Museu da Pessoa

O espírito do samba

autoria: Museu da Pessoa personagem: Maria Marta de Oliveira

Projeto Memória dos Bairros
Depoimento de Maria Marta de Oliveira
Entrevistado por Stella e Kênya
São Paulo, 22/09/2000
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista número: MT_HV009
Transcrito por Marília Eira Velha
Revisado por Luiza Gallo Favareto


P/1- Dona Marta, a gente vai pedir para a senhora dizer o seu nome completo, local onde nasceu e a data do nascimento.

R- Meu nome é Maria Marta de Oliveira. Nasci dia 31 de janeiro de 1937. Onde eu morei?

P/2- Onde a senhora nasceu.

R- Em Alfenas, Minas Gerais.

P/1- Então, dona Marta, conta para gente um pouquinho da sua história, tentando recuperar desde a infância, a história de vida dos seus pais, dos seus avós. O que der para lembrar para a gente é muito importante.

R- Bom, eu fui uma pessoa que eu não tive, praticamente, uma infância de dizer assim: "Eu brinquei muito." Não. Eu já nasci para trabalhar. Meus pais eram muito pobre. Mas a gente tinha que trabalhar para ajudar, desde criança. Meu pai morava numa fazenda dentro de Alfenas. Depois veio para dentro de Alfenas, ele voltou para Alfenas. Depois nós pegamos, de manhã cedo... Eu tinha sete anos, eu já comecei a trabalhar. Quer dizer que eu não tinha infância para poder sair brincando, eu não tinha tempo disso. Com sete anos eu comecei a trabalhar, porque meus pais precisavam. Aí eles mandaram eu vim para cá, para São Paulo, para trabalhar aqui tomando conta de uma criança com uma senhora de lá. Chegou aqui, eu começava a chorar muito, porque eu queria meus pais. Eu era muito criança. Aí me mandaram de volta. Cheguei lá, comecei a estudar de novo. Mas eu ia na escola, voltava da escola, carregava uma marmita para uma senhora, pegava a marmita, levava, voltava, chegava em casa e ia buscar lenha no mato. Chegava da lenha, voltava e ia lá trabalhar. Então, eu não tive, assim, dizer: "Eu fui uma menina, que eu brinquei, que eu tive..." Sabe, era muito raro as vezes que eu brincava.

P/2- E a senhora tinha irmãos?

R- Tinha muitos irmãos.

P/2- Quantos irmãos?

R- _________ cinco irmãos.

P/2- Cinco irmãos?

R- É. Os outros dois faleceram quando eu já... Eu não tinha nascido quando eles faleceram. Então tinha meus irmãos. Todos os meus irmãos lutavam, ajudavam meu pai. Depois, teve uma vez que eu estava... Fui para a escola e eu passei numa lata de lixo. Eu via aquela comida vermelha, sabe? Era beterraba. Nem eu sabia. Eu cheguei em casa e falei para minha mãe: "Eu queria comer o arroz vermelho." E minha mãe falava: "Que arroz vermelho é esse, menina?" Eu falava: "Não, mas eu queria o arroz vermelho." E minha mãe voltou comigo lá para... Da onde eu tinha vindo da escola. Foi no mesmo caminho da rua que eu tinha ido. Eu cheguei lá, eu olhei no lixo, era beterraba. Eu fiquei doente, quase morri (risos). Aí minha mãe foi, pegou, comprou uma beterraba. A gente não tinha nem condições. Comi aquela beterraba. Então eu dizia que eu tive uma infância muito sacrificada. Depois eu comecei... Eu começava a ir ver as coisas, mas os meus pais não aceitavam. Não acreditava, porque eles eram desses católicos apostólico romano. Então papai não acreditava.

P/2- A primeira vez que a senhora viu, como é que foi?

R- Na hora, eu estava brincando de casinha, aí deu aquela... Sabe assim, quando... Eu falei assim: "Eu vou..." Essa época eu ainda não tinha sete anos, eu tinha quatro anos. Aí eu falei para o papai assim: "O senhor sabe que eu vou começar a olhar a carta das pessoas?" Papai pegou, falou assim: "Você está ficando louca, menina? Vai tirar... Você tem que mais é procurar um serviço, você já está com quatro anos." Mas passou aquela época. E depois, assim, vamos supor, se eu via uma pessoa, eu falava para a minha mãe assim: "Nossa, a mãe dela vai morrer." E morria. Depois chegou um dia, quando chegou na sexta... Minha mãe disse que quando, antes de eu nascer, durante sete meses eu chorava na barriga da minha mãe todos os dias, às três horas da tarde, mas minha mãe não contou isso para mim. Só depois. Agora que eu fiquei sabendo. E eu nasci numa sexta-feira às três horas da tarde. Vai escutando. Eu brincava muito. O único dia que a gente brincava, que tinha tempo, era exta-feira Santa, porque o papai não deixava a gente fazer nada na sexta-feira Santa. Todo mundo, desde criança, tinha que jejuar. Aí nós fomos [que nem] todo mundo. Eu peguei, falei para o papai: "Nós vamos fazer uma casinha de bananeira." E eu era a cigana que ia chegar lá, naquela casa, para poder almoçar junto com as menina, ao meio-dia em ponto. Eu peguei e fui. Quando eu chego, era meio-dia, eu bato palma, eu recebo uma cigana. Mas nem eu... Porque eu, com essa idade, não ia saber que era espiritismo nem nada. Eu recebi uma cigana. Sabe, cidade de interior, começou a... Bom, lá em casa, a princípio, era uma romaria...

P/1- Você tinha quantos anos?

R- Sete. De tanta gente que ia lá em casa. Foi polícia, olha... Todo mundo. Médico para ver se eu estava louca. Foi aquele alvoroço. Aí tudo bem. Papai pegou, fez uma promessa que se à noite não viesse mais aquilo em mim, eu ia assistir a procissão do encontro. Eu descalça, papai descalço, minha mãe descalça e todo mundo com uma vela acesa do tamanho. Nós fomos assistir. Quando chegamos na porta da igreja, se contar ninguém acredita, só vendo mesmo. Chegou na porta da igreja, eu recebi todo o povo da esquerda. Eu, com sete anos, não teve quem me segurasse. Nem policial, nem gente, nem nada.

P/1- Todos?

R- Todos. Foi santo que caiu, santo que quebrou, pessoas que pisavam em cima do outro correndo, porque muitos com medo, outros querendo me segurar. E eles fizeram ________, assim, na porta da igreja, arranjaram um giz e eu ia riscando. Eles iam riscando o ponto, ia dando para o papai. Falou para o papai depois me entregar.

P/1- A senhora lembra quais foram os que baixaram?

R- O primeiro de tudo, de esquerda, que baixou em mim, depois veio vindo todos. Depois papai pegou, falou: "Agora eu não sei [o que fazer] com essa menina." Na minha casa... Eu não podia sair na rua. Eu saía na rua, todo mundo, todo mundo: "Olha lá a menina que pegou o negócio! Olha lá a menina que está com o demônio! Olha lá a menina que está com não sei o quê!". Eu não saía mais de casa. Aí o papai achou que tinha que mudar. Nós mudamos. Nós moramos em Guaranésia, Guaxupé, Mococa, São José do Rio Pardo, viemos para São Paulo. Todo esse lugar. Era a mesma coisa. Nós fomos morar numa fazenda que era do senhor Pacífico Costa Lima.

P/1- Isso aqui em São Paulo?

R- Aqui em São Paulo.

P/1- Em que ano era?

R- Eu não lembro.

P/1- Quantos anos a senhora tinha?

R- Essa época já? Eu estava com sete, oito, nove... Com nove anos, ainda não tinha dez anos. Aí nós fomos morar...

P/1- 45?

R- É. Aí nós fomos morar na fazenda do senhor Pacífico Costa Lima. Minha mãe era a caseira e eu ficava em casa com papai. Eu que cozinhava, eu tinha que fazer comida para levar para os meus irmão que trabalhavam na fazenda.

P/1- Nessa época a senhora já tinha vindo sozinha para São Paulo?

R- Nessa época eu já tinha vindo sozinha para trabalhar, voltei.

P/1- Quando a senhora veio para São Paulo, nunca tinha se manifestado?

R- Não. Eu já sabia que eu sentia alguma coisa diferente. Meus pais tinham notado.

P/1- Sei.

R- Mas ninguém dava importância, porque meu pai não queria achar que eu... Porque eles achavam que eu estava ficando louca. Eu falava as coisas, eu via as coisas, eu falava para minha mãe. Minha mãe não queria acreditar, porque ela queria tirar aquilo da minha cabeça e da dela, para falar que... Porque senão, eu estava... Porque minha mãe era daquelas marianas de igreja, meu pai também. Eles não saiam da igreja. A gente via o padre, então o que acontecia? A gente ia, pegava na mão do padre, beijava, tomava a benção, trazia santinho. A parede de casa era cheia de santinho. É católico mesmo, porque não acreditava em nada a não ser a Deus e todos os santos. Aí nós viemos morar nessa fazenda. A minha mãe falou: "Você vai cozinhar para os meninos, porque teu pai não está bom." Papai já estava ficando meio doente, e minha mãe me batia muito por causa dessas coisas. Porque, às vezes, se ficava doente uma pessoa lá na fazenda, eu ia ver, sabe, a gente é criança. Eu entrava e ia ver. Chegava lá, eu entrava no quarto, eu olhava. Eu saía para o quintal... Era Colônia. Não sei se vocês conhecem.

P/2- Não. Onde que era?

R- A fazenda na... Nessa fazenda do senhor Pacífico.





P/2- Onde fica, mais ou menos, dona Marta?

R- Ai menina, agora eu não lembro, não. É Estado de São Paulo.

P/2- Sei. Mas não é aqui perto da cidade?

R- Não.

P/2- É lá... Estado de São Paulo?

R- É uma fazenda que eles tinham.

P/2- Entendi.

R- Quando eu ia, eu chegava lá, eu olhava as pessoas doentes. Aí eu pegava um mato, eu ia no quintal e amassava, assim, na mão. Punha dentro do copo de água e falava: "Dá para ela tomar." O pessoal achava que eu era criança, que tinha a ver com alguma coisa, então tomava. Dali três, sete dias a pessoa ia se sentando, melhorando e sarava. Mas quando eu ia num doente que eu chegava lá, eu olhava, saía e ia embora, podia ter certeza que aquele doente não ia viver. Então as pessoas começavam observar esse tipo de coisa. O que acontecia? Eu chegava para ver os doentes, porque eu era... Minha mãe me batia por causa disso. Eu fui a filha que mais apanhei na vida. Papai nunca me deu um tapa, mas minha mãe quase me matava de tanto bater por causa disso. Quando eu chegava, as pessoas me barravam, não deixavam eu entrar: "Não, bem. Não entra, não, porque a fulana está tomando banho." Eles inventavam qualquer coisa. Eu ficava na porta, sentada. Chorava. Minha mãe ia me buscar. Batia, batia, batia e não adiantava.

P/2- E o que levava a senhora até as pessoas doentes?

R- Não sei. Se for para te falar, eu não sei. Tudo quanto é pessoa doente eu ia atrás, eu cismava de ir olhar a carta. Isso foi bem antes. Eu fazia, pegava uma caixa de papelão, cortava ela assim, rabiscava com carvão e punha dentro do embornal. Você sabe o que é embornal?

P/2- Uma bolsinha?

R- É, de pano. Punha dentro e saía para as portas pedindo para olhar a carta. Então as pessoas, por verem que a gente era criança, falava: "Ai bem, você volta outra hora que agora não dá. Eu estou fazendo almoço." Outros falavam: "Entra, então. Vem ver." Então eu lia a carta. Minha mãe, quando via, me batia. Ficava uma criança doente, eu chegava lá: "Quer que eu benze?" Aí a pessoa deixava. Às vezes deixava. Às vezes, nem fé tinha, mas deixava porque eu pedia para benzer, deixar. E a criança ficava boa. Então tinha essas coisas que... Muita coisa as pessoas viam que era uma coisa certa. Minha mãe pegou e falou para mim assim: "Você não vai sair mais para ir na casa de ninguém." Minha mãe falava. Eu falava: "Como que eu faço? Eu preciso ir lá ver fulano." Porque quando morria alguém, eu não... Até hoje, eu adoro cemitério. Eu posso estar nervosa, que graças a Deus, é muito difícil de eu ficar, porque para mim a vida é linda, maravilhosa, tudo está bom, eu não tenho... Não sei se são muitos problemas dos outros, porque eu não sinto que eu tenho problema. E todo mundo tem problema. Mas eu acho que meus problemas... Estou bem com eles e estou bem com tudo, porque graças a Deus, meus filho não tem enguiço nenhum, não me dão dor de cabeça. Todo mundo me respeita, são todo mundo muito unidos com as noras, com tudo. Então vou dizer que eu sou feliz.
Minha mãe, então, falava para mim assim: "Marta, você, filha, não pode ficar andando para a casa dos outros. Você não pode ficar com esse negócio de benzer, porque as pessoas, depois, vão ficar tendo medo de você. Você vai ficar uma moça que ninguém vai olhar na tua cara. Vão começar a falar de você." Então eu tinha aquele medo, mas eu achava que eu tinha que ir. E eu ia. Essas pessoas que tinham essas varizes enormes, aquelas feridas de varizes, eu gostava muito de benzer, eu agachava e benzia. Eu curei muita gente. Muita, muita gente mesmo. Eu abaixava e eu benzia. Mas eu agachava assim... Para mim eu não estava fazendo aquilo. Eu sinto, até hoje, que eu tenho isso. Aquele que está lá...

P/2- Sei.

R- Aquele grandão, ele tem um cachorro de lado. Eu não sabia quem era. Eu sentia que aquele cachorro lambia. Eu via um cachorro lambendo aquela ferida. E as pessoas que eu estava benzendo pensavam que era eu que estava lambendo. Via eu lambendo a ferida para sarar. Mas não era, era o cachorro. E minha mãe via aquilo, nossa senhora, como minha mãe me batia! Me batia, me batia... Bom, resumindo. Papai pegou, ficou doente. Meu pai tinha um metro e 97.

P/2- Nossa, enorme!

R- O papai ficou desse tamanho. Ele ficou do tamanho de um menino de um ano. Ele ficou aleijado inteirinho. Ele se encolheu.

P/2- Nossa senhora! O que ele teve, a senhora sabe?

R- Vai escutando para você ver. Ele entortou tudo assim, andava arrastando no chão, e chorava o dia inteiro e a noite inteira de dor no corpo. E minha mãe trabalhando. Levamos ele ao médico, tudo, não tinha remédio que curasse. A gente morava lá na fazenda, era fogão a lenha. Então papai, como sentia muito frio, eu pegava dois tijolos no chão, porque a casa era de chão, e fazia um fogão ali. Punha lenha, tudo, e o papai ficava sentado, requentando o fogo. Eu fazia comida, eu dava para ele, levava comida para os meninos na roça. Papai pegava e falava: "Ai, filha, eu não aguento mais." Mas eles não acreditavam no que eu fazia para curar, não podia falar porque eles não acreditavam. Mas eu via o papai sofrer tanto e minha mãe lá na fazenda. Eu falei assim: "Papai, se eu fizer um banho para o senhor, o senhor aceita?" Ele falou: "Aceito, filha."

P/1- Nisso a senhora tinha quantos anos?

R- Essa época eu estava com treze anos. "Eu aceito, filha." Aí eu fui numa mata. Era uma mata que ninguém entrava, ninguém. Era uma mata virgem. Eu entrei no centro dessa mata, não sei como. Não sei quem me levou, não sei como eu entrei. E tinha uma árvore no centro dessa mata. Eu não sei se eu subi ou como foi. O último galho da ponta, eu trouxe ele e vim arrastando ele. Vim arrastando, arrastando, até chegar em casa. Quando chegou em casa... Minha mãe tinha uma lata dessas de vinte litros, onde ela fervia a roupa. A gente lavava a roupa e fervia a roupa. Eu peguei aquela lata, tirei todas as folhas, pus fogo lá e fervi aquela lata de vinte litro. Falei: "Papai, eu vou dar um banho no senhor." Ele estava ultrapassado de dor, então o que eu fizesse, estava válido. Aí eu peguei o papai. Eu não sei como eu tive força para isso, se eu falar... Peguei o papai, pus ele dentro da bacia, no quarto. Peguei aquela água, ia lavando, ia jogando em cima dele e eu ia rezando. O que eu rezava, também, eu não sei. Eu ia rezando e ia jogando a água, ia rezando e ia jogando a água. O que acontece? Eu falei: "Papai, o senhor não pode sair daqui, do quarto, durante três dias." Eu peguei pano de tomar café que a gente tinha. Eu pus tudo assim, porque casa de interior nunca é forrada. Na fazenda principalmente. Fiz um coberto com pano para não entrar...

P/1- Era telha?

R- Era telha. Para não entrar vento nele. Aí eu pus aquele cobertor. Papai pegou, ficou lá quietinho. Eu pus ele na cama e cobri ele. Então eu fiquei na porta. Eu pegava, levava água, levava comida, tudo, e ele quietinho ali. Minha mãe chegou de noite da fazenda. Chegou e falou: "Cadê o teu pai?" Eu falei: "O papai está aqui, mas ninguém pode entrar." Ela falou: "Por que não posso entrar?" Eu falei: "Porque eu dei um banho no papai e não pode entrar." Ela falou: "Quer dizer que agora eu tenho que aturar dois loucos, porque o teu pai está entrando na tua loucura?" Minha mãe falou: "Quer dizer que além deu aturar você, que é uma doida, ainda vou aturar teu pai também que está entrando na tua loucura?" Eu falei: "Não, mas é que o papai vai ficar bom." E minha mãe queria me tirar lá da porta, mas ela não conseguiu. Eu fiquei três dia na porta para tomar conta, para ninguém entrar. Dava comida para ele, assim. Quando foi à noite, depois dos três dias, papai falou assim: “Benedita!" Falou para minha mãe: "Aconteceu um milagre, Benedita." Minha mãe saiu do outro quarto e veio. O papai estava sentado normal, do jeito que ele era, na beirada da cama. Ele levantou. Minha mãe começou chorar, ele começou a chorar. Ele me abraçava e chorava, chorava, e pedia para mim perdão por tudo aquilo que eles tinham feito. Minha mãe também. Aí eles me deixaram trabalhar. Quando chegou na hora do almoço, eu fiz a comida e meu pai que foi levar para os meninos. Quando os meninos viram meu pai daquele tamanho, do jeito que era... Chegou, viu meu pai levando para eles, os meninos jogaram a enxada e saíram correndo de medo, porque eles não acreditaram que era o papai. O papai chamava eles, eles voltaram e vieram almoçar. Foi aquela alegria. No mesmo instante, aquela tristeza. O papai pegou, falou para mim: "Agora, minha filha, a gente vê que não tem como te segurar. Então você pode fazer tuas caridades que você tem vontade." Aí eles começaram a acreditar em mim e eu comecei a fazer cura. Eu fazia muita, muita cura. E faço até hoje, mas não tanto como antes. Eu comecei já a trabalhar, mas nunca fui em centro porque eu nunca gostei. Nunca fui. Sempre trabalhei sozinha. Sempre.

P/2- E quando a senhora fazia ou faz cura, a senhora reza?

R- Eu rezo.

P/2- E como é que a senhora aprendeu as rezas?

R- Isso eu nem te falo, porque eu não sei.

P/2- Entendi.

R- Eu trabalho por intuição. Eu tenho muitas clientes, graças a Deus. Muito, muito, muito. Tem ali aquele... Como chama, gente? É um hospital ali perto do Defeitos da Face, uma clínica, sabe? De vez em quando, não é sempre, eu vou lá, porque tem muitas crianças que estão mal e o médico não cura. Tem que ser só com o benzimento. Eu vou lá, eu benzo, as crianças melhoram. Uma cliente minha até tinha uma clínica aqui, em São Paulo, ela está morando em Belo Horizonte. Ela ficou louca. Louca, louca, louca. O marido dela pegou e internou ela. Eu não lembro qual hospital que foi. Então lá no hospital ela ficou amarrada, num quarto isolado. Ela ficou amarrada. Até a cama de ferro... Ela pulava que ela tirava a cama do lugar. O marido dela pegou, veio. O Moacir, falou: "Marta, pelo amor de Deus, vamos lá para você dar um jeito na..." Olha, eu fui no hospital, eu entrei com defumação, ninguém viu. Eu defumei lá dentro do hospital, te juro. Defumei o quarto dela todinho, benzi ela, fiz todas as coisas que eu tinha que fazer. Nem eu sei o que eu fiz depois que eu entrei lá dentro do hospital. Quem chegou no dia seguinte, desamarraram ela, deixaram ela um dia tomando soro, depois deram alta. Mas ela estava ruim, tinha deixado uma criança recém-nascida. Ela ficou louca, louca de tudo. Não sei se foi problema de... Eu não sei o que foi que ela teve, mas que ela ficou ruim. Bom, eu já fiz e faço muita coisa, muita caridade, porque eu acho que nesse mundo, já que Deus me deu esse dom, a gente tem que procurar ajudar as pessoas que precisam. Porque não é a gente visar dinheiro, porque, às vezes, vale mais você ter uma boa amizade e viver com todo mundo bem do que visar dinheiro. Minha casa sempre é cheia. Chega um aqui, vem, come, bebe, dorme, fica. É sempre assim. Quando minha casa era pior do que essa... Porque eu morava numa casa que estava caindo aos pedaços (risos). Eu demoli essa casa para fazer essa casa, eu não sei nem como.

P/1- Era nesse mesmo terreno?

R- Nesse mesmo terreno. Mas a minha casa sempre foi cheia de gente, sabe por quê? Porque eu faço as coisas assim, com muito amor e carinho. Eu não faço as coisas visando nada. Pode perguntar.

P/1- Por que a senhora não gosta de centro?

R- Olha, nega, você sabe por quê? Eu desenvolvi sozinha. Eu acho que em centro... Não todos, mas a maioria. No meio de cinquenta médiuns, você vai ver, tem dez, quinze que estão concentrados. Tem muita mistificação. Para você ir, ver coisas erradas e não poder falar, então é melhor você ficar no teu canto, é bem melhor você ficar no teu canto. E depois que você pega um trabalho ou uma responsabilidade, então você sabe. Você não vai contar com médium nenhum para te ajudar, então aquela responsabilidade é tua. Se você depois, amanhã, tiver que me cobrar, você tem que cobrar de mim. Não ficar jogando: "Mas foi fulano, foi beltrano." Então por isso eu trabalho sozinha. Não vou em centro, não tem nada de ter mãe de santo, não tem nada disso. Eu trabalho eu e eu.

P/1- A senhora e as entidades, né?

R- É. É assim que eu, graças a Deus, estou vivendo até hoje. Agora, para mim, também, fazer essa casa aqui, eu lutei muito.

P/1- Como foi?

R- Porque eu tinha uma casa. O dono da casa... Eu morei nessa casa aqui... Porque faz... Eu mudei para cá dia primeiro do dez, dia primeiro do seis. Não, dia seis do um de 72, quando eu mudei para cá, para essa casa.

P/2- A senhora tinha saído lá da fazenda e veio para cá? Ou antes...

R- Não, eu tinha saído de lá da fazenda. Aí eu vim embora para cá, para São Paulo, trabalhar.

P/2- E direto para essa casa?

R- Não.

P/2- Para onde?

R- Eu trabalhava de doméstica. Eu já vim trabalhar, vim com pessoas mesmo, de lá do seu Pacífico. A esposa dele que me trouxe para trabalhar para ela, aqui em São Paulo.

P/1- Ela morava em que bairro aqui?

R- Eu não lembro.

P/1- Não lembra?

R- Não. Aquele tempo, São Paulo ainda tinha muito mato.

P/2- Ah, é?

R- Era.

P/2- E a senhora morava na casa dela?

R- Eu morava na casa dela. E o papai tinha aquela coisa de: "Pode trabalhar, mas a responsabilidade é sua." Então eu não saía, tudo ali. Só trabalhava feito uma camela, porque as patroas... Pai dando essa ordem, elas aproveitam. Você sabendo que você é do interior, está aqui sozinha, já aproveita. Quanto mais você fazendo assim. Eu comecei a trabalhar para ela, trabalhei para ela um bom tempo, depois eu saí. Eu fui trabalhar para uma senhora em Mococa. Essa senhora em Mococa chama dona Dorinha. Ela fazia goiabada para trazer para São Paulo e eu trabalhava lá. A casa tinha quinze cômodos. Eu lavava, passava, cozinhava, e era desses fogões de brasa e a roupa do marido dela era tudo de linha. Então eu tinha que passar tudo aquilo ali. Foi trabalhoso.

P/2- Quantos anos a senhora tinha, dona Marta?

R- Tinha uns dezesseis, por aí.

P/2- Novinha.

R- Novinha. Foi antes deu casar. Depois passava tudo com escovão aquela casa para lustrar. Eu sofri muito, viu? Tinha cômodo que ela queria que raspasse, porque estava muito grudada a cera, escura. Eu raspava os cômodo com a gilete, tábua por tábua.

P/2- Nossa!

R- Com a gilete, eu raspava. Eu ficava a noite. Depois que eu terminava de fazer todo o serviço, ela falava: "Agora, Marta, você vai começar a raspar para ir adiantando. Uma tábua que você raspa já está adiantando." Eu ficava até onze horas, meia-noite, raspando com gilete. Você acha que isso é vida? E de noite, ela falava... A gente ia para os pastos buscar goiaba para ela fazer doce. Trazia goiaba, de noite eu descascava. Eu e uma outra menina descascava. Depois tinha um tacho enorme, ela punha lá, porque doce de goiaba espirra muito. Ela punha uma caixa de papelão na frente, a gente ficava mexendo até dar o ponto, tinha dia que às seis horas da manhã a gente estava saindo de lá. Nem dormir, não dormia. Fazia aqueles doces, depois eu vinha com ela aqui, para trazer.

P/2- A senhora vinha para São Paulo?

R- Vinha para São Paulo. Depois eu saí de lá, vim morar aqui, em São Paulo, com uma outra patroa. Foi com essa outra que eu saí para casar, porque eu comecei a namorar e o papai achava que tinha que casar, porque não ia deixar uma moça aqui, namorando com um rapaz aqui de São Paulo. Aquela coisa. Com um rapaz aqui de São Paulo, então não podia. Eu peguei, comecei a namorar ele, fui lá pra Alfenas. Meu pai já estava lá. Foi lá em Alfenas, meu pai levou ele para conhecer e meu pai já marcou [o casamento], porque tinha que casar logo.

P/2- Dona Marta, a primeira vez que a senhora veio para São Paulo, com sete anos, que a senhora saiu de Alfenas e veio para cá, a senhora se lembra o que achou da cidade? A senhora tem alguma imagem dessa cidade?

R- Eu gostei. Era bonde, aquela época. Eu pouco saía, porque eu só saía com a patroa. Eu gostava daqui, mas eu chorava muito por causa do meus pais, porque eu não estava acostumada, nunca tinha saído. E depois eu era uma menina, eu queria também, às vezes, brincar, e eu não podia brincar. Nessa época quando eu vim, depois eu fui trabalhar na casa de uma senhora que tinha duas menina gêmeas, para poder... Eu ia ser pajem delas, eu pajeava as menina. A empregada, a outra cozinheira, faziam aquelas papinha de legumes batida no liquidificador, era hora do almoço, para eu dar para as menina. Mas o que acontece? As menina não queriam comer e eu comia tudo (risos). Acho que por isso que eu estou gorda desse jeito (risos). Então eu comia depressa e, na hora da sobremesa, que era uma maçã raspada para dar para as meninas, isso pensava assim: "As meninas deviam não querer." E eu estava cansada de comer aquela sopa. E as menina deviam de não querer, eu amassava e elas comiam. Então essa patroa falava assim: "Marta, você nunca vai poder sair da minha casa, porque minhas filha só comem com você." (risos) "Minhas filha só comem com você. Olha, a hora que você não está aqui, se é hora de almoço essas menina não comem. Eu já lutei, Marta, para ver essas menina comerem, elas jogam tudo para fora e elas não comem. Com você elas comem". Então, ela põe aquele... Ai gente, eu não aguentava mais (risos). Punha aqueles prato de sopa, eu olhava para o lado, olhava para o outro. E comia.(risos). Eu não aguentava mais comer sopa, porque olha, todo dia a mesma coisa. Deus me livre! Deus que ajudava, as meninas estavam gordas, porque já veio gorda mesmo. Mas de comer, não era, não, porque elas não comiam. Só dava maçã para elas comerem, fruta elas adoravam, mas a comida quem comia era eu. Bom, depois eu peguei, conheci meu marido.

P/2- E onde a senhora conheceu seu marido?

R- Olha, você sabe que eu fui com uma moça... Uma empregada que trabalhava na casa que eu trabalhava, nós duas, nós fomos assistir um show num parquinho, lá em São Miguel.

P/2- Nessa época, estavam lá em São Miguel?

R- Não, eu estava morando na cidade, de doméstica.

P/2- Sei. Em São Paulo, morando...

R- Eu trabalhava na Penha. Eu fui com essa minha amiga lá em São Miguel assistir um show num parquinho. Mas tinha que ir à tarde, porque à noite a patroa tinha hora certa: "Oito horas tem que estar em casa, porque o teu pai e a responsabilidade, não sei o quê." Mas porque eu já estava mocinha, já deixava. Então eu fui. Chegamos lá, estava todo mundo tocando. Eu vi aquele negrão lá, começou a olhar para mim (risos). A minha amiga falou assim: "Ai, Marta, toma cuidado. Não pode namorar esses rapaz de São Paulo, porque são tudo pilantra." Eu falava: "Mas eu não vou namorar, eu estou só olhando." Ele desceu para vim falar comigo. Veio falar comigo, perguntou da onde eu era e eu falei, conversamos. Ele pegou, marcou se podia vir onde eu morava, logo assim, de cara. Queria que eu... Aí eu falei que tudo bem. Eu dei o endereço, porque eu tinha que falar para a minha patroa que eu arranjei um namorado. Mas a minha patroa pegou, veio... Ele veio, ela veio conhecer ele. Mas só que ela... Eu nunca fui namoradeira, nunca deu tempo.

P/2- Esse era o primeiro namorado?

R- Esse foi o primeiro namorado.

P/2- Como que ele chamava?

R- Renato.

P/2- Renato?

R- É. Aí falou para minha patroa. Minha patroa deixou, mas ele tinha que ir lá. Eu não saía com ele, porque ela não deixava. Depois eu me enchi tanto que eu falei: "Eu fico só aqui com esse cara. Esse cara é músico, vai ver ele tem tantas mulher por aí." Eu peguei, terminei, não quis saber mais. Comecei a namorar um outro, mas também não deu certo, porque a minha patroa já achou que ele tinha uma cara assim… Ele não gostava muito de trabalhar, larguei. Esse, que era o Renato, voltou a me procurar. Com ele, peguei, casei.

P/1- Vocês namoravam em casa ou vocês passeavam na cidade?

R- Não, minha patroa não deixava. Namorava ali no portão. Depois nós fomos viajar para conhecer os meus pais. Chegou lá, viajou, conheceu o meus pais, já falou para os meus pais que queria casar comigo, que gostou de mim. Meu pai falou que se casava, era para casar logo, porque a filha dele não podia ficar aqui em São Paulo, assim. Já deu aquele sermão. Aí marcou, nós casamos.

P/1- Seus pais, nessa época, estavam morando onde?

R- Em Alfenas.

P/2- O seu pai, depois daquela cura, nunca mais teve nada?

R- Nunca mais. Ele faleceu porque Deus quis. Ele ainda demorou muitos anos.

P/2- Ele voltou para Alfenas e estava bom?

R- Voltou para Alfenas e estava bom.

P/2- Entendi.

R- Aí casamos. Nós moramos na Penha, nós fomos morar lá. Primeiro eu fui morar com a minha sogra. Eu me dei muito bem com a minha sogra, me dava muito bem com ela. Ela está com 102 anos, está viva ainda. E ela quer vim morar comigo.

P/1- Ela mora onde?

R- Na Penha, São Miguel.

P/1- Sei.

R- Ela quer. Ela pediu para eu buscar ela para morar comigo. Eu não sei como que eu devo fazer, porque ela está esclerosada. No fundo eu tenho pena dela, mas também, para eu trazer... Eu dou as coisas para ela que ela precisa, tudo. Aqui em casa é só escada. Para ela ficar durante o tempo na cama também é pecado. Aqui eu não tenho quintal, e lá ela mora numa casa térrea e eles, de vez em quando, pegam ela pelo braço e saem. Mas ela está muito sozinha. Eu estou pensando que eu estou quase... Fazer o quê? Trazer, porque ela foi muito legal comigo. Ele, no começo, nossa, a gente viveu muito bem. Tinha aquela vida tranquila, mas depois, você sabe como é músico. Músico não é flor que se cheira (risos).

P/2- Ele tocava num conjunto?

R- É, ele tocava num conjunto.

P/2- Como é que chamava o conjunto?

R- Eu não lembro o nome. Ele tocava mais assim. Ele acompanhou a

ngela Maria, o Zeca Pagodinho. Ele tocava muito bem.

P/2- Qual é o instrumento?

R- Guitarra. Ele começava... Com muita luta, muito sacrifício. Foi aqui na... Ai, meu Deus. Aí na Quarta Parada, perto do cemitério da Quarta parada, aquelas agência de carro. Eu fui e comprei um carro de lá. Pode olhar que tem até hoje. E ele é muito meu amigo. Nessa época, ele fez essa... Ele abriu uma agência. Só tinha um Fusca e um carro, um Chevrolet. Eu fui lá, comprei o Chevrolet e paguei esse Chevrolet, porque eu não tinha condições de pagar, com defumações, para ajudar ele a levantar. Hoje aquilo ali tudo é dele (risos).

P/2- Ele deve à senhora, então?

R- Ele fala: "Marta, o primeiro tijolo da minha casa, eu devo a você."

P/2- E onde que é? Que bairro que é, dona Marta?

R- Aqui em baixo, na Água Rasa. Na [rua] Tobias Barreto.

P/2- Sei.

R- Então, aquelas agências de carro. Você pode passar lá e você vê. Tem, pode olhar. E tem uma outra, que ele tem ali perto da... Ali no Tatuapé, ele tem duas agências.

P/2- E a senhora sabia dirigir, dona Marta?

R- Não, eu entrei na auto-escola. Para mim foi outra luta.

P/1- Isso em que ano?

R- Isso aí...

P/2- Já estava casada?

R- Já estava casada, já tinha meus filhos, pequenininhos, mas tinha.

P/2- Já é quase...

P/1- Década de setenta já?

R- É. O meu sonho era vontade de dirigir. Entrei na auto-escola. Minha auto-escola, eu lembro até como hoje. É Auto-Escola Pachá. A minha instrutora era a Leonor. Ela ainda vive, nós temos amizade até hoje. E eu pagava essas aulas para ela olhando carta (risos). Eu olhava a carta, descontava as aula e eu ia indo. Quando eu terminei de fazer as aulas, tudo, eu fui para tirar lá no Detran. Estava uma chuva que Deus dava. E eu sentada ali no volante, precisava fazer a baliza. Eu não ia nem para frente nem para trás, porque tinha um cara lá com uma cara...

P/2- De general?

R- De general. Ele pegou, fez para mim: "Ou vai para frente ou vai para trás." (risos) Eu falava: "Mas também, você com essa cara me olhando, como que eu vou fazer?" (risos). Não dava nem para sair do lugar. Ele deu risadinha, eu afastei, fiz a baliza direitinho. Tudo bem, passei. Dali dois dias mandaram minha carta. Era duas horas da tarde. Eu fui lá e busquei o carro. Falei: "O carro já está pago. Já fiz tanta defumação, já paguei o carro, e agora, eu vou ir buscar o carro." Menina, eu tirei carta com Fusca, um Chevrolet 52... Você conhece Chevrolet, né? Aquele carrão antigo, pesado para caramba. Eu vim dirigindo. Eu não sabia nem onde era a primeira, nem segunda, nem nada. Cheguei em casa, era duas horas da tarde.

P/2- Lá na Penha, ainda?

R- Eu já estava morando ali na Vila Diva. Eu tinha mudado. Eu cheguei em casa, eu falei para o meu marido: "Renato, eu vou para Alfenas." O Renato: "Como você vai para Alfenas?" "Eu vou pegar o carro, vou para Alfenas." Eu pus onze criança dentro do carro. Meus filhos e minha sobrinhada, ao todo onze.

P/2- Nossa!

R- Tudo um em cima do outro. Comprei pão, mortadela e água à vontade. Olha, a história é triste (risos). Entramos, meu marido falou assim: "Pois é, você não tem amor na tua vida, eu não te acompanho porque eu tenho amor na minha. Então vai. Teus filhos são inocentes, não sabem o que é, vai com você." Depois eu falei: "Isso. Nós vamos mesmo para Alfenas." Eu não sabia como ia para Alfenas, porque a Fernão Dias, naquela época, era terra, mato. Pois eu peguei o carro e eu fui. Aquela loucura. A minha doidera de dirigir, todo mundo via que eu estava dirigindo. Queria ir pra Alfenas mostrar que eu estava dirigindo.

P/2- Dona Marta, a senhora já tinha voltado alguma vez, desde que foi lá com seu marido?

R- Só uma vez.

P/2- Só uma vez? Aí essa foi a segunda vez?



R- Segunda vez, eu queria ir de carro mostrar que eu estava melhorzinha. Porque fui lá, na primeira vez, toda danada, então eu queria mostrar que eu estava melhorzinha. Aí fui. Alfenas a gente fazia, naquela época, com doze, treze horas de carro, por Fernão Dias, porque a estrada era muito ruim. Devagar, era com doze horas. Eu fiz em três dias.

P/2- Nossa!

R- Eu pensei que eu estava chegando em Alfenas, eu estava chegando no Rio, porque eu não perguntava. E viajando de dia e de noite, o rádio naquela maior altura, as criança tudo cantando. Eu estava a mulher mais feliz do ano (risos). As criança tudo cantando e comendo pão. O carro era só pão e mortadela, garrafa de água à vontade. Quando eu fui chegando assim, à noite... Porque naquela época, os postos ficavam abertos a noite toda, não era igual agora. Começou ____ chegando, eu parei no posto para pôr gasolina e perguntei para o moço: "Ali é Alfenas?" Ele falou: "Não, ali é o Rio." Eu virei, mas eu não estava apavorada, não: "Como que faz para ir para Alfenas?" "Agora, a senhora tem que chegar até lá. A senhora faz o retorno e vem. Pega essa estrada aqui e a senhora vai embora. Depois, mais para frente a senhora pede informações." É o que eu fiz. Olha, eu passava em tanta cidade que eu nem sabia onde era. Parava para as crianças fazerem xixi. Eu nem pensava, você pensa bem... Agora eu saio, mas eu já penso: "Se furasse um pneu?" Eu com aquelas crianças de noite. Farol era assim, eu não sabia onde era o farol baixo. Eu só deixava o farol alto, se eu ia pôr no baixo, apagava tudo. Então eu ia só farol alto. As pessoas vinham, me via na estrada, eles tudo encostava e me dava caminho. Eu achava que era porque eu estava dirigindo muito bem, que todo mundo estava encostando para eu passar. Mas acho que era medo de eu bater com aquele carro em cima e acabar com o carro dos outro. Eu fui, levei três dia. Quando eu cheguei em Alfenas, fui chegando perto da casa da minha mãe buzinando, com aquele maior prazer. A minha mãe olha e me vê com aquele monte de crianças naquele carro. Minha mãe quase caiu dura, ela ficou até doente. Ela falou: "Eu não acredito." Quando foi para voltar, eu já voltei melhor, porque meu irmão me ensinou onde era a primeira, a segunda, a terceira, a quarta. Porque o Chevrolet é de mudar a marcha em cima.

P/2- Na mão?

R- É, na mão. Não é aqui embaixo. Meu irmão pegou, me ensinou. Então eu já vim mais tranquila, eu não demorei três dias.

P/1- Demorou quanto tempo?

R- Eu saí de lá de manhã cedo, era umas oito horas. Nós tomamos café, minha mãe, minha cunhada fez bastante lanche. Não veio mais com pão com mortadela, trouxe bastante coisa. Nós chegamos parece que foi meia-noite ou uma hora da manhã. Demorou um pouco, mas...

P/2- Nessa viagem a senhora tinha levado dinheiro? Como era? Vocês iam parando?

R- Só para pôr gasolina. Já levei pão com mortadela para ninguém parar para comer nada. E água, porque não dava. Só levei dinheiro para a gasolina. Aí eu vim. Meu marido, então, esse dias que eu estava, ele deitou e rolou, aproveitou. Eu não estava, né? Porque meu marido nunca teve muita responsabilidade. Toda a vida eu que segurei os pepino da casa. Era aluguel para pagar, eram as crianças, tudo, depois minha cunhada. Meu irmão trabalhava na Camargo Corrêa. Depois eles transferiram ele. O que meu irmão fez? Meu irmão veio com a minha cunhada, trouxe todas as criança para a minha casa. Minha cunhada tinha oito crianças. E minha cunhada nunca me deu um tostão para ajudar comprar um pão para essas criança. Eu, sozinha, tinha que lutar. Então, o que acontecia? Minha cunhada chegava aos domingos, ela batia no meu vitrô. Eu morava num cômodo e cozinha com esse monte de criança. Ela batia no vitrô, eu olhava e ela falava assim: "O mano está bem?" Eu falava: "Está." Que era o caçulinha dela, pequenininho. "Então não vou entrar, porque senão ele vai começar a chorar." Voltava para trás e deixava. Eu que criei todos. O que eu já criei de criança... Por isso que Deus me ajuda, viu? Está tudo casado. Graças a Deus, todo mundo deu gente. Minha cunhada pegava, ia embora e nem ligava. E meu irmão trabalhava, ficava para lá. Ninguém nunca me deu um tostão nem nada. Então tinha dia, meu marido ia tocar e chegava: "Preta, eu trouxe aqui um dinheiro para você comprar um frango para nós, domingo." Eu falava: "Vai comer frango sem arroz?" Eu não ia, eu tinha que fazer uma compra. Fazia aquela comprinha, comprava. Mas Deus era tão bom para mim que eu nunca deixei meus filhos passarem fome. Chegava de manhã cedo, eu acordava e eu olhava, não tinha um pão para eles. Então eu tinha garrafa de cerveja lá. Eu vendia a garrafa, comprava o pão e repartia a fatia para todo mundo. Todo mundo comia tudo. Eu cismei, falei: "Sabe de uma coisa? Eu vou começar a trabalhar fora." E eu olhava as cartas já. Então minha casa, como era pequena, fazia fila no quintal. Ia entrando de uma por uma para eu atender. Mas só o dinheiro das carta não ia dar.

P/1- Nessa época a senhora estava morando onde?

R- Lá na Vila Diva - vai escutando - famosa, mas estava passando o maior dos apuro. Eu falei: "Eu vou pegar e vou começar a costurar para fora." O que eu fazia? Eu vim na 25 de Março, peguei aqueles shorts que eles davam, vinha tudo cortado. A minha cunhada morava nos fundo, ela era costureira. Eu falava para a minha cunhada me ensinar. Então ela mandava a menina dela vim me ensinar, porque eu não sabia nem enfiar uma agulha na máquina. Primeiro passava muita gente vendendo as coisas na porta. Então, passou um cara vendendo máquina. Vendia tudo quanto é coisa na porta. Eu comprei a máquina e meu irmão estava morando comigo, veio de Alfenas para trabalhar. E meu irmão ia casar. Então meu irmão deixou um dinheiro para eu guardar para ele, para ele comprar o terno e as alianças. Ele ia lá para ficar noivo, porque ia casar. Eu falei: "Sabe de uma coisa? Eu vou pegar esse dinheiro do meu irmão e vou dar de entrada na máquina. Aí eu começo costurar e quando meu irmão pedir, eu já tenho o dinheiro para pôr no lugar." Fui e comprei a máquina. Minha sobrinha me ensinou e eu comecei a costurar. Eu vinha da Vila Diva na 25 de Março a pé, com aquela sacola na cabeça. O short vinha deste tamanho. Eu começava a errar nas costuras, porque eu fazia o zigue-zague e não pode. Depois começava a recortar e o short ia tudo desse ______. Chegava lá e o medo? Porque eles revistam short por short, eu falava: "Agora, pronto. Eu vou voltar com esses shorts tudo de volta e não recebo." Mas Deus era tão bom! Passava, eles nem viam os erros.

P/2- A senhora costurava para as lojas da 25 de Março?

R- É, da 25 de Março, porque eles davam costuras, shorts.

P/2- A senhora ia lá, pegava o pano...

R- Não, trazia tudo cortado.

P/2- Trazia cortado e passava a costura?

R- Passava a costura. Já vinha tudo cortado, então eles passavam. Eu só fechava os short. Depois a gente ia levar.

P/1- A senhora ia para a 25 a pé?

R- Eu ia a pé.

P/1- E voltava a pé?

R- E voltava a pé para economizar o dinheiro, para não deixar faltar nada para as crianças.

P/1- E a senhora lembra se nessa época já tinha ônibus?

R- Já, já tinha ônibus. Eu ia a pé e voltava a pé. O que acontecia? Chegava lá, tinha os marreteiros vendendo umas camisetas no chão. Eu pegava aquele dinheiro, eu comprava duas, três camisetas para eu chegar em casa e revender. Então eu comprava as camisetas, chegava lá, os fregueses já vinham e eu mostrava que eu estava vendendo roupa. Eram duas, três, não tinha condições de comprar mais. As freguesa olhavam, compravam. Não comprava porque achava boa, porque não era... Comprava acho que para me ajudar. Elas falavam para mim: "Ai, dona Marta, aquela camiseta que a senhora me vendeu, só de eu pegar nela ela ficou deste tamanho." (risos) Eu falei: "Ai, menina, você desculpa, mas não era isso. O rapaz falou que era uma malha boa, como eu não conheço malha... Mas a próxima você vai ver."

P/1- E esse trajeto que a senhora fazia de casa até a 25 de Março? A senhora lembra em que bairros a senhora passava, como era a paisagem?

R- Menina, eu cortava caminho. Então eu ia, eu passava ali pela Vila... Eu não lembro como era onde eu passava lá.

P/1- A senhora lembra o que via na cidade? Se já tinha muitos prédios?

R- Tinha prédio, mas não tanto. Alguns prédios.

P/2- Tinha bonde ainda, na época, não?

R- Não, na época já tinha ônibus. Não tinha bonde, era só ônibus. Mas não era tanto ônibus como agora. Eu trazia, chegava em casa. Dia de feira, ia na feira. Deixava no fim da feira... Porque fim da feira que é bom. Trazia, comprava as coisas, as crianças todas comiam. E minha cunhada não estava rica, mas estava bem de situação, com o marido dela muito bem empregado. Meu marido não tinha responsabilidade. Ia só tocar, mas dinheiro de músico não mantém uma família.

P/2- E a senhora já tinha tido todos os filhos?

R- Todos os filhos. Faltava o Edilson, que ainda não tinha nascido.

P/2- Conta para a gente, para ficar registrado, quantos filhos a senhora teve?

R- Ao todo?

P/2- É, ao todo. Quantos a senhora tem?

R- Eu tenho quatro.

P/2- Tem quatro?

R- Quatro filhos. Fora a Daniele, que eu crio.

P/1- Mas morreu algum, não?

R- Não. Nunca perdi, nunca morreu, nunca tirou. Foi só isso mesmo, parou porque... Já pensou? Vai escutando. Eu peguei e ia lá pra 25, voltava, tudo bem. Meu marido falava para mim assim: "Porque eu não quero que você fique andando muito para a 25 de Março a pé." Eu falava: "Mas você..." Ele não me dava dinheiro de condução. Eu ia na feira, fazia a feira, comprava as coisa para as crianças. As criança nunca passaram fome, graças a Deus. Eu sempre a trancos e a barranco. Depois tinha uma farmácia perto da minha casa. A moça perguntou para mim se eu queria trabalhar lá aos domingos, porque dia de semana não tinha tempo. Trabalhar aos domingos para fazer limpeza, faxina, tudo. Então eu ia domingo, fazia a faxina, passava a roupa, fazia todo o serviço para ela e levava... Antes do caçula, eu levava ele comigo, e outra hora, eu deixava ele com as outras criança lá dentro. A mulher me dava o almoço, eu não almoçava, eu trazia. Chegava aquele almoço, eu dava para todo mundo deles. Porque a minha cunhada estava mais ou menos de situação. Tinha duas cunhadas, a minha cunhada e a tia dela. Eu morava no meio, uma na frente e outra no fundo. Então dia de domingo elas faziam pernil, maionese, frango, tudo. Elas punham para a cachorra... Ela tinha uma cachorrinha. Um prato na porta da minha casa para a cachorra delas comerem. E meus filhos não tinha nada disso. Por isso que hoje em dia eu te falo: "Você me dá um tapa, mas não me dê batatinha com carne moída."

P/1- Porque era o que a cachorra comia?

R- Não, o que eu comia de domingo. Nosso prato do dia, domingo, eu com meus filhos era batatinha. Eu não posso ver. Eu olho a batatinha com carne moída, eu lembro daquilo que eu passei. Eu não posso ver, eu não como (risos).

P/1- Sei (risos).

R- Então era batatinha com carne moída.

P/2- Vocês ainda pagavam aluguel lá?

R- Pagava o aluguel. Não podia atrasar o aluguel um dia, porque eles faziam um barraco, montavam um barraco na porta. E meu marido não estava nem aí. Era o irmão do meu marido que era o dono.

P/2- Como que era a casa, dona Marta?

R- Era um cômodo e cozinha, só. Banheiro fora.

P/1- Até essa época, a senhora já tinha morado numa casa maior? Ou sempre foi muito pequena?

R- Não. Antes, quando eu casei, eu morei com a minha sogra. Depois eu morei numa casa. Era um cômodo e cozinha, mas era só eu e meu marido e dava. Um cômodo e cozinha para mim, meu marido, os filho e mais um mundaréu de sobrinho, era difícil. Então eu separei o quarto. Pus o quarto assim, ficou a minha cama e tinha um joguinho de sofá, um sofá que eu tinha ganhado. Tinha uma cama de abrir e fechar, eu ponho na cozinha. Durante o dia eu fechava as duas camas que tinha e, assim, a gente vivia.

P/1- E os meninos dormiam onde?

R- Os meninos dormiam no sofá, outro eu ponho numa caminha de abrir e fechar e os outro eu punha no chão. Três dormiam nos pé da minha cama. Você faz uma ideia, porque é que foi vida?

P/1- Com certeza.

R- Chegava o dia seguinte, minha cunhada falava assim: "Marta, você quer lavar um pouco de roupa para mim?" Porque ela tinha muita criança e era muita roupa. Eu falo: "Lavo" "Porque tem uns pães duros, aqui, e tem esse osso do pernil que as minhas crianças não comem carne amanhecida. Você leva e tira para os teus filho." Eu pegava o osso, as crianças ficavam todas alegre. Eles nunca foram na casa dela para pedir nada, eu criei eles ali. Eu pegava o osso, tirava toda aquela carninha do osso, toda feliz. Pegava aquele pão duro. Nossa, era uma glória para a gente. Eu lavava aquele tanto de roupa, que só Deus sabia. A troco daquilo. Mas olha, nunca cheguei, falei que aquilo para mim era humilhante. Eu sempre aceitei, porque estava me dando, eu estava precisando. Mas eu achava que ela não precisava humilhar tanto, principalmente na hora de dar o osso do pernil. Eu acho que não precisava. Então já que não podia me dar a carne, não ia me dar osso também, para os meus filhos, mas já que ela dava... Meus filhos queriam comer um pedacinho de carne porque fazia tempo que não comia, eu fazia tudo ali e eles comiam. E eu ficava feliz. Depois minha cunhada viu que foi aumentando muito, cada vez mais, minha clientela. Minha cunhada começou a falar que ela também olhava carta. E ela não precisava, era costureira, o marido dela trabalhava aqui na gráfica, na Abril. Ele aposentou esse ano passado na Abril. Ano passado, não. Faz mais anos, mas ele ainda estava trabalhando aposentado lá. Ela não precisava disso. Aí começou. Então ela pegava uma das minhas sobrinha, deixava no portão. Quando as pessoa batiam na porta, dizia: "Aqui que mora a dona Marta?" Ela falava: "É." Mas passava direto na minha porta e ia lá no fundo.

P/2- Estava roubando seus clientes?

R- É. Mas eu, nem com isso, nunca liguei. Aí o que ela fazia? As clientes voltavam e falava assim: "Para que é essa fila?" "É para a gente olhar a carta aqui, com a

dona Marta." "Mas a dona Marta não é no fundo? Eu fui lá no fundo." "Não. Lá no fundo é a cunhada dela, nem sei se olha". A pessoa falava: "Então eu vou olhar”. Eu fui lá no fundo. Com isso, as próprias pessoas não iam lá não porque eu barrava. Para mim...

P/2- Porque descobriram?

R- Porque descobria e via que não era nada daquilo. Depois meu marido pegou, começava assim: ia tocar, pegava o meu Chevrolet. Um dia chegava, no domingo, oito horas: "Olha, bem, cheguei agora porque estourou um pneu." Outro dia chegava às nove: "Olha, bem, cheguei agora porque esse carro está dando tanto problema." E eu pegava o carro, não via problema.

P/1- Ele era de beber, não?

R- Não. Muito de vez em quando, uma cerveja. Nunca foi de beber. Tomava uma cerveja, mas não era aquelas coisa. De vez em quando.

P/2- Dona Marta, e ele não ligava que a senhora lia carta, atendia as pessoas?

R- Às vezes. Quando ele não tinha o que falar, ele implicava. E falava para mim que eu ficava trabalhando feito burra. Mas eu tinha que trabalhar feito burra, se ele não sustentava como se devia. Porque tocava, chegava o dinheiro de domingo, dava aquela mixaria na mão que era para comprar um frango, sendo que você precisava de um arroz, de um feijão, de um pó de café, tudo. Com tanta criança. Ele não tinha o direito de falar, de me proibir. Eu peguei, comecei a ver, falei: "Esse homem não sei. Mas eu vou deixar para lá. O que os olhos não vê, o coração não sente. Eu não enxerguei, não vi nada." E sempre trabalhando. Minha cunhada começou a implicar muito, eu falei: "Está na hora da gente se mudar daqui. Ver se Deus me ajuda que eu arranje uma casa maior, que eu possa ir com essas crianças todas." Porque eu não podia ficar toda a vida ali. Aí chegou uma freguesa minha que morava aqui no Brás. Ela chegou, falou assim: "Marta..." Eu estava procurando casa para mudar, mas só eu saía para procurar casa. Eu fui procurar fiador, procurar casa, meu marido não estava nem aí. Ela falou: "Lá no Brás tem uma casa que faz tempo que está com uma placa 'aluga-se' e ninguém nunca alugou. Vamos até lá." Eu falei para o meu marido: "Eu vou lá no Brás ver." Eu nunca tinha vindo para o lado de cá. Eu vim com ela, chegou aqui, era essa casa. Mas ela era um sobrado daqueles bem antigo, aquelas janelona alta, sabe? Bem antigo mesmo. E estava a placa. Eu peguei, olhei, tinha que ir na imobiliária. Eu falei: "Como que eu vou na imobiliária…”

P/1- Isso era que ano?

R- Isso aí já era quando eu mudei para cá.

P/2- 72?

R- 72. Eu peguei, falei assim: "Eu vou falar na imobiliária." Eu consegui arranjar uma fiadora, mas a minha fiadora... Como eu estava falando...

P/2- Da imobiliária, né?

R- É, eu fui lá, falei na imobiliária. A imobiliária falou que podia alugar, viu a ficha, tudo direitinho, mas [falaram] que a moça que eu arranjei para ser a minha fiadora era muito fraca, porque ela morava num cômodo e quem sustentava ela era a Igreja. Eu falei: "Como que eu faço? Eu tenho que mudar de lá, eu não aguento mais aquelas..." Eu nunca briguei, nem nada, mas era muito humilhante. Eu sentia o que eles faziam para os meus filhos. Às vezes vinha um sorveteiro lá, passava e gritava: "Olha o sorvete!" Todas as criança compravam sorvete. Eu não tinha dinheiro para comprar e eles... Sabe como é criança, minha sobrinhada toda... Minha cunhada comprava para todas as crianças, para os meus não. E nem meu sobrinho. Então eles fazia assim: "Toma." Quando as crianças iam pegar para chupar, eles tiravam. Aquilo para você, que é mãe, é dolorido. Eu peguei, pedi para o sorveteiro. Falei: "Pelo amor de Deus, o senhor passa aqui, que o senhor tem que vender seu sorvete. Mas as crianças compraram, você vai embora. Não fica aqui em pé esperando e falando para as criança 'Vai lá, fala para a mamãe vim comprar'. Porque eu não tenho condições." Quando chegou o sorveteiro, fazia por capricho. Chegou um dia, eu falei: "Hoje ele me paga." O sorveteiro, eu falei: "Vem, filhos." Meus sobrinho veio tudo com dinheiro, eu falei: "Não dá , não. Hoje a tia tem dinheiro, a tia paga." Comprei sorvete para todo mundo. Até as pessoa que passaram na rua eu dei sorvete (risos). Te juro, para todo mundo. Não deixei pagar ninguém. Deixei a caixa do homem limpinha. Eu falei: "Agora se o senhor quiser, o senhor vai receber no céu ou vai lá na delegacia dar queixa de mim. Eu não tenho dinheiro para pagar. O senhor nunca mais vai passar aqui para fazer isso que o senhor fez." O homem quis morrer, o homem até pulou, mas eu nem esquentei a cabeça. Entrei para dentro e deixei ele falando sozinho. Nunca mais o homem passou lá. Lógico, o mocinho ficava agora vendo... Não é verdade?

P/2- É (risos).

R- Não, nunca mais. Nunca mais ele passou lá.

P/2- Que ótimo para a senhora!

R- É. Aí eu mudei para cá, tudo bem. Quando chegou aqui, a mulher não aceitou a fiadora. Eu falei: "Ai meu Deus, como que eu vou fazer?" E meu marido nem esquentando.

P/2- E o que a senhora achou do bairro quando a senhora chegou? A senhora deu uma olhada?

R- Eu gostei.

P/2- A senhora andou a pé?

R- Andei a pé, eu gostei. A moça falou assim: "A dona da casa mora ali, essas propriedades são tudo dela. Ela mora ali, do lado de lá." Ela faleceu. "Perto da igreja." Eu falei: "Vamos lá." Eu cheguei lá, ela chamava dona Gertrudes.

P/1- Dessa vez a senhora vinha da Vila Diva para cá?

R- Para cá.

P/1- A pé?

R- Não, eu vim de ônibus junto com essa minha amiga. Eu cheguei lá, falei: "A senhora que é a proprietária daquela casa ali?" A proprietária: "Por quê? Você gostou da casa?" Eu falei: "Eu gostei, mas é que eu fui na imobiliária e eles acharam que a minha ficha era muito fraca, porque a moça que pode ser a minha fiadora só tem um cômodo e a Igreja é quem sustenta ela. Então não vai dar para eu ficar por isso, porque eu não tenho outra fiadora." Ela falou: "Vai lá. Dá uma olhadinha na casa direitinho, se você gostou." Eu cheguei aqui, para mim era um palacete, porque quem estava num cômodo e cozinha... Tinha dois quarto, a sala, a varanda, a cozinha e o banheiro. E tinha um quintalzinho.

P/1- Um castelo, né?

R- É. Tinha um quintalzinho, tinha uma escada que subia em cima e um terraço, ainda, em cima. Falei: "Para mim, isso aqui, nossa! Eu vou morar no céu." Eu falei: "Eu gostei demais, mas o problema é esse." Ela falou: "Olha, eu vou confiar muito na senhora, porque eu fui com a sua cara. Eu vi que a senhora é uma pessoa direita. Toma a chave. Eu vou tirar da imobiliária e a gente, depois, faz um contrato. A senhora pode ficar com a casa." Eu já vim, já limpei a casa, já varri, já lavei, já fiz tudo na casa. Aí fui embora. Cheguei lá, ela foi, tirou a casa da imobiliária. Depois, o genro dela era do Exército, ele bateu um contrato para mim. Eu cheguei em casa, falei para o meu marido que eu tinha arrumado casa. Ele falou: "Aonde?" Eu falei: "É lá no Brás." Ainda achou ruim. Eu vim, arranjei um caminhão. Olha, eu não tinha condições de pagar esse caminhão. O rapaz que trouxe, a mulher dele estava esperando nenê. Então ela falou: "Olha, Marta, eu só quero… (pausa) Minha sobrinha é grande e mocinha já. Mas só a roupa que não." Eu falei: "Não, pode ficar sossegada." E depois vi a roupa, fiz tudo para ela. Cuidei dela, tudo. Quando foi para mudar, eu vim com o caminhão e meu marido com o carro atrás, porque ele não sabia onde que ele ia morar. Você vê bem se isso é um homem. Cheguei aqui, pus a mudança, arrumei tudo direitinho. Quando eu estava pondo as coisas no lugar, eu saio aqui, minha irmã estava internada, faleceu. Chegou o telefonema que era para a família ir lá, porque minha irmã estava passando mal.

P/2- Lá em Alfenas?

R- Não, ela estava aqui. Ela faleceu. Eu fui lá, deixei tudo aqui bagunçado. Minha irmã caçula, era só nós duas de irmã. Ela estava lá no pronto-socorro do Ipiranga. Eu fui, cheguei lá, vi o corpo dela, estava no necrotério. Levei roupa. Meu marido, eu mandei ele avisar meus parente que tinha na Penha, prima, tio. Ele saiu. Ela morreu era cinco horas da tarde. Ele saiu para avisar era cinco horas. Meu marido voltou depois da meia-noite, ainda nem todo mundo ele tinha avisado. Não sei aonde ele tinha se enfiado. Eu troquei a minha irmã sozinha e Deus. Eu fui, eu fiz os papel, eu trouxe o caixão, tudo eu arrumei. Quando ele chegou, ela já estava toda arumadinha. Eu já estava sozinha e Deus lá com ela.

P/2- Do que é que ela morreu, dona Marta?

R- Pneumonia. Ela fazia muita extravagância. E o meu marido aí que me chega. Fiz o enterro, enterrou, tudo, e meu marido naquela vida. Chegou aqui, eu comecei... Continuando na mesma vida, trabalhando. Mas a situação já foi começando... Deus já estava me ajudando mais porque foi começando a melhorar. E ele sempre tocando. Eu peguei esse carro, troquei por um outro. Aí já era melhor um pouquinho. Meu marido e meu sobrinho que moravam aqui, ele ia tocar. Então meu marido, na hora de sair... Às vezes os amigos do meu marido vinham aqui para chamar ele para ir tocar. Eu nunca fiz, porque quando eu conheci ele, eu sabia que ele tocava. E todo mundo, eu acho que tem o direito de usar o que gosta. Eu não era ninguém para proibir, mas só queria que ele andasse na linha, que ele respeitasse um pouco. Já que isso não ia ter respeito mesmo, então que fosse tocar. Tudo numa boa. Os amigos dele chegavam aqui, falavam assim: "Renatão, vamos." Eu mandava entrar, toda sorridente. Eles falava: "Olha Renato, eu tenho até vergonha de quando você vai lá em casa para me buscar para tocar, porque a minha esposa fica toda... Me joga chinelo, me joga sapato, me joga meia, nem te cumprimenta. E a Marta é tão diferente. Olha, eu vou te falar, você ganhou na loteria de esposa, porque a Marta é gente fina para caramba." Tudo bem. Aí meu marido começou a achar ruim, porque o cara falou que eu não brigava e falou que eu não brigava porque eu não gostava dele, que se eu tivesse ciúme dele e gostasse dele, eu ia brigar igual as outras mulheres brigam.

P/1- Meu Deus, mas ele queria era reclamar, né?

R- Eu falei: "Se você não está contente, que arranje uma que brigue, porque eu não vou ficar brigando por isso. Se você faz isso é porque você quer." Então, ele falou para mim assim: "Olha, então você marca bem a partir de hoje." Ele falou, eu lembro como se fosse hoje: "A partir de hoje, você vai chorar lágrimas de sangue por mim." Eu falei: "Se for permitido por Deus, até pétalas de rosa." E eu sempre trabalhando, eu que fazia tudo. A casa era dependente de mim, não era dele, porque ele pouco trazia.

P/2- E o aluguel daqui era muito mais caro que o da Vila Diva?

R- Bem mais caro, porque aqui, você vê o bairro, era bem mais caro, mas dava. Eu pagava parece que era... Não sei se era sessenta centavos, seis centavos. Era uma coisa assim, aquela época.

P/2- E como é que eram os vizinhos quando a senhora chegou aqui, dona Marta? A vizinhança...

R- Essa aqui era a mesma. Aqui, só que mudou. Era um rapaz, ele morava com uma velha, ele largou da velha, casou com essa moça.

P/2- E já tinha essas lojas de tecidos?

R- Não, nada.

P/2- O que tinha aqui?

R- Tinha aqui um bar. Essa vendinha tinha desde que eu mudei para cá. Não tinha esses prédios, não tinha esse aqui. Aqui era uma casa. Era tudo assim, não tinha prédio, não tinha casa. Tinha poucas casas.

P/2- E onde fazia compra?

R- Eu lembro que a gente fazia no mercado, mas era lá na Marginal.

P/2- Pegava o carro e ia?

R- Pegava o carro, ou ia de ônibus. E outra hora a gente fazia mais compras nessa vendinha, porque aqui sempre teve de tudo. Apesar que era mais caro, mas a gente fazia aqui.

P/2- E a senhora chegou a ir, alguma vez, naquela Zona Cerealista comprar legumes?

R- Já fui, já. Eu cheguei lá já.

P/2- E como que era lá?

R- Lá era bem mais barato. Quando eu tinha condições, porque entrava um dinheirinho a mais, eu ia lá, porque já trazia de quantidade maior. Agora, por quilinho, eu comprava aqui mesmo. Aí meu marido começou naquela história. Tinha dia que ele vinha, outro dia ele chegava meio-dia, no domingo. Eu na minha. Eu pensei um dia: "Está demais." Não adianta ele ficar assim. Se eu vou sair, passear ou conversar com alguém, todo mundo vai falar: "Puxa, a dona Marta já está aprontando!" Porque você sabe. Mas ninguém sabe o que se passa dentro de quatro paredes. E ele assim. Chegou um dia, o meu sobrinho, ele falou para mim assim: "Tia, nós vamos tocar lá na..." Sei lá, Vila Alpina parece. "Nós vamos tocar e hoje eu vou arranjar uma nega e o tio Renato vai arranjar uma outra." Eu falei: "Vai com Deus." Falei para eles. Eu tenho muita fé. Aí, o que eu fiz? Eles saíram.

P/1- Tem fé com quem?

R- Seu Zé, ele deu um beijo em mim, tudo bem, e foi. Eu falei assim, pedi. Quando eles saíram, eu falei para o seu Zé: "Se esse homem for aprontar, eu quero que o senhor dê um castigo neles." Tudo bem. Quando eu estou dormindo, uma chuva que Deus dava, o policial bateu aqui na minha porta. Era umas duas horas da manhã. Eu falei: "O que será que aconteceu?" Ele falou: "Por favor, dá para a senhora descer até aqui?" Eu olhei da janela e eu desci. Ele falou: "A senhora dá para acompanhar nós até a delegacia? Porque houve um acidente com o carro e seu marido está lá. Ele não tem carta e só a senhora que pode tirar o carro." Porque ele dirigia e não tinha carta. Eu peguei e fui. Cheguei lá, tinha duas negronas com esparadrapo na testa, porque eles fizeram uns curativos de qualquer jeito. Com aquele esparadrapo na testa e a outra cortada aqui assim, tudo. E ele sentado lá com o delegado, meu marido. E meu sobrinho andando para lá e para cá. Eu entrei na sala, o delegado falando: "Está aí seu esposo." Eu falei: "O que aconteceu?" Ele falou: "Conta a versão para ela." Aí ele falou: "É que o Lula saiu com o carro e o Lula bateu." Ele falou: "Não, não foi assim." Então, o meu marido estava lá dentro tocando. Quando ia terminar o baile, tinha uma mulher que era para sair com ele e a outra com o meu sobrinho. Meu sobrinho sentou no volante, ele não sabe dirigir. Meu sobrinho pegou, acho que não sei se ele foi sair com o carro, e bateu com o carro no poste. Olha, gozado que o carro fez mínima coisa. Mínima. O vidro da frente quebrou tudo, mas meu marido estava cortado, as moças com um galo assim, meu sobrinho cortado. O delegado falou para mim: "O que a senhora acha que eu devo fazer com ele?" Eu falei: "O mínimo que o senhor fizer ele não sente, porque sabe quando uma pessoa que já perdeu a vergonha, já perdeu tudo? O que o senhor fizer, para mim é bom." Ele falou: "Então tudo bem. A senhora pega o carro, a senhora vai. Eu vou deixar ele aqui um pouco, de molho, e depois ele vai." Eu peguei, trouxe o carro, vim embora, cheguei. Chegou no outro dia, de manhã cedo, vem ele e meu sobrinho como se nada tivesse acontecido. Quando passa uns tempo depois, chega uma mulher aqui e toca a campainha. Eu fui lá para saber, ela falou: "Aqui que mora o Renato?" Eu falei: "É." "Eu conheci por causa do carro que está aqui na porta." Antes, meu filho me chamou e falou: "Mãe, tem uma mulher feia lá. Está procurando se aqui é que mora o Renato. Eu falei que ia chamar a senhora." Eu fui lá e ela falou: "Olha, eu vim aqui porque o Renato disse que morava com a tia dele. Então eu vim até aqui porque eu queria falar com ela." Eu falei: "Pois não, bem. A tia dele não está, mas você pode falar." (risos) Lógico. Ela falou assim: "Você sabe por quê? Porque eu conheci ele faz quinze dias e eu estou grávida dele. Eu já tenho quatro filhos, a minha irmã que sustenta esses filhos, porque eu moro com a minha mãe, ela tem 86 anos e eu tenho um irmão que é paralítico. O Renato prometeu ajudar a gente em tudo, que ele tem dois carros,

ia vender um e ia deixar o outro carro para a gente passear. Esse que ele ia vender, era para ajudar a gente." Queria ajudar ela lá. Eu falei: "Então, se é que ele prometeu." Eu falei: "Mas sabe o que acontece? Ele não está agora. Você vem ali para as sete horas." Ele tinha ido ensaiar. "Você vem ali para as sete horas, porque ele vai estar. Aí você fala com ele." "Mas a tia dele não é brava? Porque ele falou que ele tem uma tia... Que não podia vim aqui que a tia dele era brava." Eu falei: "Não, a tia dele é uma santa. Olha, por sinal, ela nem aí está. Ela viajou." Quando chegou mais ou menos oito horas, ele estava deitado no sofá e meu menino, esse que é o caçula, deitado junto com ele, que era muito apegado nele. Não avisei ninguém, não falei nada. Eu peguei, subi. Quando eu vi que tocou a campainha, eu desci e abri. Abri, já logo fechei a porta e falei: "Renato, vamos subir lá em cima, que essa moça quer falar com a gente." Ele sentou, olhou assim, ele viu que era ela. A minha escada era de pau, madeira. Quando ele subia a escada, olha, parecia que o meu marido estava com uma febre, de tanto que ele tremia. Fazia até barulho na escada. A moça na frente, eu no meio e ele atrás. Era no quarto que eu atendia. Eu sentei, ela sentou na cama, ela sentou na cadeira, eu na outra cadeira. Eu falei: "Olha, bem, pode falar." Ela falou: "Renato, por que você sumiu da minha casa?" Ele falou: "Eu mandei você vim aqui por um acaso? Eu mandei?" Eu falei: "Não, Renato, olha." Porque a mulher estava assim: ela era preta da minha cor, com a peruca loira, bem loira. Mas uma senhora mesmo, mais senhora do que eu. Com uma blusa por aqui, com o umbiguinho de fora. Mas tinha que ver. Ela tinha uma presa aqui, de lado, uma falha de dente. Eu falei: "Olha, nega, o que ele te prometeu, ele vai ter que cumprir, porque pelo o que eu vejo, você precisa mais dele do que eu, porque ele nunca me deu nada. Ele depende de mim até da água que ele bebe, porque se ele fosse uma coisa que era conveniente para mim, eu te garanto que você não levava." Eu falei: "Mas para mim, minha filha, não é mais conveniente. Então eu acho que você leva ele e ainda eu te gratifico." "Mas quem falou para você que eu quero sair daqui? Eu não vou." "Você não vai sair, mas eu quero que você saia." Ela falou: "Mas eu não vim aqui para desmoronar laje de ninguém." Eu falei: "Não, você não está desmoronando laje de ninguém. Você está fazendo uma caridade para mim." Nossa, ele brigou, xingou, tudo. Eu falei para ela: "Agora você desça e vai esperar ele lá embaixo." Ela não via a hora de ir embora. Desceu, foi embora. Ela acabou de ir embora, eu peguei uma mala velha que estava debaixo da cama, peguei a roupa dele todinha, pus tudo dentro da mala. Eu falei: "Você aqui, eu não te quero mais. Aqui você não fica." Depois disso, ele ficou aqui acho que um mês, mas ele dormia na sala, no sofá, e eu dormia lá em cima. Eu não dava uma palavra com ele.

P/2- Aí vocês se separaram?

R- Ela não queria ir embora. Tem o Percival Maricato, esse que me ajudou, que foi um dos fundador do Colorado. Você conhece o Percival Maricato?

P/2- Não.

R- É um advogado, ele é candidato...

P/1- Nessa época a senhora já estava engajada na escola?

R- Não, depois que eu comecei. Essa época ainda não, a gente ia começar. O Percival estava ali no bar, tinha um bar na esquina. Ele chamou o Percival, chamou uns três advogados. Eles vieram porque queriam conversar comigo. O Percival já estava enganchado na escola, essa época. Estava no início. O Percival falou assim: "Dona Marta, a senhora precisa de dar uma chance para o senhor Renato. O Renato não é má pessoa, ele é bom. Dá uma oportunidade para ele. Ele está sofrendo muito da senhora não querer mais viver com ele." Eu falei: "Olha, Percival, ninguém é perfeito, todo mundo tem defeitos, mas se você acha que ele é tão perfeito assim, para tudo que é bom tem sempre um cantinho. Leva, filho. Como advogado, você deve ter um cantinho para ele. Porque, para mim, ele não vale nada, mas se para você ele bom, não tem defeito, leva para a tua casa. Não é porque vocês são todos advogado que eu vou querer a palavra de vocês e vou falar 'eu fico porque você está mandando.' Não, eu sei o que é bom para mim, sei o que eu quero." "Tudo bem. Se a senhora falou, está falado. A gente não pode fazer nada." O Percival foi embora e ele não ia embora. Um dia eu peguei o carro, fui lá na agência, falei com o rapaz e trocou o meu carro por uma Brasília. Eu peguei o carro, peguei toda roupa dele, fui lá na Penha, na casa da minha sogra. Cheguei lá, bati na porta. Minha sogra veio, abriu a porta, eu peguei a mala e joguei tudo lá dentro. Coitadinha, ela não tinha culpa, mas eu fiz. Joguei tudo lá dentro, eu falei: "Olha, para o seu filho voltar a prestar..." Falei uns palavreado que eu não vou nem falar e joguei a roupa. Ela falou: "Marta, mas o que aconteceu?" Eu falei: "Olha, dona Odete, a roupa dele saiu daqui, daqui ela está voltando. Agora daí, a senhora faz o que a senhora quiser. Se a senhora quiser queimar, jogar fora, a senhora faz o que quiser. O meu dever eu fiz, devolvi do lugar que eu tirei.” E vim embora. Cheguei aqui, ele estava aqui, aí na porta. Ele veio, eu falei: "Não, você não vai entrar porque aqui não te pertence mais. O que tem teu aqui são os filhos, mas os filhos você sabe que eu não abro mão, porque você nunca foi pai para sustentar". "Mas, eu vou..." "Não, você não vai entrar." Ele não entrou, saiu, foi ali para o bar. Começou a pegar o relógio dele para querer aparecer e penhorar o relógio para poder dar um almoço para ele. Eu nem liguei. Ele sumiu, saiu, foi morar com uma outra mulher. Aí começou a escola de samba.

P/2- Como é que foi, dona Marta?

R- A escola foi assim: tinha uns instrumentos aqui, que o rapaz de Alfenas mandou que eu comprasse para eles para mandar pra despachar para Alfenas. Então eu fui, comprei os instrumentos. E o instrumento estavam aqui para despachar.

P/2- E onde a senhora comprou?

R- Comprei lá na... Ai, gente, eu não sei como é que chama o lugar mais, não. Foi lá na cidade. Estava bem em conta, comprei. Chegou aqui, meus filhos estavam moços, falou: "A senhora me empresta esses instrumentos para a gente ir lá no campo de futebol fazer um batuque?"

P/2- Tinha um campo de futebol, aqui?

R- Tinha um campo de futebol lá embaixo. Eu falei: "Olha, se vocês estragarem os instrumentos, vocês vão ter que comprar outro." Aí eles foram, levaram. Quando eles voltaram de lá, eles falaram: "Nós vamos fazer uma escola de samba aqui no Brás, aqui em casa. A senhora deixa?" Eu falei: "Como que eu vou deixar? Vocês que sabem." Daí começou a se comentar da escola de samba. O que aconteceu? Com aqueles instrumentos mesmo eles começaram a fazer a batucada.

P/2- Aqui na frente?

R- Aqui na minha porta. Depois começaram ter aquela batucada, começou a juntar gente, os vizinhos vinham ver, batucar. Aí já veio o Percival Maricato. O Percival sai na revista da Veja, ele é muito falado na televisão.

P/1- Ele é famoso?

R- É, ele é muito meu amigo. Eu gosto muito dele, ele também tem muita consideração pelo outro. Aí saiu o Percival Maricato, o Tino, o Gino, o Zé Preto, o Tuia e meus filhos.

P/1- A senhora lembra se tinha descendente de italiano que se envolveu com isso?

R- Tinha algumas pessoas.

P/1- Poucas?

R- Poucas.

P/2- Mas a maioria era pessoal daqui que vinha de fora?

R- Não, a maioria eram as pessoas daqui mesmo, do Brás.

P/2- Do Brás?

R- Do Brás. Aí começaram. O que aconteceu? Eu falei: "Bom..." Não tinha lugar para ser sede, não tinha lugar para nada. Então aqui em casa era a sede. Tudo era aqui. Começou a se juntar mais gente, começaram a comprar uns tamborins, comprar umas coisinha. Eu mandei aqueles instrumentos para Alfenas, que era para mandar, e começaram comprar. Um vinha, trazia um instrumento. Outro vinha, trazia outro. Então o ensaio era aqui na rua. Arranjamos duas máquina de costura emprestada e a Odete, minha sobrinha, costurava. A Odete costurava numa e tinha uma outra senhora que costurava na outra, as fantasias. Um costurava as fantasias e, aqui, eles tomavam café, tomavam banho, bebiam água, tudo. E era o ensaio aqui, reunião aqui. A bagunça era toda aqui dentro de casa.

P/2- Ficava cheia a sua casa?

R- Ficava cheia, lotado.

P/2- A senhora lembra como eram as primeiras fantasias?

R- O primeiro carro que nós saímos foi de um tal de Maria-Fumaça.

P/2- Ah, é?

R- É, o nome do carro. O carro alegórico, um carrinho desse tamainho.

P/2- Não era caminhão, é carro mesmo?

R- Não, fizemos um carro do jeito da gente, com rolemã, tudo. Mas desfilamos. Então quando nós saímos no primeiro ano, a gente tinha oito pessoas. Foi lá na Avenida São João. Nós saímos com oito pessoas. Como fundadora, então eu saía na frente e as outras atrás. E o primeiro carro, quem fez foi o Zé Preto. O Zé Preto fez essa tal de Maria-Fumaça. Como nós estávamos desfilando na Avenida São João, a rodinha solta do carro e sai descendo, correndo. Nós largamos o desfile, foi tudo correndo atrás da roda (risos) para não perder a roda, porque o carro estava segurando, porque a turma estava segurando e tinha que pôr a roda. Foi legal demais. Era mais gostoso quando era na rua do que agora, que tem quadra.

P/2- E as pessoas que estavam? A senhora... Porque eram oito pessoas.

R- Era eu, o Serjão, o Zé Preto, o Tuia, o Tino e meus filhos que desfilavam.

P/2- Quantos anos eles tinham, seus filhos?

R- Já estavam mocinhos. E um deles foi o primeiro mestre-sala mirim. Ele era pequenininho e já dançava de mestre-sala mirim.

P/2- E a roupa que a senhora vestiu nesse dia?

R- Eu vesti um vestido... Eu até... É porque eu não peguei as fotos. Mas eu vou tirar outra foto, depois eu dou para vocês. Era um vestido vinho, porque a escola não era vermelho e branco, era vinho. Era um vestido vinho, longo, aberto até aqui e tinha umas flores. O vestido era branco e tinha umas flores vinho. E com... Acho que é uma gola, uma coisa assim, mas tudo longo. Então nós três saímos na frente com essa roupa. Os outros vestiram com uma camisa bordô. Era bordô e branco. Com a camisa bordô e calça branca. Mas era tudo. Depois veio o Adoniran Barbosa. Veio aqui um dia para conversar com a gente sobre a escola. O Geraldo Filme.

P/2- A senhora que atendeu essas pessoas?

R- Eu que atendi. O Geraldo Filme, o... Eu tenho o nome dele aqui, que eu deixei até marcado. O Evaristo. Lembra do Evaristo? O Geraldo Filme.

P/2- Isso foi em que ano, o primeiro desfile?

R- Em 75. Foi quando foi fundado.

P/2- Fazia três anos que a senhora estava aqui no bairro?

R- Fazia três anos. Era o Adoniran, o Evaristo, que é da Cultura, o Geraldo Filme e o Moisés da Rocha, que é um radialista. Esses todos passaram pelo Colorado.

P/2- E como que eles participaram?

R- O Geraldo Filme vinha dar uma força no samba.

P/2- No samba?

R- É, para cantar. E o outro dava uma força. Sabe, eles sempre orientavam a gente, porque a gente começou um Carnaval do nada. Então eles orientavam, eles davam uma força para a gente. Isso foi muito bom. Eles vinham aqui, faziam entrevistas com a gente.

P/1- Foi na rua até que ano?

R- Ficou na rua acho que três anos, ou quatro anos.

P/1- E vocês iam pra que ruas?

R- Desfilava aqui no bairro. A gente sempre fazia... Homenageava o Brás todo, desfilava tudo por aqui. Depois que saímos daqui da rua... Já começou ficar muita gente e aqui, como é passagem de ônibus, não podia. Começou a ter muita gente e nós mudamos para essa rua aqui, Rua Almirante.

P/2- Almirante Barroso?

R- Almirante Barroso. Ali, a prefeitura vinha, cercava a rua e nós, então naquele pedaço a gente ensaiava.

P/1- E os temas sempre foram o bairro?

R- Sempre falava alguma coisa do Brás.

P/1- Mas tinha outros temas que a senhora lembra?

R- Não, que eu lembro...

P/1- Era sempre o bairro?

R- Sempre falava alguma coisa que mexia com o Brás, coisas do passado do Brás. Então quer dizer que foi uma escola com muita luta e muito sacrifício. Eu dei meu sangue para essa escola você sabe por quê? Escola de samba entra o bom, entra o ruim. E todos entravam na minha casa. Mas graças a Deus ninguém nunca me roubou, ninguém nunca me faltou com respeito, ninguém nunca mexeu em nada. Ninguém nunca entrou aqui com droga, nunca tive uma pequena reclamação. Todo mundo me respeitava muito. Depois passamos a ensaiar lá. Era melhor ainda, porque era maior.

P/2- E vocês ensaiavam quantas vezes por semana?

R- Antes do Carnaval a gente ensaiava duas vezes por semana. Quando foi chegando mais próximo do Carnaval, ensaiava mais. Quando era Festa de São João, todo mundo montava sua barraquinha para vender suas coisas. Era muito melhor.

P/2- Fechava a rua e fazia uma Festa de São João?

R- É, um vendia pipoca, outro vinho quente.

P/1- Como é o nome da escola?

R- Colorado do Brás. Grêmio Recreativo Escola de Samba Colorado do Brás.

P/2- Dona Marta, e por que tem esse nome Colorado do Brás?

R- Você sabe o que acontece? Porque nasceu aqui no Brás, então eles queriam arranjar uma cor. Eles acharam que Colorado do Brás seria uma coisa certa. Não sei mesmo porque a gente inventou esse nome. E ficou. Porque tem Vai-Vai, tem Rosa...

P/1- As cores são verde e branco?

R- A nossa é vermelho e branco. O certo é bordô e branco, mas a gente usa o bordô... Como é difícil e o vermelho é mais fácil para achar, então ficou vermelho e branco.

P/1- Vocês desfilam no sambódromo?

R- No sambódromo, é.

P/1- Vocês estão no Primeiro Grupo?

R- Nós estamos no Primeiro Grupo esse ano. Mas já ficamos até no Especial, depois caiu. Depois subiu.

P/2- Que ano foi o do Especial, a senhora lembra?

R- Acho que cinco anos que estava no Especial. E agora nós estamos no Primeiro Grupo. Vamos lutar para voltar.

P/1- Aqui tem Segundo Grupo, também? Tem, não tem?

R- Tem, tem Segundo Grupo.

P/1- E hoje, a escola tem quantos integrantes?

R- Esse ano nós desfilamos com 1320, uma coisa assim.

P/1- E é gente só do bairro?

R- Não, vem pessoas de outras escolas também, porque todas as escolas, eles pegam enxerto, porque só do bairro, não dá para formar uma escola. Então vem de outras escolas. Uma escola ajuda a outra.

P/1- A senhora sabe dizer o que tem mais na escola? São mais os nordestinos, mais italianos?

R- Tem muito nordestino.

P/1- A senhora acha que tem mais?

R- Acho que são mais nordestinos. Agora, lá na quadra, o que frequenta muito, que eles jogam lá, são esses bolivianos. Amanhã vai ter uma festa muito grande dos bolivianos, lá na quadra.

P/2- Na quadra da escola?

R- Na quadra da escola.

P/2- Conta essa história. Porque a prefeitura doou um terreno para vocês fazerem a quadra, não foi?

R- A quadra, é.

P/2- Como é que foi?

R- Então, porque os bolivianos, não é que alugam. A gente cede a quadra para eles porque eles gastam muito no bar. Eles bebem muito.

P/2- Eles são frequentadores?

R- São, os bolivianos. E tinha também os coreanos que jogavam lá aquela... Como é que chama aquele jogo?

P/2- Bocha, taco?

R- Não. Eles puseram uns quadradinho e tem umas bolinhas pequenas que joga assim. Não sei como chama aquilo.

P/1- E eles deixam muito dinheiro lá?

R- Não, eles não deixam não. Eles pegaram, fizeram um contrato com eles. Eles faziam isso, eles gostavam dali e eles construíram a quadra.

P/1- Sei, vocês fizeram uma troca, né?

R- É, eles construíram a quadra.

P/2- Mas o terreno, quem cedeu?

R- A prefeitura.

P/2- A prefeitura cedeu?

R- Cedeu.

P/2- E onde que é, dona Marta?

R- No final da [Avenida] Carlos de Campo.

P/2- Aí já é outro bairro?

R- Não, é aqui mesmo, no Brás.

P/2- É Brás, mesmo?

R- É Brás mesmo. De frente ao Vigor.

P/1- Como que vocês se preparam para o Carnaval, o movimento? O bairro se envolve?

R- A gente pede muita ajuda para os lojistas, eles contribuem com a gente, porque só a verba da prefeitura não dá para fazer um Carnaval. Depois eles vão dando a verba, não soltam a verba de uma vez. Então se não fizer festa, alguém não ajudar, não consegue sair um Carnaval.

P/2- O que os lojistas dão, dona Marta?

R- Pano para a fantasia. A gente passa com o livro de ouro, eles ajudam também em dinheiro.

P/2- O que é o livro de ouro?

R- É um livro que a gente faz para arrecadar dinheiro, então chama livro do ouro.

P/2- Assina...

R- Assina, a pessoa dá. Se der dez reais, ele assina. Quem dá, assina.

P/2- Entendi. Aí vai juntando?













R- Aí vai juntando e aquilo lá vai para a escola.

P/1- Qual vai ser o tema do próximo ano?

R- Agora é a história do Brás.

P/1- Ah, é?

R- É.

P/1- Já foi escolhido o samba?

R- Vão escolher não nessa sexta.

P/1- E têm muitos inscritos?

R- Foram onze sambas, agora tem quatro. Vai caindo.

P/1- E vocês ficam escolhendo? Todo final de semana tem uma etapa?

R- Toda sexta-feira tem uma etapa.

P/1- E aí tem roda, tem batucada?

R- Tem a bateria. As pessoas sobem lá no palco e vai cantando o samba. Depois vê o que é o melhor.

P/1- E o ano passado qual foi o tema? Não, esse ano, né?

R- É, esse ano.

P/1- Foram os quinhentos anos, também, que vocês fizeram?

R- Nesse ano passado?

P/1- Esse ano.

R- Esse agora, foi. A mesma coisa. As escolas disseram que era obrigada a fazer isso. Não obrigado, mas...

P/1- Sugerido.

R- Sugerido.

P/1- E vocês trataram que tema?

R- Esse ano ou o ano passado?

P/1- Esse ano, dos quinhentos anos, qual foi o tema? A senhora lembra?

R- Eu não lembro, não.

P/2- Dona Marta, como que se divide a escola em instrumentos? Quais são os instrumentos que tocam?

R- Todos.

P/2- Qual é a principal ala de instrumento?

R- Sabe por quê? De instrumento, tem tamborim, tem surdo. Eu acho que o surdo, na escola... Sei lá, tem que saber tudo. Saber tocar o instrumento.

P/2- Mulher toca instrumento?

R- Toca.

P/2- A senhora toca?

R- Não, dou uma mão para as meninas na bateria.

P/2- Mas e senhora sai, ainda, na escola de samba?

R- Sai, eu saio.

P/1- Que ala?

R- Teve um ano que eu saí de destaque.

P/2- Como é que foi sair em destaque?

R- Eu adorei, meu sonho era isso e eu nunca tinha realizado. Eu adorei. Ano passado, ano retrasado, eu saí de cigana.

P/2- Olha!

R- Num carro de cigano. Agora, esse ano, como...

P/1- Esse de destaque, a senhora saiu no abre-alas?

R- Não.

P/1- Qual era o tema do carro que a senhora saiu?

R- Era afro.

P/2- Afro?

R- É. Agora, esse ano, como eu sou vice-presidente, eu não vou sair em ala. Porque a gente sempre tem que dar uma mão em alguma coisa. E para sair em ala, já é... Eu tenho que ajudar. E eu estou com vontade de ajudar a organizar a ala das crianças.

P/2- Por quê? Tem uma ala especial de crianças?

R- Tem ala de criança, tem ala das baiana e depende de cada... Tem bastante destaque, tem os pilotos. Cada piloto vai ter a sua ala. Vamos supor, você gostou desse piloto, então você vai fazer tua ala acompanhando aquele piloto.

P/1- Dona Marta, contando a sua vida, deu para perceber que a senhora gosta muito de criança. A senhora organiza a Festa de São Cosme?

R- Organizo.

P/1- Como é?

R- Esse ano eu vou fazer no dia primeiro. Até vocês estão convidados, vocês vêm.

P/1- Dia primeiro?

R- Agora, de Outubro.

P/1- De Outubro? Por que é 27, né?

R- Não, dia 27 é dia de Cosme. Mas eu vou fazer depois.

P/1- Certo.

R- Então eu vou fazer. Eu preparo os doces. Eu ganho muito doce e os que faltam, eu compro. Mas eu ganho bastante, graças a Deus. Eu ponho tudo num saquinho, amarro bem bonitinho. Eu não preciso nem convidar tantas crianças. Às vezes eu convido três, aviso: "Olha, a Festa de Cosme vai ser tal dia." Ano passado eu fiz oitocentos saquinhos. Não deu. No fim os moleques que chegavam por último eu tinha que dar só pipoca, porque tinha bastante pipoca. Ou dava só o saquinho de pipoca, eu não tinha mais saquinho. Era muita criança e eu faço um bolo grande. Depois que eu reparto o saquinho, eu dou pedaço de bolo, dou refrigerante.

P/2- E a molecada vem aqui buscar?

R- Vem tudo aqui. Esse ano eu vou fazer lá na quadra, porque eu quero... Que Deus vai me ajudar e eu vou fazer isso. Eu vou alugar um ônibus e vou lá na favela de São Miguel pegar as crianças de lá, trazer para a festa. Fora os que já tem. Porque lá tem umas crianças, que você olha nas crianças, você vê que eles tem vontade de comer um doce e não tem. Então eu vou fazer isso.

P/1- Vai ser dia primeiro?

R- Dia primeiro à tarde.

P/1- À tarde? Se der eu venho.

R- Então vem, sim.

P/1- Vai ser na quadra?

R- Na quadra.

P/2- Dona Marta, tem uma associação que vocês fundaram com as crianças, de trabalho para as crianças?

R- Tem, mas agora acabou essa associação. Agora que está começando. Meu filho que está voltando a fazer aquele Criança Esperança. Jogo.

P/2- Como é isso?

R- Ele estava num campeonato com as crianças. Agora ele ganhou o campeonato, eles vão para o Rio.

P/2- E como é que chamava essa associação que vocês tinham lá?

R- Era Kinderê.

P/2- Kinderê?

R- É.

P/2- A senhora sabe o que significa esse nome?

R- Era criança de rua. Ensinava a fazer desenho, comia, tinha lanche, ficava o dia todo lá.

P/2- E eram várias crianças?

R- Várias crianças. Agora, vão voltar de novo. Tem que voltar, porque...

P/1- A senhora terminou?

R- Já, pode falar.

P/1- Eu fiquei curiosa, porque o Brás é conhecido como um bairro de imigrantes italianos, todo mundo acha que é. A senhora sofreu alguma discriminação por causa da cor?

R- Não, nunca. Eles sempre me respeitaram. Nunca, nunca, nunca. Sempre me respeitaram.

P/2- E vem gente do bairro consultar com a senhora?

R- Todo mundo.

P/2- Todo mundo do bairro?

R- As lojas, os lojistas. A maioria eu vou para defumar, porque eles pedem quando está meio fraco. Quem acredita, eu vou defumar.

P/2- Quando está fraco o movimento?

R- Quando está fraco o movimento, eles vêm pedir para defumar. Traz as crianças para benzer. Adulto, mesmo.

P/2- E como é o ritual da defumação do ambiente? O que a senhora usa?

R- Para defumar?

P/2- Para defumar.

R- Porque eu defumo com o carvão.

P/2- Sei.

R- Eu faço aquelas brasas com o carvão. Depois eu ponho cravo, canela, erva-doce, pó de café, louro, açúcar. Aí misturo tudo, eu jogo e faço aquela defumação. Eu começo a defumar de fora para dentro. E quando é uma defumação para descarrego, eu uso palha de alho e enxofre. E fumo, quando está muito pesado. Aí é de dentro para fora.

P/1- A senhora não usa arruda?

R- Não. Para defumar, não. Eu ponho de dentro para fora, depois eu faço a outra, de fora para dentro. Eu faço isso.

P/1- A senhora já tem quase trinta anos de Brás, né? O que a senhora mais gosta no bairro?

R- Você sabe que, se eu falar para você que tem alguma coisa que eu mais gosto e que eu menos gosto, eu minto. Porque, para mim, eu gosto de tudo. Estou bem com tudo.

P/2- Comparando com a Vila Diva, como que é?

R- Lógico, é bem melhor aqui. Mas na Vila Diva, também, eu gostava. Eu me dou bem com os lugares. Eu não sou de me apegar com os lugares que eu moro. Gosto, mas se for para sair daqui e morar lá, eu também vou gostar.

P/2- E se a senhora tivesse que mudar alguma coisa no bairro, a senhora pudesse pensar assim: "Puxa, daqui vinte anos, trinta anos, eu queria que tivesse isso aqui nesse bairro"? O que a senhora escolheria?

R- Daqui vinte, trinta anos, se continuar como está, para mim está ótimo. Não queria mudar nada (risos).

P/1- A senhora pega o metrô? A senhora anda de metrô?

R- Não. Peguei o metrô uma vez quando foi a inauguração, que era até de graça.

P/2- Era de graça?



R- É, a inauguração foi de graça. Eu fui daqui até o Jabaquara e voltei. Depois disso eu não sei pegar metrô. Eu nunca peguei mais depois disso. Ônibus também, se eu peguei, eu não lembro mais nem quanto foi. Faz muito tempo que eu não pego mais ônibus.

P/2- A senhora foi com quem no Jabaquara?

R- Para o Jabaquara, eu fui... Eu nem lembro se eu fui com um do meus filhos ou se fui com o meu marido, se ele ainda estava aqui, essa época. Eu nem lembro.

P/2- E o que a senhora sentiu, dona Marta?

R- Não gostei. Porque a minha curiosidade era porque eles falavam que tinha que passar debaixo da terra. Então eu achava que eu entrando no metrô, eu ia ver que eu estava debaixo da terra. Mas eu não vi nada disso (risos).

P/1- Foi muita gente do bairro quando souberam que era o dia da inauguração?

R- Tinha bastante gente.

P/1- Todo mundo queria ir?

R- Todo mundo queria ver. A minha curiosidade era saber que era debaixo do chão. Não vi nada, não gostei. Fui e voltei. Depois disso não fui mais, porque não tive necessidade de pegar o metrô, porque agora eu tenho carro. Eu fico aqui atendendo e quando eu saio eu pego o carro e vou.

P/2- Dona Marta, a gente já está quase encerrando. Eu queria que a senhora falasse dos seus netos.

R- Bom, eu tenho nove netos. Tem que dar o nome?

P/2- Se a senhora quiser, pode falar.

R- A minha neta mais velha foi a que casou ontem, a Emile. Ela é modelo.

P/1- É modelo?

R- É, tem 21 anos. Depois tem o Roni, que é irmão dela. Depois tem a Juliana, a Vanessa e... Tem tanta neta, até esquece.

P/1- Um monte!

R- Eliana, Vanessa, Thiago, Rodrigo, Ingrid, Gustavo e Gabriel. Tudo isso são meus netos.

P/2- Uma trupe?

R- É, uma trupe. Quando chega aos domingo estão todos aqui.

P/2- E eles já participam da escola de samba?

R- Todos. O Rodrigo desfila e tem nove anos, desfila desde pequeno. Ele não tinha nem cinco anos, ele desfila. Ele sai na bateria. Por sinal ele toca muito bem.

P/1- Ele toca qual instrumento? Essas percussãozinhas, né?

R- É um... Sei lá como é que chama aquilo.

P/1- Dona Marta, um coisa que eu esqueci de perguntar à senhora. As casas que a senhora morou sempre tiveram energia elétrica?

R- Quando eu morei na minha sogra, não. Era luz mesmo. Lamparina.

P/2- Lá na Penha?

R- Lá na Penha.

P/1- E na Vila Diva, já tinha luz?

R- Na Vila Diva, já. Não em todas casas.

P/2- E aqui também, né?

R- Aqui já era mais...

P/2- Dona Marta, e essa reforma que a senhora fez na casa? Que a gente cortou e a senhora não contou.

R- Então, essa reforma... Eu comprei a casa com muito sacrifício, porque foi duro para comprar. Paguei cinquenta mil naquela casa velha só por causa do terreno. Mas eu não queria sair daqui, eu queria ficar aqui, na casa. O proprietário uma hora queria vender, outra hora não queria vender. Acabou resolvendo, quis vender, vendeu, eu comprei. Depois eu falei: “Eu tenho que construir.” Tem um... Esse também é um dos fundadores da escola, ele chama Antônio, ele falou: “Marta, eu vou construir a casa para você. Aproveito agora que eu estou com pouco serviço.” Nessa época ele era o presidente da escola. Porque, de dois em dois anos, muda a presidência.

P/2- É eleição?

R- É. Eu falei: “Então, tudo bem.” Eu peguei, comecei demolir a casa. Mas a minha preocupação era desfazer da casa e, depois, não ter dinheiro para levantar a casa. Porque eu sozinha. Eu fui morar num apartamento ali. Demoliram e começaram a fazer a casa.

P/2- Onde era?

R- Aqui encostadinho, um apartamento que tem ali. Mas o meu medo era isso. Eu tinha medo de, depois, ficar sempre pagando aluguel, sem casa e aqui. Aí eu comecei a levantar. Todo mundo da rua falava: “Porque não sei o quê, não sei onde é que você está com a cabeça. Para levantar é fácil, você vai ver para terminar. Para terminar tem que ter peito. Se não tiver dinheiro, não termina.” Eu falei: “Como Deus me ajudou e eu levantei, pois eu vou terminar. Enquanto estiver faltando um tijolo, eu não entro dentro dessa casa.” E eu ia, viu? Eu fui fazendo. Eu pagava 1300 para o pedreiro por semana. Te juro, eu não sabia como é que eu tirava. Às vezes, chegava na quinta-feira, eu estava com oitocentos “pau” e estava faltando quinhentos. Eu falava: “O que eu faço? Mas Deus vai me ajudar.” Dali a pouco, tocava o telefone, eu lá no prédio: “Dona Marta?” Eu falava: “Quem está falando?” “É de lá do Massivo.” Você já conhece o Massivo?

P/2- Não.

P/1- Eu conheço o Massivo.

R- Eu sou muito amiga dos donos de lá. O Valmir pegava, ligava: “Dona Marta, vem cá.”

P/1- É aquela boate, né?

R- Isso. Eles têm outras em Campinas, agora.

P/1- Ah, é?

R- É. Eu que cuido delas com defumação, porque ali é um ambiente que tem muita energia. É fogo! “Marta, você vem fazer uma defumação para mim?” Eu falei: “Vou.” Eu ia, chegava lá e ele falava: “Quanto é?” Eu falava: “Ah, Valmir, você vê aí o que você pode me dar, está bom.” Me dava um cheque de seiscentos, setecentos. Eu já pagava.

P/2- E ainda sobrava um pouco?

R- Ainda sobrava. Às vezes, outra semana, eu estava apertada, tudo. A Nilza tem esses negócios de corrida de cavalo. Haras que fala?

P/2- Haras.

R- Haras. Ela tem uma no sul, tem em Campinas, tem no Rio e tem em Santos. Todas elas eu cuido. Então ela me chamava: “Dá para você ir?” “Dá.” Ela pegava, comprava a passagem, trazia a passagem, eu pegava o ônibus na rodoviária. Chegava lá, ela estava na rodoviária de lá me esperando. Eu fazia a defumação. De lá, ela falava: “Daqui, Marta, você nem passa na sua casa. Você pega o ônibus direto e vai fazer defumação lá em Campinas.” Eu já ia direto, passava e ia para Campinas. No fim, ela me dava um cheque de dois mil, três mil. Eu já dava na mão do pedreiro para poder ficar duas, três semanas sossegada. E assim, eu fui fazendo a minha casa, sem precisar de ninguém. Deus me ajudando e eu fiz.

P/2- Quanto tempo a senhora morou no apartamento?

R- Oito meses. Eu fiz essa casa com oito meses. Pagava trezentos “pau” de aluguel e fui construindo a minha casa. Tinha vizinha minhas aqui. Essa minha vizinha daqui falava: “Dona Marta, é muita coisa para a senhora ficar fazendo. Essa casa terminando e pagando aluguel. Sabe o que a senhora faz? Pega umas cobertas velhas, um lençol, põe aí. Tampa nesses lugar da janela e porta e entra para dentro. Já está coberto. Quando der, a senhora vai fazendo aos poucos.” Eu falei: “Não, dona Teresa, eu não vou fazer isso, porque se eu fizer isso, eu entro do jeito que ela está e, eu morro, ela vai ficar do jeito que está.” Porque todas as casas que você entra sem terminar, você não termina. É muito difícil.

P/1- É verdade.

R- Então eu falei: “Quando eu terminar, eu entro.” Pois eu terminei, eles me entregaram com oito meses. Não fiquei devendo um tostão para pedreiro, nem para lugar nenhum. Eu comprei meu material, terminou, eu entrei para dentro da minha casa. E meus móveis que eram da casa antiga, quebrei tudo, porque não tinha condições. O guarda-roupa, se eu tirasse do lugar, desmontava tudo. A mesa, se eu tirasse do lugar, a perna estava toda saindo. Não tinha. Tive que jogar tudo fora e comprei outros móveis. E estou aqui, feliz, graças a Deus. Tranquila.

P/2- Dona Marta, a gente está encerrando a entrevista. A gente queria agradecer muito.

R- De nada.

P/2- Parabenizar pela sua história, é super bonita, e perguntar se a senhora queria acrescentar alguma coisa.

R- Acho que é só isso. Eu só convido vocês para ir lá conhecer a nossa quadra.

P/2- Com certeza.

P/1- Nós vamos, sim.

P/2- A gente vai.

R- Vai sim. Chega lá, se vocês quiserem fazer alguma entrevista com o presidente, no dia da festa, é bom que ajuda bastante.

P/1- Tirar umas fotos.

R- É, tirar umas fotos. Vocês vão, tirem umas fotos.

P/2- Está jóia. Muito obrigada.

R- Obrigada. E o dia da festinha de Cosme, vocês vão. Tira umas foto também que é bom.

P/2- Obrigada, dona Marta.

R- De nada.