Museu da Pessoa

O forró nos trilhos

autoria: Museu da Pessoa personagem: Enock Ribeiro de Albuquerque

Projeto: Um Trem de Histórias
Registro e Disseminação dos Saberes e Ofícios da Rede Ferroviária do Nordeste - Módulo Pernambuco
Depoimento de Enock Ribeiro de Albuquerque
Entrevistado por Fernanda Prado e Márcia Ruiz
Recife, 07/04/2010
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista número: MRFP_HV004
Transcrito por Ana Carolina Ruiz
Revisado por Luiza Gallo Favareto


P/1 – Boa tarde, senhor Enock.

R – Boa tarde.

P/1 – A gente vai começar e eu queria que o senhor, por favor, dissesse o seu nome completo, o local e data de nascimento.

R – Meu nome é Enock Ribeiro de Albuquerque. O lugar que eu nasci foi Recife, no dia oito de junho de 1953.

P/1 – E o nome dos seus pais?

R – Abel de Lima Albuquerque e Severina Ribeiro de Albuquerque.

P/1 – O senhor sabe onde eles nasceram?

R – Meu pai eu não me recordo, mas a minha mãe nasceu em Caruaru, Pernambuco.

P/1 – E qual era a atividade deles?

R – Meu pai também trabalhou na Rede Ferroviária como escriturário e minha mãe sempre foi doméstica, trabalhou sempre em casa, nunca trabalhou fora, não.

P/1 – O senhor tem irmãos?

R – Tenho, atualmente tenho um irmão só. Tinha mais dois, tinha uma irmã que morava em São Paulo e faleceu em 1983 e outro que morreu o ano passado.

P/2 – E o senhor na escala era o mais velho ou era o mais novo?

R – Eu era o do meio. Tinha ainda o caçula e antes dele sou eu. E o que morreu recentemente foi o mais velho, Elias.

P/1 – E o senhor passou a sua infância morando aqui em Recife? Como é que foi?

R – Foi. Eu nasci em Afogados e me criei naquela redondeza ali, Mangueira, Mustardinha, aquela parte ali todinha.

P/1 – E como é que era a sua casa na infância?

R – Na Mangueira, era uma casa comum, casa simples. Meus pais não tinham condição financeira muito boa, só quando meu pai começou a trabalhar na Rede Ferroviária foi que ele melhorou um pouquinho. Então, a gente vendeu a casa e compramos outra lá em Cavaleiro, aí a gente melhorou um pouco de vida. Foi o tempo também que eu fui me alistar num quartel, passei um tempo na Marinha. E quando voltei, entrei na Rede Ferroviária.

P/1 – Mas vamos voltar um pouquinho. Como é que era a infância na sua casa?

R – A infância muito boa. Eu tive uma infância normal. Eu gostava muito de jogar bola, ia muito para Campina jogar bola, bater pelada, brincar na rua com o pessoal. Minha infância foi normal, nunca tive problema de família na infância, não.

P/2 – Deixa-me perguntar uma coisa, o senhor falou que nasceu na região de Afogados e viveu muito por aquela região.

R – Foi.

P/2 – Como é que era o bairro nessa época quando o senhor...

R – O bairro, Afogados, é um bairro pobre. Afogados ali, principalmente na Mustardinha que eu morei muitos anos, Mangueira também. Sempre foi um bairro pobre.

P/2 – As ruas eram asfaltadas, senhor Enock? Como é que era?

R – Na época, não tinha asfalto nas ruas, não. Agora, de um tempo para cá, na Mustardinha, a maioria das ruas foram todas asfaltadas.

P/2 – As casas eram de alvenaria, de madeira? Como é que elas eram?

R – Tinha casa de alvenaria e de madeira também na época. Casa de taipa, barro, tudinho. A nossa sempre foi uma casa de alvenaria.

P/2 – O senhor morou quanto tempo nesse bairro, Afogados?

R – Eu morei de... Nasci em 1953, saí de lá em 1970. Foram o quê? Uns dezessete anos, de 1953 para 1970, dezessete anos, não é isso? De lá, eu fui morar em Cavaleiro.

P/2 – Vamos falar um pouquinho dessa sua infância. Como é que eram as brincadeiras? O senhor falou que era um bairro muito pobre, os seus amigos eram de lá? O que vocês brincavam?

R – Eram todos de lá. A gente brincava de jogar bola, jogar aquela bolinha de gude, pião, jogo de menino mesmo. Empinava pipa, era papagaio na época, né? A gente ficava brincando na rua, de correr, de tudo. Eram brincadeiras mais de menino mesmo.

P/1 – Que tipo de comida que a sua mãe fazia na sua casa? O que vocês costumavam...

R – Ela fazia... A gente comia e gostava muito, cuscuz, o feijão normal, o pão, sopa, essas coisas. Agora, depois de... Eu não me recordo bem quanto tempo, meu pai se separou da minha mãe. Então a gente teve dificuldade. Ela inclusive trabalhou de lavadeira, trabalhou de doméstica em casa de família, tudo para sustentar a gente, porque a gente não trabalhava. Daí, então, a gente começou a estudar para mesmo a gente seguir o nosso...

P/2 – Deixa-me entender um pouquinho esse pedaço que o senhor está contando para a gente, enquanto vocês moravam em Afogados que vocês eram crianças... O seu pai se separou da sua mãe, o senhor tinha quantos anos? O senhor lembra?

R – Tinha aproximadamente dez anos.

P/2 – Nessa época, até os dez anos, o senhor chegou a ir ao trabalho do seu pai? O senhor falou que ele trabalhava na Rede...

R – Trabalhei na Rede. Eu ia muito no final de semana. Ele trabalhava na Rede, na época, não trabalhava, era menor de idade ainda. Eu ia muito para o escritório, inclusive para aprender com ele datilografia. A gente conversava muito e foi uma separação que até a morte dele nunca houve volta, não. Depois ele teve outra mulher.

P/2 – O senhor foi para escola quando era pequeno?

R – Fui à escola. Eu sempre gostei de estudar, desde pequeno. Estudava na Mustardinha mesmo, na Escola Padre José de Anchieta. O Centro Educativo da Mustardinha.

P/1 – E como é que era essa escola?

R – Era uma escola pública.

P/1 – O senhor ia para lá de manhã?

R – Eu estudava à tarde e teve um período que eu passei a estudar à noite também. Estudei uma época no Colégio Ferroviário também, já quando estava trabalhando na Rede Ferroviária.

P/2 – Como é que era essa primeira escola? Conta um pouquinho. Era uma escola pública, mas o senhor tinha uma professora só? Como é que era o nome dela? Conta um pouquinho dela.

R – Tinha uma professora só, só que não me recordo qual é o nome dela. Faz muito tempo. Mas era só uma professora para ensinar, era o primário. Aí eu fiz até a quinta série nesse colégio. Depois eu fui lá para o Centro Educativo da Mustardinha e fiz o primeiro ano, depois fui para o Colégio Ferroviário e terminei o ginásio lá. Depois eu fiz o científico lá em Cavaleiro.

P/2 – Nessa época que o senhor estudava, o senhor fez muitos amigos ou não?

R – Fiz. Eu sempre gostei de construir amizades, fazer amigos. Eu gostava muito de bater bola. Uma pessoa que bate bola sempre conhece muitas pessoas. A gente batia bola, brincava. Eu era sempre, apesar da separação dos meus pais, uma pessoa animada, contente.

P/2 – Tinha algum costume que os seus pais faziam questão de preservar? Alguma coisa que eles davam muito valor e que os filhos tinham que seguir?

R – Não. Meu pai, apesar de que eu gostava muito dele, nunca se preocupou muito com a gente. Já minha mãe era mais rigorosa. Ela gostava que a gente sempre ficasse em casa, quando ela saía para trabalhar, a gente fugia para ir para Campina do Barreto jogar bola. Minha mãe batia muito na gente também, porque a gente dava muito trabalho. Meu pai não. Meu pai nunca ligou tanto. Apesar de que a gente gostava muito dele também, mas a educação foi mais por parte de minha mãe.

P/1 – E a família dela é de Caruaru? Vocês iam visitar? Como que era?

R – A família dela, por sinal, ela nem conheceu direito porque ela é descendente de índios lá de Caruaru. Inclusive ela é até viva, está com 91 anos hoje. Mas ela nunca conheceu a família, não se lembra. Ela passou um tempo morando lá em Mercedes, ali depois do Cabo, ela veio para cá. E tinha um parente dela, um tio dela que morava lá perto da gente na Mangueira, lá pertinho, mas faz muito tempo, depois ele faleceu. Ela não tinha muita amizade. Ela era evangélica, às vezes, forçava a gente a ir para igreja quando a gente era menor. A gente sempre ia para a igreja com ela. Meu pai mesmo separado chegou a ser pastor, mesmo contra a mulher, ele foi ser pastor, depois ele morreu.

P/2 – Fala-me uma coisa senhor Enock, vocês saem da região lá de Afogados para ir para...

R – Cavaleiro.

P/2 – Cavaleiro. E o senhor vai para lá porque vocês compram uma casa própria, é isso?

R – É. Vendemos a casa de Mustardinha e a gente comprou uma casinha lá em Cavaleiro.

P/2 – Nessa época, o seu pai ainda continuava trabalhando na Rede Ferroviária e sua mãe continuava trabalhando como doméstica?

R – Trabalhava como doméstica ainda. A gente foi para Cavaleiro, depois de um tempo, aproximadamente um ano, foi que ela deixou de trabalhar. Aí a gente já estava trabalhando também. Meu irmão trabalhava, eu também fui para o quartel, ajudava em casa e tal. A gente não deixou mais ela trabalhar.

P/2 – O senhor vai para Cavaleiro e, nessa época, o senhor já estava fazendo o ginásio, né?

R – É, exatamente.

P/2 – Aí, o senhor começou então a fazer o científico...

R – É, lá em Cavaleiro.

P/2 – Quando o senhor estava no científico, o senhor começou a trabalhar em quê?

R – Eu comecei a trabalhar antes de ir para Cavaleiro. Eu comecei a trabalhar na Mustardinha, menor de idade, com treze para quatorze anos. Eu trabalhei em serralheria. Estudei ali no Colégio Dom Bosco, comecei a aprender também, fiz um curso de encadernador, tipógrafo. Eu sempre fui esforçado. Depois eu trabalhei numa serralheria e fui para Cavaleiro. Quando eu cheguei lá, foi o tempo do alistamento e fiz um curso da Marinha, passei e servi lá em Natal. Passei uns seis meses lá na Marinha. Quando eu voltei de Natal foi que eu entrei na Rede.

P/1 – O senhor falou que estudou na escola dos ferroviários?

R – No Colégio Ferroviário do Recife.

P/1 – Era porque seu pai era da Rede?

R – Era, porque, na época, eu acho que ferroviário tinha direito. O colégio era mantido pelo Sindicato dos Trabalhadores em Empresas Ferroviárias do Nordeste (SINDFER-NE) aí, ele colocou a gente lá.

P/1 – Como é que era esse colégio?

R – O colégio foi bom, ensinava muito bem, por sinal. Agora eu não sei porque o colégio, praticamente, não é mais da Rede. Mas o colégio ensinava muito bem.

P/1 – O senhor fez amizade com filhos de ferroviários?

R – Foi. Os professores de lá eu conhecia tudinho. Eu terminei o ginásio lá e o científico eu fiz lá em Cavaleiro, na Escola Estadual Moacyr de Albuquerque, um colégio estadual também, colégio do governo.

P/2 – No período que o senhor tava no Colégio Ferroviário, o senhor estudava que horário? Era de manhã?

R – À noite.

P/2 – À noite?

R – Á noite.

P/2 – E aí durante o dia...

R - Eu comecei pela manhã. Aí depois eu passei pra noite.

P/2 – E é nesse período que o senhor começa a trabalhar?

R – É, exatamente.

P/2 – E o senhor foi trabalhar em serralheria por quê?

R – Porque, na época, eu estava desempregado. Aí quando minha mãe trabalhava ganhava muito pouco. Daí era para eu ajudar em casa, sempre gostei de ajudar em casa... Meu irmão, Eliel, que é o mais novo e que agora, por sinal, ele até foi reformado como major do exército, ele sempre gostou de estudar. E tinha o outro, o que morreu que era o mais velho, nunca se preocupou muito em estudar não, mas chegou também a trabalhar na Rede, como motorista. Mas eu fui trabalhar por causa disso, porque eu estava desempregado, eu queria sair, dar um passeio, comprar uma roupa e tal. Aí eu comecei a trabalhar como ajudante de serralheiro.

P/2 – O senhor se alistou no exército e por que o senhor se alistou na Marinha?

R – Foi questão de opção, porque tinha Exército, Marinha e Aeronáutica. Eu achava a Marinha, na época, mais fascinante. Eu achava mais bonito. Eu também tinha o propósito de viajar para outro local. Aí eu fiz um curso aqui na Escola de Aprendizes-Marinheiros de Pernambuco, passei e fui lá para Natal, para a Base Naval de Natal. Aí passei uns seis meses lá, voltei, fiquei servindo aqui no Jequiá, num campo de munição do Nordeste. Depois abriu um concurso na Rede Ferroviária como auxiliar de maquinista, eu fiz, passei aí fiz o curso e foi seguindo a carreira.

P/2 – Eu vou voltar um pouquinho. Essa coisa do curso de Aprendiz que o senhor fez na Marinha, o que era esse curso?

R – Era um curso de formação de reservistas navais. É como curso de conscrito, é como o Exército tem o recruta, na Aeronáutica também, eu não sei como é o nome da aeronáutica, e na Marinha entrava como conscrito e, depois quem quisesse fazer carreira fazia o curso e...

P/2 – Eles ensinavam o que nesse curso?

R – Ensinavam parte de artilharia, treinamento de guerra, manejava arma, entendeu? Para depois passar a prova. Passava três meses na escola lá, aí depois eu passei, pronto, como soldado.

P/2 – E o senhor foi para a base naval em Natal. Como era o seu cotidiano lá?

R – Ah, na base naval, davam serviço um dia sim outro não. Ficava quase como um regime interno na Base Naval. O principal, passava o maior tempo estudando lá. Depois que a gente passou e pronto, foi que eu vim para cá. Aí eu fiquei mais à vontade. A gente passava mais dias em casa e tal. Lá não, lá a gente passava o dia no quartel, no outro dia também e só ia ter uma folgazinha à noite para sair. Era somente estudando lá, fazendo o curso, o treinamento.

P/2 – Qual foi a impressão que o senhor teve quando chegou em Natal?

R – Natal era um local que eu não conhecia. Eu acostumado lá em casa, mas eu saí daqui aí fiz amizade lá. Muita gente daqui foi para Natal. Então, aqui quando nós fomos para lá, eu tinha boa amizade aqui já. Teve colega meu também que viajou comigo. E lá eu ficava no quartel, alugamos lá no bairro do Alecrim, uma kitchenettezinha para quando nós folgássemos ir para lá.

P/2 – Como é que o senhor foi para Natal?

R – Fui de ônibus. A Marinha mandou a gente de ônibus para lá. E lá em Natal eu saía muito também. Eu sempre gostei de me divertir. Eu era mais jovem, eu gostava sempre a ir para festas, ir para clubes. Lá eu fazia muito isso.

P/2 – Nessas festas, o senhor ia com quem?

R – Amigos, né?

P/2 – E que amigos?

R – Amigos, a Regina morava lá também. Nós saíamos, íamos para o Clube Camana da Marinha. Sempre, no final de semana, tinha festa. Eu sempre frequentava o clube lá.

P/2 – E que tipo de festas o senhor frequentava? Tinha algum tipo de festa típica da região que o senhor frequentava ou não?

R – Não. Tinha show, cantores de fora. No final de semana, a gente reunia o grupo por ali, andava muito pelo bairro do Alecrim e, por ali, a gente até fazia umas festas lá mesmo onde a gente morava. Fazia uma festa, às vezes, tomava uma cerveja, entendeu, um uísque. Eu só nunca fui de beber muito, bebia assim, socialmente. A época que nós passamos lá foi assim mesmo, só brincando e quando estava no quartel era aquele regime militar, regime rigoroso.

P/2 – Era normal a Marinha mandar alguém para Natal e depois voltar pra Recife?

R – Na época, quando eu me alistei aqui, normal era eu fazer o curso em Natal, todo mundo ia para Natal. Lá você encontrava o pessoal do Maranhão, do Piauí, de Alagoas, de outros Estados. De lá, quando terminava o curso, eles sempre mandavam, por exemplo, eu era de Recife, a preferência era voltar para Recife, mas tiveram pessoas que mesmo sendo de Recife foram para outro Estado, entendeu? Opção né? Eles perguntavam, davam preferência. Eu, como minha família era toda de Recife, eu voltei para cá, para Recife.

P/1 – Como foi para o senhor voltar para Recife, depois de ter ficado um tempo em Natal?

R – Quando eu voltei para Recife foi bom porque com pouco tempo abriu o concurso na Rede. Eu passei um tempo ainda no quartel aqui servindo. Quando abriu esse concurso da Rede, meu pai também me incentivou, falou comigo. Eu fiz o concurso, passei e ingressei na Rede.

P/2 – O concurso era para maquinista? Para que era? Era para qualquer cargo?

R – Era um concurso para auxiliar de maquinista e agente de estação. Inclusive meu irmão que agora está na reserva do Exército, fez para estação e eu fiz para maquinista. Ele também passou, só que ele também fez o curso do exército Curso de Formação de Sargento (CFS). Aí ele preferiu ir para lá, fazer o curso no Rio de Janeiro, ele fez carreira e, hoje ele saiu como major do exército.

P/1 – Como é que foi para o senhor entrar na Rede? Seu pai te incentivava?

R – Ele me incentivou. Na época que eu saí da Marinha, que eu recebi baixa, ele me incentivou. Inclusive, ele falou lá. Ele tinha amigos dele lá na Rede. Na época, tinha quarenta vagas para auxiliar de maquinista e muita gente se inscreveu, tinha muita gente desempregada. Aí eu fiz a prova... O filho do ferroviário tinha uma preferenciazinha, sabe? No caso, se passassem dez pessoas, cinco se fossem de filho de ferroviário tinham preferência e os outros cinco eram todos de fora. Mesmo assim, eu fiz uma boa prova, eu sempre gostei de estudar, e passei. Aí ingressei na Rede e fiquei até me aposentar. Aposentei-me como supervisor de maquinista da Rede Ferroviária.

P/1 – Quais foram as suas primeiras atividades na Rede? Como foi o seu primeiro dia de trabalho?

R – Na Rede? Eu me apresentei em Cinco Pontas, depois a gente foi para a oficina, porque antes de exercer a função de auxiliar de maquinista, a gente tinha que fazer um curso pela Rede. A gente fazia um curso de mecânica, eletricidade, sistema de freio, regulamento e parte de movimento de trem. Eu fazia a linha Edgard Werneck, a linha de Areias e, à noite, eu fazia em Jaboatão, no Centro de Formação Profissional. Depois, quando a gente terminava o curso, a gente vai para função de terceiro homem. Tinha o maquinista, o auxiliar do maquinista e a gente era o terceiro homem porque a gente estava saindo do curso, bem recente. A gente acompanhava o trem na locomotiva, acompanhado o maquinista e um auxiliar.

P/2 – Deixa-me voltar um pouquinho pra essa coisa do curso. Todos os auxiliares de maquinista que entravam na Rede eram obrigados a fazer esse curso?

R – A fazer esse curso.

P/2 – E era feito em Werneck e Jaboatão como o senhor nos falou?

R – Werneck e Jaboatão.

P/2 – Em Werneck, o senhor fazia curso do quê?

R – Lá em Werneck eu fazia sistema de freio, fazia a parte mecânica, elétrica e via permanente. Em Jaboatão, era a parte mecânica com o engenheiro doutor Mário Burle, sabe?

P/2 – Quem dava o curso para vocês?

R – Era ministrado por engenheiros da Rede e professores também. Por exemplo, o curso de eletricidade quem dava à gente era um eletricista, o supervisor da parte elétrica da oficina de Werneck. Tinha o supervisor de freios que era quem dava o curso para a gente da parte de freio. O curso de mecânica era o engenheiro da Rede, doutor Mário Burle, por sinal muito conhecido, até faleceu, muito bom em mecânica. E a parte de via permanente era o pessoal da via permanente. Tinha movimento de trens também.

P/2 – E o que o senhor aprendia na via permanente?

R – A via permanente é a linha do trem. Então a gente aprendia o aterro sob o trilho, dormente, empedramento, tudinho. Onde tinha o declive, aclive, porque era muito importante como auxiliar de maquinista, conhecer bem o trecho, saber o local onde tem uma curva perigosa, onde tem um desnível, um balanço, um empuxo na linha. Tudo isso, a gente aprendia.

P/1 – Vocês tinham algum tipo de uniforme nesses cursos?

R – No curso, não. Quando a gente terminou o curso, voltamos para exercer a função de auxiliar de maquinista, aí tinha uniforme azul com quepe, um chapéu daqueles, azul também.

P/1 – Era o mesmo uniforme do maquinista e o do auxiliar?

R – Era, mas só que o uniforme do auxiliar do maquinista era um azul claro e do maquinista mesmo era azul escuro. Diferenciava só essa parte.

P/2 – Por que era necessário ter três pessoas na locomotiva? Porque que era o maquinista...

R – Era porque a gente não tinha experiência ao longo da linha, né? Então, a gente começou a viajar como terceiro homem para gente aprender a pegar a licença que, na passagem, sempre pegava uma licença, aprender a olhar o trecho da via e, depois para passar pronto para auxiliar de maquinista. A gente tinha que primeiro aprender, entrar como terceiro homem para se acostumar, pegar o sistema de trabalho todinho, entendeu? Para então passar a auxiliar.

P/2 – Quanto tempo o senhor ficou como terceiro homem?

R – Terceiro homem? Olha, eu fui até privilegiado, porque eu passei pouco tempo. Eu passei como terceiro homem, mais ou menos, dois meses só. E até como maquinista da Rede, na minha época, todos eram maquinistas antigos, mais velhos. E dos quarenta que entraram, eu fui o primeiro a passar para maquinista, dos mais novos. Eu passei somente um ano e dois meses como auxiliar de maquinista, depois eu passei a maquinista.

P/1 – Em que linha que o senhor começou?

R – A gente começava na Linha Tronco Norte, na Linha Tronco Sul e na Linha Tronco Centro.

P/2 – O senhor fazia os três percursos como auxiliar de maquinista?

R – É, os três percursos. A gente trabalhava em trem de carga e trem de passageiro. O subúrbio também, está tudo desativado agora. A gente trabalhava em trem de carga, trem de serviço...

P/2 – E qual que era a função do auxiliar de maquinista? O que ele fazia?

R – O auxiliar de maquinista era só para olhar o trecho do lado dele, por exemplo, numa curva, porque da locomotiva não se tem muito a visão do outro lado. Quando o trem passava numa curva, o auxiliar olhava para ver se ia vir um vagão descarrilado, se tinha alguma irregularidade na via permanente. Se a estação fosse do lado do auxiliar ele pegava a licença, pegava a informação do agente de estação e o maquinista só pilotando, fazia a parte dele e a gente ia no auxiliar, o auxiliava.

P/2 – O senhor estava nos contando, senhor Enock, qual que era a função do auxiliar de maquinista. Se tivesse algum problema na via o que ele tinha que fazer?

R – O maquinista ou o auxiliar?

P/2 – O auxiliar.

R – O auxiliar informava o maquinista, entendeu? Alguma irregularidadezinha na linha, numa curva do lado que o maquinista não observasse, ele mandava o maquinista parar o trem, fazia sinal. Se houvesse também um descarrilamento ele avisava.

P/2 – Como é que era esse sinal? Ele falava ou ele fazia...

R – Ele falava porque andava junto, dentro da locomotiva, o maquinista do lado direito e o auxiliar do lado esquerdo. Aí eles trocavam ideia. O maquinista perguntava: “Olha a ré do trem para ver se vem tudo normal”. Então a gente olhava. Se a gente visse qualquer irregularidade a gente passava para ele. Por exemplo, na hora que ele fosse fazer a manobra, acontecia muito de na estação ter manobra para pegar vagões, deixar vagões. Então mandava recuar o trem, quando estava bem perto para fazer o engate a gente avisava: “Ó, o trem está próximo”. Para ele diminuir a velocidade para não haver um choque forte. A gente passava isso tudo para ele.

P/2 – Se tivesse algum problema na via, o auxiliar de maquinista pedia para o maquinista parar?

R – É, avisava para ele parar.

P/2 – Era muito difícil parar a locomotiva, o trem, quando vinha? Como é que era isso?

R – Olha, depende muito do local. Existe trem pesado e o trem é um transporte que não para assim, feito um veículo. Quando, por exemplo, tinha um cruzamento de trem em tal estação, a gente recebia uma licença e vinha dizendo assim: “Parar tantos metros antes da agulha da MV”. MV era Mudança de Via. Quando era do lado: “Tem um trem manobrando na frente”. Aí a gente avisava muito antes que era para ele chegar e parar a tempo, antes das agulhas. Não podia avisar de vez, porque não dava para parar a tempo.

P/2 – E por exemplo, quando o senhor precisava parar na via permanente, como é que o senhor avisava as estações que teve um problema na via e que o senhor teve que parar? Como é que vocês faziam essa comunicação?

R – Quando parava antes da estação?

P/2 – É.

R – Quando, por exemplo, dá um defeito ao longo da linha, a gente tinha, a locomotiva passou um tempo, era equipada com telefone, um telefone que tinha uma vara para a gente subir na locomotiva e ligava o fio na parte do telégrafo e falava com a estação. Mas quando não tinha, normalmente um ficava no trecho, o auxiliar ou o maquinista, e o outro tinha que se deslocar a pé para a estação avisar que houve um acidente, atropelou uma pessoa, houve um descarrilamento. Isso era muito comum, por exemplo, de a gente caminhar à noite, no escuro, pela linha para avisar a estação mais próxima para, daí então, providenciar o socorro.

P/1 – O senhor se lembra de como foi, depois desse um ano e dois meses de auxiliar, o seu primeiro dia de maquinista, de tomar o controle do trem? O que o senhor sentiu?

R – A gente, como auxiliar de maquinista, de acordo com o desempenho, o maquinista já passava a ter confiança na gente, aí se tinha algum serviço de manobra, um trecho curto, ele até ajudava, dava o trem para a gente puxar. Ensinava a gente, entendeu? Como eu também fiz muito disso quando estava como maquinista, ensinei muito auxiliar de maquinista. Depois, para passar a maquinista, tinha que fazer um treinamento. A gente tinha que andar acompanhado de um supervisor de tração na época, a gente mesmo ia pilotando o trem. Ele ia só ensinando como é que um trecho onde tinha um declive, tinha um aclive, uma curva perigosa. Muita gente tinha experiência já, sabia muito. A gente fazia esse treinamento para depois passar pronto a maquinista.

P/1 – Esse treinamento só fazia com a locomotiva ou fazia com o trem...

R – Eu fazia ao longo da linha.

P/1 – Com o trem completo?

R – Com o trem. Já partia com o trem. Ia com o supervisor, orientando. Quando ele achava que a gente estava pronto mesmo, ele fazia um comunicado, uma espécie de uma carta, comunicando que Fulano de tal está apto a exercer a função de maquinista. Então ele liberava a gente que já passava a exercer a função de maquinista.

P/1 – E o senhor auxiliava um só maquinista ou variava de maquinista?

R – Variava. Normalmente, o maquinista não trabalhava só com um auxiliar. A gente passava uma semana com um, às vezes, quinze dias, um mês. Depois mudava, tinha um revezamento, aí a gente trabalhava com outro maquinista de modo que a gente sempre pegava o sistema de trabalho de um, o sistema de outro.

P/1 – Teve algum que o senhor se lembra que foi marcante ou que o ajudou mais?

R – Teve um maquinista que mora aí na Avenida Engenheiro Abdias de Carvalho, com quem eu trabalhei muito... Porque é o seguinte, quando a gente se dava bem com um maquinista e ele se entrosava com a gente, a gente chegava lá na chefia da Rede e pedia: “Olha, eu me dou bem com aquele maquinista, ele está me orientando bem. Deixa-me passar um bom tempo com ele?” Aí ele até aceitava. Então, eu trabalhei com um maquinista, não mudava muito não porque eu gostava dele. Passava um tempo com um, depois de certo tempo trabalhava com outro.

P/2 – O senhor se lembra da primeira viagem que o senhor fez como auxiliar de maquinista? Para onde foi?

R – Como auxiliar de maquinista foi para Itabaiana na Paraíba.

P/2 – A linha...

R – Linha Tronco Norte. Aí, eu já fui já como auxiliar de maquinista. Quando eu passei a maquinista, meu primeiro treinamento foi também para Itabaiana, na Linha Tronco Norte.

P/2 – O senhor se lembra dessa paisagem como é que era? O que chamou a atenção do senhor no caminho da via?

R – Ah, eu achava muito bonita as paisagens, a chegada à estação, o pessoal todo... Via acenar, ficavam acenando com as mãos, dando tchau para a gente. Foi um trabalho muito divertido. Apesar de ser um trabalho até em certo ponto perigoso, arriscado, porque, às vezes, acontecia um problema no sistema de freio, já houve muito acidente de trem. Graças a Deus, comigo nunca houve muito, não. Mas a gente gostava, eu acho bonito o trem... Quando tinha aquele trem longo, a gente passava na curva a gente via a ré do trem lá embaixo... Na estação, chegava a um alojamento na Paraíba e encontrava o pessoal da Paraíba, o pessoal da Natal, a gente se reunia e saía, dando aquele passeio pela cidade. Era muito bom, muito animado mesmo.

P/2 – O senhor falou um pouquinho de como chegava à estação. Quais eram os sinais que anunciavam a chegada do trem? Como é que anunciava para a estação que o trem estava chegando ou saindo?

R – A gente apitava. Tanto na chegada... Quando uma estação licencia um trem, a gente tinha o horário do percurso de trem. Então, mais ou menos, a estação sabia o tempo que a gente ia passar de uma estação para outra. Quando a gente se aproximava, mais ou menos, uns quinhentos metros, trezentos metros, a gente já começava a chamar a atenção com a buzina. Porque existia o guarda-freio que ficava na agulha, ele ia para fazer a agulha, para observar quando a gente entrava com o trem. Quando a estação observava, parando antes das agulhas tantos metros, porque tinha outro trem manobrando ou algum problema qualquer, a gente avisava através da buzina mesmo. Quando partia também, da estação, aí soava o apito da locomotiva.

P/1 – O senhor trabalhou só com as máquinas a diesel? Ou chegou a pegar óleo?

R – Na época que eu entrei na Rede, a gente tinha uma máquina Diesel, English Electric, que era a máquina inglesa. Quando eu entrei, em pouco tempo, ela foi desativada, ela fazia muito o subúrbio de Jaboatão, São Lourenço. Mas eu trabalhei mais com essa locomotiva americana, a RS8 (Road Switcher) e a RSD8. A RS8 era a locomotiva mais usada para trem de passageiro, tanto subúrbio como trem de longo percurso. A RSD8 era a locomotiva que tinha mais força, era utilizada mais para trem de carga. Eu não cheguei a trabalhar com locomotiva a vapor, não existia mais na época, ela tinha sido desativada já.

P/2 – O senhor falou que trabalhou com as duas locomotivas e que elas trabalhavam com vagões e com carros, né? E que tipo de mercadoria o senhor transportava mais?

R – Olha, a gente transportava o cimento, transportava o milho, o ferro gusa, o gesso, o açúcar. O transporte que tinha mais era o transporte de açúcar, tinha várias usinas que trabalhavam com a Rede Ferroviária, então a gente transportava açúcar. O álcool também da usina.

P/2 – Mas essas mercadorias eram de todas as linhas ou o senhor tinha uma mercadoria, por exemplo, que era na Linha Norte, era mais esse tipo de mercadoria?

R – Ela tinha assim, mercadorias específicas, por exemplo, o transporte de açúcar tinha nas duas linhas, na Linha Tronco Norte e também na Linha Tronco Sul. Na Linha Tronco Centro, só tinha de Jaboatão que é da usina Bulhões até aqui o Terminal Açucareiro de Recife. O transporte de milho chegava no navio, no porto, embarcava no trem e o transporte de milho ia para Vitória de Santo Antão, Caruaru e Belo Jardim. O cimento ia para João Pessoa, Caruaru, Serra Talhada, Cabedelo.

P/2 – Que era a Linha Tronco Norte e Centro?

R – É. A Linha Tronco Norte era a linha que sempre teve mais trem de carga. A Linha Tronco Norte e a Linha Tronco Sul. A Linha Tronco Centro tinha poucos trens, tinha só o trem de milho mesmo, tinha o trem que vinha o ferro gusa de Salgueiro até Cinco Pontas e tinha o gesso que vinha da Serra do Araripe, ia de caminhão até Salgueiro, de Salgueiro embarcava com o trem e a gente levava para Camaragibe.

P/2 – Fora o milho, que vinha de navio, tinha alguma outra mercadoria, por exemplo, que vinha de fora, que vinha de navio e que depois o trem levava, ou não?

R –A mercadoria que vinha de fora tinha o milho que vinha no navio. O cimento vinha de João Pessoa. Tinha o açúcar, o açúcar vinha das usinas no trem, quando chegava o trem embarcava no navio aí o navio transportava o açúcar. O álcool vinha lá de Maceió, de Lourenço de Albuquerque e de Suape também. Pronto. O álcool também vinha no navio, o navio colocava lá em Suape, a gente pegava esse álcool e transportava para Fortaleza, para o porto de Mucuripe.

P/2 – Essas mercadorias ficavam em armazéns?

R – Ficavam. Tinha mercadoria que ficava em armazém. Lá no pátio de Cinco Pontas tinha armazém. E tinha estações também que tinha armazéns. Aí elas ficavam lá alojadas e, quando o trem passava, elas embarcavam... É uma pena porque a Rede Ferroviária praticamente está extinta, desativaram depois da privatização acabou-se tudo.

P/2 – Então, Enock, a gente estava falando um pouco da mercadoria que era transportada no trem e eu queria entender um pouquinho como é que era o processo da mercadoria. Todas as estações tinham armazéns para guardar a mercadoria?

R – Não. As estações principais, por exemplo, Palmares. Palmares tinha armazém de mercadoria. Ribeirão também tinha. Cinco Pontas era onde tinha o armazém maior, era onde se concentrava praticamente toda a carga dos trens. Era tudo em Cinco Pontas e agora vai passar para Suape. Mas tinha mercadoria que não podia passar muito tempo no armazém. Aí aquela mercadoria que tinha mais preferência era a que embarcava no trem e, depois, o trem passava e pegava as outras que tinham menos preferência.

P/2 – Como é que eram escolhidos os vagões para transportar essa carga? Porque tem vagões abertos e fechados. Como é que era a escolha disso?

R – Cada tipo de mercadoria tinha um vagão exclusivo. Um transporte de cimento mesmo era nos vagões fechados, um vagão FRC (convencional, caixa metálica com revestimento). Um vagão fechado transportava o cimento, o sal. O açúcar tinha os vagões chamados de graneleiros que o silo embarcava o açúcar por cima, fechava e, quando ia para o porto... Embaixo, tinham umas portas, você abria as portas, embarcava no porão do porto para depois passar para o navio através de uma esteira. Tinha, por exemplo, o transporte do gesso e do ferro gusa que era em vagões abertos, estilo carroça. O transporte do gesso, o transporte de ferro era aberto. E essas mercadorias o cimento, o milho, o açúcar, tudo, eram em vagões fechados. O transporte de combustível tinha o trem de gasolina que saía do Brum e ia até Arcoverde. Aí já tinha aqueles vagões tipo tanque que transportavam tanto álcool quanto a gasolina.

P/2 – O senhor chegou a pegar algum trem composto de passageiros e carga ou isso era muito difícil?

R – Não, era difícil. Sempre tinha um trem de passageiros e tinha um trem de carga que eram separados. Agora, o trem de passageiro tinha um carro que era um carro-bagagem que transportava mercadoria, mas era mercadoria de pessoas mesmo, mercadorias diversas, não era a mesma mercadoria que era transportada num trem de carga.

P/1 – Qual que era a diferença de se levar um trem de carga para um trem de passageiro?

R – Olha, o trem de passageiro era um trem mais curto, mais leve, a responsabilidade era muito grande porque ele estava conduzindo muita gente. A velocidade era maior e o cuidado também. O trem de carga era um trem longo, tinha trens com 38, quarenta, 45 vagões. É um trem muito pesado. Esse trem, às vezes, uma locomotiva só não tinha força para puxar. Então era feito uma espécie de um acoplamento de locomotivas, colocava duas ou três locomotivas de acordo com o peso do trem. Aí esse trem no declive tinha que ter muito cuidado com o freio, porque é um trem muito pesado, se não segurasse o trem logo no começo do declive, ele disparava e não segurava mais não.

P/2 – O senhor comentou na sua fala que tinha os alojamentos. Como é que era? O senhor saía para fazer determinado percurso de trem e vocês tinham lugar pra dormir? Como é que era?

R – Tinha. Para o alojamento, a gente dava o nome de castelo. Realmente, esse alojamento era precário, as condições não eram muito boas. A gente dormia em rede. Normalmente, a gente transportava uma bolsa, uma roupa, alguma coisa que a gente levava e a rede, não tinha cama. Depois de um tempo foi que arrumaram o alojamento, começou a ter uns beliches lá, mas nós dormíamos mais em rede mesmo. Esses alojamentos eram para a troca de equipe. A gente pegava um trem, por exemplo, um trem de carga daqui até Salgueiro, aí não tinha condições de uma tripulação só conduzir esse trem porque passava muito tempo, entendeu?

P/2 – Quanto tempo ele demora?

R – Um trem de carga?

P/2 – É. Esse para Salgueiro.

R – Um trem de carga para Salgueiro passava numa faixa de umas vinte horas ou mais de viagem, porque também ia tendo manobras, parava para cruzamento. Então na Linha Tronco Centro, a gente trocava de equipe em Caruaru, São Caetano, Sertânia e Serra Talhada e Salgueiro. Tudo isso para não cansar muito a tripulação. Quando chegava ao alojamento já tinha outra equipe que pegava o trem, a gente ficava aguardando o trem na volta. E assim ia. Toda linha tinha ponto de apoio.

P/2 – E na Norte, tinha alojamento onde? Onde vocês trocavam?

R – Na Linha Tronco Norte, a gente saía daqui e trocava em Itabaiana, na Paraíba. De lá, pegava aquele da Paraíba e ia para Campina Grande. A outra pegava para Sousa e assim eles iam. Fortaleza...

P/2 – Então, Sousa, Fortaleza, todas tinham alojamento?

R – Tinham alojamento.

P/2 – E na Linha Tronco Sul, onde eram os alojamentos?

R – Alojamentos na Linha Tronco Sul... Tinha aqui o subúrbio, a gente dormia no Cabo, pertinho. Mas na Linha Tronco Sul, a gente tinha o alojamento em Ribeirão, Palmares e Quipapá. De Quipapá, a gente tinha alojamento também em Lourenço de Albuquerque e tinha outro em Maceió, isso para o pessoal daqui. Para lá tinha alojamento para o lado de Propriá, Palmeira dos Índios, Aracaju, já é outra equipe.

P/2 – Como é que os agentes da estação sabiam da chegada do trem de carga já que não tinha horário fixo?

R – Através do movimento, porque quem liberava o trem e concedia a autorização para o trem era o movimento de trem. Quando tinha um trem partindo em tal horário, o movimento já passava pras estações: “O trem tal vai a partir de Cinco Pontas, tal hora”. Então, os agentes ficavam atentos. Quando licenciava para uma estação, daquela estação já licenciava para a outra. Então ele sabia através de comunicação, do movimento, através de telefone, do telégrafo. Mas quem comunicava não era a gente, já era o pessoal da estação e movimento de trens.

P/2 – Como é que era feita a limpeza dos trens e vagões?

R – A limpeza? Em Cinco Pontas, tinha um pessoal que limpava os carros de passageiros. Em trem de cargas, dificilmente eles faziam limpeza. Não tinha, não. Às vezes, eles lavavam aqueles graneleiros de açúcar, mas comumente quase não tinha limpeza nenhuma não. Era pegar mercadoria depois transportar outra... Agora, o trem de passageiros sempre tinha, limpava, eles varriam o trem, lavavam, às vezes.

P/2- Isso era sempre feito em Sousa? Nas outras estações não era feita essa limpeza?

R – Não. Isso era feito mais em Cinco Pontas.

P/2 – Cinco Pontas. Desculpa. Fala uma coisa, como é que era feito o abastecimento das locomotivas?

R –Tinham os tanques de combustível. Na Linha Tronco Norte, tinha em Cinco Pontas e Itabaiana. Na Linha Tronco Centro, tinha aqui e Arcoverde também e, na Linha Tronco Sul, tinha em Cinco Pontas e Maceió.

P/2 – Mas esses abastecimentos eram sempre feitos em estações, não no meio do caminho?

R – Em estações, no meio do caminho não. Estações de grande porte de onde saía a maior quantidade de trem é que tinha abastecimento de locomotiva.

P/1 – E as locomotivas o senhor tinha algum nome, apelido pra alguma delas?

R – Não, tinha não. Não tinha apelido, não.

P/2 – O senhor falou um pouquinho do alojamento que era quando vocês dormiam para trocar. E para se alimentar? Como é que era feita a alimentação do maquinista?

R – A alimentação... Tinha local que a gente tinha dificuldade porque a estação ficava distante da cidade. Então alguns maquinistas, não muitos, eles conduziam, na bolsa, um fogão, aquele fogão de álcool, gasol. A gente conduzia e a gente mesmo preparava a comida, ia à feira na cidade, comprava. A gente reunia, dividia aquilo tudinho e a gente mesmo preparava comida. Tinha pessoas que não gostavam de comer no alojamento aí iam para a cidade, procuravam um barzinho para fazer a refeição.

P/2 – Uma viagem daqui para Sousa, por exemplo, no meio do caminho passou o horário de almoço. O trem não parava para vocês almoçarem?

R – Não, a gente tinha direito ao almoço. Quando um trem, por exemplo, para Itabaiana, normalmente, quando a gente passava da hora, a gente chegava em Timbaúba, a gente parava na estação e só: “Eu vou almoçar”. A gente tinha um intervalo de uma hora pro almoço. Deixava o trem parado na estação, ia almoçar, voltava e depois prosseguia com o trem.

P/2 – Mas o trem ficava parado na estação? Ele não ia para uma manobra? Não ia para o pátio de manobra, não?

R – Não. Ele ficava parado. Estava manobrando aí deixa o trem, normalmente, numa segunda linha para deixar a principal livre. Manobrava, quando estivesse prontinho a gente deixava o trem lá. Isso quando tinha condições porque tinha estação que, às vezes, tinha muito cruzamento de trem, então a gente fazia um esforço para não demorar muito naquela estação e passava para estação seguinte para gente fazer a refeição.

P/1 – E quando era trem de passageiros vocês podiam...

R – Trem de passageiro, a gente tinha que, às vezes, almoçar mesmo dentro da locomotiva. A locomotiva em movimento aí a gente ficava pilotando o trem e almoçando. Eu digo, era até engraçado, nós já tínhamos prática. Tinha maquinista até que viajava com o trem e cozinhava dentro da locomotiva. Levava o fogão, comprava verdura, comprava carne, feijão. Acendia logo o fogo na parte de Cinco Pontas, normalmente, quem cozinhava era o auxiliar, porque o maquinista não podia porque estava pilotando o trem. A gente mesmo cozinhava, quando estivesse pronto a gente levava garrafa com água e, ali mesmo, a gente comia. Às vezes, quando o maquinista confiava no auxiliar, ele dizia: “Tu almoças, depois tu pegas o trem aqui um pouquinho que eu vou almoçar...” Aí depois a gente passava o trem para ele.

P/2 – Mas no trem de passageiros não tinha o carro restaurante?

R – Tinha o restaurante, mas a gente não podia se deslocar da locomotiva pra almoçar, fazer a refeição no restaurante. Quem fazia era o quê? Era a tripulação que era o chefe de trem, o condutor. Eles já iam dentro do trem, entendeu?

P/2 – Vamos começar um pouquinho a falar um pouco da manutenção do trem e das locomotivas. Como é que era feita a manutenção, tanto dos trens dos vagões e carros, e da manutenção da locomotiva? Como é que era feito isso?

R – A manutenção de vagões era feita em Cinco Pontas, tinha lá em Itabaiana na Paraíba, tinha lá em Natal e Fortaleza e em Maceió. Tinha o pessoal da oficina que fazia a manutenção. E a oficina da locomotiva era em Edgard Werneck, tinha a oficina para locomotiva também em Itabaiana, tinha em Maceió, tinha em Natal e Fortaleza. Então a manutenção da locomotiva era feita por mecânico especialista, parte elétrica tudinho. A locomotiva tinha uma revisão semanal, tinha uma revisão mensal, tinha trimestral. De vez em quando, a demanda de carga era muito grande, aí atrasava a manutenção.

P/2 – Mas para essa manutenção, o senhor, como maquinista, tinha alguma responsabilidade em relação a ela? Por exemplo, ver troca de óleo? Quem via isso era o pessoal das oficinas das estações?

R – Era o pessoal da oficina, mas quando a gente ia partir com um trem, a gente tinha que examinar tudinho porque o pessoal da oficina entregava a composição pronta, mas quem ia conduzir o trem daquele momento em diante era a gente. A gente tinha que examinar o nível de óleo, o nível da água, o sistema de freio se estava funcionando perfeito. A gente antes de partir com um trem fazia um teste de freio, fazia tudo. Aplicava o freio para ver se todos os vagões estavam freando, às vezes, tinha vagão que estava com o rodelho fino que dá o nome de bitola da linha. Tudo isso era a nossa responsabilidade.

P/2 – O que é rodelho?

R – Rodelho fino é quando dá desgaste na roda do trem. A gente tem um gabaritozinho que a gente sabia mais ou menos a espessura da roda do trem. Quando tinha um rodelho que estava com muito desgaste, a gente condenava: “Esse vagão não vai poder viajar porque não oferece segurança e quem vai conduzir o trem é a gente”. O que houvesse dali, a responsabilidade com o trem depois que partisse era do maquinista. A oficina tinha responsabilidade até entregar o trem. O movimento de trem, às vezes, pressionava de um lado porque ele queria transportar a carga porque havia também a cobrança dos clientes. Sempre havia um atritozinho entre o pessoal, o maquinista, pessoal de estação e de movimento de trens. Um queria mandar o trem para ficar livre dele, mas a responsabilidade ao longo da linha era do maquinista. Então o que houvesse, um descarrilamento ou qualquer problema na locomotiva, a responsabilidade é todinha do maquinista porque ele tinha que examinar o trem antes da partida.

P/2 – E se essa roda tivesse gasta tinha possibilidade de trocar as rodas do...

R – Não.

P/2 – Tinha que tirar o vagão fora?

R – Tirava o vagão e o vagão voltava para a oficina para depois colocar outro rodelho, porque não tinha condições de trafegar porque numa curva era perigoso de haver um descarrilamento. A gente tinha esse cuidado de observar muito esse detalhe, o rodelho da locomotiva e também o do vagão.

P/2 – A manutenção que era feita em Jaboatão... Que tipo de manutenção era feita na oficina de Jaboatão?

R – Era também de vagões em Jaboatão. Locomotiva era somente na oficina de Werneck que era exclusiva para locomotiva. Itabaiana também, Maceió. Mas vagões era Jaboatão, Cinco Pontas...

P/2 – Aconteceu alguma vez da locomotiva quebrar na sua mão numa viagem que você fez?

R – Já.

P/2 – Onde foi? Conta para gente como é que foi.

R – Já aconteceu e não foi somente uma vez. Mas, como a gente, antes de entrar, fazia um curso de mecânica e eletricidade, então tinha alguns defeitos que a gente conseguia tirar, entendeu?

P/2 – Qual, por exemplo?

R – Havia, por exemplo, um defeito de falta de amperagem, às vezes, era uma sujeira num contactor, num disjuntor daqueles. Um defeito de mecânica, a gente tinha uma bomba injetora, se dava problema, a gente isolava a bomba injetora, a gente teve instrução para isso. O trem muito pesado dava defeito numa bomba injetora, então a gente isolava uma bomba daquela e reduzia o trem na próxima estação, porque não dava para continuar, por causa do peso, não dava para ela puxar porque ela já estava com dificuldade na força dela. Tinha muito defeito que a gente tirava e o que dava mais era na parte elétrica. Defeito no relê de patinação, o relê de excitação, no freio dinâmico. Quando tinha um defeito no motor de tração, a gente isolava o motor de tração. A gente fez curso para isso. Agora, quando era um defeito que a gente não tinha condições de tirar, a gente, na estação, comunicava. A estação chamava o pessoal da oficina. Eles iam de carro até o local e, às vezes, até no local mesmo faziam o serviço e, quando não tinha condições de fazer, eles rebocavam a locomotiva. A locomotiva vinha sem funcionar, ela vinha rebocada, sem tracionar.

P/2 – Ela vinha rebocada por outra locomotiva?

R – É. Vinha numa espécie de locomotiva morta, era rebocada como a gente reboca um carro com defeito.

P/2 – Esse trem quando estava quebrado como eram avisadas as estações para que não houvesse acidente?

R – Quando o defeito era na estação, a estação providenciava a sinalização na ré do trem e também na frente. Quando era um defeito ao longo do trecho, a gente tinha um cuidado de colocar sinalizadores: “O trem quebrou em tal quilômetro. Tal quilômetro mais tantos metros”. A gente se preocupava em colocar sinalização na ré do trem para quando viesse um socorro não chocar com o trem que estava danificado.

P/2 – Por exemplo, se tinha algum problema na via como é que a locomotiva fazia? Parava e avisava as estações ou o pessoal de manutenção de via?

R – Quando tinha uma via que estava com um problema qualquer, a estação mesmo, quando ela dá a licença à gente, uma licença de circulação, já estava observado: “Quilômetro tal, passar com velocidade restrita ou precaução”. Porque a linha, às vezes, estava com um dormente solto ou um defeito qualquer na linha, um balanço ou um repuxo. Quando a gente passava ao longo da linha, se notasse um defeito, a gente chegava na próxima estação e avisava que era para providenciar o pessoal da via permanente para retirar o defeito.

P/1 – Tinha algum trecho de via mais perigoso?

R – Tinha... Na Linha Tronco Centro, esse trecho entre Vitória de Santo Antão e Pombos é um trecho muito ruim. Aqui na Linha Tronco Sul, até Palmares era bom porque era dormente de concreto, mas de Palmares para lá tinham vários trechos que eram muito ruins, as condições precárias. Tinha dormente de madeira. E a via permanente, às vezes, não fazia o serviço, então a gente passava com uma velocidade restrita mesmo com o trem.

P/2 – O que é melhor? Dormente de madeira ou de cimento?

R – Dormente de cimento. Porque o de madeira, com o tempo, apodrece e, às vezes, solta o grampo da linha. Aí a linha fica solta, causa um repuxo e o de concreto não. O de concreto sustenta mais, a linha fica mais nivelada com o concreto. O dormente de madeira, às vezes, um fica ruim antes do outro, fica um dormente novo, outro dormente mais usado, causando um desnível na linha, um balanço ou um empuxo na linha. O dormente de concreto não. O dormente de concreto era bom, era mais seguro.

P/1 – Tinha alguma parte das linhas daqui de Pernambuco que o senhor gostava mais de contemplar, de olhar? Por exemplo, a parte da Serras das Russinhas.

R – A Linha Tronco Centro, por exemplo, a gente achava bonito quando estava na Serra das Russas que passava dentro daqueles túneis para quem vai para Gravatá, Caruaru. É muito divertido. Eu pilotei muito o Trem do Forró pela Serrambi Viagens e Turismo. Inclusive para o Trem do Forró, era escolhido um maquinista, não eram todos os maquinistas que pilotavam, não. Tinha maquinista que eles tinham mais confiança aí pilotava, o pessoal ia brincando na época de São João, ia dançando no trem... Tinha que ter muito cuidado porque a velocidade teria que ser menor para o pessoal dançar e brincar ali no trem. Um trem muito animado, muito divertido. Passava nos túneis, na estação, o pessoal todo brincando, dançando quadrilha. Agora foi desativado também.

P/2 – Qual que era o trecho que ele fazia, esse Trem do Forró? Era de...

R – Ele saía de Cinco Pontas até Caruaru, levando o pessoal pela Serrambi. Lá tinha o pátio do forró, o pessoal brincava lá. Era muito bom o Trem do Forró!

P/2 – Quanto tempo durava essa viagem, senhor Enock?

R – Durava cerca de oito horas porque ia devagar. Tinha estação que parava, o pessoal se divertia, começava a dançar quadrilha dentro do trem, o pessoal descia e tal para brincar. Chegava lá em Caruaru era aquela festa danada... Muita gente esperando o trem. Eu fiz muito o Trem do Forró. Até depois que eu me aposentei, a Serrambi me convidou para pilotar o Trem do Forró até o último trem. O último trem foi o que houve um descarrilamento ali em Pombos, a linha realmente estava muito ruim, houve um descarrilamento, a via permanente não estava cuidando muito do trecho. A Rede achou por bem cancelar o trem.

P/2 – E era o senhor que estava pilotando?

R – Era. Esse dia fui eu. Quando nós entramos na curva, a linha se abriu, o grampo se abriu e descarrilou dois carros de passageiros.

P/2 – E machucou as pessoas?

R – Não. O pessoal ficou com medo porque o trem ficou meio virado de um lado, meio pendido de um lado... Só o medo. O pessoal chorava, as mulheres... Mas depois a gente ficou no trecho e a Serrambi mandou o ônibus pegar o pessoal e levar para Caruaru. Depois eles desativaram porque a linha não estava boa. Depois que a Rede privatizou, a Companhia Ferroviária do Nordeste (CFN) não cuidou muito. A Rede Ferroviária ainda tinha peça da via, atualmente está praticamente acabado tudo. Tem local que tinha a linha do trem e invadiram, construíram casa em cima. Tudo desativado. É uma tristeza mesmo.

P/1 – O senhor se lembra de alguma viagem em especial que o senhor fez levando alguma pessoa famosa?

R – Lembro. Não foi só uma viagem. Esse Trem do Forró mesmo, a gente levava o governador, que sempre ia, o prefeito de Caruaru, José Queiroz na época, ia o superintendente da Rede. Teve um trem que eu fiz, na época do governador Miguel Arraes de Alencar, que viajou comigo até Palmares, num trem especial. Então a gente levava sempre alguns políticos, o pessoal da administração da Rede. O trem especial, o trem de administração, era também maquinista escolhido, não eram todos os maquinistas que faziam, não. Tinha maquinista que ia exclusivo para fazer esse trem de administração, como eles chamavam.

P/2 – O que era esse trem de administração?

R – Era um trem especial, né?

P/2 – Mas ele levava as pessoas que trabalhavam na Rede, é isso?

R – É, levava o pessoal da administração da Rede, levava político, às vezes, deputado, um pessoal que ia dar um passeio pela...

P/1 – Era um carro especial?

R – Era carro especial.

P/1 – Como é que era esse carro?

R – Carro de passageiro, tinha aquelas poltronas dentro, ia um restaurante pra eles, tudinho. Era um carro de uma composição especial. Tinha um carro exclusivo para transportar esse pessoal.

P/2 – Tinha alguma ocasião especial que os trens eram enfeitados fora esse do forró?

R – Trem do Forró.

P/2 – Ele era enfeitado?

R – Era enfeitado. Agora, está até havendo um Trem do Forró, de Cinco Pontas até o Cabo. Eles enfeitam o trem todinho. Esse trem mesmo que foi o da época de Miguel Arraes era um trem enfeitado. O trem de administração eles sempre enfeitavam.

P/2 – Mas o que eles colocavam no trem para enfeitar?

R – Eles colocavam bandeiras, cartazes, balões, penduravam tudo. Tinha um trem que ia para Gravatá, o Trem do Morango, um trem também para o pessoal se divertir na época do morango. Era uma festa tradicional em Gravatá, aí enfeitavam muito o trem, colocava bandeirola tudo.

P/2 – Então havia localidades que eram mais visitadas por passageiros em determinadas épocas, por exemplo, na época do morango era Gravatá.

R – Era Gravatá. Na época do forró era Caruaru.

P/2 – Que outro lugar que era mais visitado?

R – Caruaru, também aqui em Carpina. Tinha um Trem de Forró que ia para Carpina.

P/2 – Ah, forró de Carpina?

R – É, na época do São João, em Carpina. Tinha também o trem em João Pessoa. João Pessoa já era tripulação de lá. Aí teve o Trem do Sport, o trem do Náutico. Inclusive, o trem do Sport, eu também pilotei que saía com a torcida, o trem todo enfeitado com o pessoal da diretoria do Sport dentro do trem, o prefeito buzinando e tal. Uma animação danada. A gente ia para lá.

P/2 – Ah, por que quando tinham jogos em Caruaru...

R – Era.

P/2 - Ia, por exemplo, os dois times tinham um trem especial para cada um.

R – Era. Cada time. Por exemplo, trem do Sport. O Sport quando ia lá jogar contra o Central de Caruaru, tinha um trem partindo daqui até Caruaru. O Santa Cruz ia jogar lá também aí a gente sempre transportava. Mas foi pouco tempo depois se acabou esse trem também.

P/1 – O senhor se lembra de ter sofrido algum acidente na via?

R – Não, na Rede não. Agora, eu já tive sete atropelamentos, com vítima fatal. Na época, a gente não podia evitar. Uma vez, ia com um trem subindo para Jaboatão e quando passei ali em Cavaleiro tinha um sinal vermelho, porque tinha uma campainha direto, sinal vermelho para os carros, o cara veio com uma caçamba e se chocou de frente com a locomotiva. Eu ia pilotando esse trem. E morreram três na hora.

P/2 – Ele estava de carro?

R – Estava num caminhão caçamba. Morreram três. Uma vez, eu vim de Maceió, aí quando foi entre Catende e Palmares, uma mulher suicidou, jogou-se na frente do trem. Lá para o lado de Lajinha, no Estado de Alagoas, a mãe soltou uma criança quando o trem saiu daqui, numa curva o menino entrou na frente do trem e atropelou o menino. Então, eu tive sete atropelamentos que eu contei.

P/2 – Como é que era feito o socorro quando acontecia esse tipo de...

R – Quando acontecia o acidente, a gente parava o trem e ligava, avisava, a estação. A estação providenciava, chamava a polícia para o local. A polícia fazia o levantamento do corpo, tirava debaixo do trem, ficava, realmente, só aquele bagaço aí liberava. Quando era, por exemplo, um o acidente como o de lá de Maceió que foi o atropelamento do menino perto da usina, aí a gente livrava o flagrante porque é arriscado até morrer. Esse acidente do menino mesmo o pessoal ficou... Eu desci da locomotiva, tirei minha farda, coloquei a roupa de civil e fiquei dentro do trem escondido. Chegou o pessoal lá procurando o maquinista: “Quem foi o maquinista?” Todo mundo dizia: “O maquinista já foi embora”. Eles mandavam outro maquinista para substituir a gente, no caso de acidente. Quando era um acidente que não tinha muito perigo, a gente continuava, se tivesse condições. Tinha maquinista que era muito nervoso aí não tinha mais condições de pilotar o trem. Eu tive um rapaz que trabalhou comigo mesmo, o Célio, houve um acidente, foi do lado dele, ele avistou dois amigos que estavam brincando na margem da linha e um empurrou o outro na frente do trem. Ele fez um sinal para mim que eu não entendi na hora. Olhou pra mim e falou: “Um menino ali”. Quando eu fui olhar, o menino estava embaixo do trem. O estado dele não permitia mais que ele prosseguisse a viagem. Mas o movimento perguntou: “Tem condições de prosseguir a viagem ou quer que a gente mande uma equipe para substituir?” Quando a gente tinha condições, a gente prosseguia. Pronto, nesse acidente: “Eu pelo menos vou até Carpina, mas o auxiliar mesmo não tem condições nenhuma. Manda uma pessoa para substituí-lo”. Então acho que todo maquinista teve um atropelamento. Nessa linha do subúrbio mesmo, nesse trem mesmo aqui de Jaboatão que agora é o Metrô de Recife (METROREC). Ali passava pela favela, tudo era aberto, não tinha nada, proteção nenhuma. De vez em quando estávamos atropelando pessoas ali. Era criança, mulher, idoso, tudo. Por mais que a gente evitasse, apitasse, não dava para parar. Mas a Rede providenciava a defesa, a gente sempre ia responder. A gente era requisitado para dar o depoimento todinho e um advogado da Rede acompanhava a gente. A gente dizia como foi o acidente, o local, a velocidade, se era numa curva, se era numa reta.

P/2 – O senhor comentou que quando acontecia algum acidente, por exemplo, de atropelamento que tinha que parar, o maquinista corria risco de vida por causa da população que ficava em volta?

R – Por cauda da população.

P/2 – Era comum, por exemplo, de o maquinista ou ir embora ou tirar o uniforme e fazer de conta que o maquinista tinha ido embora?

R – É, isso era comum.

P/2 – Era a orientação que recebia?

R – A orientação que recebia era essa. Se houvesse agitação com a comunidade, perigo, o maquinista podia se ausentar, podia ir embora, podia até deixar o trem lá. Aí ele ligava, a Rede mandava o setor de segurança que era a segurança da Rede, eles iam para lá para tomar conta do trem e a Rede mandava um substituto. Mas quando corria risco. Quando não corria, a gente ficava por ali, ficava enrolando, fazia que não era maquinista tal e, depois, quando a polícia liberava o corpo, a gente partia com o trem.

P/1 – E acidente de descarrilamento? Houve algum assim?

R – Já houve descarrilamento comigo. Quando havia um descarrilamento, às vezes, a gente tinha a locomotiva equipada com telefone, aí a gente ligava o telefone e avisava: “Descarrilamento em tal quilômetro”. Quando não tinha telefone, a gente saía pela linha mesmo para avisar na estação mais próxima que o trem estava descarrilado. Quando descarrilava um vagão, a gente desatrelava aquele vagão descarrilado e partia com uma parte para agilizar o socorro. Quando era a locomotiva, não podia de jeito nenhum, tinha que um ficar no local e o outro seguir até a estação.

P/2 – Por exemplo, quando o senhor não tinha telefone, não era perigoso deixar o pedaço que estava descarrilado na linha por causa do outro trem?

R – Não. Era o seguinte: um trem só partia de uma estação quando o outro chegava. Era a segurança. Se um trem estava ao longo da linha, a estação não licenciava o próximo trem não, só quando chegasse o trem e ele verificasse o último vagão para ver se constava. Aí não havia esse risco.

P/2 – Então, senhor Enock, só para ver se eu entendi bem, quando o trem quebrava no meio da linha, entre uma estação e outra, o chefe de estação só liberava o outro trem a partir do momento que o trem tivesse chegado na próxima estação, era isso?

R – Para não se chocar com a ré do trem. Se o trem estava quebrado entre uma estação e outra, ele não liberava outro trem de jeito nenhum. Só quando havia força, liberava quando vinha o socorro, chegava o socorro que fazia o recarrilamento do trem. Quando a linha estava desimpedida é que ele liberava o outro trem.

P/2 – Se acontecesse, por exemplo, de não dar para socorrer no mesmo dia. O que acontecia com o pessoal que trabalhava naquele trem? Dormia no próximo alojamento? O trem ficava lá a noite inteira? Como é que era isso?

R – Quando era a locomotiva, a gente ficava, dormia lá mesmo, a gente deitava na cadeira e ficava dormindo aguardando um socorro que, às vezes, demorava. Quando era o vagão, a gente ia para estação, chegava na estação, a gente dormia, ficava aguardando socorro até fazer o recarrilamento do trem para ser liberado.

P/1 – E como é que era o seu cotidiano de maquinista? Tinha um ponto de onde o senhor sempre saía? Como é que eram distribuídas as viagens?

R – Tinha uma escala de serviço. A gente, todo dia, olhava a escala de serviço que saía diariamente. Na escala, estava dizendo o local que a gente ia pegar o trem, o destino e o prefixo do trem. A gente era dirigido por essa escala de serviço. Quando a gente chegava num local, a gente era liberado, ia descansar e, às vezes, aguardava o mesmo trem voltando ou outro trem que a gente pegava voltando, após o descanso.

P/1 – Nessa época o senhor morava onde?

R – Eu morava em Tejipió. Eu me aposentei aí morava ali na Avenida Liberdade.

P/2 – O senhor nunca chegou a morar na vila das estações?

R – Não, nunca morei não.

P/2 – E me diz uma coisa, no trem de passageiro, o passageiro só entrava, só embarcava nas estações ou tinha alguma outra parada que ele podia entrar?

R – Não, só nas estações. Agora, tinha local que não era estação, era parada. Aí eles embarcavam também. Quando tinha uma parada mesmo antes de Caruaru que era Gonçalves Ferreira, não tinha estação, tinha só a plataforma. O trem parava, eles embarcavam aí eles pagavam a passagem dentro do trem. Quando ele embarcava na estação, ele comprava a passagem na estação.

P/2 – Com o bilheteiro?

R – É, com bilheteiro.

P/2 – Dessas linhas todas que o senhor viajou, na Norte, na Centro e na Sul, qual era a estação que o senhor gostava mais e por quê?

R – Eu gostava muito de Itabaiana. Itabaiana era um lugar muito animado para a gente porque era onde se concentrava mais a troca de equipes. Às vezes, juntavam seis, sete, dez equipes, que tinham muitos trens de carga para lá. A gente se encontrava com o pessoal da Paraíba, com o pessoal de Natal. Às vezes, a gente passava três, quatro dias, até uma semana em Itabaiana e a gente saía, se divertia muito.

P/2 – Por que ficava tanto tempo em Itabaiana?

R – É porque tinha muito trem, aí a equipe... Se eu chegasse, por exemplo, na quarta-feira, já tinha chegado uma equipe antes de mim. O trem, às vezes, demorava a voltar, a preferência era quem chegasse primeiro, ia voltando. Quando passava muito tempo sem o trem, se cancelassem o trem, a gente descia de ônibus. Aí a gente passava muito tempo em Itabaiana. Ribeirão também era um lugar muito divertido. Tinha um trem de serviço em Ribeirão que a gente passava quase uma semana lá. Um trem que a gente trabalhava num trecho na via permanente. O pessoal da via que ia colocando pedra na linha, aquele negócio todo, manobrando, ia para a usina, voltava, ficava lá.

P/2 – Como é que era quando o senhor ia para a usina? As usinas tinham um pátio de manobra de trem?

R – Tinha também. A gente levava, às vezes, os vagões vazios. Tinha uma parte da linha, tinha um pátio de linha que a gente entrava, o silo ia carregando o vagão. Na medida em que ia carregando, a gente ia puxando os vagões. Carregava um vagão depois carregava o outro vagão... Quando estava tudo carregado, eles providenciavam o selo e liberavam o trem.

P/2 – Que tipo de documentação o senhor carregava em referência a esse transporte ou a essa carga?

R – O documento do trem. Todo trem tinha um documento. O vagão, o tipo de mercadoria, o peso do vagão, o que ele estava transportando.

P/2 – Era um ‘Conhecimento’? Esse documento chamava ‘Conhecimento’?

R – Não, é documento mesmo normal do trem que a gente recebia antes de partir. A gente tinha um trem com tantos vagões, a mercadoria: cimento, açúcar, tal. No documento tinha o tipo de mercadoria, o destino, para onde ia aquela mercadoria, e o peso dos vagões e o peso do trem. A gente tinha que tomar conhecimento, porque cada trecho da linha tinha a tonelagem do trem. Uma locomotiva, às vezes, tinha um peso que não dava para ela puxar só com uma locomotiva, a gente acoplava outra locomotiva à composição do trem.

P/2 – Nesse caso, o senhor comunicava algum lugar para que mandassem uma locomotiva naquele trecho para poder acoplar a outra?

R – Geralmente, quando a gente partia com um trem de Cinco Pontas, para Itabaiana, eles já mandavam se havia necessidade de acoplar a locomotiva numa determinada estação sem reduzir o trem. Ele ia já com a locomotiva, por exemplo, para Itabaiana, de acordo com o peso, o trem já partia logo com três locomotivas, às vezes, com uma rebocada. Aí quando chegava num declive, a gente acoplava mais uma locomotiva. Então ele já mandava a quantidade de locomotiva exata pra gente não reduzir o trem.

P/2 – Tinha fiscalização dessa mercadoria que era transportada nas linhas ou não? Tinha alguma fiscalização?

R – Não. Tinha, às vezes, em alguns trens. O transporte de açúcar e o transporte de cimento iam com o pessoal da segurança da Rede Ferroviária, do setor de segurança. Mas era algumas vezes, não era comum.

P/2 – Mas por que eles iam junto?

R – Só para fiscalizar porque tinha local que tinha cruzamento de trem e, às vezes, aparecia aquele desocupado e vândalo, quebravam os selos dos vagões, roubavam o açúcar lá atrás, roubavam cimento e tal. Era só para proteger.

P/2 – Fala uma coisa, como é que eram as estações, os arredores das estações? Todas as estações eram muito parecidas?

R – Normalmente, padrão. Era uma parecida com a outra. Tinham algumas mais diferentes.

P/2 – Mas como é que elas eram? Elas tinham a plataforma, a bilheteria, o que mais que tinha?

R – Plataforma, bilheteria, tinha uma sala de espera, a parte do telégrafo onde ficava o agente de estação. Tinha estação que tinha um armazém apropriado para mercadoria, banheiro, tudo.

P/2 – Tinha restaurante, tinha hotel perto da estação?

R – Não. Tinha próximo da estação, tinha estação que tinha restaurante próximo, mas dentro da estação mesmo não tinha. Era só o pessoal da estação mesmo que trabalhava lá.

P/2 – Era só o pessoal da Rede Ferroviária mesmo?

R – Era. Armazém onde guardava algum material, sabe?

P/2 – Tinha as vilas dos trabalhadores também, as residências?

R – É, em Ipiranga tinha a vila de ferroviários. A estação e, na frente, tinha a vila de ferroviários.

P/2 – Tinha algum jargão próprio de vocês, por exemplo, vou pegar um exemplo de São Paulo que se fala assim: “O trem desceu a serra piando macuco”. Era assim, quando o trem disparava nas descidas longas, por conta da deficiência dos freios, o maquinista usava um apito para pedir ajuda dos freios manuais para o pessoal do trem. Esse apito era parecido ao macuco. Então o pessoal usava essa frase: “O trem desceu a serra piando macuco”. Era para dizer um jargão próprio. Aqui tem algum jargão próprio dos maquinistas daqui?

R – Aqui, há um tempo, existia um vagão que era um vagão breque. Às vezes, tinha o guarda-freio. Eles iam na locomotiva e quando tinha um trecho, um declive longo, eles aplicavam o freio manual intercalado um vagão, depois passava dois ou três e aplicavam também para segurar mais o freio porque num declive longo, quando a sapata de freio esquentava, corria o risco de não segurar mais. A gente, às vezes, aplicava o freio dinâmico que era o elétrico da locomotiva para auxiliar no controle da velocidade. Aqui não existia muito não esse vagão. Um tempo atrás tinha o guarda-freio que fazia esse tipo de trabalho. Quando um trem disparava, ele subia, inclusive era arriscado, tinha o freio manual que é feito um volante, uma roda, ele aplicava o freio para segurar mais o trem, para não correr.

P/2 – O senhor tem algum causo para contar para gente dessas viagens que o senhor fez, de coisas interessantes que o senhor viveu durante essas viagens? Alguma coisa engraçada, alguma coisa atípica?

R – Não. O que eu tenho é que eu gostava muito de namorar, sempre fui danadinho. Eu gostava de sair, brincar com a turma, me divertir, a gente se reunia, ia bater bola tal, tomava cervejinha, mas caso assim especial nunca...

P/2 – O senhor tinha muitas namoradas em várias estações?

R – Paqueras, né?

P/2 – Igual aos marinheiros que têm uma mulher em cada porto?

R – É. A gente chegava, então... Tinha local, tinha usina, a gente ficava por ali. Às vezes, ficava um na locomotiva e o outro descia para dar uma paquerada por ali, dava uma volta com as meninas, tal. Isso quando a gente era mais jovem.

P/1 – O senhor tinha alguma espécie de forma de se comunicar com as outras pessoas, por exemplo, tinha uma pessoa que o senhor conhecia perto de uma estação e o senhor dava dois apitos para ela e ela sabia que o senhor tava...

R – Tinha.

P/1 – Tinha? E como é que era isso?

R – Tinha uma paquera assim: “Quando você escutar três apitos longos, você já sabe que sou eu que estou passando ali”. Cada um tinha uma mania. Eu gostava muito, eu, torcedor do Sport, aí, às vezes, quando você ouvia a buzina: “Cazá, cazá, cazá...” Já sabia que era eu que estava passando por ali.

P/2 – Eu vou retomar uma pergunta quando eu perguntei para o senhor se tinha trens especiais, enfeitados tal, que o senhor falou que tinha o Trem do Forró, que tinha o trem que ia para região que tinha plantação de morangos, né?

R – É. Lá em Gravatá.

P/2 – Onde eram as regiões que tinham esses trens especiais, esses locais que eram mais visitados?

R – Eram mais na Linha Tronco Centro que era o trem de Caruaru, o mais animado, o Trem do Forró. Tinha esse trem na época do morango ali em Gravatá, o Trem do Morango.

P/2 – Era quando tinha a festa do morango?

R – Tinha a festa. Carpina, também, na época da Festa de Reis, o trem ia lotado.

P/2 – Ah, era Festa de Reis?

R – Era um trem de Carpina. Na Linha Tronco Sul, tinha muito, não. Só quando tinha esse trem de político que era o da administração que a gente viajava.

P/2 – E o de Caruaru, era ligado ao Sport?

R – De Caruaru era.

P/2 – Então, por exemplo, quando o Sport ia jogar em Caruaru tinha um trem que o senhor levava todos...

R – Tinha um trem, o trem do Sport era o mais longo que tinha. Eu pilotei um trem do Sport com quinze carros de passageiros, um trem lotado que foi para o jogo lá em Caruaru. Teve o trem do Santa Cruz também. Geralmente, eles colocavam quem ia pilotar o trem do Sport, um maquinista que torcesse pelo Sport. Eles pediam pra gente buzinar nas estações: “Cazá, cazá, cazá...” O trem do Santa Cruz também colocava um maquinista que fosse tricolor, ele tinha aquela buzina do Santa Cruz, tal. Tudo isso era aquela animação.

P/2 – O senhor torcia para o Sport?

R – Eu torço pelo Sport, ainda.

P/2 – E o senhor, quando chegava a Caruaru, ia assistir ao jogo também ou não?

R – Ia. A gente chegava, largava, fazia a manobra do trem e deixava o trem já pronto para partir depois do jogo.

P/2 – Aí ia e voltava no mesmo trem?

R – Voltava no mesmo trem. O pessoal ia para o campo, a gente fazia a manobra, deixava o trem prontinho, girava, aí quando terminava o jogo a gente partia com o trem. Às vezes, ele mandava até outra equipe para substituir e a gente ficava lá brincando.

P/1 – O senhor sabe alguma música ou alguma rima que fale do trem, que o senhor goste ou conheça, que o senhor lembre?

R – Tem alguns versos aqui que eu tenho até um livro, tinha o trem, aquele... Deixa-me ver se eu me lembro essa que tinha de Alcindo...

P/2 – Se o senhor não se lembrar não tem problema.

R – É, eu não me lembro, não.

P/1 – O senhor é casado?

R – Eu sou casado, tenho dois filhos.

P/1 – E qual é o nome da sua esposa?

R – É Nilma Cruz de Barros. Tenho um filho agora que está se formando na faculdade, Diego, está fazendo Análise de Sistemas. Tenho uma filha que terminou o segundo grau agora e está fazendo o pré-vestibular.

P/1 – Como é que o senhor a conheceu?

R – Nilma? Eu trabalhava na Rede Ferroviária, tinha acabado o noivado com uma menina do Jardim São Paulo, aí ela era minha vizinha, começamos a nos paquerar, na época ela estudava lá perto de casa também. Nisso, já faz 23 anos que a gente está junto.

P/2 – Vocês passaram a lua de mel onde? Fizeram uma viagem de trem ou não?

R – Por sinal, todo Trem do Forró ela queria ir. Ela gosta de brincar. Todo Trem do Forró ela me aperriava, ficava: “Enock, eu vou no Trem do Forró”. Eu conseguia porque pilotava o trem, pela Serrambi Turismo. Seria até bom que você entrevistasse o Anderson, é o dono da Serrambi Turismo, muito animado, ele quem fazia esse trem de turismo, tanto o daqui de Pernambuco quando o de lá de João Pessoa, parece que ele fazia também um lá para Salvador. Eu dizia: “Ó Anderson, tal dia tem um Trem do Forró e a minha esposa quer ir comigo”. “Não tem problema, não. Pode vir aqui pegar as camisas”. Só embarcava no dia quem tinha a camisa do Trem do Forró, a passagem era uma camisa: “Se quiser levar mais algum amigo ou conhecido, você diga quantas camisas você quer que vão todos brincar lá”. Ela gostava muito de ir.

P/2 – E quando chegava lá ficava um dia, dois dias ou não?

R – Não, porque a gente chegava lá e essa equipe que ia pilotando o Trem de Forró ia brincar lá. A gente não descia mais com o trem. Ele mandava outra equipe de ônibus para pegar o trem voltando. A gente chegava lá em Caruaru e brincava a noite todinha. No outro dia, a gente vinha no ônibus da Serrambi Turismo, ele mandava ônibus para ir buscar a gente, tinha muito ônibus. Ia uma tripulação só para descer com o trem. O trem já vinha com a ocupação vazia, sem ninguém. Dava para se divertir muito no Trem do Forró. Até aqui, aliás, ano passado eu fui para o Cabo no Trem do Forró. Só brincando, aposentado já.

P/1 – O senhor já levou algum dos seus filhos para ir trabalhar com o senhor? Ir no trem?

R – Os meus filhos sempre iam no Trem de Forró. Nas viagens de trem não porque as viagens do trem a gente não podia levar ninguém na locomotiva. A locomotiva era um local restrito, só para o maquinista, o auxiliar ou pessoas credenciadas, às vezes, ia um mecânico, um agente de segurança, um engenheiro da Rede ou um pessoal da administração. Pessoas assim, mesmo sendo da família, não podiam viajar na locomotiva.

P/2 – O senhor continuou trabalhando depois que a Rede foi privatizada ou não?

R – Não, eu saí antes da privatização. Eu saí em 1997 e a Rede foi privatizada em 1998. Depois que eu saí me chamaram para me contratar, mas eu já tinha um táxi. Eu viajei muito também. Eu até voltaria, mas quando eu fui fazer o contrato lá com eles, a remuneração era muito pouca, não compensava. Eu estava ganhando muito mais fora e também estava sem condições de trabalho. Depois que a Rede foi privatizada, que a CFN tomou conta, não fazia mais manutenção em vagões, locomotiva. Era muito perigoso, muitos maquinistas estavam reclamando que não tinha manutenção nenhuma. Inclusive está aí, tudo acabado porque não ligam para a locomotiva nem nada, não vou arriscar não.

P/2 – O senhor chegou a se aposentar antes de...

R – Da privatização.

P/2 – Você aposentou.

R – Foi.

P/2 – E como é que foi o processo de aposentadoria do senhor? Foi o senhor quem quis? Foram eles que ofereceram?

R – A Rede, antes do processo de privatização estava fazendo uma proposta, um prêmio para quem queria se aposentar, até por contenção de despesa. Aí surgiu o Programa de Demissão Voluntária, o PDV, que era o pedido de demissão incentivado e ela gratificava quem saía. Como já tinha tempo de me aposentar e para pegar essa gratificação, eu mesmo dei entrada na aposentadoria. Tinha tempo já e me aposentei.

P/2 – E o senhor se aposentou e está trabalhando com táxi agora?

R – É, eu trabalho para não ficar em casa. Eu me aposentei novo porque a aposentadoria nossa é com 25 anos de trabalho, porque é uma função insalubre. Eu me aposentei com 44 anos de idade. Novo. Agora estou com 56, eu tinha força para trabalhar e não queria ficar em casa fazendo nada. Eu fui chamado pela Rede depois, porque ela escolheu algumas pessoas para chamar, mas quando eu vi que não tinha muita segurança, não compensava, eu não quis voltar. Até eu disse: “Se precisarem de mim novamente, se oferecerem boas condições no trabalho, eu volto”. Porque trabalhando na Rede entrei como auxiliar, passei para maquinista, fui supervisor de maquinista muito tempo. Eu que fazia a escala do pessoal. Eu dei muito treinamento à maquinista da linha. Teve muito maquinista que fui eu que aprontei. Aprontava o maquinista e fazia um documento, uma carta, entregando ele apto para exercer a função.

P/2 – Porque teve uma época que o senhor assumiu a supervisão de maquinista. Não foi isso?

R – Foi.

P/2 – O senhor então deixou de viajar?

R – Eu viajava menos, porque como passei a supervisor, já passei a chefiar os maquinistas, então eu elaborava a escala de serviço deles e, quando era para treinar ao longo da linha, eu colocava um maquinista mais antigo para acompanhar o outro. Quando era para dar o maquinista como pronto, eu viajava com ele. Às vezes, tinha uma troca de tripulação, as conduções de um castelo, alojamento, aí eu viajava para fazer o levantamento da via permanente, da estação, tudinho.

P/2 – Então, teve uma fase do seu trabalho na Rede que foi exatamente o de orientar esses...

R – Orientar, fiscalizar. Fiscalizava muito pátio, maquinista... O maquinista que chegava atrasado, o maquinista que faltava muito. A gente sempre fiscalizava esse pessoal.

P/2 – Que tipo de problema o senhor teve quando trabalhou com supervisão? Quais eram as dificuldades?

R – A dificuldade é a que tinha muito maquinista que não queria trabalhar de final de semana, porque, por exemplo, chegou uma época de festas, Natal, o trem tinha que partir de todo jeito e tinha muito maquinista que final de semana queria estar em casa, não queria viajar. Chegava época de Natal, época de Carnaval, eles queriam folgar para brincar. A gente não deixava. Por que não? O trem tem que partir. A gente faz um levantamento, aí o cara chegava atrasado, a gente era obrigado, às vezes, até a punir o maquinista porque ele não viajava. Deixava o trem, às vezes, numa estação para brincar, para beber. Eu fiscalizava muito essa parte pessoal. Tinha gente que dizia que a gente só se lembrava dele: “Não, final de semana eu não quero”. Eu dizia: “Você tem família, o outro também tem, o outro também quer brincar. Então faz um revezamento, por exemplo, você folga no Natal e no Ano Novo você trabalha. Ou vice-versa, você trabalha no Natal e no Ano...” Às vezes, o cabra queria toda época de festa ficar folgando, aí faltavam muitos caras. Tinha trem que era cancelado porque o pessoal faltava. Eu tive muito problema de faltar escala, o pessoal pegava muita licença médica para não viajar.

P/2 – Que tipo de punição que era dada pela Rede para pessoas que abandonavam o carro para ir brincar ou para beber? Que tipo de punição que tinha?

R – A gente colocava o maquinista no escritório, a gente: “Você vai ter que fazer um boletim”. Ele falava qual o motivo que o levou a faltar à escala de serviço. A gente dava um parecer e tinha o engenheiro que era o chefe imediato do tráfego, o maquinista, dependendo se ele fosse reincidente... A gente sempre dava primeiro uma carta de advertência; depois tinha uma repreensão em fé de ofício, já era um caso mais grave; e, depois, dependendo da gravidade, suspensão de três, quatro, cinco dias. Tinha maquinista mesmo que não queria nada, faltava muito à escala, dava muito problema. Tiveram muitos maquinistas que foram até demitidos da Rede porque não queriam trabalhar, queriam abusar e depois se arrependeram. Tiveram alguns que voltaram por força do sindicato que ficava em cima. Mas é esse tipo de problema que a gente enfrentava lá.

P/2 – O senhor fazia relação com o sindicato quando o senhor era supervisor de maquinista? Era o senhor que lidava com o sindicato?

R – Era. A gente tinha relação de maquinista, qualquer punição o sindicato tinha que tomar conhecimento, o órgão de classe da categoria, aí o sindicato, às vezes, ia para lá, negociava com a gente. Eu digo: “Mas você vê, o maquinista é um cara que não está cumprindo com as suas obrigações como deve ser feito. Ele já foi repreendido verbalmente, já teve uma carta de advertência o que quer mais?” A gente, às vezes, aplicava a punição de três, quatro dias, aí o sindicato: “Não. Vamos dar somente um dia.” Ficava negociando. A empresa negociava muito com o sindicato porque o sindicato sempre defende o interesse do trabalhador.

P/2 – O senhor chegou a ser sindicalizado também, ou não?

R – Fui sindicalizado também. Na época do aumento, a Rede, às vezes, dava um aumento, mas a categoria não aceitava, aí tinha greve. A gente, muitas vezes, na greve era até obrigado, mesmo quem fazia parte da chefia, a sair para pilotar o trem por falta de maquinista.

P/2 – Eram muito frequentes as greves ou não?

R – Era, sempre tinha greve. Na época do acordo coletivo, a Rede dava um aumento que não satisfazia o interesse da categoria, o sindicato promovia a greve com o pessoal.

P/2 – O senhor se lembra de alguma greve que foi muito forte, que ficou muito tempo paralisado?

R – Teve uma greve na Rede Ferroviária, não me lembro qual foi o ano, que foram doze dias. Teve aquele acordo, teve assembleia, tinha tudo. Depois a Rede cortou os dias porque a greve foi decretada ilegal, aí foram descontados os dias parados do pessoal. Teve muita greve na rede.

P/2 – Para ir finalizando, o que significou para o senhor ter trabalhado na Rede Ferroviária?

R – Para mim, muita coisa porque o que eu tenho hoje, primeiramente, eu agradeço a Deus e à Rede, porque eu fui de família pobre, não tinha nada, comecei a trabalhar até como ajudante de pedreiro, de serralheiro, esse negócio todo. Eu saí do quartel e eles me empregaram, eu entrei na Rede. Meu tempo maior de trabalho foi na Rede Ferroviária. Eu tive o privilégio de entrar como auxiliar, maquinista, fui fiscal de tração, supervisor de tração, aposentei. Fiz muita amizade na Rede Ferroviária e, hoje em dia, como aposentado, tenho um salário mais ou menos, eu tenho casa própria, tenho um carro, tenho uma casa de praia, tenho tudo. Então eu agradeço primeiramente a Deus depois à Rede Ferroviária.

P/1 – E o que significava para o senhor ser um maquinista?

R – Eu achava bonito. Quando eu ia no trabalho na Rede, no escritório onde meu pai trabalhava, eu olhava as fotos dos trens, eu pegava aquelas revistas da Rede Ferroviária e eu viajava muito no subúrbio. Eu achava bonito o trem, trem de carga, aquele trem longo que passava pela linha, eu achava muito bonito. Eu fiquei muito empolgado com isso.

P/2 – Tem alguma coisa que a gente não perguntou que o senhor gostaria de comentar?

R – Não, eu acho que foi o suficiente. Agora, eu queria comentar uma coisa que vocês não perguntaram, a situação em que se encontra hoje a Rede Ferroviária porque a Rede, na época, oferecia mais condições. Hoje em dia, a Rede privatizou e se acabaram os trens, trem passagem não existe mais. Tinha o trem de longo percurso, tinha o de subúrbio que é um trem muito animado, a via permanente, tudo. O edifício sede da Rede Ferroviária que agora foi entregue ao governo, não é mais da Rede. O pátio de Cinco Pontas que acabou e está indo para Suape. Então a Rede praticamente está extinta, ficou só um pessoal remanescente que trabalha aqui, fica aqui na Avenida Conde da Boa Vista só cuidando dos casos de justiça da Rede. É só isso mesmo.

P/2 – O que o senhor acha que seria necessário fazer para retomar a Rede Ferroviária?

R – Olha... O trem sempre foi um transporte barato, um transporte da massa. O que cinquenta caminhões transportavam, a Rede, num trem só, transportava mais do que isso. É um transporte barato e tem economia de combustível também. Não existia poluição. E está aí, acabou-se. Até esse projeto do Lula da Transnordestina, é até bom que realmente acontecesse isso para a Rede ser reativada porque melhora muito o tráfego de carga para cá. Geralmente, eu fico muito triste quando eu passo, eu viajo, às vezes, eu dou um passeio de carro nos locais onde tinham as estações, está tudo acabado, tem local que não tem mais estação. A via permanente, roubaram o trilho já, dormentes. Aquela sucata lá em Werneck... Isso entristece muito a gente que trabalhou tanto tempo na Rede. Seria bom que fosse reativado, melhorasse, mas pelo que a gente está vendo aí o transporte ferroviário praticamente extinto.

P/2 – Qual é a importância de um trabalho como esse para registrar a memória da Rede Ferroviária de Pernambuco?

R – Eu acho que divulgar. Eu acho que a divulgação e fazendo entrevista com outras pessoas que são parte do movimento de trens, como funcionava o edifício sede da Rede Ferroviária, o que é que pode ser feito para voltar novamente trem de passageiro, esse Trem do Forró que é um trem que muita gente sentiu falta. Eu acho que divulgar e fazer alguma coisa para ver se recupera. Recuperar a via permanente, tem local que não tem mais os trilhos, acabaram tudinho. É muito difícil, o investimento é muito alto.

P/2 – E o que o senhor achou de ter participado dessa entrevista?

R – Eu achei até bom. Eu gostei muito porque depois de quê? De treze anos de aposentado. Eu fiquei até entusiasmado, depois de treze anos me chamar para entrevista sobre a Rede Ferroviária. Eu achei muito importante esse trabalho de vocês.

P/2 – A gente queria agradecer a sua participação, senhor Enock, muito obrigado em nome do Museu da Pessoa, em nome do Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Obrigada.