Museu da Pessoa

O Pelé dos guaranazeiros

autoria: Museu da Pessoa personagem: Luiz Ferreira das Neves

P/1 – Senhor Neves, eu queria que o senhor falasse para gente o seu nome completo, a data e o local de nascimento.

R – O nome completo?

P/1 – Isso.

R – É Luiz Ferreira das Neves.

P/1 – E o senhor nasceu onde?

R – Aqui, Vera Cruz.

P/1 – E que data que o senhor nasceu?

R – Foi dia 12 de janeiro de...

(filho do senhor Neves) – 12 de janeiro.

P/1 – De 1931?

R – É verdade.

P/1 – Qual a origem dos seus pais, de onde eles vieram?

R – O pai, o nome dele era Manoel Batista do Nascimento. E a mãe era Raimunda Ferreira das Neves.

P/1 – E eles eram daqui?

R – Daqui mesmo.

P/1 – Tudo de Maués?

R – De Maués. O meu pai tinha sangue de nordestino. O meu avô, lá do Ceará também, graças a Deus!

P/1 – E eles faziam o quê?

R – Eles trabalhavam em negócio de guaraná também.

P/1 – Ele era guaranazeiro?

R – Guaraná, arroz. Trabalhava mais na várzea, o negócio de feijão, agricultura mesmo.

P/1 – E era aqui na comunidade de Vera Cruz?

R – Era aqui. Agora a velha era daqui mesmo, filha daqui mesmo.

P/1 – E era esse mesmo terreno daqui ou era distante?

R – Era, graças a Deus!

P/1 – E quantos irmãos o senhor teve?

R – Só um casal. Era Luiz e a Morena. A minha irmã morreu e fiquei só eu. Graças a Deus! Mas é verdade.

P/1 – E o que a sua outra irmã faz?

R – Ela morreu quando estava estudando, morreu mais ou menos logo.

P/1 – Ah, o casal contando com o senhor?

R – É comigo. Nós éramos dois. Um homem e uma mulher, ela faleceu e eu fiquei. Contando a nossa história até agora, graças a Deus!

P/1 – E como que era a comunidade de Vera Cruz quando o senhor era criança?

R – Era uma beleza! Tinha pouco estudo, tinha pouco conselho, mas todo mundo tinha seu terreninho bonitinho, tinha o seu guaranazal, sua casinha. Hoje é uma tristeza, meu amigo. É mais safadeza que existe. Não sei o porquê. Porque, no nosso tempo, a escola era difícil, mas era um povo mais obediente, respeitador. Não se via quase as barbaridades como se vê hoje. Hoje você abriu o rádio, primeiro é morte, assalto. É mais perigoso mesmo. Eu converso com muita autoridade que era para ser um povo tudo inteligente mesmo porque a escola deles é na beira. Desde o porto é escola, é gente estudando, é conselho, comunicação. Mas é pior, pior mesmo meu filho. Isso já vem das escolas, não é do papai e da mamãe. Às vezes o papai põe uma portaria em casa, a repartição põe outra lá. Eu tenho duas netas no primeiro em Manaus, filha do João. Dos dois filhos, um puxou para o lado da velha e outro puxou para mim. O Sargento Almeida puxou pro lado dela, e o Sargento Neves puxou para o meu lado para não atrapalhar na hora de chamar o batalhão: “Sargento Almeida!”, “Sargento Neves!” Meu amigo, como eu rezo, peço a Deus que proteja os meus filhos tanto por aí como por aqui nós todos.

P/1 – Seu Neves, o senhor sempre morou na comunidade de Vera Cruz?

R – Graças a Deus. Muita gente vem aqui e pergunta pra mim: “faz muito tempo?” “Ah, meu querido! Nasci aqui e morrerei aqui se Deus quiser e Nossa Senhora!”

P/1 – O senhor nunca pensou em morar lá no centro urbano?

R – Não, muita gente me convidava para ir para Itacoatiara, para ir pra Manaus. Os meus filhos estão todos lá. Graças a Deus nos seus empregos, nas suas casas. Mas eu vou lá “de repentinho”. Tem filho que diz: “Papai, o senhor não fica mais um pouco aqui?”. “‘De repentinho’ que eu vou ficar, meu filho”. Se não trabalhando, mas mesmo olhando o meu terreno, para mim é uma saúde, menino. Em 2000 eu adoeci aqui e o doutor daqui não deu jeito. Graças ao nosso bom Deus, nós tínhamos guaraná aqui e, na mesma hora que o doutor despachou, o meu filho vendeu 40 quilos de bastão e mais um saco em rama. Arrumou duas passagens de avião na mesma hora. Minha filha que me aguentou no avião. E o doutor foi tão correto que foi no aeroporto falar com o piloto para telefonar para o 28 de Agosto para ambulância me atracar lá. Quando o avião foi aterrizando, a ambulância estava ao lado e eu pulei para dentro. Fora eu fiz 15 exames, meu amigo. No 16 que decidiu. Era o fígado que estava inflamado. Graças ao nosso bom Deus não dependeu de me cortarem.

P/1 – Mas o senhor, então, não gosta de ir pra cidade?

R – Ave Maria! Eu digo mesmo: nós, de antes, nós não éramos santos, mas tínhamos outra moral. Hoje o senhor vê uma criancinha dessas já está “por quê?” A própria repartição é com as professoras. Eu vi com as professoras. A professora mesmo diz: “Agora, no carnaval, a minha aluna tem que pular, não tem que parar”. Aí, o que elas querem? É verdade. No nosso tempo não, nós íamos por ali na festa das imagens, da Nossa Senhora da Conceição. Mas era outra coisa.

P/1 – Como que era essa infância? Do que o senhor brincava?

R – Era uma beleza. Não se via quase negócio de cachaça, assalto, cassetada. Nem moto existia em Maués!

P/1 – Era como?

R – Era só no pézinho mesmo.

P/1 – Tinha cavalo também?

R – Mal um cavalo. Hoje é uma coisa, é triste. Quanto mais aparece novidade, mais dificuldade.

P/1 – Mas quando o senhor era criança, o senhor gostava de brincar de quê?

R – Eu gostava mais era de pescar. Pescar, caçar e aprender flechar por aí.

P/1 – O senhor caçava com flecha?

R – Com espingarda. Atirava de noite em paca, veado, tatu, anta. É verdade!

P/1 – Mas com flecha também?

R – Não, com espingarda.

P/1 – E de criança o senhor caçava o que?

R – Já novinho ia com meus amigos por aí aprendendo.

P/1 – E quando o senhor ficou mais mocinho, o que o senhor fazia pra se divertir?

R – Deus o livre! O quê? Quando eu fiquei, mais ou menos, com uns 14 anos, 13 anos eu ia com o meu pai de criação. O que a gente ia fazer? Tirar sorva no mato. Eu não garantia cortar da cara do pau, eu cortava da costa. O velho cortava da cara eu o ajudava para nós derrubarmos o pau e tirar o leite, tirar a sorva para ferver e vender.



P/1 – O quê que faz com a sorva?

R – Naquele tempo se fazia muitos ingredientes de se comer e beber do leite da sorva. O leite da sorva é bom para temperar mingau. O mesmo que o leite de gado. Faz até aquela farofa com farinha. Bate bem, depois põe açúcar e põe a farinha.

P/1 – O senhor estudou, senhor Neves?

R – Bem pouquinho, pouquinho mesmo. Quando minha mãe morreu eu fiquei com nove anos e fui para poder da minha prima. Na época que era para mim poder estudar eu fui para o centro tirar pau-rosa e ajudar o velho a tirar sorva.

P/1 – Mas nesse tempo que o senhor ficou na escola, o senhor lembra como que era?

R – Ah, era beleza. Eu chegava lá e ainda fazia isso: “Benção professora!” “Deus abençoe!” Hoje, meu amigo, é uma tristeza. Até professora só falta andar nua! Não, isso não é dever. Eu digo mesmo, eu converso com muitas. Hoje nosso país está uma coisa incrível, é muito invento, Jesus não gosta disso. Por isso que você vê caminhão grande, avião grande. Mata muita gente lá para o lado de São Paulo, para Brasília, Rio de Janeiro. Aqui aparece umas notícias: caiu um avião com tantas pessoas, caminhão se encontrou com outro e morreu tantas. Tudo isso porque um pensa uma coisa, outro pensa outra. E Jesus está sabendo tudinho que está se passando na terra, em toda parte. De antes não, de antes não existia avião. Maués não tinha avião, mal uma canoinha de remo. Hoje é só na rabeta. É verdade, e você vê como está ficando. Pois é meus amigos, Deus nos dê saúde!

P/1 – Todo mundo sempre fala que o senhor é uma referência, uma pessoa que faz o guaraná que é considerado de primeira qualidade. Eu queria que o senhor dissesse para gente quais são os passos para se ter um guaraná de primeira qualidade?

R – Meu filho, muita fé em Deus e também cuidado. Mesmo o pessoal da cidade diz: “Neves, por que tu não compra guaraná para ti pilar com teu filho e vender em bastão?” Falo: “Não, isso eu não faço”. Eu valorizo o nosso trabalho, mas do outro não porque é diferente. Tem que ter cuidado, saber zelar, não deixar o bicho ficar no canto para ficar moreno. Na ocasião de torrar tem que ser em fogo lento. Ter cuidado, lavar bem, assear bem, tudo por tudo. Isso que é bom. E coar o guaraná. Tem gente que nem torra bem, fica tudo mole o guaraná. E o comprador compra, mistura um com o outro e vai fazer besteira com o outro. Tudo é diferença no trabalho. E o nosso não, é nós mesmo, a velha, a nora, o filho que colhe. E é por qualidade, não é por quantidade, ainda tem isso. O nosso produto é por qualidade, não é por quantidade.

P/1 – E o senhor acha que o senhor mudou alguma coisa do jeito que você planta e transforma o guaraná da época que o senhor começou até hoje? Ou continua tudo igual?

R – Até, perante o momento, está igual ainda. Tem muita gente que me conhece desde a antiguidade e diz: “Neves, será que o teu filho vai fazer assim como tu fazia?” “Se Deus quiser! Se ele não fizer é porque não quer.” Começou junto e até hoje está. Tem que fazer melhor do que eu fazia!

P/1 – E com quem o senhor aprendeu a fazer desse jeito?

R – Com o meu tio, Manoel Neves. Ele era padeiro de pilação.

Ele era de fazer os bastões. Com ele aprendi e de lá fomos pilar também.

P/1 – E tem gente que vem dizer para o senhor: “Por que o senhor não faz desse jeito?”

R – E muito, muito, muito. Dizem: “Neves, por que tu não compra um motor pra pilar o teu guaraná?” “Não!” Já pode modificar quem quiser, mas eu morrerei e o meu guaraná será desse jeito.” Isso é mais um guaraná especial, mais gostoso, cheiroso. Na pilação não, o senhor vê tudo quanto é peso de energia. É rápido. E hoje eu converso com muitos. Hoje o povo quer saber de quantidade. De fato, às vezes depende de quantidade, mas não para nós. Com essa AmBev [Companhia de Bebidas das Américas] que está aí vem aquela quantidade de tambor de álcool para misturar com a essência do guaraná. E é verdade! E aí que ganha dinheiro mesmo no guaraná.

P/1 – Seu Neves, existe uma época certa pra plantar o guaraná?

R – Existe.

P/1 – Qual que é?

R – Ela começa novembro. A flor começa desde de junho, começa a florear em junho. Junho, julho, agosto, setembro. De outubro já está vingando os cachinhos. Outubro e novembro já está se apanhando.

P/1 – Outubro e novembro é a época da colheita?

R – É a época da colheita.

P/1 – E o senhor escolhe o terreno pra plantar o guaraná ou pode ser em qualquer terreno?

R – Não, essa nossa área aqui, graças a Deus, é preparada desde aqui até o fim. É mesmo própria para o guaraná. Não tem de dizer: “Essa terra está fraca?” Ela está boa, o negócio é pegar com Deus, cavar, plantar, pisar bem. Hoje não. “Teu guaraná não está dando fruto porque a terra está fraca!” Não. O outro já diz: “Neves, veio gente de fora e disse que o guaranazal dar bem fruta tu tem que cavar um buraco no toco no guaranazeiro e enterrar um peixe”. Eu digo: “Às vezes, não tem peixe nem para comer vai pra botar no guaranazal?” Já pensou? O outro vem assim e: “Por que você não bota ouro em cima do seu guaranazeiro para dar bem fruta?” “E se eu não tenho ouro e vou botar no guaranazeiro?” Tudo isso é uns homens que estudam. Então, o nosso trabalho ainda é como na antiguidade, não tem diferença, graças a Deus!

P/1 – E o senhor planta o guaraná por semente ou muda?

R – De antes, eu plantava muda. Nós trazíamos das cabeceiras, aqueles feixes de filho, tudo dessa altura assim. Nós trazíamos o pau-rosa. No meio do batelão que vinha o pau-rosa a gente trazia o monte de filho. Chegava aqui cavava o buraco, botava a terra, pisava bem. Com um mês a bichinha estava toda de folhinha nova. Hoje não, os homens vão buscar na cidade. Ainda vão deixar morrendo o bichinho porque põe só uma folhinha. Com um verão desse morre mesmo.

P/1 – Mas como é que o senhor pegava o filho lá na floresta?

R – Arrancando do mato, arrancado. Lá tem muitos, lá na mata, naquela capoeira tem muito guaranazal. Os guaranazeiros dão fruta, cai e brota a semente e nós íamos lá só arrancar. É mesmo para lá do seu Antônio Dias que a gente fazia roçado. Dá beira do roçado mesmo já tirava o filho e ia só plantando, plantando.

P/1 – É preciso deixar um espaço entre as plantas?

R – Precisa sim.

P/1 – Quanto de espaço?

R – Eu plantava sete por seis, por exemplo. Sete de largura com seis, para poder ter espaço para limpeza. Agora tão plantando pertinho um do outro. Não minha gente! Tudo isso tem diferença.

P/1 – E o senhor usa adubo?

R – Não. De qualidade, adubo não é para nós.

P/1 – Por quê?

R – Porque é muita diferença. Uma que eu não comecei a trabalhar com essas coisas, nem tem técnica. E mesmo que o prefeito dissesse: “Olha, vamos acabar com o machado, vamos acabar com a enxada, vamos acabar com terçado, vamos só com a motosserra, trator”, o que ia adiantar eu ter o trator e não saber trabalhar com ele? O que adianta eu ter a motosserra e não saber trabalhar com ela? No machado eu vou devagar, no terçado eu vou devagar. Tudo isso tem diferença. Outro é dever. Deus me perdoe minha gente! Eu estou nessa idade, mas graças a Deus eu morrerei e o filho não tem que ouvir: “Olha, o teu pai fica me devendo, teu pai fica...” Não tem nada, mas graças a Deus, devo só para Deus. Esse fica o nosso dever.

P/1 – E depois que o senhor planta o guaraná, quanto tempo demora para ele dar os primeiros frutos?

R – Três anos, não deixando ir para o mato, sempre cultivando. Porque nós plantávamos o guaraná e para gente fazer o roçado e plantava a maniva. Daí plantava o guaraná e com a mesma sombreira da maniva defendia o guaraná. E quando tirasse a maniva já ficava o guaranazeiro. Tem tudo isso. Tem muita gente que diz: “Olha, não planta maniva que vai atrasar o guaraná!” Não atrasa não, não tem diferença. Cada qual está no seu local. E ainda melhor porque ainda ajuda com a farinha. Eu também tenho um terreno aí pra cima que eu dei para o filho. Dois cidadãos tiraram o dinheiro no banco. O que fez um? Fez um roçado, plantou o guaraná e plantou banana. O outro não. O outro não queria atrasar e plantou só o guaraná. O primeiro com a mesma produção da banana ele pagou o guaranazal. E o outro, cadê? Teve que ir no banco de novo, sacrificar para tirar dinheiro. Aí veio ralhar: “Pois é rapaz, se tu fizesse como eu, não tava atrapalhado com o banco. Ao menos a minha banana já dá pra vender pra arrumar um dinheiro para pagar o guaranazal”. Aí que está o negócio em tudo isso.

P/1 – O senhor usa o banco também, pede empréstimo?

R – Não, graças ao nosso bom Deus nunca. O gerente do banco veio aqui umas duas vezes: “Senhor Neves, o senhor trabalha só com os seus filhos. Por que o senhor não vai ao banco buscar dinheiro para o senhor trabalhar com um pessoal aqui?” Eu digo: “Mestre, banco só para eu sentar ou para colocar se um dia eu tiver dinheiro. Mas para eu me comprometer?” E naquele tempo - está aí a velha - de tudo eu tirava. Era borracha, era sorva, era juta. Tudo eu plantava para vender e comprar um recurso para família. Agora eu estou todo esculhambado, eu mesmo que procurei a doença. Uma hora dessas eu já tava aí procurando o meu galho pra matar o veado. Caçar, pescar. Hoje o pessoal não quer mais nada, depois apareceu a televisão. Deus nos defenda, mano! O pessoal pergunta do tabaco que eu preparava aqui, tabaco especial. Feijão. “Neves, cadê aquele feijão bonito, gostoso que tu plantava?” Carioquinha, de lá de fora, do lado de vocês. Minha filha mandava para eu plantar aqui. Mas depois apareceu a televisão. Quando não tinha televisão, eu botava a esteira aqui às oito, sete horas nós estávamos arrumando tabaco. Era mulher, filho, uma beleza! Agora, está doido que eu vou deixar de espiar o negócio da novela. “Tem razão, senhor Neves!” Aquele senhor, seu Edmilson sai: “Neves, cadê aquele tabaco bom que tu preparava?” Não tem ajudante de noite! E olha, uma conversa puxa a outra. O pessoal que caçava de noite, era uma turma que ia aí para a mata e não vai mais. Vai se entreter de olhar a televisão.

P/1 – E o senhor sente falta disso?

R – É bom para a caça que se cria. O pessoal não mata não, uma beleza. É verdade! No nosso tempo não, no nosso tempo - está aí a velha - eu trabalhava até 11 horas no guaranazal, na roça, para a tarde pegar meus arreios e ir embora pescar ou caçar e já arrumar mantimento para outro dia, para turma trabalhar. Hoje não, hoje é Bolsa Escola, é Bolsa Família, enche a turma. Beleza! Mas, minha gente, vocês precisariam controlar porque não é fácil não.

P/1 – Depois de plantado, quanto tempo dura um guaranazal, senhor Neves?

R – Olha, eu tenho guaranazal aqui, meus amigos, que ele está, mais ou menos, com uns 60 anos ou mais aberto. Eu fiz o guaranazal aqui. Um quadro pegou 364 pés e eu estava com 19 anos. Olha, hoje eu estou com 76. O pessoal de fora tudo isso vem indagar aqui. Fazem até a conta. Está lá o guaranazal, graças a Deus. Dura mesmo. Outro dia um falou que não dava fruto porque está velho. Não, mano, não dá devido ao trato porque o guaranazal não depende da química e do adubo. O negócio é cuidar dele, tirar galho seco, limpeza. É igual a nós, porque se nós também formos desmazelados, a gente perde o valor, perde a força.

P/1 – Como o senhor sabe que o guaraná está no ponto para ser colhido?

R – Ele abre.

P/1 – Como é que abre?

R – Vai buscar um cacho para gente mostrar aqui.

P/1 – Então vamos falando de outra coisa enquanto ele vai lá. Aqui se usa o sistema de mutirão pra fazer a colheita?

R – Um ou outro. Porque hoje o pessoal quase não dá mais valor para trabalho de antes. Com o meu pai de criação, nós íamos lá, em outro lugar, arrumar gente no mês de julho pra trabalhar no mês de novembro. Aí vinha gente para trabalhar no guaraná. Era aquela beleza. Eram duas, três toneladas que se colhia. Hoje não, meu amigo. Tem que estar todo dia correndo nesse guaranazal. Tem vezes que se deixa até cair porque tem outras coisas para fazer.

Nós colhíamos oito, dez sacos de guaraná, mas eu não dormia. Noite e dia porque o guaraná é de ano em ano. Então, chegou aquela época é pegar com Deus e cuidar dele. Eu ia dormir para fevereiro, janeiro, fevereiro depois da saca estar toda costurada. Olhe, está aqui. Olha aqui os olhos dele. Uma vez que está assim, já está no ponto de apanhar.

P/1 – Quando ele abre assim?

R – É, olha aqui.

P/1 – Mas aí no caso tem um que está totalmente aberto e os outros que ainda não estão.

R – É, mas já está iniciada.

P/1 –Então sabe que está na hora boa quando aparece esse olhinho aí?

R – É. Beleza!

P/1 – Se um abre, então já pode tirar tudo?

R – Pode já.

P/1 – E como é que o senhor tira isso daí? O senhor usa a tesoura para tirar?

R – Não, se quebra. Tudo isso tem um jeito. Até para gente debulhar aqui depende de saber. Porque se for debulhar assim ele rasga e daqui quebra de acordo. Tudo isso tem o trabalho, a técnica da antiguidade ainda. Isso aqui é tudo perfeito, não tem chucho. É por isso que os homens se admiram do nosso guaraná.

P/1 – Não tem o quê?

R – Chucho.

P/1 – O quê que é chucho?

R – Chucho é um que não presta.

P/1 – E essa parte pretinha aí do olho.

R – São os olhos dele. São os olhos da índia.

P/1 – Todos são pretos?

R – Tudo.

P/1 – E quando o senhor vai fazer a secagem, o senhor joga tudo isso aí no forno ou como é que é?

R – Isso aqui a gente, depois de massear, a gente pisa, aí lava bem e só fica a sementinha.

P/1 – Qual que é a sementinha?

R – É essa aqui que é a semente?

P/1 – E vai essa parte branca e essa parte preta?

R – Essa sai toda, a gente lava na água.

P/1 – Quando você coloca na água isso sai?

R – Sai tudo. Isso também se joga. Casca grossa joga tudo.

P/1 – E não aproveita para mais nada essas partes?

R – Tem muito valor. Isso é tinta. É uma tinta para tingir qualquer roupa, qualquer coisa pode meter. É o mesmo que tinta em pó.

P/1 – O senhor vende isso também?

R – A casca do guaraná?

P/1 – O senhor vende essa casca também?

R – Não, só o casquilho. Depois de torrado a gente bate na saca, espana e sai o casquilho. Aí que os clientes vem aqui atrás do casquilho para fazer o suco.

P/1 – Como é o processo de secagem disso, de torrar o guaraná?

R – É no forno. Depois de lavar na água, a gente põe uma lata, duas latas, três latas, aí vai graduando no forno. Faz o fogo, não deixa esquentar muito, até torrar.

P/1 – Mas o senhor tem que ficar mexendo, é isso?

R – É, tem que mexer mesmo porque se ficar só de um lado queima. Então tem que rolar os carocinhos.

P/1 – E quanto tempo o senhor fica lá naquela coisa de ficar mexendo de um lado pra outro?

R – Eu passo o dia inteiro. A velha leva merenda, a velha vai mexer e depois eu vou comer.

P/1 – O dia inteiro só numa fornada?

R – É.

P/1 – Disseram que tem uma temperatura certa para isso. Como é que o senhor sabe que está na temperatura certa?

R – A quentura do forno é que regula.

P/1 – Mas como o senhor sabe que está na temperatura?

R – Na mão mesmo. Pega o carocinho, quando o bicho está quente. Está sabendo que ele está demasiado, está com pouco fogo. Tudo isso você tem com a técnica da antiguidade. Hoje não, hoje os homens são todos pela pena de papel, de escrita, aquilo outro. Por isso que os homens não gostam. Até aqui os homens vem oferecer galinha para criar. Não, vamos criar do nosso terreiro mesmo.

P/1 – E o forno do senhor é de barro ou é de ferro?

R – Ah, de torrar é barro.

P/1 – Tem muita gente que usa de ferro, não é?

R – A maioria. Isso é que derrota o guaraná. Tem vindo gente de Boa Vista, de Roraima, já buscar, comprar aqui para levar para lá. Paneiro! Até paneiros. Os homens se admiram dos meus paneiros aqui para lavar o guaraná, para cuidar. Olhe, veio esse senhor de São Paulo, que é o Augusto, e ele disse: “Senhor Neves, o melhor moinho para moer o guaraná, para pilar, é o aço porque o aço não gasta. O ferro não, o ferro gasta normal. Mas o aço não, pode usar que não vai”. Tudo isso o aparelho pega, tudo faz. É por isso que nós ficamos sem borracha, ficamos sem a juta, ficamos sem a sorva porque os produtores fazem safadeza no trabalho. Já aqui não - está aí a mulher - eu plantava juta, tirava a sorva. Os comerciantes vinham aqui buscar a minha juta porque era uma juta tão branquinha, macia, de brilhar mesmo para fazer o brim, o linho. Assim que beneficia o trabalho. Tem que pegar com Deus e aperfeiçoar o seu trabalho. Olha esse trambolho aí. É o mesmo que aquela máquina que tira retrato na hora. Aqui os homens têm... No que ele tirou: “Senhor Neves, olha aqui”. Tudo isso está muito beleza. Não vê o celular? Antes quanto tinha dessas coisas? Daqui se comunica lá muito dentro. Nós conversamos com os nossos filhos em Rondônia daqui. Só falta você enxergar.

P/1 – Depois que o senhor torrou o guaraná quais são os passos seguintes até o senhor ter o bastão? O que precisa fazer?

R – Depois dele torrar, ele esfria. Aí põe num saco e bate. Põe na bacia, de lá vai na peneira, sai aquela casquinha. Depois da casquinha...

P/1 – Qual que é a casquinha?

R – A casquinha é essa pretinha aqui que seca.

P/1 – Esse é o casquilho?

R – É. Aí a gente vai escolher, tirar aquele mais moreninho e ficar só o branquinho. Separa um do outro. Depois separado você botar no moinho para moer e pilar. Tudo isso. Muitos já não fazem isso não.

P/1 – Como é que o senhor pila? Quanto que você pega de grão e coloca?

R – A gente pesa um quilo e depois divide, meio quilo pra cada virada. Porque quanto mais fica meio ruim. E com meio quilo liga bem, pode apurar bem.

P/1 – Aí o senhor bate lá com o pilão.

R – É.

P/1 – E durante quanto tempo cada vez?

R – E vários minutos. E depois tira a massa e amassa aqui, aquele bastão. E depois ainda vai em cima da mesa. Uma senhoras que vieram de lá, nem sei de que cidade disseram: “Mas, senhor Neves, como é que o senhor faz esse bastãozinho tão roliço, tão bonitinho?” A gente esfrega com uma tábua em cima. Fica direitinho aquele bastão. Tudo isso, mas é verdade.

P/1 – Depois que o senhor tem o bastão já está pronto ou tem que fazer mais alguma coisa?

R – Não, de lá vai para o fumeiro.

P/1 – O que é o fumeiro?

R – Da onde eu vim agora. Lá eu faço o fogo e vou enrolando ele, enrolando, enrolando. Até ficar durinho no ponto de ralar.

P/1 – Quanto tempo ele fica lá?

R – Quinze está no ponto, não faltando fogo. Sempre o foguinho, estar mexendo porque... Tem que rolar ele para não pretejar só de um lado, não corar só de um lado. Os homens levam para São Paulo, para o Japão, levam guaraná. E os doutores dão mais preferência a esse nosso guaraná. Os homens que vão se curar lá para Manaus, lá para São Paulo vem comprar guaraná aqui pra levar para o doutor. Primeira coisa quando eu adoeci, que fui para lá, eu perguntei para o doutor, quando ele me deu alta: “Doutor, eu posso tomar o guaraná?” Disse: “Pode sim, ainda mais se for ralado na língua de pirarucu!” E você sabe que eu levei no retorno para ele e na mesma hora ele mandou a secretária ralar para ele beber o guaraná. Japonês, doutor Nakagima, em Manaus. E daqui para ali chega o telegrama dele para eu ir e levar o guaraná. Não carece coisa, ficha. Basta eu ir com a minha nora que a minha nora também é enfermeira do hospital. Mas Deus o livre! Ainda ontem a dona do barco me viu: “Senhor Neves, vamos logo conosco. Senhor Neves, o senhor vai logo conosco e volta conosco. O senhor vai lá comer uma churrascada com o seu filho e já está aqui. Eu não garanto não. Deus o livre!

P/1 – Como senhor toma o guaraná?

R – É ralado.

P/1 – Mas conta como se fosse uma receita: o senhor pega quanto de guaraná, quanto de água?

R – Eu ponho acima do meio do copo um pouquinho.

P/1 – De guaraná ou de água?

R – De água. Aí rala um pouquinho de guaraná e põe lá. Não muito grosso também. De primeiro eu tomava para mais de dez vezes guaraná aqui, mas também eu suava. Eu suo muito trabalhando. O que a gente come sai no suor, negócio de doçura, certas coisas que a gente come sai no suor. Hoje é bem difícil a pessoa suar. A gente sua mesmo. Aqui veio um senhor de Mato Grosso, que é genro de um senhor de Maués, casou com a filha dele. Por aqui vinha e chegou aí: “Senhor Neves, quantos anos o senhor tem?” Eu estava com 69. “Quantos filhos o senhor fez com a sua velha?” Perigoso ele. “Nós fizemos 11 com velha”. “Mas, senhor Neves, qual é seu remédio?” “Meu remédio é só Deus, Nossa Senhora e que eu tomo muito é bastão”. E a velha dele estava lá na rede se embalando, na moita. “Vamos ver, senhor Neves, se vai ter paciência comigo lá”, “Por que não?”. “Olha minha velha, senhor Neves está com 70, 60 anos, já fez 11 filhos com a velha dele e nós nenhum!” “Ah, sem vergonha”. Muita lenda aquele senhor. É verdade. Graças a Deus, o prazer que eu tenho é que meus filhos estão ajudando o país, o Brasil, o município. Isso é que é dever. Hoje, meu amigo, eu fico triste de ver certas ocasiões que se passam no nosso meio. A gente não pode mandar na vontade do outro, cada qual seja como quiser. Só Deus e Nossa Senhora. Que por falta de estudo e de sabedoria, não. Graças a Deus, todos têm o seu saber para se equilibrar. Hoje não, hoje o negócio é beleza mesmo.

P/1 – Tem gente que toma o guaraná como remédio?

R – Muito. Olha, o guaraná com o mirantã é muito bom para essas dores do corpo da gente, para negócio de reumatismo.

P/1 – Toma o guaraná?

R – Com mirantã.

P/1 – O que é mirantã?

R – Mirantã é um pau que tem na mata. A gente tira e eles tomam o negócio em pó mesmo. Eu fiz para um senhor, para o senhor Tomé lá de Santarém. Ele estava com o joelho inchado por causa do reumatismo: “Senhor Neves, olha o joelho dele como tá!” Eu disse: “Vamos fazer um guaraná com bem mirantã para fazer um remédio”. Aí fiz com o meu filho, fizemos três quilos. Eu compro mirantã, corto bem, ponho na panela e fervo. E opa, graças a Deus. Com mais duas semanas eu passei lá no barco, que ele tem motor de linha: “Seu Neves, olha como o joelho dele está perfeitinho!” E o povo se admira. E para outra coisa eu sei: para dar banho em criança verde como essa aqui, tirar um pouco daquele pau, botar na bacia, põe no sol das oito horas, nove horas. Para isso eu sei que é bom. Hoje, como eu brigo com os doutores: “Doutora, é tanta formalidade com as crianças”. O negócio de mamar! “Mamãe eu quero mamar!” Daí vem a mãe. Nossos filhos se criaram a pedra de mingau, negócio de banana, negócio de massa e todas essas coisas. Cada caboclão aí, graças a Deus!

P/1 – Tomar guaraná pode fazer mal?

R – Não. Quer dizer, para quem não tem bem costume pode porque ele é um pouco forte também.

P/1 – O senhor já viu alguém passar mal?

R – Não. Só aquele enfraquecido de Brasília. Mandou para ele daqui, mas ele foi tomar demasiado. Aí deu um negócio na cabeça dele. O parceiro disse: “Olha, tu não vai exagerar no guaraná. Vai começando de pouco a pouco até se acostumar. Depois que se acostumar pode tomar a vontade que não há perigo mais”. Que tudo que é demais também prejudica. Tem que ir graduando.

P/1 – Uma das coisas que a gente está fazendo também é perguntar para as pessoas se elas não conhecem casos da região, os causos, as histórias do lugar. Aquelas histórias que o pessoal fala: “Só em Maués tem essa história”.

R – No nosso tempo existiam muitas histórias. O pessoal aí três, quatro conversando, achando graça. Às vezes até tomava uma cerveja, uma cachacinha, contando histórias. História beleza. Hoje não, hoje é mais safadeza. O senhor vê: o fulano falou com o camarada e responde diferente, entendeu? Não, de antes era outra moral de vida. Hoje a coisa é pesada mesmo. Já vai ser criado naquela ignorância mesmo. Não, minha gente, nós precisamos saber acolher os nossos próximos desde novinho. Porque no nosso tempo era difícil falar em morte, ver um assalto, ver isso e aquilo outro. Não, tudo em paz. Hoje não deixe a sua casinha porque até no galinheiro eles de noite invadem. Aqui mesmo. Eu rezo e peço a Deus que os netos procurem ser gente porque hoje já vem da escola. Eu tenho duas netas no primeiro lá em Manaus, filha do meu filho. Já vem de lá mesma safadeza. Vai para o colégio chega lá, vai tomar banho, já deixa calcinha, já deixa chinelo, já deixa para lá. A mãe diz: “Olha, um dia tu ainda apanha no ônibus!” Muito perigosa. A colega fala com ela e já quer meter o braço logo. Não é assim minha filha, tem que aprender coisa que preste. Porque teu pai não era santo, mas era outra escola, outro modo de vivência, de princípio de vida. E tem muita gente que se admira: eu não sei nada, a velha também não sabe, mas os nossos filhos todos estão por aí e muitos os admiram. Já teve gente de me chamar: “Neves, parabéns!” “Quem tem a possibilidade de criar 11 machos?” “Graças a Deus, eu conheço todos os seus filhos e filhas e é tudo gente”. Eles andam por aí e perguntam: “Então, filha de quem tu é?” “Sou do Neves” “Ah bom, aquele era meu grande amigo na mocidade”. Por isso que é nosso dever. Hoje o senhor pode ver: é pai bebendo junto com filho e aquela maior bagunça. Não minha gente, tem que pegar com Deus e saber, nós mesmos nos organizar.

P/1 – Seu Neves, para terminar eu gostaria que o senhor dissesse para gente o que achou de contar um pouco da sua história de vida?

R – A presença de vocês para nós é muita coisa, Deus o livre. E você sabe que isso é uma coisa para nós, para mim para a família. Isso é uma saúde, meu amigo, nós conversarmos com gente de longe. Porque nossos conterrâneos, da própria vila, da própria cidade passam junto da gente e não dão ao menos um salva. Não minha gente, nosso dever é salvar nossos próximos, saber acolher nossos próximos. Graças a Deus, para mim é um prazer.