Museu da Pessoa

O Brasil abortou a criança

autoria: Museu da Pessoa personagem: Clóvis de Castro

Memórias do Golpe de 64
Depoimento de Clóvis de Castro
Entrevistado por Ricardo Tacioli
São Paulo, 31/03/2004
Realização Armazém da Memória e Museu da Pessoa
Código: CMG_CB003
Transcrito por Karina Medici Barrella
Revisado por Ligia Furlan

P/1 – Seu Clóvis, gostaria que o senhor repetisse o nome completo do senhor.

R – Meu nome é Clóvia de Castro.

P/1 – E a data e o local de nascimento.

R – Nasci no dia 18 de agosto de 39, na cidade de São Paulo, capital.

P/1 – Seu Clóvis, onde o senhor estava no dia do golpe?

R – Eu estava no meu trabalho. Fui surpreendido pelos acontecimentos daquele momento porque na realidade nós não esperávamos. Nós iniciávamos nossa militância e não esperávamos que fosse dado um golpe militar naquela conjuntura.

P/1 – O senhor trabalhava em quê?

R – Eu era funcionário público.

P/1 – Trabalhava aqui em São Paulo?

R – Aqui em São Paulo.

P/1 – E o senhor tinha alguma atividade política antes do Golpe?

R – Tinha. Eu já era militante do Partido Comunista Brasileiro, no qual entrei em 1959.

P/1 – Pessoalmente, qual foi a reação do senhor ao saber do Golpe? Que atitudes o senhor tomou, o senhor se lembra disso?

R – De perplexidade, de não saber, inclusive, o que nós faríamos. Todos nós ficamos perplexos diante dos acontecimentos, sem realmente saber qual o rumo, o que fazer naquele momento, se seria convocada uma greve geral no sentido de impedir o golpe. Ficamos realmente perplexos.

P/1 – E quais foram as primeiras atitudes tomadas no sentido de organização, frente ao Golpe?

R – Realmente procurar a direção do partido na cidade para ver o que fazer. E nisso tudo ficava a aguardar os acontecimentos, ou seja, ainda confiar nos dispositivos militares do presidente Goulart, certo? Acreditar que houvesse um levante do povo no sentido de impedir o golpe. Isso foi se estendendo, se estendendo, aquela série de boatos, senhas, inclusive. Eu estudava também, uma vez chegou um companheiro e disse que tinha uma senha que era a seguinte: a criança está nascendo. Ou seja, que os sargentos à meia-noite de um dos primeiros dias de março iriam se rebelar. Então naquela noite nós não dormimos, realmente esperando que a criança nascesse e, infelizmente, ela abortou.

P/1 – Teve outros momentos como esse ao longo desse período?

R – Teve, teve, teve vários momentos. Teve muitos momentos, momentos que nós já íamos à rua distribuindo panfletos, fazendo pichações, tentando, realmente, ver o que poderia acontecer no sentido de retomar a democracia no nosso país.
P/1 – E a atuação do senhor, seu Clóvis, foi sempre em São Paulo?

R – Foi sempre em São Paulo.

P/1 – Seu Clóvis, e qual foi o impacto do Golpe Militar na vida do senhor?

R – Foi realmente de uma tomada de posição. Continuei minha militância no Partido Comunista, e após o Golpe, já existia dentro do Partido Comunista um descontentamento muito grande ao acontecido, dado ao papel que o PCB teve. Ou seja, que não se avançava, realmente não se avançava, continuava naquela mesma linha de conciliação. Isso fez com que já existisse... Como eu disse anteriormente, dentro do partido, posições realmente diferentes, no sentido de resistir ao Golpe Militar. Essa luta interna nos levou, em 68, a romper com o Partido Comunista em São Paulo, liderado pelo Carlos Marighella, Joaquim Câmara Ferreira. Se funda o Agrupamento Comunista de São Paulo, que mais tarde vem a ser a ALN [Ação Libertadora Nacional]. Eu saí junto com essa dissidência e participei da ALN [Ação Libertadora Nacional].

P/1 – O senhor chegou a ser preso?

R – Fui preso em 18 de dezembro de 69. Fui preso pela Operação Bandeirantes, ainda não era o DOI-CODI [Destacamento de Operações de Informação - Centro de Operações de Defesa Interna]. Fiquei dois anos e meio preso, fui barbaramente torturado, juntamente com outros companheiros e companheiras. Vi muitos companheiros saírem carregados das câmaras de tortura. E essa mesma tortura, quando saíamos da OBAN [Operação Bandeirantes], a gente saía até meio contente, pensando que realmente a coisa ia ser diferente no DOPS [Departamento de Ordem Política e Social] (risos). Mas na realidade lá se repetia a mesma forma. Então quantas e quantas vezes nós víamos companheiros e companheiras subirem para tortura e não voltarem, e se voltavam, voltavam totalmente carregados, pela tortura sofrida.

P/1 – Seu Clóvis, pra gente encerrar: quais são os resquícios do Golpe no Brasil de hoje?

R – São muitos. Não parece, mas 40 anos na vida de um povo pesa bastante, e você vê que ainda existem pessoas que desconhecem que no Brasil nós passamos por uma ditadura, que houve pessoas mortas, torturadas, exiladas. Ainda existe um clima de medo muito grande, realmente muito grande. E a outra coisa é o seguinte, você vê, eles estão quase todos aí, os golpistas de 64 estão ocupando cargos. Tem o presidente do Senado, o Sarney, que participou do Golpe, o Antonio Carlos Magalhães, e tantos outros, eles estão realmente aí. Então existe um clima de medo do passado e que a gente tem que romper. Acho que começou a romper com a eleição do Lula, sem medo de... Como é a frase usada durante a campanha? Eu não me lembro.

P/1 – De ser feliz?

R – Não, não foi isso. Bom, tudo bem. Agora acho o seguinte, acho que a gente tem que ter realmente, sem medo do nosso futuro, enfrentar as coisas que estão aí, no sentido de que esse golpe militar nunca mais aconteça, que nunca mais pessoas sejam mortas sob tortura, que nunca mais ninguém seja exilado, que nossos professores, nossos técnicos, nunca mais sejam exilados, e que realmente a gente possa construir outro mundo, daí com certeza esse mundo é possível, mesmo com todo esse temor de 40 anos atrás.

P/1 – Seu Clóvis, o senhor falou do medo. Esse medo ainda está no dia a dia do senhor?

R – Não, realmente eu não tenho. O medo pessoal eu não tenho, de forma nenhuma.

P/1 – Então está bom, seu Clóvis, muito obrigado pela entrevista.