Museu da Pessoa

O engenheiro que virou pizzaiolo

autoria: Museu da Pessoa personagem: Ivo Herzog

Projeto Instituto Vladimir Herzog
Depoimento de Ivo Herzog
Entrevistado por Luiz Egypto e Rosana Miziara
São Paulo, 30/08/19
PCSH_HV800
Realização Museu da Pessoa
Transcrito por Ana Carolina Dias
Revisado por Luiz Egypto


P/1 - Boa tarde, Ivo. Muito obrigado por ter aceitado o nosso convite.

R - Imagina.

P/1 - Para começar, por favor, para registro, seu nome completo, local e a data do seu nascimento.

R - Ivo Herzog, 31 de agosto, 1966, Londres, Inglaterra, Queen Mary's Hospital.

P/1 - O nome dos seus pais?

R - Vladimir e Clarice Herzog.

P/1 - Ok. Você conheceu os seus avós?

R - Sim. Todos. Por parte do meu pai o vô Giga e vó Zora, da minha mãe o vô Zico e a vó Inês.

P/1 - Você poderia falar um pouco sobre eles, de onde eles vieram, como você conviveu com eles?

R - Bom, vamos começar com o lado da minha mãe que é mais simples. Do lado da minha mãe, o nome do meu avô é João Ribeiro Chaves Filho, brasileiro, de São Paulo, daqui da região de Pinheiros. A minha avó Inês Ribeiro Chaves, também de Pinheiros. Cheguei a conhecer a minha bisavó por parte da mãe, Vó Clara, viveu até quase 100 anos. A minha avó era dona de casa e meu avô trabalhava com construção. Em meados ou final da década de 1970, a gente tem um sítio em Bragança Paulista, e eles se mudaram para o sítio, passaram a morar no sítio. Minha mãe tinha dois irmãos, o mais novo, Valdir, mudou também para Bragança, começou morando no sítio e também foi trabalhar com meu avô em construção e lá ficaram até o final das vidas, o meu tio ainda está lá. O irmão do meio da minha mãe, o João Ribeiro Chaves Neto, formado em Direito, foi teatrólogo, escreveu peças de teatro, mas também trabalhou em banco. Não sei, deveria ser comercial na área de Direito, e essas coisas aí. E o meu tio mais novo, que trabalha com construção, é formado em Engenharia Metalúrgica. O do meio, o João, faleceu, já faz 10, 12 anos, e o meu tio Valdir está bem, na terceira mulher, tem duas filhas, eu tenho duas primas só, que são a Gabriela e a Daniela, que moram em Bragança Paulista. E cada uma tem dois filhos. Da parte do meu pai... bom, a família Herzog tem meu avô e minha avó, todo o resto morreu durante a ocupação alemã da Europa, em campos de concentração, Auschwitz, não sei mais o quê. E tem a carta do meu avô para o meu pai falando desse capítulo aí. Eles conseguiram fugir da Iugoslávia, vieram para cá e veio também um irmão da minha avó, o tio Robby. O Vô Giga faleceu em 1972, minha avó Zora faleceu 2007, eu acho, o tio Robby não sei em que ano que faleceu, 2001 ou 2002, não me lembro. Então a família Herzog é bem resumida.

P/2 - Você tem essa carta do seu avô para o seu pai?

R - Está lá na exposição. Ela está completa num livro da Trudi Landau sobre o meu pai. Lá tem a carta do meu avô, que vai até um determinado momento da linha do tempo, acho que vai até certo ponto, na Itália, e depois a minha avó conta o resto da vida na Itália, e a vinda para o Brasil, e o início, essa coisa toda.

P/1 - Você tem notícia da atividade do seu avô aqui? O seu avô paterno?

R - Giga? Ele trabalhou nas indústrias Suzano, grupo Suzano, de celulose, família Feffer.

P/1 - Sei. E qual era a especialidade dele?

R - Ele trabalhava na área contábil se eu não me engano, aquela contabilidade antiga, de ficar checando números; trabalhou acho que 17 anos lá. Está na carta lá, nas cartas desse livro aí.

P/1 - Você tem lembrança da convivência com ele, a sua avó?

R - Então, o meu avô... bom, ele faleceu em 1972, eu tinha seis anos, então eu lembro dele ter alguma doença, não sei exatamente o que, se ficou senil, não sei qual era a doença, ele ficava no asilo, então as lembranças que eu tenho dele são num local de cuidados, bem pouca lembrança, inclusive na exposição tem fotos minha e do meu irmão com ele nesse local. Já a minha avó Zora tem muita lembrança porque até dez anos atrás ela estava com a gente. Aí depois que meu pai morreu, inclusive toda semana a gente jantava com ela, ela morava lá em Indianópolis, Rua Baronesa de Itu, 474, apartamento 74.

P/1 - Alguma característica especial que tenha te marcado?

R - Da minha só Zora?

P/1 - Isso.

R - Ah, avó judia. Superprotetora, muito saudável, sempre muito saudável, foi ficar doente só meses antes de morrer. Muito tranquila, sempre de bom humor, muito cuidadosa. Quando minha mãe viajava às vezes ela que vinha cuidar da gente em casa, até porque a outra avó estava em Bragança, a minha avó materna, já lembrança que eu tenho é ela sempre meio doente, que ela sofreu de reumantismo de... que entorta os dedos?

P/1 - Artrite?

R - Artrite, é. A vó Inês era aquela avó doceira, que faz bolos, o jantar de Natal era na casa dela, aquela coisa toda. A minha avó Zora também era uma grande cozinheira, mas... enfim, a família era muito pequena, na verdade era ela e os netos, basicamente, depois que meu pai foi embora. Na época do meu pai a gente ainda de vez em quando jantava lá e ela fazia pratos muito bons, a gente até hoje tem a receita do bolo da vó Zora, é um bolo de chocolate maravilhoso.

P/1 - E a sua escola, a sua primeira escola, como foi?

R - Primeira escola? Foi o Quá-Quá. Que foi pré-escola, até o pré-primário. Eu terminei o pré lá, aí depois minha mãe mudou a gente para o Vera Cruz, e aí tinha uma diferença de ano em que se alfabetizava e eu tive que refazer o pré-primário, sem saber. Então foi até engraçado porque quando eu entrei lá, o recreio do pré era de um lado e a partir do primeiro ano era em outro, e eu fui para o recreio errado, porque eu não fui avisado que estava refazendo o pré. Fui descobrir depois e fiquei indignado. Mas é isso, eu perdi um ano aí, atrasei um ano na minha formação por conta de ter que refazer o pré-primário. Então, apesar de eu ser um ano e oito meses mais velho que meu irmão, eu sempre fiquei só um ano à frente dele durante a escola. Fiquei no Vera Cruz até o final, na época ele ia até a antiga oitava série, e aí fui fazer o ensino médio no Santa Cruz. Depois Poli[técnica da USP], [em engenharia] naval, e depois um MBA nos Estados Unidos na área de logística.

P/1 - Esse primeiro período no Vera Cruz a sua mãe levava você, você ia sozinho, como era?

R - Não, a minha mãe nunca foi de levar, ela tinha trabalho dela. A gente tinha perua. Quando meu pai morre a gente já está no Vera Cruz, a gente morava na Oscar Freire. Que inclusive é uma casa que está sendo demolida, “as you speak”. Estão demolindo tudo lá para construir um prédio, vários prédios, sei lá, um quarteirão inteiro. Mas, enfim, era na Oscar Freire, o primeiro ano do Vera era na Avenida Brasil, depois ele mudou acho que Vila Beatriz, onde é até hoje. Então a gente morava na Oscar Freire, era perua, depois que meu pai morreu a gente morou um ano, um ano e pouco, nos prédios que têm na [rua] João Ramalho, do lado de [avenida] Sumaré. Depois de lá a gente morou na Rua Epeira. E aí já era perto do Vera, e eu comecei a ir de bicicleta ou a pé. Depois a gente morou na Professor Nova Gomes, que é uma rua que termina no Vera Cruz. E era engraçado que eu saia de bicicleta, tinha uma descidinha, sempre a meta era, sem pedalar, estacionar a bicicleta na escola. Coisa de engenheiro né?, conservação de energia. Mas antes disso sempre foi perua e a gente tinha outras atividades, natação, inglês, não sei o que. Teve um bom período da minha vida que tinha motorista em casa, a minha mãe como diretora na empresar onde ela trabalhava tinha direito a um motorista e ele servia a gente na realidade, não servia a ela.

P/1 - Algum professor ou professora que tenha te marcado, que você guarda lembrança até hoje?

R - O Vera Cruz foi muito marcante. Eu lembro dos professores, o Roney de educação física; o Valter, num segundo momento; Estela Mercadante, que recentemente se aposentou do Vera; a Teruko, de ciências. Mas talvez o que eu mais lembre, tenha mais lembrança, assim, mais próxima, seja o Roney, porque logo depois que o meu pai morreu eu fiquei muito mal, tive um processo de somatização, entrei em depressão, não sei o que, perdi 10 kg, isso com nove, dez anos de idade. E o Roney foi um cara que foi meio paizão, a gente esteve naquele Rancho Ranieri, e que eu fiquei três dias sem comer, não comia nada, e ele super preocupado, meio que cuidado mesmo, além do “job description”. Ele era o mais brincalhão, essa coisa toda, então eu tenho uma lembrança mais afetiva dele, maior. Mas o Vera Cruz foi uma escola que me marcou, a escola com que eu tenho laços afetivos. O Santa Cruz foi uma coisa pragmática, se preparar para o vestibular.

P/1 - O que o garoto queria ser quando crescesse?

R - Ah, não sabia. Não sabia, nunca soube.

P/1 - E como você enveredou para esse caminho técnico?

R - Sempre gostei de coisa técnica, então eu desmontava liquidificador, rádio, sabe, aquela coisa de ficar desmontando, e sempre fui muito bom isso porque eu sempre otimizava né, sempre sobrava peça. Montava de novo e funcionava. Então tinha essa coisa técnica, mas tinha outras coisas doidas assim: eu herdei o interesse por astronomia do meu pai, fotografia... Tenho essa influência, quase que patológica, por conta da profissão dele, de ter um olhar no jornalismo. Então, acho que no terceiro ano do ensino médio eu fiz um desses programas de... Como é que chama, curso de aptidão? De aptidão.

P/1 - Vocacional.

P/2 - Teste vocacional?

R - Não, não foi um teste, eu fiz um programa mesmo lá na Fundação Carlos Chagas, bem longo. Fui fazendo isso, aí a escola tinha aquela coisa de você ir conhecendo as profissões, e no final teve o teste vocacional. Eu tive um “score” muito alto em exatas, humanas e baixo em biomédicas. Isto eu sabia que não queria, mas não resolveu a minha questão. E eu fiz vestibular para engenharia e fiz vestibular para jornalismo. Mas eu tinha uma coisa na cabeça, que eu tenho até hoje, que eu acredito, que é assim: para você exercer a área técnica, você tem que ter sua formação técnica, e eu acho para a área de jornalismo você não precisa. Se você é capaz de escrever, eu mesmo escrevo às vezes um outro artigo que sai, sem ter feito jornalismo. É bom fazer jornalismo? É bom, complementa essa coisa toda, mas não era fundamental. Então eu passei em jornalismo na PUC, mas nunca me matriculei nem nada.

P/1 - Isso em que ano?

R – Em 1985, 86. E mesmo a engenharia... Por que engenharia naval, né? Porque eu fui conhecer as engenharias e a engenharia naval, por mais incrível que pareça, é a menos especializada. Porque um navio é uma cidade autônoma, ele tem que ser autônomo em todos os sistemas. Então se aprende engenharia elétrica, engenharia mecânica e engenharia hidráulica, até um pouco de engenharia civil, toda parte portuária e tal. O conjunto que forma a operação naval é uma operação quase que autônoma, você tem que fazer um pouco de cada coisa. E para mim é ótimo isso, porque eu realmente não sabia o que eu queria. E nessa época, até antes, eu sempre gostei muito tecnologia, então já mexia com computadores. Em 1981, 1982 fiz meu primeiro curso de informática, já programava, essa coisa toda. Então quando eu me formo, me formei no final de 1990, quando eu vou procurar emprego em 1991, lá no [governo] Collor, aquela coisa toda, surgiram vários oportunidade de eu ir para a área financeira, porque os bancos iam na universidade recrutar. Participei até de alguns processos, e eu tinha muito preconceito com essa área financeira, e nenhum deles deu certo. Aí eu fui viajar, fiquei dois meses viajando, e quando voltei eu arrumei um emprego na área de TI, fui trabalhar numa empresa que desenvolvia sistemas, uma empresa grande que era um “spin off” da Phillips, uma empresa que chamava Origin, hoje chama Atos Origin. E trabalhei lá quatro anos, não me sentia motivado, desafiado, era uma coisa muito... O pessoal à minha volta tinha uma formação pior que a minha. E aí um colega lá falou para mim uma coisa. Como ele falou? "Se você tem uma percepção de que seu chefe não está mais bem preparado que você, ou que você tem um problema de relacionamento com seu chefe, procura outro emprego". E era muito isso, né. Meu chefe não falava inglês, por exemplo, e aí a gente estava começando a fazer, a mexer com SAP, Alemanha, outros países... Eu formado em engenharia e tal, já estava fazendo uns programas, uns trabalhos mais sofisticados, ganhando bem, tive quatro promoções no tempo que fiquei lá. E ele ficava me pedindo para traduzir cartas em inglês, escrever carta em inglês para ele? Aí comecei a movimentar e fui fazer o MBA. Eu tinha um trauma de infância dessa coisa, que meu irmão no colegial fez intercâmbio, ele ficou seis meses nos Estados Unidos. E eu não fiz porque eu já tinha essa coisa na minha cabeça de que eu estava atrasado um ano, que era uma coisa que veio do pré-primário.

P/1 - Repetiu o pré-primário.

R - Repeti o pré-primário. Então eu me achava velho para o processo e eu não queria efetivamente perder mais um ano fazendo um intercâmbio. Então eu fiquei com essa coisa mal resolvida e de repente fez sentido, eu já estava casado, mas não tinha filho, nada, passar dois anos Estados Unidos, fortalecendo a minha formação e tendo essa experiência, resolver a questão do inglês, eventualmente até trabalhar lá. Eu acabei não conseguindo trabalho lá porque não tinha visto de trabalho, voltei para o Brasil, trabalhei dois anos aqui. Eu saí da informática, voltei e fui trabalhar em logística.

P/1 - E a logística?

R - A logística tem a ver com [engenharia] naval. A área de logística na graduação da USP é dada pela Engenharia Naval dentro da especialidade de Transportes. Você tem cinco áreas em que pode, no final, focar mais seu curso, uma delas é transporte. Então eu fiz logística lá fora, fiz uma formação em logística que chama de Material Logistical Management. Quando eu estava na Poli, fazia 30, cheguei a fazer 48 créditos no semestre. Cheguei lá na MBA, 12 créditos. Falei: "Deixa eu puxar umas matérias". Só que eu me dei bem mal, porque cada crédito lá são três horas de estudo em casa, são 12 horas, mais... 12 vezes 3, 36, já são 48 horas que você tem que se dedicar, e eu puxei mais 3 créditos... Foi uma pancadaria, lá eu sofri, mas eu consegui fazer e ter dois “majors”, que ele chamam, que foi Material Logistical Management e International Business com o foco na área financeira, que era uma área que eu conhecia pouco, então eu quis pegar umas matérias, International Accounts e International Finance para eu conhecer um pouco mais de finanças. E aí eu volto para trabalhar na General Motors. Fui o primeiro cara com MBA, que a GM contratou, mas, de novo, um ambiente... que não tem gente com MBA, então, não funciona no ritmo. Lá para ser promovido depende do tempo que você está sentando na cadeira. Toda uma hierarquia, para se aprovar uma coisa tem quatro comitês, e não sei o que, piriri-pororó, me deram os projetos mais importantes que tinham na época, a logística de uma fábrica nova que estava sendo construída em Gravataí, estavam trazendo um conceito também de que mudava, antigamente os fornecedores entregavam as peças para as fábricas, estava mudando para um operador logístico fazer essa coleta de maneira programada, com um sistema por detrás, para entregar, ainda por um uma tendência de estoque zero né, que é chamada de...

P/1 - É o “just in time” que chama isso?

R - É um “lean logistics”. O “just in time” é mais do que isso. É um “lean logistics”, ou seja, é uma logística enxuta. E eu fui responsável por implantar nas três fábricas e dar suporte na fábrica de Rosário e Córdoba, na Argentina, e fiquei responsável também por todo o fluxo de importação dos Estados Unidos para o Brasil, de componentes.

P/1 - E você achava isso uma coisa meio comezinha, você se sentia pouco desafiado com tantas responsabilidades assim?

R - Não, o desafio era bom, mas o processo de decisão era ruim, então coisa que eu podia fazer assim, resolver e... próximo tema, ficava no “nheco-nheco”. O chefe, de novo, não era um cara que se respeitasse, o era cara meio... Às vezes eu precisava de uma coisa que eu sabia que ele não tinha autoridade, tinha que ser com o chefe dele... "Ah, não, você tem que passar por ele, e depois pelo outro e tal". Mas de qualquer maneira, o processo de crescimento era muito lento. Mas lá teve uma outra coisa muito legal. Eu sempre gostei de educação, de ter um olhar para a educação. Inclusive, acho que em 1991, antes de eu conseguir emprego, até trabalhei num desses lugares de cursinho, aula particular, só que ali foi meio complicado, depois de uma semana eu queria esganar os alunos. Ah, era um monte de... Era um pessoal que pagava, em dinheiro de hoje, sei lá, R$ 500 a aula. Então era um monte de gente cheio da grana e pouco interessada, não tenho saco para ficar chamando atenção. Então eu montei um primeiro programa de “internship” da GM Brasil, que nunca tinha tido. Quando você está fazendo MBA, no meio da MBA você tem quatro meses de férias para ir atrás de um estágio. Inclusive quando eu estava lá no meu MBA eu fiz um estágio, eu fiquei uma parte no Estados Unidos e uma parte na Holanda e, eu esqueci de falar, no final da MBA nasceu meu filho. Foi o meu projeto, meu TCC, foi bonito. Nasceu na última semana de aula, inclusive. Foi tudo muito bem planejado, coisa de engenheiro. Mas enfim, falando sério, então eu queria trazer uma pessoa, mas aí essa alta chefia da GM era americana, inclusive um deles tinha feito MBA na mesma escola que eu, e eles adoraram a ideia, então eu tive muito apoio. Então eu trouxe três pessoas, duas para o Brasil e uma para a Argentina. E aí existe um comitê global de educação e treinamento em logística, eu fiquei representante do Brasil e em seguida fiquei o líder global de educação e treinamento na área de logística da General Motors. E fiz umas coisas que foram bem bacanas.

P/1 - E agora sem intermediários.

R - Hã?

P/1 - Agora sem intermediários?

R - Não, claro que tudo tem intermediário. Você não tem poder de decisão. Era complicado lá. Mas, enfim, eu fiz um trabalho bem legal, até me orgulho. Então assim, foi bem legal, bem legal, bem legal. Depois de dois anos eu já estava lá meio assim, meio querendo fazer outra coisa, apareceu uma oportunidade de trabalhar numa empresa americana, tinha acabado de chegar no Brasil, era uma das maiores empresas de logísticas americanas, pertencente ao grupo Walmart na época chamada MacLean, E era uma outra área da logística que eu não conhecia, que era a área de armazenagem e distribuição, eu só conhecia “inbound logistics”, abastecimento. E aí eu fui trabalhar lá, mas quando eu falei que eu ia sair, um dos operadores logísticos ficou sabendo que eu estava saindo e me convidou para ir trabalhar nos Estados Unidos, para ser o diretor de logística automotiva para América do Sul. Então eu fui trabalhar na MacLean, mas como fiquei negociando e esperando sair o visto, essa coisa toda, então fiquei na MacLean dez meses e aí eu voltei para o Estados Unidos para trabalhar numa empresa que chamava Air Express International, mas assim que eu cheguei lá, uns dois meses depois, ela foi comprada pelo que hoje é DHL e que já tinha uma equipe de logística automotiva, então já tinha um diretor de logística automotiva, essa coisa toda, então meu escopo fez isso... [gesto de queda]. Mas eu falei: tudo bem, vou ficar aqui dois, três anos conhecendo essa cultura de trabalho aqui, profissionalmente foi muito chato, fiz coisas interessantes, tinha um sistema novo muito sofisticado de uma empresa que eles também tinham comprado, de gestão de cadeia de abastecimento, eles tinham implantado para Microsoft, para o sistema de abastecimento da Microsoft, e iam implantar para uma grande empresa automotiva americana, e eu fiquei encarregado disso daí até por conta do meu conhecimento de TI. Então toda a customização eu que especifiquei, foi bem legal esse projeto. Fiquei lá dois anos, minha ideia era ficar de dois a três anos, realmente eu já não tinha muito o que fazer lá em Detroit, estava com um filho lá, o Lucas estava com quatro ou cinco anos, e eu queria que ele fosse educado no Brasil, e não nos Estados Unidos. Comecei a olhar oportunidades para voltar aqui e me movimentar dentro da empresa. Aí a empresa lá me ofereceu para eu ir para a área de TI mesmo e trabalhar em Nova Orleans, e tudo que eu não queria era voltar para área de TI, e veio a oferta para trabalhar na Ambev. Então eu voltei e fui trabalhar na Ambev. Fui encarregado de organizar área de transporte da Ambev, área corporativa de transporte, que ela era toda fragmentada, cada fábrica contratava seu transporte, fazia a distribuição, eu tive que consolidar isso aí, montar processos etc.

P/1 - Isso nos primeiros anos da Ambev então? Ou ela já estava estabelecida?

R - Não, não. Ambev é 1990, isso a gente já está falando de 2002.

P/1 - Ah, sim. Ok. Eu queria voltar um pouco atrás nessa sua formação e trajetória educacional/profissional para eu te perguntar duas coisas. Primeiro, nos primeiros tempos ali, no dia a dia da casa, seu pai e sua mãe te acompanhavam nos estudos?

R - Não.

P/1 - Queriam saber como estavam andando as coisas no colégio?

R - Naquela época o boletim era bimestral, vinham as notas, vinha uma dissertação do professor sobre você, acho que eles se informavam por ali, por reunião de pais. Eu não tenho lembrança de ninguém sentando do meu lado para fazer a lição. Até porque o Vera Cruz tinha um conceito de que você não precisava estudar em casa naquela época. A gente não estudava em casa, tinha o tal do TP, trabalho pessoal. Então a gente estudava na escola e trazia muito pouca coisa para casa.

P/1 - Como é que nessa época você se divertia? Do que um garoto brincava?

R - Que época?

P/1 - Essa do Vera Cruz.

R - Ah... A gente brincava de andar de bicicleta na rua. Joguinho eletrônico não tinha, nunca tive interesse. Primeiro que a gente era aquelas crianças executivas né?, então tinha curso de inglês na Cultura Inglesa, aulinha de natação na Baleia colorida, baleia azul ou amarela, sei lá qual era a cor da baleia, psicóloga... Você já tinha uma agenda meio carregada e o tempo que minha mãe chegava, sempre tarde em casa, a gente ficava lá fica assistindo televisão.

P/2 - Você ia na psicóloga?

R - Sim. Fazia ludoterapia alguns, uns três ou quatro anos depois da morte do meu pai.

P/1 - Gostei dessa classificação "criança executiva".

P/2 - Excelente.

R - Mas não é? Então era isso, ia na casa dos amigos... Sei lá, naquela época parece que não tinha galinha na rua, mas... E hoje ainda pode, acho que os pais é que são neuróticos. Não é que o mundo mudou, o que mudou foi a cabeça dos pais, são um bando de neuróticos. Meu enteado anda a cidade inteira de bicicleta. Então ele estava aí de namorico com uma menina. A gente mora ali no Parque Villa-Lobos. Ele foi de bicicleta buscar ela em Santo Amaro. Mais a cabeça dos pais do que o mundo que mudou.

P/1 - Seu pai te levava para programas assim de lazer, de brincar, ver futebol?

R - Não, futebol não.

P/1 - Pescar, nadar, ir à praia?

R - Durante um tempo [a família] teve casa alugada na Ilhabela, então a gente ia para Ilhabela e pescava, brincava na praia, essas coisas, mas estou falando eu com sete, oito anos de idade. Depois [a família] comprou o sítio [em Bragança Paulista], acho que o sítio comprou em 1973, então a gente começou a ir muito para o sítio. E lá no sítio fazia pipa, ia na piscina, meu pai criava coelhos, tinha pombo, meu pai sempre gostou de aves, tinha um aviário grande com várias aves, periquito, mas tinha pombo também que eu me lembro. Ia ver as estrelas à noite, brincar com o telescópio. Eu tinha um minibugue. Não, mas acho que o minibugue foi depois que meu pai morreu.

P/1 - Isso era um programa semanal, vocês iam todo fim de semana?

R - Acho que praticamente todo, ia bastante.

P/1 - Seu pai gostava bastante de bicho assim, vocês criavam bicho mesmo? Pombo? O que ele fazia, pombo correio?

R - Não fazia pombo correio, mas ele criava. Eu lembro quando ele instalou o pombal. Quando a gente comprou o sítio já tinha uma construção que era uma grande gaiola, com vários bichos dentro. Aí ele pôs um pombal em cima, trouxe umas pombas, pôs uma tela para o pombo não ir embora. Ficou lá só um mês com essa tela, depois você tira a tela e a pomba vai embora, mas ela volta. E ele comprava umas pombas mais “tchan tchan tchan”, de raça, não sei o quê. Tinha peru, tinha galinha d’angola, pato, marreco, ganso, coelho.

P/1 - Tinha o caseiro?

R - Tinha o caseiro.

P/1 - Quem era o caseiro?

R - Naquela época era o Elias.

P/1 - Boa gente?

R - Sim. A gente fazia apito de taquara, essas coisas. Bicho que eu tive... Vamos ver se eu vou conseguir lembrar. Dos cachorros, sempre, gato, por questões excepcionais, que não é a nossa praia, mas vieram parar dois gatos ao longo da minha vida em casa, pato, cobaia, hamster, lagarto, tartaruga, a jabuti, tartaruga de água, não sei se eu já falei peixinho de aquário... Que mais que a gente teve? Tinha cavalo no sítio, que a gente andava muito a cavalo no sítio.

P/1 - Puxou o talento do seu pai para essa área, digamos assim?

R - Lá na minha casa aqui, hoje, eu tenho dois cachorros, dois goldens, um jabuti, duas tigres d'água, três cascudos e três carpas, isso na minha casa aqui. Tenho um laguinho.

P/2 - Na sua casa, quando você era pequeno, você lembra de datas que se comemoravam?

R - Ah, aniversário. Natal era com a minha avó sempre, não lembro de data nenhuma.

P/2 - Comidas?

R - Na casa não, não tenho nenhuma lembrança específica não. Da casa, assim, da época do meu pai que você está falando?

P/2 - Quando você era pequeno.

R - Então, não. Não tenho. A gente nunca foi muito de seguir tradições desse tipo. O que sempre foi muito respeitado era o Natal. O Natal sempre foi a data de juntar a família.

P/1 – Você e seu irmão chegavam a estranhar um pouco o fato de a mãe sempre trabalhar demais, o pai sempre trabalhar à noite, o jornalismo e tudo mais?

R - Não, esse era o estado de normalidade nosso.

P/1 - Aproveitava o fim de semana.

R - Era a nossa referência.

P/2 - Já cresceu assim.

R - É, é o que foi apresentado. Minha mãe ir buscar a gente na escola era uma festa e acontecia uma ou duas vezes por ano. Mas era assim. Também tinha os amigos. Eu tive um grande amigo de infância, que é o Fernando Andrade, filho do João Batista Andrade, a gente tinha muitos interesses em comum, férias eu passava lá em Ituiutaba, de onde a família do João Batista vem, às vezes ia na casa deles, que eles moravam no Km 13 da Raposo Tavares, se não me engano. Era uma época em que você tinha espaços urbanos. Eu tenho lembrança do meu pai, na [rua] Oscar Freire, antes de construir aquele viaduto que passa por cima da [avenida] Sumaré. Ali era um “asfaltão”, que tinha uma feira semanal e quando não tinha feira era um “asfaltão”, não tinha nada, não passava carro nem nada, e aí a gente ia lá soltar aviãozinho de elástico. E tem outra família muito próxima da gente, que é a família do Fernando Pacheco Jordão. Eles têm uma filha que é um ano mais velha, a Bia, e um mais novo que eu, que é da idade do meu irmão, o Rogério. Então a gente ia para Ibiúna às vezes, que eles têm sítio em Ibiúna, ia para casa deles. Mas a nossa referência sempre foi muito isso. O que eu tenho na minha lembrança sempre é que almoço a gente estava junto, quando a gente almoçava em casa; jantava em casa. Eu sempre falo, e eduquei o filho desse jeito. Para mim é assim: refeição em casa não é hora de comer, é um momento de convivência coletiva. Então nunca teve televisão na nossa sala de jantar. Não pode ter. Inclusive nunca teve televisão nos quartos.

P/1 - Só para dormir.

R - Quarto é para dormir, para estudar. Hoje em dia infelizmente com o celular e tablet ficou meio portátil essa questão de levar a telinha para um lado e para o outro. Mas é uma coisa meio assim mesmo. Quantas televisões você tem na sua casa? Na minha casa tem duas televisões, mas a gente só usa uma. Tem uma televisão que já estava lá, depois a gente comprou uma nova e ficou. Na verdade, a gente usa duas quando vêm os pais da minha esposa atual, que querem ver o raio da novela, aí vai lá para outra televisão, fica tranquilo e vê a novela. Fora isso nem usa.

P/1 - E como foram esses seus casamentos? A primeira mulher que você teve, como você a conheceu?

R - Conheci no colégio, namorei oito anos, fiquei mais doze casado, 20 anos. Primeira namorada [Débora]. Começamos a namorar quando terminou o colegial, namoramos oito anos, totalmente programado. Namoramos, foi o tempo de formar, arrumar emprego, trabalhar um ano e casar. E aí ficamos mais doze anos casados.

P/1 - E filhos?

R - Um filho, Lucas, que nasceu lá nos Estados Unidos, quando eu estava finalizando MBA, em 1997. Depois eu tive uma outra mulher com quem fiquei dois anos, em Santos. Morei em Santos, em São Vicente, nessa época, uma época bem atrapalhada na minha vida. Aí eu traumatizei. Aí fiquei uns três anos [em que] se alguém quisesse namorar comigo, nunca mais me via. A ideia era essa. E era sério. Uma vez estava saindo com uma moça lá e tal, estava no clube fazendo ginástica lá na academia, e ela me liga... Porque era assim: o Lucas, depois que eu me separei, ficava final de semana sim e não comigo, terças e quartas, todas. É quase como se fosse meio a meio do tempo. Era uma quarta-feira, dia do Lucas ficar comigo, ela me liga, ela: "Ah, vamos sair, fazer alguma coisa hoje à noite?". Falei: "Putz, hoje é complicado, hoje é dia que eu fico com meu filho, tem jogo do Corinthians", o Lucas é corintiano roxo. "Então você prefere assistir futebol do que sair comigo?". Falei: "Você não está entendendo. Espero que você seja feliz". E nem parei de correr na esteira.

P/2 - Essa pergunta é fatídica. Nunca faça essa pergunta.

R - Você não está entendendo.

P/1 - Não adianta explicar.

R - E a Aline, que é com quem eu estou hoje, eu conheci nessa época. Então ela sofreu bem na minha mão. A gente começou a sair, ficar junto, ela já querendo namorar... Aí surgiu uma oportunidade no trabalho dela para ela mudar para o Rio Grande do Sul. Falei: "Vai para o Rio Grande do Sul". Aí ela foi para o Rio Grande do Sul, eu fiquei com os meus rolos, mas aí depois também começou a baixar a poeira. Me diverti três anos e aí comecei a querer colocar na balança as coisas. Mas para a gente morar junto demorou bastante. Porque ela tem um filho que é seis anos mais novo que o Lucas e eu não estava com muita paciência de ter paciência com criança. A gente fez algumas viagens juntos, a família toda, que me convenceu que ainda não era o momento de juntar as malinhas. E a gente juntou e agora faz... morar junto... quatro anos.

P/1 - Sem filhos, afora o seu e o dela?

R - É.

P/1 - Ok. Você se referiu ao Fernando e Fátima Pacheco Jordão, vocês viveram... Quero dizer, as famílias viveram muito tempo juntas em Londres né, que lembranças você tem desse tempo?

R - Zero lembranças. De Londres eu não tenho nenhuma lembrança. Eu voltei de lá não tinha dois anos de idade.

P/1 - Ah, tá.

R - Então, a família Herzog é o que eu te falei: o meu avô, a minha avó, meus pais, meu irmão e os filhos. É só isso. Mas a família Jordão é como se fosse família, a gente tem uma ligação afetiva que muitas famílias de sangue não têm, provavelmente. Então a família Jordão é muito importante para a gente. Em nível dos pais, até antes disso, porque a Fátima [Pacheco Jordão] fez escola técnica com a minha mãe. Minha mãe fez escola técnica de Química, só depois ela foi estudar Sociologia. A Fátima fez sociologia, aí os pais eram jornalistas, e foram para Londres juntos, na verdade eu acho que primeiro foi o Jordão e depois foi o meu pai. Os filhos nasceram mais ou menos na mesma época. Então a gente ficou realmente muito próximo. Mas logo depois que o meu pai morre, eles voltam para Europa. Então também teve um período de afastamento, que eles vão morar na Inglaterra se eu não me engano, França ou Inglaterra, sei lá. Ele foi ser correspondente da Veja, o Fernando. Mas mesmo assim sempre foi muito próximo.

P/1 - Conviveram sempre, esse tempo todo, a partir daquele episódio?

R - Não, desde antes do episódio. Desde que a gente nasceu. Mais e menos. Aliás, é literalmente como família: você tem um familiar que você fica um ano sem ver. E mora na mesma rua. Pode acontecer. Era bem isso mesmo.

P/1 - Não chega a sentir saudade né, porque tem certeza.

R - É. A conexão está posta.

P/1 - É isso. Quando houve o assassinato do seu pai e depois o processo subsequente, muita coisa mudou.

R - O que mudou?

P/1 - Quero dizer, claro que para um garoto isso evidentemente deve ser sido um choque, mas...

R - Mas o que mudou?

P/1 - Quando é que você teve a percepção de que aquilo mudou muito mais coisa do que apenas a dor pessoal, o país de algum modo foi chacoalhado?

R - Não, não. Então você quer entrar nessa temática, a gente entra nessa temática. Mas é assim: já ouvi essa pergunta mais vezes do que eu consigo me lembrar. Então, o que eu falo? Até o dia 25 de outubro [de 1975] “I was a ordinary child”, uma criança comum, como qualquer outra. Não sabia o que estava acontecendo no mundo, nada. Meus pais tinham um emprego, eu tinha nove anos e meu irmão tinha sete. No dia 26 minha mãe fala que meu pai morreu. Ela diz que contou uma história que eu não me lembro, que tinha sido um acidente, eu não lembro disso. Eu nunca vi meu pai morto, até pela tradição da religião judaica. Eu começo a perceber que tem alguma coisa errada no dia 27, que é o dia do enterro, já no velório, porque tem um assédio descomunal. Não era família que estava lá, estava família e mais mil pessoas, televisão, não sei o que, tal. Eu acho que muito até desse processo aí de somatização que eu tive tem a ver com o que aconteceu do dia 27 ao dia 31 outubro, que uma criança de nove anos, num período muito curto, recebeu uma enxurrada imensurável de fatos, de informações. Morreu, aconteceu tudo isso, tenta enterrar meu pai com pressa, minha mãe aos berros não deixa, o desespero dela, as outras pessoas, Praça da Sé... então ali é que entortou os neurônios. E eu tive uma ilusão, que ficou por muitos anos, de que o meu pai não tinha morrido. Ele era um desaparecido e que um dia ele ia voltar. Eu não tinha nenhuma prova material do contrário.

P/1 - Queria dar um salto no tempo. Esses episódios estão sobejamente contados e recontados, mas, em que momento que a família, você e a família, decidem que esse legado tem que ser consubstanciado no Instituto com a pauta que o Instituto tem hoje. Por que o Instituto Vladimir Herzog? Qual é o fato gerador da existência de uma entidade assim?

R - É um processo. O que aconteceu foi o seguinte: em 1978 é criado o Prêmio Vladimir Herzog, ele acontece na data da morte do meu pai. Sempre nessa data existe um assédio sobre a família da imprensa, de estudantes, para dar entrevista, falar, arrumar o material fotográfico para ilustrar e tal. E a gente sempre achou que com tempo isso iria deixar de acontecer. As pessoas iriam esquecer, o prêmio iria acabar, mais do mesmo, entendeu? Então tinha o prêmio. Além disso, na nossa vida, no cotidiano, na época, por exemplo, que se passava cheque, você ia lá passar um cheque no caixa do supermercado, aí a pessoa: "Pô, Herzog? Tem um negócio de Herzog". Algumas pessoas sabiam bem, outras sabiam que tinha alguma coisa de Herzog, mas não sabiam exatamente o que era. A gente via que eram coisas meio soltas. O tempo foi passando e a gente viu que as pessoas não esqueciam, até porque tem aquelas datas, 5 anos a morte 10, 15, 20, 25, 10° prêmio Vladimir Herzog, 15º, 25º, que ocupa mais mídia, aumenta, essa coisa toda. Mas a gente sempre tratava como se fosse a última vez. O pessoal vinha pedir alguma coisa e a gente abria a gaveta, pegava, dava um negócio, a gente via que as pessoas escreviam a história de uma maneira muito imprecisa.

P/1 - Imprecisa?

R - Sim. Quando que o meu pai foi preso? Você sabe?

P/1 - No mesmo dia.

R - Ele nunca foi preso.

P/1 - Ah, ele não foi preso. Verdade.

R - Pegadinha, hein? Pegadinha que você caiu, viu? Pois é. Tem um livro da Fundação Padre Anchieta que diz que ele foi preso dia 24. É uma besteira sem fim. Impróprio. Então você tem isso daí acontecendo, você tem o caso Herzog acontecendo num nível jurídico, que nunca deixou de acontecer, está acontecendo até hoje. Em 2008, ao final do 30º prêmio Vladimir Herzog, que foi um prêmio grande, a entrega foi até no Memorial da América Latina, a ONU e a Secretaria de Direitos Humanos, na época via Paulo Vannuchi, criaram um prêmio especial, Vlado Especial, um prêmio especial que era uma estátua [do Elifas Andreato] do meu pai. A estátua é meio estranha, é a mesma que está lá na praça [Vladimir Herzog, em São Paulo]. Que foi dada no 30º prêmio: havia mais de 500 jornalistas que tinham ganhado o prêmio Vladimir Herzog e eles próprios elegeram os cinco com maior destaque. Então ganharam lá e tal, os cinco. Não me lembro quem foi. Foi uma época, de novo, em que eu estava “between jobs”. Eu sou rato de computador, sempre o pessoal querendo foto, falei: "Em vez do pessoal ficar nessa complicação toda, por que eu não crio um site onde eu ponho nosso arquivo de fotos e a gente escreve essa história bonitinho?". Inclusive a Fundação Perseu Abramo tinha feito uma série de entrevistas bem bacanas que contavam a história com vários depoimentos e tal, começo a reunir tudo isso num negócio. Mas a gente precisava dar um nome para isso, então vamos criar um tipo de uma organização, uma fundação, uma instituição... eu não sabia o que era uma coisa e o que era outra. E naquele dia, naquela noite, tive essa ideia e comecei a comentar com algumas pessoas, com o Sergio Gomes, com o João Batista Andrade, aí todo mundo: "Pô, que ideia fantástica, eu sempre achei que tinha que ter um negócio para cuidar do nome do seu pai etc. e tal". E a gente fez um período que eu chamo que é do nascimento de um filho, porque ele não levou nove meses, levou oito meses. Foram oito meses de gestação, onde a gente conversou com muita gente, muitos jantares na casa da minha mãe para a gente ir pensando, formando o primeiro conselho, entender como funciona essa coisa toda. Minha mãe sempre foi uma pessoa muito perfeccionista no nível do trabalho, e eu tento também isso. Até porque, quando se fala de legado, sempre teve um legado que não é saudável sobre o meu pai, que é assim: “Ah, tem esse nome, que é uma referência, então eu não posso manchar esse nome”. Eu sempre fiquei me policiando a vida inteira que não podia sujar o nome do meu pai, não podia fazer nada de errado. O que não é saudável. Não sei se é por isso ou não, mas eu não gosto de beber, nunca bebi, nunca usei nenhum tipo de droga, não experimentei nem maconha, não tenho interesse nenhum nessas coisas. Mas, enfim, então tinha que ser uma coisa bem-feita. E aí, conforme a coisa começou a tomar formato, a gente viu que o caminho era o Instituto. Quem nos orientou muito foi o Hélio Mattar, que já havia montado dois institutos, sabia o que não devia se fazer, o que fazer, como montar um estatuto para você não perder o controle. E a gente decidiu criar um instituto na data do nascimento do meu pai, como uma organização para dar continuidade ao trabalho do meu pai, para celebrar a vida dele. E aí nasce o Instituto, no dia 27 de junho de 2009, dez anos atrás, com essa missão. Foi impressionante. A gente não tinha dinheiro nenhum, não tinha grandes pretensões, era realmente para ser um sítio na internet e contratar uma secretária para atender o telefone para quando as pessoas quisessem algum tipo de informação, ter algum tipo de interatividade, cuidar daquilo lá. Eu mesmo fiz o site, inicialmente. No dia do lançamento, na Cinemateca, foram mais de duas mil pessoas, a gente teve depoimento do presidente Lula, do presidente Fernando Henrique, representante do Paulo Vannuchi, que era ministro, do [José] Serra, que era o governador do estado [de São Paulo]. Foi um grande ato político que mostrou para nós como tinha um espaço a ser ocupado e que tinha esse apoio. Naquela época, PSDB e PT já soltavam faísca. E ali eles confraternizavam. Então ele [Instituto Vladimir Herzog] nasceu disso. E os advogados, que fizeram o estatuto, trabalhando “pro bono”, tinha uma agência de comunicação trabalhando “pro bono”, a gente tinha uma assessoria de imprensa, tem até hoje, trabalhando “pro bono”. Então tinha realmente esse espírito de colaboração. Eu trabalhava no governo na época, na Secretaria de Planejamento. O Instituto nasce assim, realmente a gente não tinha dinheiro nenhum. Para se ter uma ideia, a cerimônia toda a Ambev doou cerveja, eu ainda tinha contato com a Ambev, a Cinemateca cedeu o espaço e a Zizi Possi foi cantar de graça, junto com o Coral Luther King. Só que para a Zizi cantar precisava ter som. E o som custava oito mil reais e a gente não tinha esse dinheiro. Eu lembro, almoçando com a minha mãe, o lançamento foi numa quinta-feira... Numa segunda-feira, eu falei: "Mãe, o que a gente vai fazer? Vai ter que cancelar a Zizi, a gente não tem dinheiro para pagar". A gente passou o chapéu, tinha 500 reais para, além das coisas da Ambev, servir um vinho, alugar taças, essas coisas. “Putz, mas vai ser uma pena que a gente não consiga.” Bom, eu trabalhei na GM, e na GM a especialidade é suprimentos. Vou ver se consigo negociar com o fornecedor, vou xavecar esse cara e dar um jeito para jogar essa nota para daqui a 30 dias, e em 30 dias a gente arruma. E consegui. Viabilizamos a Zizi Possi. E no dia seguinte me ligou um diretor da Odebrecht, que estava em Angola, um jornalista, e falou assim: "Estou sabendo que você precisa de oito mil reais". Eu não sei como ele ficou sabendo até hoje, não cabe nessa mão o número de pessoas que sabiam sobre isso. "E a gente vai doar esse dinheiro para vocês." E depois eu fui atrás dinheiro, precisava de uns cinquenta mil reais [/ano] para pagar a secretária, e hoje o orçamento [anual] no Instituto está na ordem de quatro milhões de reais. As coisas mudaram bastante, justamente por haver esse vácuo que precisava ser ocupado. E foi uma coisa, do ponto de vista terapêutico, muito importante para família, porque a gente começou a colaborar com a sociedade, a construir coisas e não só ficar falando da morte, da morte, da morte...

P/1 - Mas também da obra dele, que era uma coisa que estava meio [escondida]...

R - É, mas a obra apareceu agora. Vamos ser claros: esse olhar sobre a vida dele, apareceu de forma organizada nessa exposição que está agora no Itaú Cultural [“Ocupação Vladimir Herzog”, aberta de 14/08 a 20/10/2019, https://www.itaucultural.org.br/ocupacao/vladimir-herzog/]. Eu não conheço mais da metade do material que está lá. Não conheço. A carta do meu avô eu não conhecia. As cartas dele, que ele trocava e tal, o tanto que ele mergulhou na área de cinema. Aliás ainda não conheço, ainda não tive tempo de ir ver a exposição. Já fui lá umas cinco vezes, mas sempre para gravar entrevista, o dia do lançamento... Preciso ir lá com calma e passar algumas horas olhando a exposição. E não só isso: depois que o meu pai morre, teve o processo de blindagem da minha mãe. Então, assim: o caso Herzog estava posto, ela não queria que a gente tivesse contato com as imagens chocantes. Nunca tivemos. A primeira vez que apareceram umas imagens mais chocantes foi na revista “Veja”, que tem o rosto do meu pai na capa. O Vera Cruz tinha aquela coisa que o recreio era aberto, uma banquinha de jornal, padaria e tal, e ela falou assim: "Olha, vai ter essa revista, vai ter o rosto do seu pai, e eu gostaria que vocês não olhassem". Eu até hoje não olhei essa revista. E o próprio Instituto não tem nenhuma foto do meu pai morto. Por isso que também não tem na exposição. Mesmo motivo. Mas o olhar sempre ficou sobre isso: sobre o caso, sobre a briga na justiça, sobre a luta contra esse olhar torto da anistia, e os próprios projetos. Ou seja, vamos ser mais claros: do ponto de vista da vida do meu pai, o que se conhecia e o que se olhava era uma ilusão que o grande trabalho dele era na área do jornalismo. Então é o jornalista Vladimir Herzog, Prêmio de Jornalismo Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos. Jornalismo, jornalismo, jornalismo. Nunca ninguém olhou mais sobre o que era a vida do meu pai e a gente também deixou de olhar. Vinha a entrevista e [a gente] falava "ah, ele gostava de astronomia, gostava de tirar foto, gostava de pescar". Eu conhecia o “Marimbás”, o curta metragem, eu sabia que ele tinha, mas eu não tinha ideia do trabalho. Inclusive, para eu entender que o trabalho de jornalismo dele não era jornalismo político “stricto sensu” como é hoje, e sim um trabalho de ir fazer uma política através da cultura, de um olhar sobre a cultura, eu não tinha consciência disso até bem recentemente. E eu não olhava esse material. A última vez que eu olhei uma [revista] “Visão”, que tinha uma matéria do meu pai, foi numa sala de espera de médico, uns quatro anos depois que meu pai tinha morrido. Médico era uma biblioteca, você achava aquelas revistas com cinco, seis anos de idade lá na mesinha. E foi uma vez que eu vi o nome do meu pai no expediente. Depois nunca mais olhei isso. Era um universo desconhecido.

P/2 - Quando você disse do Instituto, como foi se criando a filosofia, os programas, quem participou disso para ter essa coisa de "vamos sair disso, que contribuição a gente pode dar para sociedade"?

R - Ótimo. Boa pergunta. Pessoas e entidades, nem sempre o que elas têm de melhor é o objeto-fim delas. Eu falei aqui bem rapidamente da General Motors. O expertise da GM não é fazer carro, é comprar bem. Eles são “benchmark” na área de compras, na área de suprimentos. A Ambev, não é fazer cerveja, cerveja qualquer um faz. Por que ela foi comprada? Porque o expertise deles é a gestão. O meu expertise não é direitos humanos, não é jornalismo, não é terceiro setor, não é nada disso. É gestão, também. Muito do que eu aprendi na Ambev, na GM, nessa minha vida no mundo privado. Então, o Instituto, o que aconteceu durante oito meses? Foi ter um trabalho de planejamento estratégico, na realidade. Então a gente tem um trabalho de planejamento estratégico, definindo missão, visão, valores, essa coisa toda. Então a gente traça um caminho pelo qual a gente quer seguir. Assim, eu usei metodologia de gestão a partir de uma orientação muito importante do Hélio Mattar, dizendo assim: "Você vai montar esse negócio, você vai querer abraçar o mundo. E vai aparecer oportunidade para você fazer um monte de coisa. Se você fizer isso, você não vai fazer nada bem feito e você não vai ter identidade em nada. A gente tem que definir qual é o foco da organização e tem que ficar nesse foco. Sei lá, apareceu uma oportunidade para fazer um trabalho de observatório de imprensa. Uma vez apareceu essa discussão: "Ah, vamos ser um observatório de imprensa". Não, não vamos, não temos braços, não é nossa missão, não é por que a gente foi criado, nada disso. Então a gente tem isso daí muito claro, tem um conselho muito forte que se reunia; dentro de uma das principais coisas, dentro da nossa estratégia do Instituto, era não se posicionar sobre fatos. De repente a gente era novo, não queria comprar briga, a não ser que fosse uma coisa muito absurda, tipo uma censura de imprensa, um massacre de polícia. Vou dar um exemplo: tem a Parada LGBTI e o governo proibisse. O Instituto não ia falar nada sobre isso, não é papel do Instituto falar isso naquele momento. E eu levei gestão, eu nunca dei um passo maior que as minhas pernas. Por exemplo, a gente está fazendo agora o nosso orçamento [para] 2020, a gente está em agosto-setembro e já está fechando o orçamento 2020. Eu recebo todo mês todos os relatórios financeiros, olho se dinheiro gasto é igual ao previsto, planejado, aquela coisa toda. A gente foi crescendo de maneira orgânica, dentro de um programa que a gente definiu, dentro de um modelo de gestão e com uma visão estratégica. Logo quando nasce o Instituto, aparece uma oportunidade, e a gente ia mexer com memória, porque uma das coisas do nosso tripé era preservar, preservar a história. E um dos conselheiros tinha uma coleção de jornais, o jornal “Ex”, que foi o único jornal que reportou a morte do meu pai em detalhes, tanto que a diretoria toda foi presa e o jornal foi cassado. Ele tinha a coleção completa e ele falou assim: "Ah, vamos fazer uma edição fac-símile, contando a história desse jornal". Falei: "Ah, vamos" e tal, e aí eu tive uma ideia: "Vamos fazer um número zero, chamar o pessoal que trabalhou para contar como é que foi", e fizemos um negócio assim: o Kiko Farkas trabalhou “pro bono” para fazer o projeto gráfico, a Imprensa Oficial [do Estado de São Paulo} escaneou, tratou a imagem e publicou de graça, aí eles ficaram com metade da tiragem e [a outra] metade foi nossa. Foi um trabalho muito bonito. E em paralelo estávamos eu, minha mãe e alguns conselheiros batendo em porta tentando levantar dinheiro. E uma das portas que a gente bateu na época foi do... que era o porta-voz do Lula no primeiro mandato... Fugiu o nome dele aqui. Ex-Globo. Nossa, me fugiu o nome dele agora. Está na ponta da língua o nome dele. [Franklin Martins] Cáspite, o cara é grandão. “Whatever”, daqui a pouco a gente lembra o nome. Mas o que ele falou é o seguinte: "Por que vocês não pegam esse projeto, expandem ele para toda a imprensa alternativa, que são centenas de jornais, cria um plano anual de atividades via Lei Rouanet e coloca seu custo estrutural". Então ele ensinou para a gente como fazer um negócio, e foi o projeto “Resistir é preciso”, o primeiro grande projeto de memória que a gente fez. Conseguimos Lei Rouanet, com a ajuda deles a gente conseguiu vários patrocínios... Cáspite, eu vou ficar nervoso se não lembrar o nome dele agora. Está na pontíssima da língua.

P/2 - Eu também, estou vendo a imagem dele.

R - E o Instituto cresceu, e aí foi até o momento que eu passei a me dedicar exclusivamente para o Instituto.

P/2 - Quem eram esses primeiros conselheiros?

R - Primeiro era Hélio Mattar, João Batista [de Andrade], Fátima [Pacheco Jordão], Fábio Magalhães, Caio Túlio Costa, minha mãe... Eu vou ter dificuldade de lembrar todos eles. Não lembro se o Paeco [Antonio Prado Junior] é da primeira leva. O cara do jornal “Ex”, que me fugiu o nome agora também, que foi diretor de jornalismo da Gazeta, saiu agora há pouco.

P/1 - Dácio?

R - É, Dácio Nitrini. O Raul Cruz Lima, um publicitário. Então era um conselho que também tinha uma estratégia: ele tinha gente de PT, PSDB, gente que era jornalista, Marco Antônio Barbosa, gente da área jurídica, um pouco de gente na área de direitos humanos. Inclusive o conselho vai evoluindo na sua formação conforme vai evoluindo o Instituto. Então nasce esse projeto “Resistir é preciso”, que saiu um monte de coisa para ser feita durante dois, três anos. Primeiro a gente lançou livros. A primeira coisa que a gente fez, a gente gravou depoimento de 60 jornalistas que trabalharam nessa imprensa [alternativa], e saiu uma coleção de DVDs chamado “Os Protagonistas Dessa História” e a gente também tem o “low material”, que são cento e poucas horas de gravação de todos esses jornalistas. Um deles inclusive é esse cara que eu não estou conseguindo lembrar o nome. Ele participou acho que do sequestro do embaixador.

P/1 - Ah! Franklin Martins.

R - Franklin Martins! Pronto, matou. Franklin Martins. A gente gravou isso sem Lei Rouanet. "Não, vamos gravar já porque esse pessoal está indo embora." E um deles morreu cinco dias depois, mesmo. Mas foi um infarto, foi uma infelicidade, não era porque ele estava velho. Na sequência a gente descobriu o José Luiz Del Roio, que tinha coleção de jornais e pôsteres guardados num CD, e então a gente fez um trabalho de pesquisa, conseguiu dinheiro, conseguiu digitalizar 40 coleções de jornais, que estão guardados até hoje, e fizemos um livro chamado “As Capas Dessa História”, que fala sobre todos os jornais, divididos em três grupos, os jornais de banca, legais, os jornais clandestinos, e o terceiro grupo, que a gente descobriu durante pesquisa, os jornais dos exilados. Ficou em um mundo. Depois fizemos “Os Cartazes Desta História”, sobre os cartazes que o pessoal produzia, depois virou uma exposição CCBB [Centro Cultural Banco do Brasil], que correu os quatros CCBBs, depois isso virou uma série de dez documentários. Então, gerou atividade pesada para o Instituto por muito tempo e ainda assim a gente tinha outras coisas acontecendo, como o Prêmio Vladimir Herzog, criamos o Prêmio Jovem Jornalista, o Vlado Proteção aos Jornalistas. E eu já coloquei na minha cabeça – isso é marketing, Potter, “product life cicle”, introdução, crescimento, maturação e declínio. Eu sabia que o “Resistir é Preciso”, uma hora, ele se acaba. Eu precisava ter alguma coisa nova. E nesse tempo, como era produto usando a Lei Rouanet, essas publicações que a gente fazia, a gente doava de uma maneira relativamente inteligente pelo menos, para escolas e bibliotecas. E percebemos que a gente estava gerando um material com grande potencial educacional, mas a gente não tinha uma estratégia educacional. E era a coisa mais linda em que a gente podia transformar um instituto do ponto de vista do conceito de construir e contribuir para a sociedade. Então eu contratei uma pessoa da área de educação, Ana Rosa Abreu. A primeira coisa que ela fez foi um encarte que acompanhou “Os Cartazes Dessa História”, que já tinha uma série de atividades para a escola usar o livro, para não ser um livro que morre. Íamos fazendo contatos e tal, e a gente começa a desenvolver e entender qual seria o papel do Instituto Vladimir Herzog dentro de educação. E a gente vê, acha lá, Educação em Direitos Humanos. É muito disso daí: tem um olhar estratégico meu de gestão, de que a gente tem que ir se renovando.

P/1 - Sim, mas aproveitando o próprio crescimento orgânico que aponta caminhos factíveis.

R - Isso. Como que eu vou criar uma coisa nova desvinculada das outras? Ela está absolutamente incorporada às coisas que a gente faz, e assim que tem saído uma série de coisas. Em paralelo, para finalizar essa primeira parte da nossa conversa, tinha duas coisas na minha cabeça. A primeira, que era uma coisa que me incomodava muito, que é o Ivo Herzog pedir dinheiro para o Instituto Vladimir Herzog. Uma coisa que está errado. Então você tem que explicar... E tudo que você tem que explicar você já sai perdendo, por definição. Assim, para eu atingir a minha meta do que eu queria que o Instituto fosse, não uma coisa para acontecer daqui a 20 anos, era ele deixar de depender de mim, ele deixar de ter essa pessoalidade. E a outra coisa que eu sempre falei, que é assim: um Instituto, uma organização, o dia a dia, sempre muito difícil de levantar dinheiro, muitas noites de insônia por questões de grana, então a figura que eu faço é assim: você empurrando uma grande pedra morro acima, e o sonho é você chegar em cima do morro e a pedra começar a rolar sozinha, se autossustentando. Então eu fui trabalhando esse tipo de coisa, aí comecei a pensar na minha sucessão. E eu percebi que chegou uma hora que o Instituto estava maior do que eu. No seguinte sentido: eu não era a melhor pessoa para Instituto. E eu estava atrasando desenvolvimento do Instituto. Pelas minhas virtudes, é, virtudes, vi que eu estava freando ele. Então fazia sentido eu continuar colaborando, mas eu tinha que trazer uma pessoa que transformasse em realidade o potencial do Instituto. E aí aparece a figura do Rogério Sottili, que eu conheci primeiro quando ele era secretário municipal de Direitos Humanos, a gente fez coisas juntos, e depois quando ele foi ministro dos Direitos Humanos no governo Dilma [Rousseff]. Eu xavequei ele, durante vários meses, mas eu também tinha que ter uma situação financeira que permitisse eu continuar tendo um salário no Instituto, que tinha algum trabalho, e trazer um outro executivo, que não é barato. Então a gente traz ele e tive que abrir mão de outros executivos no Instituto, a gente teve o Nemércio Nogueira durante muitos anos ajudando a gente, tive que abrir mão deles porque não cabia tudo, não fechava a conta. E é isso. Aí fizemos um processo de passagem de bastão durante seis meses, de novo com um olhar estratégico, aí eu me afastei o ano passado [2018] totalmente do Instituto porque só a minha presença é muito dominadora. E eu precisava que o Instituto passasse a olhar o Rogério como o líder da organização. E se provou que eu estou certo: o Instituto, nesses dois anos em que ele está lá, explodiu.

[pausa]

P/1 - Eu queria que você recuperasse uma coisa, Ivo. Nesses primeiros momentos de constituição do Instituto, a tua mãe Clarice apoiou, envolveu-se, engajou-se? Como foi?

R - Sim, ela se envolveu bastante; como eu falei, havia jantares que aconteciam na casa dela, ela foi a primeira presidente do conselho, quando podia participava das reuniões do conselho. Uma vez constituído o conselho, a gente se reunia em média umas quatro vezes por ano. Ajudou até na parte de "fund raising": quando fomos falar com o Franklin [Martins] ela estava junto, [como] em algumas outras portas que a gente bateu. A agência de propaganda, que trabalhou “pro bono” era uma agência do grupo WPP, onde ela trabalhou. Então ajudou bastante, mas ela meio que deixou como uma coisa para eu tocar mesmo. Porque ela também já estava bem desgastada com essa temática.

P/1 - E teve também a pendenga jurídica para administrar.

R - Qual a pendenga jurídica?

P/1 - Foi por iniciativa dela que teve a ação que gerou a sentença do Márcio Morais e depois a ação junto à Corte Interamericana dos Direitos Humanos.

R - Não foi dela exatamente a da corte. Eu não lembro quem foi que trouxe essa possibilidade. Inclusive na primeira reunião que teve sobre essa história de levar para Corte Interamericana, eu que fui e fui contra, eu não queria, para mim já tinha dado. Aí depois ela veio conversar comigo e falou assim: "Não sei, acho que é importante porque tem as outras famílias”, essas coisas de sempre. Falei: "Então tá, então vamos".

P/1 - Gera uma jurisprudência, não é?

R - É, abre portas.

P/1 - Bom, essa fase está ultrapassada, porque ano passado veio o veredicto e...

R - Não, na semana retrasada eu entreguei a sentença para [o ministro Dias] Toffoli [do Supremo Tribunal Federal]. Porque o Brasil foi condenado, tem três reparações que precisam ser feitas e nenhuma delas teve andamento até o momento.

P/1 - Já não havia andamento algum da primeira sentença, correto?

R - Mas é que é assim, só para você entender: do ponto de vista da corte e do que o Brasil apresentou, sim, havia. São quatro áreas que a corte sentenciou aos países nesse sentido, e uma delas é a construção de monumentos de memória. Isso vem sendo feito, de uma maneira muito modesta, mas você tem o "Memorial da Resistência", você tem uma instalação na entrada do Ibirapuera, dos mortos e desaparecidos. Isso não apareceu na sentença dessa vez, o que apareceu é que todos os crimes, como o do meu pai ou relacionados, foram considerados crime de lesa-humanidade, então são imperdoáveis e imprescritíveis, têm que ser investigados. Nós temos que ter direito à investigação. Isso é uma coisa. Outra coisa é um pedido público, em praça pública, com a presença das Forças Armadas, um pedido de perdão; e aí tem uma parte de indenização, que é vinte mil dólares, alguma coisa assim.

P/1 - E quais são os próximos passos? Porque são, digamos, obrigações difíceis de serem cumpridas por parte do Estado, no sentido de que o Estado não reconhece isso.

R - É, indenização é fácil, porque eles gostam de tentar comprar as coisas com dinheiro, e nem isso foi feito. Eu sei que o Ministério Público abriu denúncia novamente, preparou o caso, eu não sei em que estágio que está. Não sei. Estava até tentando descobrir, porque o Toffoli me perguntou e eu não sabia responder. Mas uma das coisas que eu acho que tem que acontecer, até por conta dessa sentença, que é uma coisa que está travada lá no STF, é um novo olhar sobre o entendimento sobre a Lei de Anistia. Tem uma ação que está lá parada, acho que tem até quem é o relator, não me lembro quem é o relator, dentro do STF, e tem que ir para pauta para ir para o plenário. Então, de repente, e por isso que eu entreguei lá e tal, falei assim: "Acho que a condição está posta para se levar esse negócio a debate do plenário".

P/1 - Uma interpretação torta da Lei de Anistia tem sido a desculpa padrão, sobretudo das Forças Armadas, para não reconhecer.

R - É que assim, sempre as histórias são mal contadas, e quando você conta superficialmente uma história, gera mau entendimento. Então você vai falar de Lei de Anistia, eles vêm e falam assim: "Tá, mas aquele cara que pegou e assassinou um militar?" A Lei de Anistia não anistia crimes comuns, ela anistia crimes políticos. Então o cara pegou e matou uma pessoa, ele vai ser julgado por isso, é um crime comum, não entra no mérito. São os crimes de teor político. E esse é um ponto. O outro ponto é que os civis, quem não era do Governo, foi anistiado porque estava cumprindo uma pena, ou estava preso ou estava no exílio, então havia uma perseguição contra essas pessoas, e o perdão é sobre isso, para elas poderem voltar às suas atividades normais. Os agentes do Estado nunca foram levados a julgamento, nunca se investigou, e eles trabalhavam em nome de um Estado, que tinha uma Constituição na época. O que eles fizeram não estava previsto no sistema legal, não estava na lei que você podia pegar uma pessoa clandestinamente, prender por tempo indeterminado, torturar. Isso não estava previsto em lei. O Brasil tem uma tradição terrível e que o presidente Lula foi a favor, Fernando Henrique foi a favor, de não querer mexer nessas coisas. O Brasil não é um país de rupturas, é um país de transições. É isso que deu. Por que a coisa está do jeito que está hoje? Não é que caiu um cometa e nasceu lá de Krypton, e nasceu essa coisa torta aí. Isso daí é resultado de um processo, e um processo onde não existem essas rupturas, não existe esse olhar, não se escreve essa história. O atual presidente fala que a gente tem que virar a página da história. Eu concordo 100%, mas vamos escrever ela primeiro. Ela está meio em branco, não é? O cara fala que não houve ditadura, isso é bobagem. "Houve ditadura, era o contexto da época, o regime se instalou com apoio da sociedade civil, blablablablá, aconteceu isso, as coisas mudaram, o regime endureceu, a sociedade se opôs, a indústria apoiou, meios de comunicação, e depois também voltou..." [Vamos] contar essa história, qual o problema? Uma das coisas mais deprimentes que tem é, em 2019, a gente vai discutir política e "não, porque o Brasil vai virar um país comunista, o Brasil vai virar Venezuela", esse monte de bobagem. É uma construção idiota, e que o Brasil está virando, é um país que queima as coisas, que está destruindo as instituições da sociedade civil, que está atropelando a Constituição. Isso que tá acontecendo e isso tem que ser debatido, e não ficar falando que "ah, quem é contra isso quer transformar isso daqui em Cuba". Me poupe, não é?

P/1 - É verdade. Eu retomaria o papel do Instituto, com esse viés educacional. Nós estamos tratando de democracia, direitos humanos e liberdade de expressão, que são as grandes áreas de atuação do Instituto. Isso requer uma certa pedagogia, quer dizer, "media literacy", se quiser chamá-la assim. Há um trabalho hercúleo aí, sobretudo no momento em que a conjuntura não está lá exatamente muito risonha.

R - Na realidade, o que a gente está trabalhando é uma questão de formação de valores. Você tem seus valores quando se fala em democracia, o seu entendimento democracia, direitos humanos, de olhar a outra pessoa, cidadania, tudo, como você vê. A forma, a cor que você dá é resultado dos valores que você tem intrínseco a você. Então nosso programa, por exemplo, de educação, ele começa na creche e vai até o final do Fundamental. Por que isso? Porque é a fase da vida do ser humano que ele está construindo essa base de valores. O que a gente trabalha de educação em direitos humanos, de formação desses valores, não é uma doutrinação, é a provocação de uma reflexão, colocando situações. Porque é isso: eu canso de dizer, algumas coisas que me incomodam na sociedade, primeiro é que nós somos uma sociedade umbilical, as pessoas navegam em volta do próprio umbigo, não conseguem ir mais distante do que isso; e somos uma sociedade paternalista. "Não, o governo tem que resolver, a culpa é do governo." Que culpa é do governo? Governo é resultado do que a população demanda do governo. Então se você não exerce seu papel como cidadão de maneira consistente, consciente, a maneira que você exerce é a maneira que o governo responde: à ação da sociedade, tem a reação do governo, sempre foi assim. Foi assim que teve o golpe de 1964, foi assim que derrubaram a Dilma [Rousseff], ninguém derruba um presidente sem ter um processo político da sociedade por baixo. A gente tenta trabalhar isso, com dois programas de educação no Instituto: um formal, que é esse que eu falei, e um informal, que é uma outra coisa, um outro programa que nasceu mais recentemente. E a didática que você diz, na realidade, assim, hoje faz cinco anos que a gente está trabalhando com 100% da rede pública municipal de São Paulo, a gente está falando em 1.560 escolas, um milhão de crianças. A gente não ensina direitos humanos, a gente põe os profissionais de educação para vivenciar direitos humanos. Esse é o trabalho que a gente faz. É através de reflexões sobre o dia a dia da dinâmica dos professores, dos gestores, dos alunos, dos pais, [que chegamos ao oque são] direitos humanos? O que é o respeito, o que é o ouvir, o que é – essa palavra é perigosa – a tolerância. É perigosa porque você fala: "Eu vou tolerar as coisas ruins?". Não, a tolerância do diferente. E até mesmo o que é democracia. Eu quando dou palestra sempre falo assim: uma das coisas básicas da democracia é a diversidade. Você está num momento rico, democrático, se você está conversando com uma pessoa que pensa diferente de você. Se você está com uma pessoa que pensa igual, é pobre, você está quase que perdendo seu tempo – não está, porque você está convivendo, sei lá, está falando de outras coisas –, mas do ponto de vista de construção da sua narrativa, do seu pensamento, [se] os caras pensam igual a você, estão batendo carimbo no mesmo lugar do papel. Agora quando tem o cara diferente, que a essência da democracia, é justamente isso: para você ir construindo alguma coisa nova você precisa do diferente, e o processo democrático é esse ouvir do diferente, respeitar e entender que o cara não é melhor nem é pior, é diferente; e como é que você se encaixa nessas provocações. Que é tudo que o atual governo não quer, ou os regimes nazifascistas, com queima de livros, essa coisa toda. Fernando Jordão dizia uma coisa, que educação ela é subversiva. Então, por que a educação no Brasil, pública, é tão ruim? Porque o governo não quer uma sociedade subversiva. O que é ser subversivo? É questionar o status quo. É questionar. Se você questionar, alguém tem que responder essa questão. A educação que se criou no Brasil, o modelo de educação, na hora em que se universalizou a educação pública, que antigamente era para poucos, era boa, mas era para poucos, se universalizou o abrigar o estudante e garantir uma merenda para ele, e ensinar mais ou menos ler, escrever e fazer conta de matemática. Eu estava conversando uns meses atrás com o Alexandre Schneider, na época que ele era secretário de Educação. "Você está tendo bons resultados na educação? Qual a finalidade da educação?". Qual a finalidade da educação? Qual é o "question zero?" Me resume em dez palavras qual a finalidade da educação?

P/1 - Formar cidadãos, sedimentar valores e criar conhecimento.

R - É um pouco por aí. Ler e escrever são meios para você obter isso. Ler e escrever não é fim, é meio. Eu simplifico um pouco, mas vou falar a mesma coisa que você, mas eu acho que o objetivo é cidadão. Educação é possibilitar que o indivíduo se torne um cidadão numa sociedade democrática e possa exercer seu papel da forma mais consciente possível. E para isso, a primeira coisa que ele precisa – e aí o instituto entra um pouco, nossa pegada de educação – precisa conhecer essa sociedade em que ele vive. Esse status presente que a gente está tendo agora, dia 30 de agosto, às 17 horas, ele é resultado do que aconteceu em todos os segundos que se passaram até a gente chegar nesse momento, que não são segundos, são dias, meses, anos, séculos em um contexto micro, que é do bairro onde a gente está, da cidade, do estado, do país e do mundo. Uma coisa influencia a outra. Não tem como você falar do golpe de 64 sem falar de Guerra Fria. O golpe de 64 começou entre Estados Unidos e União Soviética, então não dá para falar: "Ah, foi uma luta de classes...", não: tem um contexto, senão não teria acontecido. O buraco era mais em cima naquele caso, mais em cima. E que a educação de hoje não faz, ou faz muito mal isso. Até voltando lá para o começo da nossa conversa, quando falei que eu prestei jornalismo, eu hoje eu sou altamente polêmico e eu tomo bastante porrada, mas é uma porrada gostosa de levar, eu gosto desse debate. Eu acho que o jornalismo não podia ser um curso de graduação, tinha que ser uma pós-graduação. A graduação tinha que ser em ciências sociais, em história, e aí, tudo bem, eu tenho esse conhecimento, agora eu vou usar esse conhecimento para informar. Como é que o cara faz uma reportagem se ele não entende tudo que está vindo por trás? Se ele não entende a sociedade sobre a qual ele está fazendo análise daquele tema que ele está trazendo para o debate público? Então eu sou a favor do fim do diploma de graduação de jornalismo.

P/2 - É uma discussão antiga, para ser jornalista você precisa de diploma ou não.

R - Mas aí é outra coisa, isso daí é uma questão de sindicato; isso eu sou contra, eu sempre fui contra. A questão do diploma é uma questão corporativista, para pagar sindicato. É uma bobagem.

P/1 - Mas a ideia de ter um jornalismo no curso de pós-graduação é uma coisa que foi muito ventilada. É claro que o modelo não se modificou por conta disso, mas é um caminho muito mais racional, mais claro de formação do que o status que tem hoje.

R - Na realidade, as narrativas que eu tenho do curso de jornalismo é que você aprende o meio, para fazer o jornalismo, mas você não tem o conteúdo. O conteúdo pedagógico ele fica faltando, você aprende meios. Trinta anos atrás tinha até curso de datilografia na faculdade de jornalismo, vai aprender português. Vai também, aprende essas coisas também, e na pós-graduação aí é outra coisa: aí você tem que olhar um debate até mais aprofundado sobre a questão de ética, de valores, de responsabilidade, ainda mais se você viver num país que não tem lei de imprensa.

P/1 - Não tem regulamentação.

R - Não, o que é bom, em tese. A regulamentação deveria ser a ética individual, que é o resultado de uma base de valores.

P/1 - Como é no concreto essa atuação do Instituto junto as escolas municipais? Como que isso se dá? É uma equipe, é um curso?

R - Tem uma grande equipe que trabalha nas diretorias regionais de ensino – acho que são 13 diretorias de ensino – e forma os educadores, os multiplicadores. E aí conforme vai mudando a gestão, porque isso começou na gestão do [prefeito Fernando] Haddad, e começou quando o Rogério Sottili era o secretário Direitos Humanos. O programa começa financiado pela secretaria de Direitos Humanos, piloto em 20 escolas ligadas a quatro CEUs, de quatro regiões de São Paulo, com uma parceria da secretaria de Educação, senão você não consegue. Isso foi o primeiro ano. No segundo ano, a gente consegue fechar o convênio direto com a secretaria de Educação e aí para 100% da rede. E a gente traz um instituto de pesquisa para fazer monitoramento e avaliação. Foi feito o marco zero para se medir resultados, para "prestar contas", entre aspas. Isso foi... já não era o Caligari o secretário, eu acho que o secretário nessa época era o... tem 300 livros escritos, não sei por quê [Gabriel Chalita]. Mas o que aconteceu foi muito interessante, porque ele tinha um negócio que era "Pais na Escola", um programa que ele vendeu, mas ele não tinha um programa. E na hora que ele viu o nosso programa “Respeitar é Preciso”, de educação, ele aceitou e colocou em 100% das escolas. Mas a gente sempre trabalhando em nível dos formadores. Na realidade, eu esqueci de falar, na primeira fase do programa a gente fez uma pesquisa exploratória, uma qualitativa, professores, alunos, pais, gestores e funcionários, para ter um diagnóstico – que tem um relatoriozão desse tamanho –, e aí para tirar aquele diagnóstico se definiram as temáticas com que se trabalha até hoje. E aí você tem um material de apoio físico, que são apostilas que vão para as escolas, para apoio ao educador, mas você tem muitas palestras, tem eventos anuais que reúnem mais gente. O programa foi construído junto com a rede.

P/1 - Bonito o programa.

R - O programa é formidável, é só entrar em "respeitarepreciso.org.br", está tudo lá, digital. Foi criada uma intranet facebook, é uma rede social fechada para os educadores discutirem com os professores as temáticas.

P/1 - E esses convênios são renovados anualmente, tem um prazo maior?

R - Dois anos, são de dois em dois anos. A gente já está na terceira renovação, continua e está se aprofundando mais, está ficando mais intenso. O que a gente não conseguiu foi renovar... porque o instituto de monitoramento era financiado por uma fundação, o Instituto Samuel Klein; eles mantiveram durante dois anos, mas mudaram as diretrizes deles e a gente teve que interromper o trabalho de monitoramento, o que para mim é muito ruim isso.

P/1 - Certo. E quais são as outras vertentes de atuação do Instituto?

R - Bom, dentro da área de educação ainda, tem um outro programa mais novo chamado "Usina de Valores". Esse sim é revolucionário, esse é um bicho bacana. Só antes falar sobre o “Respeitar é Preciso”. O “Respeitar”, que está em São Paulo, ele ia para nível nacional em 100 cidades. A gente estava fechando um convênio com o Ministério da Educação, tinha uma outra entidade que ia fazer a triangulação, porque o ministério não podia contratar gente, enfim, a gente ficou um ano dentro da burocracia, faltava só a assinatura do [então ministro da Educação Aluízio] Mercadante, quando cai o governo Dilma. Hoje, agora, ele está indo para uma cidade no interior de Pernambuco, numa parceria com a Klabin. A gente está começando a trabalhar lá. O “Usina de Valores” é uma coisa mais nova, que nasce de algumas provocações. Durante todo esse tempo, a gente sempre buscando o dinheiro, até buscando dinheiro fora, e o pessoal da Open Society falou que eles teriam interesse em apoiar o Instituto em um programa como esse, de educação, mas que a gente tinha que furar a bolha. Furar a bolha, vamos furar o raio da bolha. E aí a gente começou a pensar, matutar, e uma das coisas que a gente tinha na nossa frente, que a gente olhava, é que você pega indivíduos, organizações que trabalham a temática direitos humanos, e aí tem setores da sociedade que com um estalar de dedos desconstroem muita coisa que a gente rema, rema, rema para construir. Por exemplo, a mídia. Teve lá aquele Marcelo Rezende, ao vivo: "É, a polícia mata bandido, bandido bom é bandido morto, essa turma dos direitos humanos e tal". Então a gente falou assim: "Mas essas coisas estão postas, elas não vão deixar de existir. A gente tem que de alguma maneira trabalhar com eles para tentar mudar o ‘mindset’ deles". E a gente resolveu fazer uma intervenção num desses setores que desconstroem muito o que a gente briga, que é a igreja evangélica. A igreja evangélica está posta, ela deve se tornar a maior igreja no Brasil nos próximos 10 anos, tem um papel político importante hoje, que vai desde a presidência, infelizmente, até não sei onde, e que de uma maneira não homogênea, mas majoritária, é muito conservadora. Desconstrói o que a gente tenta construir. Porém, até pelo seu tamanho, existem grupos muito progressistas, que pensam como a gente, pensam, mas são evangélicos. Então [o programa] “Usina de Valores” o que ele trabalha? Ele identifica esses grupos – e ele começou em São Paulo, na zona sul de São Paulo, na comunidade do Alemão no Rio, na periferia de Recife –, trabalhando com influenciadores dessas regiões, evangélicos progressistas, onde a gente articula com eles e cria um programa, meio que para eles terem mais voz dentro desse grupo para tentar fazer uma disputa de valores. E começou no ano passado [2018], estendeu para Salvador e Caxias, acho que agora vai para Vitória também nos próximos meses, e onde os atores não é equipe do Instituto, os atores são essas pessoas: a gente identifica facilitadores que a gente contrata, faz uma parceria, então a gente consegue recursos financeiros e um pouco de metodologia e gestão para eles. E aí, sim, vai a equipe do Instituto. Por exemplo, teve agora um evento na comunidade do Alemão, semana passada – eu não sei se foi uma roda de conversa ou uma palestra –, que a gente fez um “streaming” usando um parceiro nosso, é um canal famoso do Youtube, o “Quebrando Tabu”. Durante o “streaming”, houve 25 mil pessoas que viram, e na primeira semana, 200 mil pessoas. E de novo: tudo isso vai para um portal chamado "usinadevalores.org.br". Essa é uma outra ação do Instituto dentro da questão da educação, fora palestras de que a gente participa. Esse é o primeiro pé de um tripé. Lembra que eu falei que a gente fez um planejamento estratégico no nascimento no Instituto, cinco anos depois a gente fez um novo, que durou cinco anos. Durou um ano os debates, onde a gente decidiu começar a opinar sobre temas, não mais não opinar, como eu falei no começo, agora a gente já ia começar, até porque vinha tendo uma demanda e a gente já estava com uma massa, que a gente podia comprar algumas brigas, a gente pode começar a comprar algumas brigas, a gente não precisa mais ficar tão parado. Mas a gente não vai também comprar qualquer briguinha, não vou ficar discutindo via Instituto se o filho do Bolsonaro tem que ser embaixador. Não, isso não é problema nosso. Apesar da gente ser contra, não é problema nosso. Dentro desse novo planejamento, a gente olhou mais essa coisa, então tem essa área de educação, tem área de jornalismo através dos dois prêmios, o Vladimir Herzog, que não é do Instituto, o Instituto é uma das 14 entidades [promotoras], mas a gente está à frente da organização desde a criação do Instituto, até a gente conseguiu renovar: algumas entidades que não tinham mais sentido de existir, saíram, trouxemos novas, novos parceiros, como a Conectas, ECA, OAB Nacional. E criamos um prêmio novo, esse sim é do Instituto, que é chamado o Prêmio Jovem Jornalista Fernando Pacheco Jordão, cuja ideia é você premiar os estudantes de jornalismo trabalhando com um professor da sua entidade, onde eles apresentam um projeto de pauta, dentro de uma temática que a gente elege todo ano, e aí o melhor projeto de pauta, os melhores, ganham "o fazer". E o fazer é a gente dar a grana, mas traz um mentor também, traz um jornalista do mercado para acompanhar o desenvolvimento dessa pauta e da matéria, que depois é apresentada na semana do Prêmio Vladimir Herzog, como se fosse uma banca de TCC. Eles apresentam e participam de uma atividade que tem – a premiação é à noite – durante o dia, uma coisa chamada "roda de conversa", onde a gente traz os jornalistas ganhadores do Prêmio Vladimir Herzog para contar como é que [a matéria] foi feita, onde nasceu, como é que foi o “backstage” daquela matéria, e tudo isso é transmitido por um “pool” de TVs universitárias, e os jovens jornalistas estão juntos para participar dessa conversa. É muito legal isso. E o terceiro elemento dentro do jornalismo é o Vlado Proteção, onde a gente articula com várias entidades – OAB, ABI, OAB São Paulo, advogados. O Brasil é um dos quatro países em que mais se assassina jornalistas no mundo, que jornalistas mais sofrem violência, e uma das maneiras de você tentar reduzir isso é dar visibilidade a essas coisas que acontecem e assessoria jurídica para aqueles profissionais. Porque quando você agride um profissional de imprensa, não é simplesmente a questão da agressão ao indivíduo; se ele é ameaçado ele deixa de exercer o trabalho dele, então isso é uma forma de censura à imprensa; e se você não tem uma imprensa livre, você já não tem uma das coisas fundamentais para uma democracia plena. É por aí. De novo: educação, jornalismo, e a terceira perna é memória, que começa com aquele projeto que eu falei, do “Respeitar é Preciso”, mas que evoluiu muito. Se você pega, por exemplo, a exposição sobre o meu pai que está agora [montada no Itaú Cultural] está dentro da temática de memória, que se mistura um pouco com a questão de educação, sempre, e jornalismo. Não tem como, as coisas se sobrepõem, são círculos que têm intersecção. Mas um dos projetos mais importantes é o portal "memoriasdaditadura.org.br", que recebe em torno de 2.000 acessos todos os dias, estudantes e pesquisadores, porque é o local onde você tem mais informações sobre aquele período. E com pegadas muito interessantes. É a única recomendação da Comissão Nacional da Verdade que foi implantada; as outras 30 estão lá, mofando. Mas você tem coisas assim: militares que foram contra, civis que foram a favor, a questão LGBTI durante a ditadura, a questão do negro, camponeses, questão da mulher durante a ditadura – isso tudo são módulos que a gente vem desenvolvendo e o portal não para de crescer ano após ano, a gente vai colocando mais e mais conteúdo. Tanto que hoje, o Instituto faz parte de uma rede internacional de memória, onde o Instituto é o representante do Brasil, assim como o Museu da Memória do Chile, por conta desse trabalho que a gente faz. A gente meio que acabou se tornando referência em algumas coisas. Sim, porque existia um vácuo, não existia alguém que cuidasse disso, principalmente de uma maneira que sempre... É uma cláusula pétrea do Instituto: a gente faz um trabalho muito político, mas sempre apartidário. Infelizmente tem algumas coisas de memória que têm um viés partidário, e que aí surgem umas lacunas temporais meio complicadas. E uma das maneiras que a gente consegue evitar isso é que quando a gente forma as equipes para trabalhar, a gente busca uma diversidade de representações para gerar um equilíbrio. O projeto de memória que a gente está fazendo agora, o projeto "Heroínas Dessa História", está biografando, nesse primeiro momento, 15 mulheres, mas não é de Rio e São Paulo, a gente buscou do Brasil todo. Quando a gente fez "Os Protagonistas Dessa História", os 60 jornalistas, a gente buscou representantes de várias linhas político-partidárias daquela época, e geográficas. A gente tem que buscar. E sempre vamos ser criticados, porque não dá para você também falar de todos, mas a gente tenta criar uma representatividade equilibrada. E, de novo, dentro do próprio conselho do Instituto, ou seja, a raiz já tem isso. E uma outra coisa que a gente faz para essas coisas darem certo é que a gente vem renovando o conselho do Instituto. Não adianta eu querer fazer um trabalho mexendo com comunicadores periféricos, com esse pessoal, se não existe uma representação em nível estratégico, e essa estratégia é desenvolvida no nível do Conselho Deliberativo. Hoje a gente tem dentro do nosso conselho essa diversidade. Por exemplo, tem um pastor lá do Rio de Janeiro, que me fugiu o nome agora. Tem um cara que é o presidente de uma associação LGBTI. Então a gente traz esse pessoal para a gente falar com propriedade dessas coisas. Isso foi uma outra coisa muito interessante: quando Instituto nasce, eu sempre tive uma coisa na cabeça, que eu queria criar um modelo de comunicação que fosse transgeracional. E a gente estava naquela época em que já estava começando o Facebook forte, essa coisa toda. Eu falava assim: "A gente tem que criar um conteúdo que não faça só sentido para as pessoas que viveram naquela época; tem que se comunicar com pessoal de hoje". Só que eu cometi um erro, eu não tinha as pessoas que representavam essa diversidade de gerações para pensar esse conteúdo. E tinha uma falha também estratégica na primeira palavra: eu queria falar para essas pessoas. Eu não tenho que querer falar para essas pessoas, eu tenho que querer ouvir essas pessoas. Porque eu não tenho nada para falar para eles, eu tenho que ouvir. E, aí, criar conteúdos. O Instituto, com dez anos, ele tem um processo bem sofisticado que já está no sangue. A gente não fica pensando essas coisas no dia a dia, mas é um processo bem sofisticado para você conseguir fazer essas coisas funcionarem. Eu lembro quando teve o primeiro evento do “Usina de Valores”, que foi lá na livraria Tapera Taperá, tinha uma jornalista da Globo mediando, estava trabalhando na Globo News, e tinha o Henrique Vieira, que hoje está no conselho, tinha um teólogo evangélico, tinha uma transexual de Recife, estudante de pedagogia, tinha uma “blogger”. Aí a “blogger” foi falar, cada um foi falando sobre a sua vida, foram duas horas assim, 95% do conteúdo eram novidade para mim. Eu fui lá porque eu tinha que aparecer, minha mãe também estava lá. Estava sendo transmitido ao vivo, porque lá cabiam umas 50 pessoas. Eu prestei muita atenção porque não conhecia quase nada do que eles estavam falando. E a “blogger” falou assim: "Eu me considero uma pansexual". Aí virei para a Aline, a minha esposa, e falei: "Pansexual. Coloca no Google. O que é pansexual?". Você sabe? Ele sabe. Quem tem menos de 30, 35 anos sabe o que é, a gente não sabe. Aí tem umas definições ruins, tipo "é quem traça tudo, até caco de vidro". A estudante lá de Recife, trans, chamou para coisas óbvias que estão pingando do nosso lado e a gente não vê isso. Isso é furar a bolha mesmo, porque a gente vive numa bolha, aquela coisa do umbigo, e a gente não vê coisas que estão quicando lá. Ela falou: "Ah, você acha que essas coisas de transexuais estão bem resolvidas numa cidade como São Paulo? Não está bem resolvido. Quantos personagens transexuais trabalham aqui? Qual foi a última vez que foi num restaurante, se aconteceu alguma vez, que você foi servido por uma transexual? Qual dos seus médicos é transexual? Qual o professor de seus filhos é transexual?

P/2 - A gente entrevistou professoras, a gente fez uma coleção "TransHistórias".

R - Tudo bem, mas foi buscar exceção. Você vai buscar exceção.

P/2 - Tinha uma professora. Só tinha uma professora. A gente vasculhou a cidade.

R - É isso, exatamente isso. Aí ela falou assim: "Inclusive, eu vivo numa situação muito complexa, minha mãe tem problemas com isso, porque eu estou hoje com 25 anos e a expectativa de vida de um transexual no Brasil é de 27. Em tese, daqui a dois anos eu estou morta. E eu estou estudando Pedagogia, onde é que eu vou trabalhar? Você aceitaria? Vou fazer uma provocação ainda mais profunda, você aceitaria uma transexual educando seu filho? Então está bem mal resolvido, não é?" Aí vem até uma outra temática, que tem a ver com educação, e tem a ver com cultura brasileira, que é o seguinte: Estados Unidos é um país racista? É. O Brasil é um país racista? É. Qual é mais a racista? Não sei, não me interessa. Mas tem uma diferença básica: os Estados Unidos sabem que é racista e reconhece, assume. E aí você tem uma política pública para tratar essa questão. No Brasil, talvez uma das grandes características, é a hipocrisia. Você não vai ouvir nenhum representante de governo dizer que a gente é uma sociedade racista, e na hora que a gente não tem consciência pública das nossas deficiências, você não consegue ter uma política pública para tratar a questão. Então a gente não consegue tratar essas questões de maneira genuína. E aí vai racismo, vai questão de gênero, e mil outras questões. É uma coisa importante também para nós fazer uma mudança de “mindset” nessa sociedade em que a gente vive.

P/1 - Tem trabalho pela frente, hein, meu caro?

R - Tem, mas não sou eu, quem vai trabalhar é o garotão aqui. A gente já ralou, está com o courinho duro. O negócio agora é ir para a praia.

P/2 - O seu papel hoje no Instituto?

R - Eu sou presidente do Conselho. Eu olho os numerinhos todo mês, de dinheiro.

P/1 - Tem trabalho pela frente para o Instituto, não é?

R - Tem trabalho para a sociedade. Isso é muito maior que o Instituto.

P/1 - Mas alguém que provoque esse tipo de reflexão.?

R - É, eu concordo, eu gostaria de provocar mais, a gente vai fazer um “road show” do Instituto nos Estados Unidos, em East Coast, Costa Leste, em fevereiro [de 2020], com apoio do James Green. O Instituto, ao longo desse tempo, já realizou quase 100 projetos e deixamos de realizar uns 300 projetos. Porque não tem recurso. Então, por exemplo, a gente tem um plano anual de atividades, eu sempre consigo captar 15, 20% do que eu conseguir aprovar, e eu realizo 15, 20% dos produtos que estão ali colocados.

P/2 – Quem vai captar recursos?

R - Eu. Eu e o Rogério. Inclusive, alguns anos atrás eu contratei um captador profissional, pagava um salariozinho pequenininho e um “sucess fee” alto. Ele tinha trabalhado para um museu, conseguiu em um ano captar acho que 17 milhões de reais para o museu e montar um sistema de filantropia para o museu reservar contínuo. Em 14 meses no Instituto ele não conseguiu captar um centavo. Tem uma diferença muito grande que é, de novo, uma outra coisa que está quicando, e que você só vai perceber quando tentar se enfiar nisso. Quando vai vender arte, o cara vê o quadrinho, o Picasso, Van Gogh, é bacana, os amigos vão achar "pô, que legal que você patrocina um Museu XPTO". Vai vender direitos humanos! Primeiro que é abstrato, não tem forma. E é complicado: a gente no começo recebeu um patrocínio de um grande banco, para o “Resistir é Preciso”, com a condição de que o nome do banco não aparecesse. Eu estive nos três maiores escritórios advocacia tentando levantar dinheiro, falando com pessoas que viveram aquele momento, que eram muito solidárias, e eles falaram assim: "Putz, eu queria muito, mas eu não posso. Vai me criar problema com alguns dos meus clientes". Então é isso: essa questão da desconstrução de direitos humanos que esses grandes grupos fazem é efetivo, está colocado, até mesmo por isso que o programa de educação não se chama "Programa Educação em Direitos Humanos", chama "Respeitar é Preciso", porque a gente conseguiu achar que esse valor do respeito é um objeto de desejo de todo mundo, todo mundo quer ser respeitado. Em tese, todo mundo quer ser respeitado e está disposto a respeitar, desde que... Sempre tem uma condição... Mas é uma palavra menos complexa.

P/1 - Ela é mais atrativa.

R - Mais atrativa. Fora isso, quando você vai falar no mundo das empresas, como é que você dá contrapartida? Quem define muitas vezes as áreas de apoio é o marketing. Como é que você dá a contrapartida? Aí vem uma outra estratégia que a gente montou, que eu montei na época. Quando eu faço meu plano anual, eu crio produtos de varejo. O que é legal para a empresa colocar o nome, então a gente publica livros, faz uma peça de teatro, faz um espetáculo de música, que aí é "cool" para a empresa aparecer lá, fazer uma ação com os seus clientes, essa coisa toda. E a gente tenta fazer com que esses projetos sejam superavitários para financiar a manutenção do Instituto e outras questões que precisam de recursos. O Vlado Educação quando nasceu, a gente levou um ano para começar a ter receita. Como é que eu paguei duas profissionais? É pelos processos superavitários de outras ações o Instituto. Então no começo era isso e conforme o tempo vem passando e a gente se solidificando em ações mais estruturantes, como educação, eu já não sou tão dependente do varejo, de ficar fazendo livro.

P/1 - Mas mantém isso como uma forma de disseminação?

R – E é uma forma importante. Como falei, eu tenho 3 milhões [de reais] aprovados na Lei Rouanet. Ali é varejão, a maior parte é varejo que tem lá, edição de livros, espetáculos de música, enfim, coisas mais dessa natureza.

P/1 - Muito legal. E qual é o futuro, Ivo? O que está posto aí? Sem te pedir nenhum exercício de futurologia.

R - Para quem?

P/1 – Para o Instituto. Seguindo essa linha, crescendo organicamente, num cenário que não é muito risonho?

R - É, mais ou menos. O melhor momento para o Instituto é agora. Toda ação gera uma reação. Nosso principal agente filantrópico é o nosso presidente.

P/2 - Incrível.

R - E hoje eu tenho dinheiro internacional, o Brasil voltou a ter dinheiro de fora. Semana passada teve uma entidade, eu fiquei sabendo numa reunião com o Rogério, não sei de que país; no ano passado a gente procurou eles para fazer um projetinho, acabou não dando certo. Com essas coisas da Amazônia eles entraram em contato com a gente para a gente trabalhar num projeto com eles. O Prêmio Vladimir Herzog é um outro termômetro disso. O Prêmio Vladimir Herzog não era para existir, porque ele premia matérias sobre violação de direitos humanos. Utopicamente é para ele deixar de existir, não ter inscritos. A cada ano tem mais.

P/1 - Crescendo o número de inscrição.

R - E isso porque a imprensa está em crise, aquela coisa de jornalismo etc. e tal. Essa pergunta que você faz é muito legal porque eu fico lembrando quando eu estava atrás de 50 mil reais para poder pagar uma secretária, alugar uma salinha, ter um computador e ficar respondendo e-mail, eu trabalhando em outra coisa, olhando "part time" o Instituto, e hoje eu não sei nem quantas pessoas trabalham no Instituto. Não sei nem quanto que gira de dinheiro o Instituto, sei se olhar o relatório, mas não tenho isso mais tão forte na mão. Eu até, você vê só, a gente tem um curso de direitos humanos em parceria com a Unifesp, se não me engano, que a gente abriu lá uma turma com eles, turma para 30 pessoas, houve 500 inscritos. Qual é o futuro? Não sei o que vai acontecer. O futuro é o que o dinheiro permite, os recursos permitirem. A gente toca.

P/2 - Que curso vocês têm com a Unifesp? É uma graduação, uma matéria, extensão?

R - Eu não sei. É um programa que a gente tem com a Unifesp, semestral, em Direitos Humanos. Lá atrás, quando eu montei o primeiro desenho do Vlado Educação, ele ia ter duas divisões: uma para o ensino fundamental, básico, até o ensino médio, e outra para o ensino universitário, ensino superior. E tem uma demanda para isso. Se eu montar um curso, por exemplo, sobre jornalismo e direitos humanos, não vai faltar inscrito. A gente já fez coisas do tipo assim: já fez seminário sobre violência de cultura sobre as mulheres. Muito divertido, foi isso. Não sei se vocês vão lembrar disso, eu não lembro exatamente qual foi o instituto, se foi o Ipea, quem foi, que fez uma pesquisa sobre a questão da violência contra as mulheres e o dado que eles mostraram inicialmente era que 70% das mulheres achavam natural as coisas que aconteciam, e o dado estava errado, eles tiveram que pedir desculpas: não era 70, era 35. Mas continua um absurdo. E aí eu tive a ideia de montar um seminário, não sobre violência contra a mulher, mas sobre a cultura. Qual é o processo de formação da sociedade em que você cria uma sociedade que tem como um de seus elementos culturais hábitos de desrespeito de gênero. Se é um elemento cultural, a pessoa que está fazendo o ato não percebe e a que está sofrendo o ato também não percebe, porque faz parte do dia a dia.

P/1 - É natural.

R - É natural.

P/2 – Introjetado.

R - Sim. A gente tem mais ou menos a mesma idade, tem coisas que a gente falava no passado que hoje não pode mais falar, porque as coisas mudaram. Não estou dizendo que no passado também podia ter esses atos de violência, mas enfim, essa questão de tratar a mulher como dona de casa por definição, isso não tem mais espaço, por exemplo. Então eu tive a ideia, mas eu sabia que eu podia ter ideia e ajudar a organizar, mas eu não tinha conhecimento de causa. Aliás, isso é uma coisa, como eu falei lá atrás: o meu “expertise” eu agrego como gestor, e aí quando eu pego as temáticas, eu trago quem entende para cuidar da temática, não sou eu que vou falar. Nem sobre direitos humanos. Hoje, tudo bem falar algumas coisas, mas eu trago a Glenda [Mezarobba], trago o Sottili... Então, ali, a gente trouxe a Fátima Jordão, ela é uma das fundadoras, faz parte do conselho do Instituto Patrícia Galvão. A gente trouxe o Instituto Patrícia Galvão, a gente trouxe a ONU Mulheres, a gente trouxe a Secretaria de Políticas Para as Mulheres, da [Eleonora] Menicucci, na época isso foi no primeiro mandato da Dilma. Conseguimos levantar uma grana boa, elas formaram um Conselho Curador com outras entidades feministas e aí começaram a acontecer alguns problemas, que não vêm ao caso, para desenvolver o conteúdo, e eu fiquei cuidando de juntar as pecinhas. Porque a gente conseguia o dinheiro, mas nunca é suficiente. Então eu consegui junto com o pessoal do Sesc, o auditório do Sesc Pinheiros, dois dias. Comecei a pedir apoio de uma série de coisas. E aí a gente montou dentro de quatro temáticas, foram dois dias, quatro painéis. O primeiro painel era uma introdução sobre o tema, trouxemos dez convidadas do exterior; o segundo o painel era a questão da cultura de violência no processo educacional da adolescência; o terceiro painel era qual é o papel da mídia na formação de uma cultura de violência; e o quarto era um [apanhado] de boas práticas pelo mundo. A gente abriu inscrições e tive que fechar em menos de 48 horas porque já tive mais de 1.000 pessoas inscritas. E as pessoas vieram. Foi uma quinta e uma sexta. Na sexta-feira, às cinco horas da tarde, o último palestrante, mais de 90% das pessoas estavam na cadeira, porque normalmente essas coisas vão esvaziando. Não, lá estava todo mundo. Então foi muito legal isso daí e mostra um aspecto do Instituto. A gente não trata feridas. A gente não quer que as feridas aconteçam. A gente pensou num segundo. Quando a gente começou a discutir com os curadores das temáticas, a gente viu que não dava para ser o seminário, tinha que ser o primeiro seminário, que precisariam ter outros seminários. E já tinha um dos temas definidos para o próximo seminário, que é "Qual o papel das igrejas na formação de uma cultura de violência contra as mulheres?" Mas aí, enfim, o Brasil entrou em crise, a gente nunca conseguiu. A gente vem realizando algumas atividades menores, vai ter até uma agora em Brasília nas próximas semanas, que a gente chama de "Seminário de Cultura de Violência contra as mulheres", mas é uma coisa menor. A primeira palestrante, uma inglesa, falou assim: "Isso daqui não é um seminário, isso daqui é uma conferência que vocês estão fazendo". Tudo gravado em vídeo e transcrito no site para quem quiser consultar. Eu estava lá no Sesc, duas coisas que aconteceram, engraçadas. O primeiro: a maioria ia ser mulher, eu perguntei: “Quantos banheiros tem aqui?". O cara falou: "Tem quatro banheiros, dois de homens e dois de mulheres". Falei: "Cara, fecha um de homem e transforma em de mulher, porque é uma questão de demanda, não precisa". E no final do seminário teve uma coisa muito bacana, e eu gostei porque foram elas que trouxeram. Elas falaram assim: "No próximo seminário, a gente tem que ter cota para homem". Porque tinha 97, 98% de presença de mulheres e elas falaram assim: "Não tem como você tratar a questão da mulher se você não tratar a questão do homem, a gente precisa ter os homens participando disso". E eu achei isso ótimo, porque trabalhou eu e o Paulo Markun, não foi fácil. Teve que estar muito zen para trabalhar com elas no processo de formação. A gente tomava muita porrada delas porque a gente é homem, e eu acho que essa é uma visão errada, inclusive.

P/1 - Mas de toda forma, não deixa de ser estimulante o Instituto estar com atividades tão relevantes, tão multifacetadas.

R - É, assim. Apesar da gente tratar da vida do meu pai, sempre é um processo que ainda tem um peso. Nos oito anos que eu fiquei lá, também foi muito sofrido. Por quê? A questão de grana, conseguir dinheiro, a gente chegou a discutir umas duas vezes o fechamento do Instituto, mandar todo mundo embora e ficar só com uma secretária para responder e-mail, por questão de grana e tal. Mas aí quando você vê o resultado, como a exposição agora, a gente... Vale a pena.

P/1 - Claro, sem dúvida. E essa vertente da educação é uma opção estratégica da maior importância.

R - Ela não tem prazo. É aquele negócio que eu falei dos quatro [elementos] do Potter: introdução, crescimento, maturação e declínio. Na educação não tem limites isso daí, ainda mais onde a gente está, neste país. Não tem limite. E é uma coisa muito interessante: eu sou muito crítico de uma série de organizações que trabalham com a questão da educação, primeiro porque elas... (No questionário de vocês tem profissão, devia ter colocado a de verdade: na época do Instituto, eu falava que a minha profissão era "passador de chapéu".) Se você pegar as 100 maiores empresas do Brasil, eu visitei mais de metade. Se você pegar as 10 maiores fortunas do Brasil, eu conversei com metade pelo menos. E aí você vê as empresas que têm uma política de filantropia, ou pessoas, na sua maioria põem dinheiro na educação. Tem também o negócio que eu falei, de artes, do hospital, não sei o que, mas fundamentalmente é em educação. Mas quando você vai ver em educação, o que eles estão olhando é resultado de alfabetização em matemática. E eu falo... Não é sustentável.

P/1 - É pouco.

R - Não é uma política sustentável. Porque você forma um cara nisso, você não está formando um cidadão. Você está dando meios para ele para quê? Você não está falando para ele "para quê". A gente já fez alguns trabalhos com o pessoal do Alana, e eles têm uma parceria com a Ashoka, e a Ashoka tem um programa global que basicamente trabalha populações de crianças e tal, para mostrar a capacidade que eles têm como ser um agente de mudança do mundo. Aí eles começaram em locais muito pobre, onde a autoestima é muito baixa, problema na Índia. E quando eu vi essa apresentação, eu falei para eles assim: "Tá, mas mudar para quê? Não quero que você digam que é para mudar para isso, mas eu acho que o programa tem que jogar elementos para eles terem uma visão crítica para onde seguir". Porque não adianta eu falar: "Ah, você tem o poder de mudar", e queira somar isso daqui num negócio... Primeiro que não foque um bem coletivo, que não tenha uma questão de solidariedade, de ajudar a resolver o problema. O ser humano é uma espécie animal, que se você for ver o reino animal, pelo menos o que eu me lembro daqueles programas a que eu assisti de "Simba Safari", na televisão, você vê que tem bichos que vivem em bando e bichos que vivem sozinhos, só se juntam na época do acasalamento, mas é cada um por si. Mas tem outros que vivem sempre em bandos: você vê os elefantes, sempre tem um monte de elefante junto, tem um monte de leão junto, e o ser humano é meio desse bicho, é um bicho que não funciona bem sozinho. É por isso que a gente está organizado em sociedade, em grupos. Para maximizar o potencial desse grupo, para esse grupo sobreviver, quanto mais eu pensar no grupo e não em mim, eu estou ajudando essa coisa acontecer. Na hora em que eu começo a pensar só em mim, eu deixei de fazer parte de um grupo e eu fragilizo a força desse grupo. Então essa cultura umbilical que a gente conversou aqui, joga muito contra. É uma das coisas que segura o nosso avanço, e eu acho que a sociedade europeia, principalmente, ela teve avanços sociais muito grandes por uma coisa trágica, porque eles viveram guerras e passaram penúria, e as pessoas só sobreviveram porque uma ajudou a outra. Eu leio lá o relato da minha avó, então eu só existo porque teve gente que ajudou os meus avós, senão eles teriam morrido e eu não estaria aqui hoje. Então o ser humano, se ele age de maneira individual, só pensando no resultado do umbigo dele, resulta no que a gente tem hoje, essas diferenças sociais abismais, um grupo com uma concentração de riqueza muito grande e muita gente vivendo na miséria.

P/1 - A chave da solidariedade. Eu acho que essa palavra é chave, porque denota um comportamento social bastante distinto desse que que está virando norma.

R - Sim, é norma.

P/1 - E é um valor que merece ser sobrelevado.

R - Hoje em dia – inclusive uma vez eu ouvi um filósofo falando sobre isso – em diferentes momentos da humanidade, o objetivo da conquista do bem-estar, do sucesso da pessoa falar assim "eu estou bem", hoje é o cara ter o bem-estar individual, o que se traduz na acumulação de bens materiais, a começar por ter uma casinha boa para viver, comer bem, educar bem, ter televisão, um celular, não sei o que e tal. É muito voltado nisso, até como resultado do modelo capitalista que a gente tem. No passado foram outras coisas. Então esse modelo que a gente tem hoje, ele vem de uma falsa ilusão que, para facilitar minha chegada a esse celular bacana, eu tenho que me dar bem. Não consegue mostrar que para você realmente chegar nisso, a sociedade tem que estar bem. Basta ver o que está acontecendo no Brasil hoje: a gente está numa crise econômica há seis anos que está dificultando a gente ter um celularzinho legal, até porque agora o dólar subiu 15, 20%. Mas por quê? Eu posso estar muito bem financeiramente, ficou mais difícil eu conseguir esse celular porque custa 20% mais porque o dólar aumentou 20%. Se o bem-estar da sociedade como um todo estivesse melhor, não é?

P/1 - A lógica desse modelo de desenvolvimento só faz sentido se ele aumentar a exclusão.

R - Isso. É, até porque ele não é sustentável. Se você se gerar o bem estar no nível que se coloca hoje para as classes dominantes, a energia que a gente recebe não é suficiente para gerar os produtos. Não dá para todo mundo comer picanha uma vez por mês, não tem boi no mundo para dar picanha para todo mundo uma vez por mês.

P/1 - Se todo chinês quiser ter o seu SUV, não tem lugar para caber tanto carro.

R - Não tem onde estacionar, o que já acontece em várias cidades. Não precisa ir nem na China. Cidades como Londres mesmo. Mas isso aí é uma filosofia, é uma coisa mais complexa que aí mesmo não é o Instituto que vai resolver isso daí, não que a gente vai fazer alguma coisa, mas a gente tem muito pouco para colaborar e tem outra: tem gente muito bacana, organizações muito grandes que já trabalham essas questões.

P/1 - Mas voltando aí para o nosso ramerrão, para o nosso bairro, como é que esse engenheiro virou pizzaiolo?

R - É a minha quarta encarnação. Primeira encarnação foi TI, segunda foi logística, a terceira foi terceiro setor, agora é o restaurante. Bom, eu gosto de pizza desde que me lembro como gente. Estava até lembrando disso ontem, porque estava falando com uma pessoa lá no restaurante, que também tem gente de Bragança Paulista, que é onde a gente tem o nosso sítio. Quando eu era moleque, o programa obrigatório era, na hora de ir embora para São Paulo, parar na padaria Estância e comer pizza. E era uma pizza muito boa. E eu ficava vendo o cara fazer pizza. E aí quando não tinha a padaria Estância, estava em casa e queria fazer pizza, eu comprava aquela massa da Terra Branca. Você nunca viu falar?

P/1 - Massa fresca.

R - É, foi quem criou a massa fresca de macarrão, lembra disso? Primeiro foi a pizza, depois eles vieram com aqueles macarrões frescos e tal, no supermercado. Era um disco de massa, eu batia um tomate no liquidificador, jogava um queijo, punha no forninho, orégano, já tinha minha primeira pizzinha. E brincava de fazer essas coisas, é uma comida que eu sempre gostei. E aí a gente vai meio que sofisticando um pouco. No sítio que a gente tem em Bragança Paulista, depois a gente reformou a casa e fez um forno a lenha com a boca dentro da cozinha. Aí a gente começou a fazer a massa. Minha mãe e o Gunnar [Carioba] têm um grande amigo que é um grande cozinheiro, ele me ensinou fazer massa. Quando eu fui morar nos Estados Unidos, as pizzas americanas são muito ruins porque o molho de tomate é muito ruim, então eu comprei uma pedra, que eu punha dentro no meu forno, e fazia a massa e fazia o molho, fazia minha pizzinha em casa. E quando estava no sítio fazia no sítio, e rapidamente eu comecei a fazer melhor do que o Gunnar, que é o meu padrasto. E aí, quatro anos atrás – que também é uma história, eu já falei dos casamentos, não é? – eu construí uma casa, que eu mudei com a minha primeira esposa, a mãe do Lucas. Dois meses depois eu me separei dela. Mas foi uma coisa também planejada: eu ia me separar dela, a coisa já não estava boa, mas eu segurei a onda porque eu falei: "Se eu me separar antes da casa ficar pronta, é um mico que vai ficar na mão, a gente não vai ter casa, não vai ter dinheiro, e é mais um problema; então deixa segurar a onda, terminar a casa, e depois cada um vai para o seu lado". E há quatro anos, ela resolveu ir para um apartamento, eu comprei a metade e finalizei uma parte do projeto que faltava, que era a construção do forno. Então eu fiz um forno a lenha lá na casa e a minha esposa atual, a Aline, é a maior festeira, teve mês de dezembro que a gente chegou a fazer seis festas no mês em casa. Aniversário dela é 24 de dezembro, então... É um festival. P/1 - É um festival.

R - É um festival de festas. E aí eu fui fazendo pizza, cada vez inventando mais minhoca, pensando sempre em processo, essas coisas todas e tal, e alguns amigos falaram: "Pô, sua pizza é incrível. Por que você não abre um restaurante?". E eu: "Arram?!". Aí um dia eles estavam enchendo muito, eu falei assim: "Tá, vocês bancam?". Os caras falaram: "A gente banca". Eu falo hoje que eu truquei e perdi.

P/1 - Você se diverte, pelo menos.

R - Então tem os amigos lá... É 20% de diversão, 80% de muita chateação. Mexer com restaurante é muito complicado. Mas, realmente, é um ponto que a gente vê as pessoas: eu reencontrei gente que eu não via há 30 anos. É bem divertido por esse aspecto. Tem muita gente que diz que é a melhor pizza que já comeu. É como eu falei: eu herdei uma coisa da minha mãe: se é para fazer, tem que fazer bem feito. Eu sou virginiano, engenheiro, sou muito chato. Duas coisas: para a cozinha eu falei assim: "Mais importante do que uma pizza ótima, é uma pizza que seja sempre boa". Você tem que ter padrão. E para a área de serviço, para os garçons, eu falei assim: "Aqui a gente não recebe clientes, a gente acolhe amigos". Não sei se é porque eu falei isso, mas a gente vê as avaliações no Google, e em outras plataformas, tem gente que diz que foi o melhor serviço que já teve, que é a melhor pizza que já comeu, que o lugar é super simpático.

P/1 - Quantas pessoas cabem no seu restaurante?

R - Hoje ele está montado para umas 90 pessoas. Se começar a encher, dá para chegar a umas 140.

P/1 - É bastante razoável.

R - É muito grande. Deveria ser menor. Essa foi uma das... O resultado da inexperiência.

P/1 - Eu vou mudar de pato pra ganso, assim, radicalmente, para fazer uma pergunta que é preciso fazer: que informação você tem da relação do seu pai com o teatro?

R - Nenhuma. Não tenho nenhuma informação dele no teatro.

P/1 - Você nunca teve ideia?

R - Dele não, o que eu sei é que ele fez a narração de uma peça em Londres, que a gente tem esse áudio da BBC. É uma peça narrada pelo áudio e ele fez um dos personagens.

P/1 - A história de que ele participou como figurante de obra para poder...

R - É, então, tem essa história aí também.

P/1 - Isso é vero?

R - Não sei. Deve ser, não sei.

P/1 - Tá certo. Muito bem. Bom, eu estou satisfeito. Tem alguma coisa que você gostaria de ter dito e eu não te provoquei a dizer? Que você gostaria de falar?

R - Ah, não sei...

P/1 - Sobre o Instituto, sobre a memória do seu pai, sobre o futuro que a gente tem pela frente...

R - A única coisa que talvez tenha faltado falar, como a gente passou sobre esse assunto, é que, pelas circunstâncias que se criaram, uma coisa que me marcou muito é que eu infelizmente, ou felizmente, sei lá, eu fui introduzido para a temática da política muito novo, e ela se tornou uma coisa muito séria. Então eu pego a minha geração e eu acho que a minha geração é uma das gerações mais malformadas politicamente que existe. Porque a gente estava saindo de um processo de ditadura, com pais superprotetores de maneira geral, então a temática não vinha para o debate. E hoje, por exemplo, nos últimos anos, desde 2013, que tem se falado mais de política, eu vejo o despreparo dessas pessoas, e infelizmente muitas pessoas próximas a mim indo para um lado de – eu não gosto de falar de direita e esquerda, mas, para simplificar – indo para um pensamento mais de direita. São pessoas bem-sucedidas na vida e não conseguem, de novo, ver aquela questão do coletivo versus o individual. Eles acreditam que para o coletivo estar bem, a economia do país tem que estar muito bem, e as coisas se autorregulam. Isso é bobagem. Eu também, inclusive, falo assim: se o cara é de direita ou de esquerda, para mim tanto faz, a princípio. Não tem o certo e o errado. É irrelevante o certo e o errado. Desde que eles busquem a mesma coisa, que é o bem-estar da sociedade. Um acredita que o caminho é um, outro acredita que o caminho é outro. E aí a gente entra num debate do porque eu acho que o caminho é esse e não é aquele. E eu acho que hoje, para um país como o nosso, com as diferenças sociais que a gente tem, a começar nas oportunidades de educação, precisa ter um papel do Estado maior para regulamentar esse processo e fazer compensações. Eu vou dar um exemplo bem tosco, que não tem nada a ver com muito que a gente está falando aqui. Eu estava em uma cidadezinha do Nordeste, eu não me lembro qual foi, e eles estavam dizendo, por exemplo, que o turismo lá caiu vertiginosamente nos últimos dez anos porque não tem mais aquele voozinho que ia para lá. Como você desregulamentou muito a questão da malha aérea, as companhias aéreas se concentraram nas rotas mais lucrativas, e isso tem um impacto econômico, que tem um impacto social que vai, como você mesmo falou, aumentar essa questão de diferença social. Então, para um país do tamanho que é o Brasil, você tem que ter uma estratégia de desenvolvimento e você tem que ter uma regulamentação, a um certo nível, como se fossem políticas de fomento. Então tem que ser desde política de fomento na área da educação, da saúde, da moradia, dessas coisas, para tentar reduzir esses "gaps", e aí vamos tirar dinheiro de quem está mais bem resolvido e colocar lá para reduzir isso daí.

P/1 - Quem deveria fazer isso é o Estado.

R - E é o Estado que vai fazer isso, uma iniciativa privada nunca vai fazer isso. Não tem como você justificar para os "shareholderes", entendeu? Eu estou vendendo cadeira de dentista para Ximpaíra do Sul por um terço do preço porque eu preciso ajudar aquela [comunidade]. Não, o preço é esse, não dá para vender com prejuízo. “Não, vamos aumentar aqui para subsidiar.” Isso não, a empresa não faz isso, do ponto de vista de um olhar social. E isso para mim é o que resume a diferença no pensamento de esquerda e de direita. Eu consigo ver e acreditar que uma pessoa que seja de direita tenha respeito pelos direitos humanos. É que quando você olha a questão de direitos humanos, tem muita coisa mais voltada à coletividade, que aí, de novo, o olhar individual mexe muito. Quando a gente fala de coisas umbilicais, acho que é uma coisa que é sempre importante a gente perceber, como a gente está preso em paradigmas. Eu lembro alguns anos passados, uns dois, três anos passados, que morreu aquele carroceiro na Vila Madalena, que o guarda deu um tiro, o cara queria um pedaço de pizza, lembra daquilo? Nossa, foi um escândalo, que absurdo, comoção nacional, primeira página em todos os jornais. Aí eu de brincadeira fiz um Google, e descobri um carroceiro que morreu com tiro de polícia numa cidade do interior do Paraná.

P/1 - Que ninguém sabia.

R - Ninguém sabia, porque não aconteceu na Vila Madalena. Então, por exemplo, hoje, a maior besteira que um policial pode fazer é matar alguém na Vila Madalena, Avenida Paulista, nos Jardins. Vai dar manchete. Se ele matar no Tremembé, Cidade Tiradentes, e está matando. E o ponto é esse: o ponto está matando. Então acho que até para fechar esse bate-papo, sempre que eu falo sobre a história do meu pai, eu insisto em dizer: eu não estou falando sobre o passado, estou falando sobre o presente. Porque essas coisas estão acontecendo hoje. Durante a ditadura, de acordo com a Comissão Nacional da Verdade, e as coisas foram escritas, são 450 e poucos mortos. Em 2017, por exemplo, eu era da ouvidoria dos polícias do estado de São Paulo, só no estado de São Paulo a polícia matou mais de 900 pessoas. Duas vezes o que aconteceu em 21 anos de ditadura. Então é uma questão presente, e que é mais preocupante para as novas gerações, para o pessoal da periferia, pessoal de cor, porque é, falando estatisticamente é isso, são os jovens, homens, negros, pardos, das periferias, 70%, que estão sendo mortos pela polícia. E assim como no caso do meu pai, esses agentes do Estado que estão matando essas pessoas não são levados à justiça de maneira sistemática. Foi criado um modelo de justiça para proteger o policial, e aí é uma outra temática muito legal, assim como a educação, que é a questão da segurança pública. Me contaram essa historinha. Roma Antiga: os imperadores. O exército volta depois de guerras de vários anos. Volta para casa, volta para Roma, o exército, os militares. O Imperador fala assim: "É proibido os militares entrarem na cidade, as cidades não pertencem aos militares, militar é para fazer isso, é para combater o inimigo externo, ele não tem papel dentro de uma cidade". Então hoje, no Brasil, a gente não tem segurança porque você tem uma força militar que em tese cuidaria da nossa segurança, mas na verdade ela tem uma vocação de proteção ao patrimônio, como era lá de Roma – o patrimônio, as terras – e de eliminar o inimigo, e não de fazer segurança. Então uma das grandes mazelas, e que justifica muito modelos de políticas como a do atual governo, é em cima de uma insegurança, de uma questão importante, mas que tem um conceito que está muito errado. E não vai mudar. Eu morei no Estados Unidos e lá tem eleição em vários momentos. Uma das coisas que eu acho mais incríveis da sociedade americana, e eu não tenho nenhum apreço pelos Estados Unidos, mas tem uma coisa muito bacana, que é esse olhar social, ou comunitário, real. Na escola pública, um conselho de pais derruba um diretor. Um diretor de escola pública, aqui, é concursado. Nem o governador tira ele, ninguém tira ele. Então a gente fica criticando uma série de coisas, como eu falei, as histórias que a gente ouve são muito rasas, os problemas são mais estruturais, são mais profundos. Isso que é uma coisa que às vezes, talvez agora, com mais de 50 anos, eu tenho ficado um pouco mais pessimista, porque são coisas tão estruturais que eu vejo muita dificuldade dessas coisas mudarem. De segurança: o delegado, que lá eles chamam de xerife, é eleito. Ele é um membro daquela comunidade, então ele conhece a dinâmica daquela vizinhança. O delegado aqui é um cara que... sei lá se é concursado, vai para uma delegacia que não tem nem computador para o cara trabalhar, o delegado que é de Polícia Civil. Se o cara é eleito, ele tem que prestar conta. Se o cara é indicado, ele não tem que prestar contas para ninguém, talvez para o cara que indicou ele na hora das refeições, não é isso? Isso é uma outra coisa muito importante quando a gente fala de democracia: democracia não diz respeito a votar a cada dois ou quatro anos, a democracia é um trabalho em nível comunitário, diário. Diário, diário, diário. De você se envolver, de você debater as coisas, de você exigir seus direitos. Existem alguns mecanismos, existem os conselhos de bairros em São Paulo, por exemplo, eu não sei se existe no país todo, mas faltam muitos mecanismos ainda. Então eu tenho dificuldade de enxergar aquela sociedade que meu pai sonhava e pela qual ele morreu, e que eu também sonho, dentro do modelo que a gente tem hoje. Muita dificuldade. Eu hoje ando muito, muito pessimista. Não vou dizer desanimado, porque a gente tem feito muita coisa legal, mas muito pessimista de realmente a gente conseguir... Eu acho que é muito fácil uma classe média, média alta, em alguns anos estar vivendo bem de novo, com uma sensação [boa], estar com seu carro blindado, estar indo para a Europa uma vez por ano, vai levar o filho para conhecer o Mickey, estar com o filho na escola particular, que hoje é um desafio, talvez volte a conseguir fazer essas coisas. Mas a gente vai estar falando de 5% da população. A gente vai ter ainda uma questão estrutural, que não vai transformar esse país num grande país, e que o que precisa ser feito não está sendo feito. Não é reforma da Previdência que vai resolver isso, e não é reforma fiscal que vai resolver isso. É muito mais embaixo. Em tese, assemelha ao negócio do ovo e da galinha: quem nasceu primeiro? Quem nasceu primeiro foi a educação, se você tiver uma pessoa bem-educada, uma população com aquela educação que a gente conversou, o ovo nasce das gênesis, a galinha nasce das gênesis. Aparece.

P/1 - É diferente.

R - É diferente, ela vai acontecer naturalmente e essa pergunta vai perder o sentido. Mas isso é um trabalho longo, mas, de novo, eu não vejo nem dentro do grupo dos grandes educadores, dos grandes filantropos de educação, essa preocupação, esse entendimento que, sim, a gente precisa de uma sociedade subversiva. Sim, a gente precisa de pessoas questionadoras. Sim, a gente precisa de seres humanos civilizados. Enquanto eles não tiverem com essa instrumentalização, a gente ainda está mantendo essa pessoa – aqui você tem um animal irracional, aqui você tem esse ser humano civilizado – a gente está mantendo essa pessoa nesse espaço aqui, que aceita discurso de violência, que aceita o discurso de eliminar aquela pessoa que o ameaça. Pô, tem gente que eu me relaciono que fala assim... Como é que foi a história do governador do Rio de Janeiro que desceu [de um helicóptero] feito um débil mental comemorando o gol do Flamengo porque mataram um bandido. Assim, tem que estar feliz porque salvou os reféns, talvez a ação correta tenha sido aquela, não vou entrar nesse debate. [Mas você não pode], ainda mais como instituição, celebrar aquilo. E aí as pessoas falam assim: "Não, é isso mesmo". É o que eu falo, assim, isso de novo é muito importante para mim, é um conceito de que ninguém me convence do contrário: as pessoas são irracionais, por isso que a gente precisa de um Estado, porque o Estado tem que ser racional. Se acontecer alguma coisa com meu filho, eu vou querer matar quem fez alguma coisa contra o meu filho, contra a minha mulher, contra a minha mãe, contra o meu irmão, ou alguém próximo de mim. Porque eu sou um ser irracional. Mas o Estado não pode ter esse tipo de reação, ele tem que ser frio, racional, com um conjunto de leis e de processos.

P/1 - Sem dúvida.

R - Eu lembro quando morreu o Bin Laden, não vou entrar de novo no mérito, mas a maior democracia do mundo, em tese, que também é um fake news, porque eles não votam para presidente, mas o presidente lá, que era um cara respeitado na época, o [Barack] Obama, fala na televisão que finalmente foi feita justiça porque morreu o Bin Laden. Quem matou foram os “marines”, foi o exército, as Forças Armadas. Forças Armadas faz justiça? Quem faz justiça, pelo o que aprende na escola, é o poder judiciário. Então existem essas coisas muito graves, até com mentes brilhantes, não é? E que nos distanciam de um Estado ideal de civilização.

P/1 - A propaganda fala mais alto em um caso como esse, não é? O apelo.

R - Então, mas isso não é uma coisa civilizada.

P/1 - Não é civilizada.

R - Na hora em que ele fala isso, ele está dando legitimidade para o cara que pegou a mulher transando com outro e matou os dois, ele está legitimando isso. Ou ele está legitimando um cara que matou não sei quem, e o cara vai, corre atrás e também mata. Se isso é o caminho, então vamos parar de pagar esse monte de gente, vamos acabar com advogados, juízes e tal, pegar esse dinheiro e colocar em outro lugar. Põe lá na Amazônia para apagar fogo o dinheiro desse pessoal que não serve para nada então.

P/1 - Ivo, malgrado esse quadro pessimista, que eu acho um pessimismo saudável em um certo sentido, você acalenta sonhos? Quais são os seus sonhos?

R - O quê?

P/1 - Quais são os seus sonhos?

R - Os meus sonhos?

P/1 - Tem sonho de quê?

R - Meu sonho é que meu filho seja feliz e não carregue o macaquinho que eu carreguei tanto tempo. Bem simples, o resto a gente se vira.

P/1 - Tá ok. Em nome do Instituto Vladimir Herzog e do Museu da Pessoa, eu te agradeço bastante a disponibilidade, o tempo e o seu depoimento. Pode ter certeza que vai ser muito útil para nós.

R - Estou sempre à disposição.

P/1 - Muito obrigado.

R - Faz parte do macaquinho que eu continuo carregando.