé do IV Centenário é a primeira companhia profissional da dança cênica em São Paulo. Mas tem muita produção e muitas pessoas trabalharam arduamente para que hoje a gente possa ter uma companhia de dança subsidiada pelo Estado, lado a lado com uma companhia de dança subsidiada pelo município, que é o Balé da Cidade, que foi criado em 68. Então, precisava contar essa história, daí surge o projeto Figuras da Dança, que o próprio artista conta a sua história e a gente produz uma série de documentários que vai pra televisão. Hoje já são dez documentários de figuras da dança de São Paulo e de outras cidades do Brasil. E também a gente tinha a idéia de dar a conhecer a dança pra mais pessoas. Como se faz dança? E aí surgiu uma outra série da televisão que se chama Canteiro de Obras, em que você mostra os bastidores da São Paulo Companhia de Dança, como é que se constrói uma coreografia, como é que você faz com que uma idéia de movimento se transforme em um espetáculo. E as duas séries passam na televisão e depois os dvds são distribuídos gratuitamente pra instituições de pesquisa, universidades, escolar. Depois tem todo um trabalho com o professor, também tentando dizer o quanto a dança faz parte do nosso dia a dia e a dança está presente na Matemática, na História, na Geografia, como é que a dança está em todos os lugares. E aí, vem essa história “todo mundo dança”, tem muito do Ivaldo aí pra mim, e, ao mesmo tempo, como a história do mundo influencia na dança. Como você pode aprender matemática através do corpo, onde estão os ângulos retos do seu corpo, como é que você desenha um círculo, como é que você se sente se você tiver uma folha em branco e desenhar coisas mais retas, como é que faz se você desenhar coisas mais sinuosas. E aí, a gente tem um encontro chamado Corpo a Corpo com o professor, onde eu dou uma palestra, eles recebem um material de apoio para a sala de aula, que é um vídeo e um livreto. E eles dançam com a gente um pouco, essa dança de todo mundo, assistem a ensaios, e depois eles trazem os alunos deles pra assistirem ensaios e espetáculos da São Paulo, aí já no teatro, né, porque não cabe essa criançada. Então tem o projeto, produção e circulação de espetáculos, projeto de memória e o projeto de formação de plateia educativa que são esses corpo a corpo com o professor e estudante.

P/1 – Esse que acontece aos sábados?

R – Isso, tem aos sábados. E tem toda uma preocupação de que a dança volte pra área central da discussão da cultura, e aí, nesse sentido, tem a produção de livros, a gente espera que seja uma série. Já saiu o primeiro que se chama Primeira Estação, onde eu convidei, inspirada naquele trabalho lááá do Grupo Corpo, vários autores a pensarem sobre o que foi o primeiro ano da companhia. Mas não somente o que foi o primeiro ano em termos de produção, mas que temas na produção da companhia te dão ideias pra você escrever alguma coisa. Então, a antropóloga Lilia Schwarcz, escreveu sobre a virada do século XIX para o século XX, porque a São Paulo Companhia de Dança dançou duas obras que é a do Balanchine e a da Nijinska que foram figuras que dançaram nos balés russo de Diaghilev, que fizeram parte desse momento da história. O dramaturgo Vadim Nikitin assistiu ao ensaio da companhia e comentou o cotidiano, e como ele tem um fascínio por essas bailarinas e bailarinos. Tem Roberto Gambini que fez uma leitura inspirada e cheia de metáforas dos espetáculos da companhia, Marcelo Coelho, Modesto Carone.

P/1 – Carone também?!

R – Carone também, escreveu do desejo dele de dançar, de ver como são as bailarinas de perto, como é que a dança ficou distante, como ela se aproxima. É lindo. Tem também o José Possi e aí tem a turma da dança, eu, a Ciane Fernandes e a Beatriz Cerbino. A Bia falou sobre memória da dança, a Ciane falou sobre as duas criações do ano passado, que foram Polígono e Entreato, e eu falei sobre cada uma das peças, Polígono e Entreato, Les Noces e Serenada. Então, todos trazendo uma idéia que estava contida no trabalho da companhia mas falando para além dessas fronteiras, procurando dialogar. Fora isso, cada figura da dança tem um livretinho, então, a gente convida, já convidou o Acácio, a Cássia, escritores novos pra fazerem textos sobre essas personalidades. E aí, acho que, de alguma forma a gente cumpre aquele ideal de quando o secretário convidou que é possibilitar um movimento na dança, trazer pra dança vários artistas, não só coreógrafos, músicos, figurinistas, mas também escritores, fotógrafos, muitos fotógrafos estiveram perto da gente, videomakers, dando espaço pra que as pessoas interajam com a dança.

P/1 – Que bagagem que você traz de bailarina pra essa atividade que você exerce hoje, como diretora de dança?

R – Ah, eu sou sempre bailarina (risos). É um gesto que faz tudo se movimentar. O diretor é aquele que aponta caminhos, que incentiva as pessoas a interagirem com as idéias propostas, que dá espaço pra criatividade sua e do outro, que ajuda a pessoa a entender o projeto amplo dessa companhia, porque é difícil entender, mas, ao mesmo tempo, escuta aquilo que são os desejos mais profundos de todos. Esse eixo da bailarina, que ao mesmo tempo tem que manter um equilíbrio e se permitir o desequilíbrio, que tem que estar totalmente voltado para si, mas perceber o todo em volta, que tem que dialogar com o outro, é o eixo da diretora também (risos). Eu só entendo a vida dançando, seja nas palavras, seja na frente dos bailarinos, seja dançando na cena, seja dançando nos bastidores. Me interessa profundamente o diálogo com as pessoas.

P/1 – Maravilha. Você acha que faltou a gente falar de alguma coisa?

R – Amor, acho que não, e se ficou, pelo amor de Deus (risos).

P/1 – Sarah, você tem? Você anotou algumas coisas.

R – Ah faltou, o livro infantil!

P/1 – É, os livros. Por que você tem esse que é o livro da dança.

R – Contos do balé. O Contos do balé é infantil também. Tem dois infantil e dos outros documentários, na verdade é onde nasce isso.

P/1 – Do Kazuo Ohno.

R – Tem o livro do Kazuo, tem o livro do Ivaldo, tem o livro da Renée Gumiel, tem outros que eu organizei, tem o outro que eu organizei do Ivaldo. São oito livros, eu não sou muito boa de memória. Essa história dos livros é uma continuidade da crítica de dança e aquela história que começou nos grupos de estudo, que ganha corpo no primeiro livro do Grupo Corpo. Esse livro ecoa no primeiro livro que eu fiz do Ivaldo, depois tem esse livro da São Paulo Companhia de Dança, e aí tem uns livros mais de autora, que é sempre da dança que eu falo, o Livro da Dança, que fala como me tornei uma bailarina, o Contos do Balé, que conta cinco contos emblemáticos da dança clássica, Lago dos Cisnes, Giselle, Petruska... E tem uma série de documentários, né? Quando eu comecei a dar aula no Maria Antônia, hoje dou aula para o curso de pós-graduação no Maria Antônia, eu senti muita falta de imagens que pudesse me ajudar a falar da dança, principalmente pra quem nunca viu dança. Como é que você fala da dança da década de 70 sem ter uma imagem? E eu comecei a produzir uma série de documentários, os primeiros foram ao lado do Sérgio Roizenblit, então, eu fiz um documentário sobre a Renée Gumiel, depois eu fiz um documentário sobre Klauss Vianna, depois sobre Maria Duschenes, e aí fiz com a Tatiana Lohmann, um documentário sobre o Humberto da Silva.

P/1 – Ah sei, que ele faleceu recentemente.

R – Isso, ele faleceu em 2008, eu já estava na São Paulo. A São Paulo também me dá oportunidade de fazer toda essa dança que faz parte da minha vida. De alguma forma o diretor está sempre dançando junto com todo mundo, que convida todo mundo à dança com ele e está presente nessa dança. Os vídeos fazem parte da São Paulo Companhia de Dança, os livros fazem parte da São Paulo Companhia de Dança, a idéia do diálogo com figurinista, iluminador, músico, coreógrafo, também é parte disso tudo. São só mil maneiras de estar na dança (risos).

P/1 – Sob o seu olhar, se você fosse definir dança, como você definiria, pra você?

R – Pra mim. Dançar é estar vivo, né? Todo mundo dança (risos). Você dança todo o tempo, mesmo que você não perceba, a sua maneira de estar no mundo é estar dançando. Quando você caminha de uma forma muito simples, mesmo antes de você saber quem entrou na sua casa, pela maneira que ele mexe na chave, ou com que a porta do elevador fechou, ou que ele bateu o pé no chão, você sabe quem é. Essa é a dança de cada um, o seu gesto expressivo no espaço e que imprime uma marca no mundo que é singular, é só seu. E a dança é de todos e é ela quem nos faz mais vivos.

P/1 – Bonito. Maravilha. Inês, a última pergunta: Você que está trabalhando com projeto de memória, entrevistando esses bailarinos, essas personalidades todas, como é deixar sua história registrada aqui hoje? Como é que foi esse processo pra você?

R – Olha, quando eu comecei a fazer os Figuras da Dança, especificamente na São Paulo Companhia de Dança, alguns se inquietaram, a Ivonice Satie, não, foi ela quem me convidou pra fazer. Mas o Luís Arrieta, por exemplo, ele falou: “Que aflição, Inês, ter que abrir o baú, dar conta de contar minha história em 26 minutos. Ai não, que coisa angustiante”. A Marilena se incendiou de paixão (risos). A Penha de Souza foi dar aula na companhia pra gente, cada um lidou de um jeito. Ontem eu ainda estava muito turbulenta, mas comecei a ver fotos e hoje quando eu parei pra olhar quais eram as fotos que eu queria escolher e que eram 12, primeiro eram oito e depois eram 12, me deu o mesmo nervoso deles. Eu falei: “Ai meu Deus! Que interessa a alguém, que não aos amigos queridos, ai meu Deus, o que tem de interessante na vida cotidiana pra você falar pro outro”. E hoje quando eu cheguei aqui, eu tinha essa inquietude, mas, ao mesmo tempo eu tinha esse conforto de te conhecer e fez quase como uma conversa com uma amiga, que há muito não se via. Eu continuei achando aquilo que eu dizia para eles, o que interessa a sua história é o que interessa a história de cada um de nós. É muito gostoso poder ouvir história, encontrar com as pessoas, se permitir esse tempo de escuta, me ver no seu olho, no olho dela, no olho dele que está filmando, é um prazer imenso. Eu quero agradecer muitíssimo esse encontro, que pra mim não esgota, né, e acho que muitas coisas ficaram soltas, muitas idéias, muitas memórias. A memória também nos trai, muitos nomes que eu queria lembrar, eles não vem porque tem muita coisa. Cadê meu caderninho, né? (risos). Mas o que importa mesmo é esse encontro. Claro que o vídeo não é capaz de passar toda essa nossa sensação, mas quem for ver alguma coisa disso vai encontrar comigo de alguma forma, e está convidado a encontrar muitas vezes conosco, né? (risos). E depois de ter me tornado diretora de vídeos de dança eu amo ouvir história. Às vezes eu fujo do papel de diretora da companhia pra passar uma tarde inteira com alguém ouvindo história (risos).

P/1 – Que ótimo (risos). Nossa Inês, a gente só tem a agradecer a sua entrevista, foi uma delícia.

R – Obrigada você, foi gostoso (risos).

P/2 – Foi muito bom mesmo, você é uma ótima narradora (risos).

R – Quem sabe um dia eu vou ser contadora de histórias, né? Eu tenho esse sonho de voltar pra minha infância, de lembrar da minha mãe e do meu pai lendo história na cama pra gente e ir por aí contar história pra criança (risos).

P/2 – Muito bom.

R – Obrigada!