Museu da Pessoa

Não me dobrei nem com a medula partida

autoria: Museu da Pessoa personagem: Anna Paula Feminella

Projeto Medley
Depoimento de Anna Paula Feminella
Entrevistada por Fernanda Regina Ferreira e Lila Schneider
(Via zoom)
Realização Museu da Pessoa
Transcrito por Camila Inês Schmitt Rossi




[00:00:00]
P/1 – Qual o seu nome completo, a data e a cidade que você nasceu?

[00:00:06]
R – Eu me chamo Anna Paula Feminella, eu nasci no dia 1º de novembro de 1972, em Florianópolis

[00:00:17]
P/1 – Quais eram os nomes dos seus pais?

[00:00:20]
R – Meus pais se chamam Elizabeth Coelho Feminella e José Feminella Neto.

[00:00:30]
P/1 – E o que eles faziam?

[00:00:34]
R – Minha mãe é vendedora, sempre trabalhou em casa e como empreendedora informal. Meu pai é contador, trabalhava no Diário Oficial de Santa Catarina, hoje ele é aposentado.

[00:00:51]
P/1 – Você tem irmãos?

[00:00:54]
R – Eu tenho dois irmãos, eu sou a mais velha da família, dos irmãos. Tem o Fábio Feminella, que tem 2 anos e meio mais novo que eu, e o Marcos Feminella.

[00:01:10]
P/1 – Como é que era sua casa de infância, você se lembra?

[00:00:15]
R – Lembro, a casa de infância ainda é a casa da minha mãe, onde minha mãe mora. É num bairro chamado Capoeiras em Florianópolis, a minha infância inteira eu passei lá, vivi até os 22 anos em Capoeiras, que fica na região continental da Cidade de Florianópolis, muito perto da Ponte Hercílio Luz. A minha casa era de alvenaria, tinha três quartos, sala, cozinha e era um conjunto habitacional, chamado COHAB, né. Então todas as casas da rua se parecem muito, com o tempo elas foram sendo alteradas, mas a minha é uma das que preservou a fachada ainda.

[00:02:04]
P/1 – E como era o seu bairro na época?

[00:02:08]
R – Então, meu bairro, eu acho que se chamava Capoeiras porque tinha muito terreno baldio. Então atrás da minha casa tinha muito barro, tinha vários terrenos onde a gente transformava em lugar pra andar de bicicleta. Então a gente fazia uma pista de bicicleta, então a minha infância foi muito na rua. Por essa condição de que, né, de viver num subúrbio onde tinha muitas crianças, a gente brincava de carrinho de rolimã, de patins, então a rua era um espaço que a gente ocupava de verdade, né.

[00:02:53]
P/1 – Além dessas brincadeiras de bicicleta, carrinho rolimã e patins, quais eram as suas brincadeiras favoritas?

[00:03:00]
R – Então, a gente jogava voleibol em roda, jogava muito voleibol. Então tinha muito mais meninos na minha infância como referência, e eu era uma das mais velhas, então exercia alguma liderança sobre as outras meninas. Tinha uma menina que me chamava de Dona Paula, não era Ana Paula, era dona Paula! Eu também brincava... com 12 anos eu ganhei uma mobilete, só que ela não durou muito tempo na minha vida, porque eu aprontava muito com a mobilete, né. Uma vez eu caí com o meu irmão que tinha seis anos no meu colo e a gente caiu no areião (risos), foi aquele estresse todo e quando a mobilete estragou e teve que ir pro conserto, nunca mais ela voltou, né? Por questão de segurança, porque eu não tinha muito, eu era muito sapeca, né. Então eu gostava muito de andar com os rapazes, eu estudava num colégio de freiras, colégio Nossa Senhora de Fátima, a maioria das minhas professoras eram freiras, e eu era do tipo de menina que preferia as brincadeiras com rapazes, preferia correr, brincar de pegar, esconder e etc. Também no colégio em que eu estudava também tinha um espaço junto à natureza bastante grande e a gente aproveitava bastante esse espaço pra fazer brincadeiras mais livres, né. Lá pelos 12 anos, como adolescente, eu já comecei a me aventurar em outras coisas, como por exemplo, pichar muro, né, então eu roubava o spray do meu pai e a gente pichava muro com os outros meninos, né. Então eu era sempre a que... eu era uma pessoa, uma criança que me desafiava a estar no meio de brincadeiras que eram consideradas brincadeiras de menino, né. Então eu lembro que o meu agasalho de colégio, ele tinha buracos nos joelhos porque eu ralava muito o joelho, né, então a minha mãe tinha que fazer um remendo de couro pra botar no joelho pra tentar preservar um pouquinho mais o uniforme, né. A gente também tinha que usar umas roupas, umas sainhas que eram plissadas e que exigia que tivesse também uma altura adequada pro padrão da igreja do colégio de freira, então por conta de não querer mais usar essas saias eu andava muito de calça ou de bermuda pra não precisar ficar arrumadinha com a saia plissada. Mas é isso o que eu acho que foi importante esse momento, e como eu estudava em colégio de freira e meus pais não eram católicos, minha mãe era católica de origem familiar, mas meu pai cresceu com o espiritismo Kardecista e eu tinha liberdade de escolha religiosa, né. Então a partir do 5º ano eu descobri que podia escolher não fazer aulas de ensino religioso, eu disse “olha, eu não sou católica então eu não preciso”, porque o ensino religioso era com base na bíblia, nos ensinamentos da bíblia. Aí nesse período que tinha a aula de educação religiosa, eu ficava na biblioteca, que pra mim era um paraíso, porque eu podia escolher os livros que quisesse. E nos livros da biblioteca eu consegui ler Gandhi e ter outras referências na minha vida, né. Então imagina que de 5ª a 8ª série, duas aulas por semana, eu tinha espaço pra ir na biblioteca. Quando chegou na oitava série eu já tinha lido praticamente todos os livros que me interessavam, né, naquela biblioteca.

[00:07:18]
P/1 – Você lembra de algum livro que te marcou nessa época, um especial?

[00:07:23]
R – Então, esse do Gandhi marcou bastante a minha experiência. Também tinha um outro quando eu já tava mais adolescente… Que foi o Eu, Cristiane F, 13 anos, drogada e prostituída, então, era um livro forte, né, pra ler, então da pra ver que, apesar de ser um colégio de freira, ainda tinha algum espaço, pra... né, uma liberdade de conhecer, então como eu tava nessa descoberta entre a adolescência, foi bastante marcante ver o quanto essa menina foi se transformando aí, a partir de uma experiência na Inglterra, né, mas que me marcou bastante. E como o nome dela era Cristiane F, eu brincava: “Eu, Ana Paula F”, né. Mas eu não usava drogas não, eu só ficava provocando a história, contando pras minhas amigas e me gabando de ler livros que elas não tinham acesso assim, né. Então eu andava, desde o 6º ano/5º ano, eu andava com as meninas do 8º ano, então eu sempre neguei um pouco a minha idade, fazia coisas que me desafiavam mais e estar com meninas mais amadurecidas do que a minha idade, né, no ambiente escolar (risos). Nessa época eu já treinava voleibol, então era uma pseudo atleta do voleibol, era do time da escola. Daí no segundo grau eu fui pra uma escola muito maior, que foi uma escola pública, Instituto Estadual de Educação. E o Instituto Estadual de Educação era o maior colégio, a maior escola do estado de Santa Catarina, tinha 6 mil anos, era no centro da cidade, então eu saí a menina do bairro, né, fui pro centro da cidade, atravessava a ponte todo dia e a gente ia de ônibus coletivo, lá no ônibus coletivo fazia aquela bagunça tremenda, porque ele nos deixava na porta do colégio. E ali ia também... abriu mais os meus horizontes porque eu convivi com gente da cidade inteira, com vários contextos sociais mais amplos e o voleibol foi uma entrada também, mas uma entrada que eu cheguei a ser chamada pra jogar voleibol pela equipe do Mirim de voleibol da cidade de Florianópolis, só que tinha um técnico muito grosseiro, né. Isso aí é nos anos de 86, 87, por aí, então a maioria dos professores de educação física, eles eram formados no exército na época da ditadura e os técnicos ainda tinha muita autoridade pra falar e xingar os atletas de qualquer coisa. Então com uns 14 anos, eu já time do Mirim do voleibol de Floripa, esse cara, o técnico que eu já esqueci o nome dele, era um homem gigante que intimidava as meninas todas, ele chamava a gente de vagabunda, de qualquer coisa assim. E quando me chamou de vagabunda, eu disse “não, eu não aceito!” Peguei a bola e joguei na direção dele, acertou nele e larguei o time, fui embora, né. Então eu tinha essa coisa de me impor, né, apesar de ser tímida, com 13 anos eu até gaguejava, era um pouco tímida, me sentia tímida, mas com necessidade de me posicionar.

[00:11:30]
P/1 – Queria saber como é que era a relação com a sua mãe, com o seu pai. Se você lembra de alguma história com algum deles que te marcou.

[00:11:39]
R – Então, a minha mãe era muito presente na minha vida e meu pai tava sempre trabalhando. Então, a minha mãe falava muito, dava ordem na gente o tempo todo, pra me obrigar a estudar, pra ter certeza que eu tivesse estudando, a minha mãe... enquanto ela tava fazendo as atividades de casa, ela queria que eu estudasse falando em voz alta porque ela não acreditava que eu estaria no quarto estudando, então eu tinha que ir berrando o conteúdo que eu estava estudando, ficava lendo em voz alta pra ela ouvir lá da cozinha ou da onde ela tivesse, né, comprovando que eu tava estudando. Na verdade, depois eu fui descobrir que é uma técnica, né, falar em voz alta pra concentrar, mas pra ela era uma técnica de controle do que eu tava fazendo, isso marcou bastante. Minha mãe era muito faladeira. Uma vez eu tava com nove anos e um dos meninos da rua disse pra mim “ah, cê é faladeira igual a sua mãe”, eu com nove anos achei aquele xingamento horroroso, fiquei indignada d’ele me comparar com a minha mãe (risos), e só depois de muito tempo é que eu vim entender que realmente a minha mãe influenciou bastante a minha personalidade, né. Então, por andar muito com os rapazes, eu tinha algumas intrigas com um ou outro. Uma vez a minha mãe me viu – um menino que eu brigava sempre – a minha mãe me viu jogando a bicicleta dele no chão com tudo. Ela tava encostada no muro e eu peguei e empurrei com tudo, a mãe “o que guria! O que que você tá fazendo?”, ‘você’ não, ‘o que guria’, né, porque lá em Floripa a gente fala muito ‘guria’, “é porque você não sabe (‘você’ não, agora eu fico falando ‘você’ porque eu moro aqui em Brasília, né), ah, tu não sabe o que que ele fez pra mim”, daí ela disse “o que que ele fez pra ti?”, e daí na hora me veio uma invenção, eu menti pra ela dizendo que ele me chamou de puta, então ela ficou indignada com o menino. Uma vez a gente tava em almoço de família, ele chegou no quintal pra chamar o meu irmão e ele levou uma descascada, uma bronca da minha mãe e do meu pai, e eu só rindo, eu era muito sapeca, sabe. Tinha também, como eram muitos meninos e poucas meninas, alguns que gostavam de mim. Eu lembro de um, uma vez, que ele gostava de mim e ele era do colégio, eu nem sabia onde ele morava, ele descobriu onde eu morava e foi me dar um anel de presente, eu peguei a vassoura e fui tirando ele “sai daqui” com a vassoura! Eu tinha uns 10 anos, então eu era brava! Eu brincava muito nas árvores, a gente tinha árvores no quintal, as árvores também da vizinhança. A gente comia muita ameixa amarela e goiaba, eram as principais árvores que eu subia e as vezes me escondia da minha mãe na árvore, né. Então a experiência com meu pai era mais a noite, né, então, quando eu aprontava alguma pior, ela dizia “eu vou contar tudo pro seu pai”, e na verdade era ela quem me dava uns tapas na bunda de vez em quando, mas coisa bem leve, né. E o “eu vou contar tudo pro seu pai” sempre ficava aquela expectativa do que que o pai ia fazer, né, aquela autoridade absoluta e na verdade ele nunca tinha me batido, né. Então ele era uma pessoa também muito carinhosa, muito atencioso na maior parte do tempo, quando tava presente comigo. Ele, quando eu nasci, ele escreveu um diário como se fosse eu falando, é muito bonitinho, uma cartinha assim, dizendo desde o dia anterior ao meu nascimento, né, que o dia anterior ao meu nascimento foi um desfile, uma tia minha, irmã dele, concorreu à rainha da primavera do clube do bairro e daí ele conta: “ah, eu fiquei torcendo na barriga da minha mãe, me remexendo toda e daí no dia seguinte é que saí”. Então, ele conta as histórias, né, fala “ah, a primeira vez que eu olhei pro meu pai, eu fiz um cuspinho pra ele, eu fiz uma bolinha de cuspe pra ele”. Então, ele gostava de escrever, uma pessoa que escrevia muito, na época ele tinha máquina de datilografia e ele era muito rápido na escrita, eu ficava muito admirada disso. Então ele era uma referência que me ajudou. Depois eu fui, apesar de ser tão assim contestadora e inclusive não ter feito o catecismo na época, né (que era quase uma obrigação de todo mundo na igreja católica), eu não fiz, né, eu comecei, não gostei, saí, como eu tinha essa liberdade religiosa aí com a minha família, eu não fiquei. Mas depois com 15 anos eu fui pro grupo jovem da igreja do meu bairro, que era perto da minha casa, então através da influência de uma grande amiga que entrou no grupo jovem e eu entrei também. Eram muitos rapazes, aí tinha muitas histórias de paquera também. Só que ali eu tive a oportunidade de discutir questões sociais mais amplas, como a pobreza. A gente ia pra comunidades mais empobrecidas que ficavam no bairro do lado, então fazia um trabalho de recreação com as crianças, né. Então foi uma experiência legal, assim, a gente discutia pena de morte, discutia questões sociais, que ao longo da vida foram formando essa minha personalidade voltada pros interesses sociais, né

[00:18:01]
P/1 – E conta como eram esses encontros, como eram essas idas aos lugares mais periféricos, como que era?

[00:18:11]
R – A gente se reunia todo sábado, final da tarde, e daí na reunião, a gente combinava, assim, muitas vezes a gente tinha demanda de fazer a leitura na igreja, na missa do domingo ou do sábado à noite. Então a gente definia quem é que ia fazer a leitura, às vezes a gente preparava uma apresentação teatral. Daí eu lembro de ter feito o papel da Maria Madalena, eu também fiz o papel de uma epilética e foi uma piada, né, que eu lá, na missa (risos) tendo uma convulsão no chão, e foi aquela onda toda. Mas, e outra vez de uma prostituta também, daí já foi no palco do salão paroquial, que é uma coisa que me intimidava mais, né. Então, assim, apesar de eu não gostar muito do palco, muitas vezes eu era chamada pro palco, né. Então, foi uma experiência importante. Na ida nas comunidades, a gente ia conhecer, ia... eu não lembro direito assim, se havia alguma forma de religiosidade envolvida nessa... mas eu acredito que não. Então o padre, que era nossa referência, o padre Jaci era um cara bem progressista, então era uma boa referência. Hoje ele não é mais padre, ele casou com uma menina do grupo jovem anos depois de eu ter saído (risos). Até é muito interessante, porque esse padre, quando a menina engravidou ele disse que não era dele – e isso eu já era adulta, né, quando aconteceu isso – eu lembro d’ele olhar bastante pras minhas pernas, assim, tudo, mas nada demais, assim, eu andava de moto com ele, imagina, né. Então era um padre muito legal, e daí quando ele engravidou a menina, ele na igreja jurou pra igreja que não era verdade, que não era o filho dele, e daí ele foi pra Roma, depois ele ficou um tempo na África e nasceu o menino com a cara dele, não tinha quem não dissesse que não era o filho do Jaci. Então quando eu reencontrei, muitos anos depois, ele já tava com três meninos, e os três iguaizinhos a ele, hoje ele é professor universitário, então uma pessoa que continuou numa pauta humanista, né. Então foi muito legal. É... de referências assim, de histórias em relação a isso, a gente fazia retiros espirituais. Então ia pra um espaço de formação espiritual católica, né, e daí a gente fazia muita bagunça, muita mesmo (risos). E uma vez então, ele fez um ritual que era o seguinte: você escrevia seus pecados e daí a noite, na frente de uma fogueira, tocando Gilberto Gil, tocando MPB, ele criava um ritual, então ele lia o papelzinho da pessoa e botava na fogueira, como se tivesse, assim, redimido do pecado, né. E como eu não tinha feito catecismo e eu não acreditava nessas coisas, eu escrevi no bilhetinho assim “não acredito no poder do padre em perdoar pecados, falar direto com Deus”, escrevi no meu bilhetinho, e os meus amigos diziam assim: “não, mas porque quando ele lê isso aqui, ele ta tomado pelo espírito santo, ele nem lembra o que ele leu”. E daí no dia seguinte ele veio conversar comigo sobre aquele texto que eu tinha escrito, e eu disse “ah, é? E tu não é o espírito santo não?”, né, a comprovação da minha teoria e eu acabava jogando na cara dos meus amigos, né. Então naquela época já tinha a fama de ser uma pessoa com uma língua afiada, né, que argumentava, contra argumentava bastante, sabia botar o dedo na ferida e as vezes era muito desagradável para algumas pessoas, né. Com a minha mãe e meu pai, como eu lia muito, então aos 12 anos... com 12 anos eu ganhei uma prancha de border bugue, né, o borden board e queria sair com minhas amigas pra praia sozinha. Então com 12 anos os meu pais não deixaram eu ir, imagina, pegar ônibus, tinha que pegar dois ônibus, passar o dia inteiro fora no meio do mar, né, mesmo assim eu fui escondida deles, eu saí bem cedo e deixei uma carta, e nessa carta eu escrevi que o meu pai parecia um general e a minha mãe um soldado. E fiquei questionando a relação dos dois, né. Então acho que isso marcou muito, principalmente a minha mãe, eu cheguei quase a noite em casa, então foi um estresse bastante grande.
Quando eu saí do ensino fundamental e fui pro ensino médio, meus pais tinham expectativa de eu ir pra uma escola pública de qualidade pra aliviar o fato de ter três filhos em escola particular, né. Então eu tive que fazer uma prova pra ir pro segundo grau. E daí a minha mãe nessa época disse: “ó, vê o resultado, me liga dizendo o resultado, depois pode ir pra praia”. Nisso eu já tinha 13, 14 anos, né, e como o resultado não saía e eu queria ir pra praia, eu liguei pra ela dizendo “ó mãe, não deu, fui reprovada”, e fui pra praia feliz e deixei ela muito puta (risos), ela tinha que correr atrás de uma escola particular que eles pudessem pagar.
E aí quando eu voltei da praia e fui ver o resultado, eu tinha sido a sexta colocada, né, quando tinha mil e poucos candidatos, né. Então, deixei a mãe o dia inteiro brava comigo, à toa. Então, é isso. Daí hoje eu tenho uma filha e a gente pensa assim: “ah, se a minha filha der o trabalho que eu dei (risos) eu vou me incomodar muito ainda, né?!”

[00:25: 12]
P/1 – E nessa época alguém conversou com você sobre prevenção?

[00:25:20]
R – Prevenção?

[00:25:22]
P/1 – É, prevenção sexual, é.

[00:25: 26]
R – Então, eu comecei a trabalhar com 14 anos, então, tinha a minha autonomia financeira desde os quatorze. Trabalhei numa locadora de vídeos, na época ainda do vídeo VHS, e ainda tinha vídeo pirata lá, né. Mas então a minha autonomia financeira me ajudou a ter essa autonomia pro resto da vida. Eu tinha uma amiga no segundo grau, que ela estudava, trabalhava como estagiária na secretaria de saúde. E ela chegou a me dar uma caixa com quinhentas camisinhas, então eu tinha na minha casa quinhentas camisinhas. Lá pelos 14, 15 anos, quando eu saía de casa, a minha mãe ela ainda perguntava ”tá levando camisinha? Só não me aparece grávida aqui”, ela dizia bastante, com bastante ênfase pra eu usar camisinha, porque foi a época que começou assim, a ter a AIDS, né, onde apareceu, que marcou bastante quando o Cazuza se declarou aidético, né. Anos depois um primo de bastante convívio meu, muitos anos depois, ele também adquiriu AIDs, faleceu por isso. Então eu peguei bem essa fase do pavor da AIDs, de uma AIDs que ainda não tinha um coquetel, ainda não, né, não se sabia direito, então a camisinha participou desde a minha primeira experiência sexual, né? Com 14 anos, que foi bastante nova também e que também não foi com o meu namorado, eu tinha um namoradinho e eu tinha dado um tempo dele, eu tinha... não sei por que que eu pedi um tempo. A gente tava numa boate, eu encontrei com ele na boate e vi ele beijando outra menina mas eu não fiz barraco nenhum, eu virei as costas e fui ficar com um menino que eu já ficava desde os 12 anos que tava lá disponível. E foi com ele, e nessa noite, que eu tive a minha primeira experiência sexual, né, com camisinha, com 14 anos, isso foi num sábado; e daí o domingo, quando eu encontrei as minhas amigas dentro da igreja, eu contei pra elas, elas ficaram passadas comigo, acharam um absurdo, mas disseram “ah, falar uma coisa dessas dentro da igreja”, né, então elas ainda me deram uma bronca. Aí com 18 anos, a gente continuava amigas assim, de sair juntas, todas do grupo jovem. Três, de quatro amigas minhas, com 18 anos engravidaram, então elas têm filhos da mesma idade. E nessa época, então, que a gente tava começando a poder sair, ter mais liberdade, né, a partir de 18 anos, a minha relação com casamento era assim: “nossa, acabou a vida delas”, então era quase como um luto, né. Então, daí eu comecei a sair com outras pessoas, saía muito com a minha prima, e daí a minha prima com 20 anos também engravidou. Então nessa época engravidar significava ou casar ou então... foi um baque muito grande. Não me imaginava casada, não queria casar, muito menos naquela idade, né, porque eu via que a vida delas tinha mudado bastante e não tinha espaço pra mim na vida delas, com filho, marido e etc. Falando isso nos anos 90, né.

[00:29:22]
P/1 – E nessa época assim, um pouco da sua adolescência assim, como foi escolher a sua profissão, você queria ser alguma coisa?

[00:29:33]
R – Sim, no início da minha infância eu falava em ser professora, eu tinha um diário, eu sempre tive diário, né. Então eu escrevia muito, todo dia escrevia um pouquinho. Eu tenho diário ainda histórico, quando morreu o Tancredo Neves eu fiz o maior relato da morte do Tancredo, eu tenho umas histórias assim, é… (O que que tu disse mesmo? Esqueci! Eu viajei agora, sobre o que que você queria falar?)

[00:30:07]
P/1 – Ai (risos), é que agora que você perguntou me deu um branco! O que queria ser, o que você queria ser quando crescesse!

[00:30:23]
R – No início era professora, né. Eu cheguei a ser uma professora informal de um menino que era de uma comunidade que a gente visitava na época do grupo jovem, ele não era alfabetizado, ele tinha a minha idade. Então eu tentei alfabetizar, eu tinha uns 16 anos, mas não deu muito certo, não tinha teoria nenhuma, né, mas eu tentei, assim, fiquei dando uma força pra ele. Quando ele chegou e perguntou (ele ficava me secando), ele perguntou quantos quilos eu tinha, eu fiquei muito brava e parei com as aulas. Eu vi que o interesse dele não era muito pra aula, era pra outra coisa. Daí eu pensei em ser veterinária, mas isso ainda sonhos de criança. E eu pensei daí, lá pelos 18 anos, quando eu conheci o... eu tive algumas referências diferentes, eu li a biografia do Che Guevara, eu pensei então ser médica, e médica em comunidade. Então, em comunidades empobrecidas, né, e tinha o Che Guevara como referência, daquele momento inicial da vida dele, né. Poder viajar e poder dar um retorno pra aqueles... pra aquelas experiências e aprendizados que ele tinha com as populações de outros países e etc, né. Depois eu, então, eu estudei bastante pra fazer medicina. Com 15 anos eu era secretária de uma clínica e essa clínica também era uma clínica mais alternativa, tinha homeopata, terapeuta ocupacional, acupunturistas, então eu comecei a estudar pra medicina. Fiz o vestibular pra medicina, pra Universidade Federal, não havia nenhuma possibilidade de eu fazer medicina numa universidade privada, né, que além de poucas, caríssima! Então na UFSC era o vestibular mais difícil, o mais concorrido era pra medicina, então eu não fui aprovada e entrei na Universidade do Estado de Santa Catarina. Então também, como eu não vislumbrava morar em outra cidade, na UDESC, Universidade do Estado de Santa Catarina, eu fui fazer educação física. Então acabei fazendo educação física e me apaixonando por educação física, e daí dizia: “então ó, eu vou me formar e vou pra escola pública, vou morar no interior da Bahia", já tinha traçado tudo no início da graduação. Mas isso também não aconteceu, me formei em educação física e logo em seguida fui aprovada num concurso pra professora da rede municipal de ensino de Florianópolis. Então foi uma grande escola, daí fui fazer especialização em educação física escolar na UFSC, na Federal, né. E ali eu aprendi mais coisas, então na Universidade do Estado de Santa Catarina foi muito frustrante porque tinha pouca experiência de didática. Na época, o vestibular pra educação física na UDESC, ele separava. Então tinha a prova masculina e feminina, o vestibular era separado. E a gente tinha matérias separadas, assim, os rapazes tinham cinco aulas de futebol, futebol 1, 2, cinco disciplinas ao longo do seu currículo e nós tínhamos uma de futebol. E ainda o professor era um ex-jogador de futebol e ele não queria dar aula prática pra gente, ele queria dar aula só pra gente ter um conhecimento básico do que era futebol, mas que a gente não ia aproveitar porque éramos mulheres, né. Então a gente contestava bastante, então a gente conseguiu então, sabe, “não quer dar aula pra gente, a gente vai dar aula, a gente vai preparar aula”, então cada uma, a gente preparou aulas pra uma ministrar pra outra. Porque ele achava uma bobagem, mas pra gente foi uma experiência importante, né, já num caminho de mudança dessa realidade. E daí ele também… Ah, esqueci de te falar, no ensino médio eu fiquei no grêmio estudantil já dessa escola grande e fazia teatro também. E fiz um curso técnico de redatora auxiliar, né. Então redator auxiliar era um curso que era preparatório pro jornalismo, então eu já pensava também, já é uma influência importante também, fazer jornalismo. Como eu me destacava aí nesse curso técnico dentro do Instituto Estadual de Educação, o diretor me indicou pra uma vaga numa rádio. Então eu escrevia a síntese de notícias de jornal, então eu pegava revistas e jornais e fazia síntese porque era uma rádio FM que privilegiava a música, mas dava umas materiazinhas curtas que eu tinha que sintetizar histórias. Eu lembro de uma que é... isso eu tinha 15 anos, né, mas isso me desgastava bastante, ocupava todos os dias da minha semana, como eu demorava mais pra escrever, não era uma adulta, não era uma jornalista fazendo, eu ia lá no sábado, domingo, não tinha dia de descanso, pra eu poder dar conta da minha função. Daí uma vez eu escrevi sobre um projeto de lei que um vereador tinha pra garantir que todo mundo que entrasse na câmara de vereadores (homens, né?) andassem de terno, gravata, tudo, e eu falei que era uma bobagem, e daí o radialista falou no tom que eu falei, então foi questionado, o vereador cobrou aí dos meus chefes. Depois outra matéria que deu bastante trabalho mas que...

foi uma manifestação de estudantes na China, foi uma manifestação na Praça da Paz Celestial, foi 1990, 89, 90, 89 eu acho. Então, que era contestando a ditadura comunista ainda na China, né. Então também deu bastante polêmica essa matéria, foi bastante interessante. Mas eu não aguentei muito tempo por conta disso, porque além de ter que ir pra escola, trabalhar, eu também saía muito, então era muita energia. Mas foi uma experiência que me marcou também.

[00:38:03]
P/1 – Incrível! Antes de eu perguntar da faculdade, mais sobre a faculdade, eu queria saber um pouco da sua relação com os seus irmãos.

[00:38:11]
R – Ah, boa! Então, meu pai, assim que eu me tornei adolescente, meu pai pedia pro meu irmão do meio me seguir, pra ver o que que eu andava fazendo, né, porque como eu andava muito na rua, o coitado tinha que tentar dar um relatório do que que eu tava fazendo, né. Esse meu irmão também, ele pegava o meu diário e lia, e decorava frases desse meu diário e quando a gente tava jogando futebol com a turma né, muitos meninos. E aí o menino que eu gostava, “Paula escreveu no diário que gosta do tal”, e o menino não sei o que, eu passava bastante vergonha e a gente brigava muito. Não só por isso, a gente já brigava bastante, tinha uma disputa, a gente tinha dois anos e meio de diferença de idade, tinha uma disputa bastante grande, a gente brigava tanto. A minha mãe tinha um fusquinha e a gente ficava no banco de trás, né, uma vez a gente brigou tanto, a minha mãe (ainda bem que não tava com velocidade grande), que a gente brigou e caiu em cima da mãe dirigindo, com o carro em andamento, né, então bateu com o carro no poste, foi meio (risos) pancadão, assim. A gente parou de brigar na pancadaria, eu devia ter uns onze, doze anos, porque a mãe disse assim: "eu não vou mais separar vocês, vocês que se matem aí”. E a gente realmente ficou bastante machucado, porque antes a mãe fazia aquela onda de separar, berrar e dar castigo… E ela deixou a gente ir, até que a gente parou de cansado e foi assim que foi arrefecendo, né? E o meu irmão mais novo, como ele tinha oito anos, quase nove anos de diferença, ele era o queridinho, então às vezes a mãe saía rápido pra fazer uma compra, eu ficava cuidando dele. Até ontem eu conversei com ele por causa do meu aniversário, né, e tinha duas situações: aquela da mobilete, que eu deixei ele cair de mobilete junto comigo, ele tinha seis anos, era pequeninho. E outra situação foi que ele fugiu de casa, minha mãe saiu e ele fugiu de casa, ele devia ter uns 4 anos. Ele foi atrás do carro e foi andando, e eu não percebi que ele não tava em casa. Eu já tinha uns 12, 13 anos, e me surpreendeu que um amigo meu trouxe ele de volta pra casa, “olha eu encontrei ele lá longe e trouxe”, né. Então, ainda bem, porque se não, era um menino perdido, tinha perdido o meu irmão, então eu tinha pouquíssimo juízo, né. Eu aprontava muito com as minhas primas, eu tinha uma tia avó que era quase como uma avó, ainda é como uma avó, que tinha seis filhos, então uma filha, a mais nova dela, da minha idade, a gente então andava... então, como eu morava no continente, a gente dizia que ia pra cidade quando ia pro centro, né, ‘centro da cidade’, e daí no centro da cidade só tinha essa minha tia que morava. Então a família se encontrava muito lá, vinha gente pra almoçar a qualquer hora, era um ambiente bastante movimentado, bastante sociável, né. Hoje inclusive ela tem até um bloco de carnaval, chama ‘As pombinhas da Laureci’, onde os netos, os amigos, toda aquela galera que sai pro carnaval de rua da casa dela, né, e a Laureci é ela, minha tia avó querida! Então minha relação com meus irmãos é muito tranquila porque a gente foi... fora essa questão de infância, assim, disputando muito, a gente sempre foi parceiro. Eles são muito tranquilos, e como eu dei muito trabalho na minha adolescência, eu imaginava que quando eles se tornassem adolescentes, minha mãe também ia sofrer o mesmo que sofreu comigo, né, minha adolescência. E não, eles eram muito mais tranquilos que eu, né, eram muito mais calminhos, não eram de sair o tempo todo. Eu brigava com a minha mãe e fechava, e batia a porta do meu quarto, fechava com tudo “pááá”, dava aquelas fortes assim, e uma vez rachou a porta, né, e aí eu fiquei meio passada, porque era uma porta grande. Pra ver o tamanho da chata que eu era, né. Ainda bem que hoje a gente tem uma ótima relação, tanto com o meu pai quanto com a minha mãe. Então com 15 anos eu queria que eles se separassem porque eu achava moderno, né, ter pais separados, porque eu ia poder transitar de uma casa pra outra, né. E eles brigavam muito também, né. Então, daí só muito tempo depois eles se separaram realmente.

[00:43:35]
P/1 – É, agora a gente vai falar da faculdade. Quais histórias você tem da faculdade, como era esse tempo?

[00:43:41]
R – Então, desde os 14 anos eu já trabalhava, né? Quando eu fui pra faculdade, desde o início eu fui estagiária na área de Educação Física, então as minhas histórias de faculdade, assim, também envolvem uma relação profissional. Eu inicialmente fui convidada pra trabalhar numa creche e num asilo, então na mesma... numa instituição religiosa, né, Kardecista, onde mantinha tanto um asilo quanto uma creche. E via universidade eu fiz esse estágio uma vez por semana, ia e trabalhava com idosas, a maioria eram mulheres, e crianças do jardim de infância. Uma experiência bastante legal e foi me dando mais segurança da profissão que eu queria, né. Eu gostei bastante, me identifiquei muito com o espaço escolar. Na metade da minha faculdade eu comecei a estagiar também no SESC. E daí no SESC trabalhava, era responsável pelos grupos de idosas. Então dava ginástica pra elas e também dança. Então eu tive que aprender a fazer coreografia pro pessoal da terceira idade, né. Também a maioria mulheres, e as histórias delas também me marcavam muito, porque muitas delas eram viúvas e diziam assim: “ah eu comecei a ter vida, a viver, a aproveitar a vida depois que meu marido morreu”, porque se não era só a vida em função do marido e agora tavam descobrindo, descortinando aí o mundo e saindo pra dançar e fazer... né, se cuidar. Tinha uma que foi bastante marcante, que ela se parecia com a Carmen Miranda e ela tinha todos os adereços da Carmen Miranda e a gente ensaiava, então era um ensaio individual com ela, né, pras apresentações, era muito legal. Então a gente se apresentava, saía pra apresentações na cidade com elas, então essas experiências que envolvem a universidade foram bastante complementares ao conhecimento teórico. A UDESC era conhecida como uma universidade mais focada no tecnicismo, não tanto na área pedagógica. A gente que era do centro acadêmico brincava e dizia que a UDESC, que nós, nossa faculdade, era a sociedade dos atletas mortos, né, porque tinha ex-atleta de todo tipo de esporte que não conseguiu ir pro campo profissional porque se lesionou, tem uma experiência negativa inclusive com a educação física e com a prática desportiva. Mas então, e como só tinha vivido isso intensamente, acabava indo pra educação física por conta dessa vivência e do ambiente esportivo. Então foi muito importante ir pra especialização logo em seguida da minha graduação por conta dessa necessidade de um conhecimento mais pedagógico, que eu consegui então na Universidade Federal de Santa Catarina. A maioria dos meus professores da graduação, eles tinham se formado no exército em plena ditadura, então se falava que muitos deles, eles se infiltravam nas universidades como professores, mas que eram também informantes da polícia na época da ditadura. Quando eu entrei na faculdade, meu professor de vôlei, ele pediu pra falar comigo separadamente e ele disse assim: “eu gosto muito de você, eu quero só te alertar que aqui nessa universidade tem umas pessoas que são estudantes infiltrados, na verdade eles são... eles querem é convencer vocês a ir pro… a ser partidários, a ir pra esquerda”, né? Esse professor tava falando da preocupação, que eu me aproximei mais do pessoal no campo da esquerda. E isso foi no início da minha graduação, no final da minha graduação ele tentou me reprovar por falta por conta de eu ter ido prum Encontro Nacional dos Estudantes de Educação Física. Então nessa época, nos últimos dois anos eu tava já envolvida no centro acadêmico de educação física, cheguei a ser presidente do centro acadêmico de educação física, e o nome da nossa chapa era ‘Apesar dos dinossauros’, porque na época tinha o Jurassic Park, né, e os dinossauros eram os professores, né, que ainda tinham a mentalidade ainda formada na época da ditadura, né. Então, uma experiência importante também foi de organizar um ônibus junto com o centro acadêmico da Universidade Federal de Santa Catarina, a gente na graduação organizou um ônibus que saiu de Floripa pra João Pessoa. Então eu era uma das responsáveis do ônibus, era um da UFSC e eu da UDESC e essa viagem foi incrível, né. Setenta e pouca horas pra chegar em João Pessoa, teve um rapaz da minha graduação que foi de prancha, porque surfista em Floripa, disse: “não, vou aproveitar e pegar uma prancha, né? Pegar uma onda lá, né”. Então depois eu fui bem criticada por ter permitido entrar a prancha no ônibus, né! Mas foi uma experiência que também foi bastante marcante. Como era todo mundo estudante, ralado, no final da volta, ninguém tinha dinheiro nem pra comer, não queria nem parar pra poder chegar em casa logo, né, aí eu lembro do motorista comprar dois cachos de banana pra gente, pra poder o pessoal seguir com alguma coisa na... comendo alguma coisa no caminho. Então esses encontros nacionais de estudantes de educação física também abriram meu horizonte pro debate sobre a crítica ao capitalismo, ao tecnicismo. Então a gente tinha um livro que eu li, que foi muito marcante que é Criança que aprende esportes aprende as regras do jogo capitalista. Então, fazendo uma relação aí das regras esportivas, do le se fer, daquela falsa cordialidade do esporte, quando na verdade essa competitividade interessava também pro sistema, né, pro individualismo e etc, né. Então foi bastante legal, eu lembro no final da graduação, de, a gente tinha uma disciplina que era Ginástica e eu tinha quer fazer um trabalho a respeito do assunto e eu li um livro chamado Anti-ginástica, então a partir dele, eu fiz o trabalho, apresentei a minha experiência e ia explicando o que era anti-ginástica, então foram referências legais, né. Nesse meio tempo eu também... então eu já tinha tido uma experiência em locadora de vídeo com 14 anos, com 15 anos na clínica de saúde, também tinha tido já de redatora de uma rádio (da Radio Musical FM, que era uma das principais rádios). Então essas coisas muito diversas acabavam influenciando aí essa graduação. E daí eu realmente me realizava como professora de educação física, e da rede pública, né. Então dessa militância acadêmica, né, que já começou desde o ensino médio, a graduação, daí uma formação um pouquinho mais consolidada na área pedagógica. E também conheci mais o Marxismo na Federal (na Universidade Federal, na especialização), me levou também... quando eu fui aprovada também no concurso de professora de educação física, meu concurso foi em 1995, eu me formei em final de 94. Em 1995 eu fiquei em segundo lugar no concurso pra professora da rede municipal de Florianópolis. Daí eu também logo em seguida fui pro movimento sindical, né, que foi outra vivência muito importante, a gente na época era oposição à direção do sindicato, assim que eu entrei e eu ajudei, fui eleita numa assembleia logo no segundo ano de prefeitura de Florianópolis, fui eleita pra ficar liberada um mês pra poder formar o corpo do conselho deliberativo do sindicato. Então, cada local de trabalho acima de cinquenta trabalhadores da prefeitura – não era só da educação, era da prefeitura inteira – então pegava o pessoal das obras, saúde, do corpo administrativo, todas as secretarias. E inclusive o pessoal da limpeza urbana, né. Então pra formar esse conselho deliberativo, era um representante de cada local que tivesse mais de cinquenta trabalhadores da prefeitura. Então eu passei nesses locais, na época eram uns duzentos e poucos locais de trabalho, então eu rodei a cidade inteira, então conheci cada cantinho da ilha e foi uma experiência maravilhosa. Então aprendi muito com o pessoal que é gari, né, da limpeza urbana, e o trabalho do sindicato já era... a gente começou a fazer um trabalho assim de valorização da profissão de gari com agentes de saúde. Porque se eles não tirassem o lixo das ruas, né, a gente teria um caos, um problema sanitário bastante importante, então eles tinham essa coisa da valorização. Então essa experiência sindical foi muito marcante, a gente chegou a ter greves onde a gente... a empresa de limpeza urbana ela ficava embaixo da ponte no lado do continente, então a gente chegou a fazer passeatas de fechar a ponte, né, atravessava com eles de ponte, fazia uma comissão de frente com vassoura, saco de lixo, a gente fazia... nossa, era muito emocionante. Ao mesmo tempo que era muito tenso, porque como a gente era dirigente sindical, a gente sofria então a pressão judicial. Então a gente chegou a ter greve que a gente tava em assembleia e o oficial de justiça já com uma documentação pronta pra decretar a ilegalidade da greve e uma multa astronômica, né. Isso aí eu já to falando então do final dos anos noventa, né, 97, 98 .

[00:55:30]
P/1 – Você conciliava o sindicato com as aulas, ou era na época da faculdade?

[00:55:37]
R – Não, não era época da faculdade, eu me formei em 94 e a partir de 96 eu me tornei servidora pública municipal de Florianópolis, né. E daí... mas eu era... eu ajudei a formar esse conselho deliberativo, então esse conselho deliberativo chegou a ter duzentos delegados representantes, né, além de uma diretoria que dava linha, né, que se reunia mensalmente, e tinha uma diretoria de doze dirigentes do sindicato que tinham que prestar conta e decidir juntos sobre a mobilização e as pautas de reivindicações. Então eu nunca fui muito ligada nas pautas econômicas, eu era muito mais ligada na questão das condições de trabalho. Por exemplo, o pessoal da limpeza urbana, tinha que ter um posto pra poder ir no banheiro, né, pra poder fazer sua higiene, no meio do caminho então tinha postos. Garantir que tivesse água potável pra eles tomarem, para as pessoas tomarem, né, o pessoal das obras também... Então, uma pauta mais de condições do trabalho e saúde do trabalhador. Eu tava entrando na pauta de saúde do trabalhador, aliás, eu tive um intervalo em 1999, eu entrei com uma licença de interesse particular, né, e saí por dois anos da Prefeitura de Florianópolis pra poder trabalhar como assessora de formação da Central Única dos Trabalhadores. Então, a CUT recém tinha criado a Escola Sul, a Escola Sul era coordenada pelas três CUTs da região Sul, era localizada em Florianópolis e era muito interessante porque ela ficava exatamente no meio, entre uma escola e outra que eu trabalhava, no norte da ilha. Então eu dava aula de manhã na escola da Cachoeira do bom Jesus, que é uma praia, e ia de bicicleta até a outra escola, e no meio desse caminho (que era em Ponta das Canas) tinha a Escola Sul. E eu olhava praquele lugar, “nossa, se eu tivesse a oportunidade, eu queria trabalhar aqui”, que além de ser a Central Única que era uma referência pra mim, né, era um ambiente que parecia bastante interessante. Abriu a vaga, um amigo que trabalhava lá falou e eu fui selecionada, trabalhei com os rurais. Aí foi outra vivência bastante diversificada, que aí foi a vivência com os agricultores familiares. Eu fiquei no início do processo de criação do Projeto Terra Solidária, que unificava a escolarização desses agricultores familiares da região sul, com formação em agroecologia e formação sindical. Então era um desafio tremendo, era só pra adultos né, um estilo de EJA e ele tinha formatos diferenciados porque era sazonal, então no período que dava pros agricultores familiares, né, dependendo da produção que eles tinham, né. Então se organizava o final de semana ou organizava uma vez por mês, conforme a realidade de cada município, né. Então esse Terra Solidária, eu fui da coordenação pedagógica das turmas de Santa Catarina e daí eu viajei Santa Catarina inteira, de norte a sul e de leste a oeste. Então foi uma experiência incrível. No oeste de Santa Catarina, o sotaque é muito diferente, e numas regiões rurais eles não falam nem a língua portuguesa entre eles, eles falam um alemão arcaico, né, eles usam um alemão que eles foram aprendendo com seus avós, e então a gente tinha alguns choques culturais. Uma vez me marcou que pra uma turma em São Carlos, uma região próxima de Chapecó, a maioria deles era de colonização, aliás, eram todos, de formação germânica e a gente selecionou uma professora de Chapecó, de origem italiana, então ela tinha um sobrenome italiano, tinha um perfil italiano, né, e eles foram muito resistentes a ela, então inclusive eles ficavam falando entre eles, com o alemão deles e deixando ela de fora de qualquer conversa, né. Então a gente... daí chegou eu (uma manezinha de Floripa, né) com outro sotaque completamente diferente, e eu abria a boca, eles ficavam assim e eles me diziam... teve um que dizia assim: “mas você é brasileira?”, eu disse: “sou, sou tanto quanto você, nasci no território, no Brasil”, ele disse: “ah, mas você fala igual o Guga Kirten, né?”. Então, o tenista que se tornou mais conhecido e tinha um sotaque (tem ainda, né), um sotaque bastante forte, igual ao meu, né, florianopolitano. Então esses choques culturais foram bastante interessantes assim, a gente vivenciar. A primeira formatura dos agricultores familiares da região sul inteira, foram 1500 pessoas, né. Adultos que se formaram em ensino fundamental, então tinha um diploma, né. Então a gente reuniu todos em um mesmo ambiente, foi em Erechim, no Rio Grande do Sul. Isso aí foi nas vésperas, eu acho que foi 2000, no ano 2000, 2001, por aí, né. Então foi bastante interessante.

[01:01:50]
P/1 – Eu queria saber: como professora, tem alguma história com algum aluno que te marcou?

[01:01:58]
R – Sim, como professora... foi um desafio, sendo professora de educação física. Eu não tinha deficiência ainda, né, eu ainda não tinha me acidentado. E eu tive uma experiência na educação infantil com uma menina cega, ela era a filha mais nova de uma família que tinha... eles eram sete irmãos, e ela era super paparicada, ela era tratada como uma bonequinha de cristal, então essa menina, a vivência corporal dela era muito restrita. Ela tinha 5 pra 6 anos e um corpo assim, ainda muito flácido porque, por conta da cegueira dela, a superproteção familiar, né, que se dava, acabava sendo um limitador das experiências dela. Então na educação física eu tentava ajudar a ampliar esses horizontes aí, essa cultura de movimentos. E um desafio bastante grande foi ela confiar em mim, pra ela aprender por exemplo a virar cambalhota. Então foi aí que eu tive que começar a verbalizar coisas que a gente fazia na prática, né, mostrando, né, manuseando, e como ela era cega, a experiência foi muito marcante, porque foi um desafio extra, ela se aventurar a ter uma experiência diferente do que ela tinha e ela confiar em mim até ficar de cabeça pra baixo, né, e fazer a cambalhota por exemplo, e correr junto comigo, tendo eu como guia, né. E foram experiências marcantes, né. Também tive uma aluna surda que também me desafiou bastante. Como eu não sabia Libras, a gente tinha uma intérprete de Libras, só que às vezes ela estava em alguma reunião pedagógica e não estava em sala de aula quando eu, da educação física estava, né, então ela ficava muito nervosa comigo por eu não entendê-la, né. Quando a gente precisava dialogar e combinar, porque mesmo sendo na aula de educação física, também, pela metodologia que eu trabalhava, a gente fazia um planejamento participativo, tinha muito diálogo pra gente fazer os combinados aí, pra ir pra quadra ou pro espaço público. Então ela era um desafio bastante grande, onde eu comecei a aprender libras um pouquinho, pra gente ter um vínculo maior, ela tinha bastante apego à mim, porque como era na educação física e a coisa era corporal, então a relação com uma professora mais próxima era comigo por conta dessa vivência corporal que era mais ampla, né. Eu também dei aula – eu acho muito importante também contar meu primeiro ano na rede pública municipal – foi numa escola muito próxima do mar, na Cachoeira do Bom Jesus. E muitos desses alunos, eles eram filhos de pescadores, eu fui conversando com eles e a maioria deles não sabia nadar, e os seus pais não sabiam nadar. E me impactou muito quando o pai de um deles faleceu porque caiu numa dessas saídas de barco, ele caiu no mar e ele faleceu porque não sabia nadar. Então eu combinei com os pescadores, a gente fazia um auê na escola, né, porque uma vez por semana a gente... é uma praia que não tem onda, né, só que ela é um pouquinho funda, ela afunda muito rápido, então com os pescadores a gente montou um espaço dentro do mar, com umas boiazinhas, boias e aquelas cordas de náilon, e a gente fez um território como se fosse uma piscina dentro do mar. E ali eu ensinava, metade da turma ficava com uma professora na praia, e a outra ficava comigo aprendendo a nadar pra pelo menos se safar, né, o suficiente pra não se afogar, né. Então foi uma experiência bastante legal, que a gente acabava bagunçando bastante o cotidiano da escola, né,
porque daí chegava todo mundo cheio de areia, com roupa de praia, aquela bagunça toda... muitas professoras não gostavam dessa minha dinâmica. E nessa escola também teve uma experiência assim: “ah, porque os alunos tão muito indisciplinados”, e numa assembleia de pais, eles resolveram que no início de cada aula, tinha que fazer uma oração, pras crianças se acalmarem. Eu disse “não, a escola é laica, né?”, mas eu fui voto perdido (isso foi em 96, ta), e daí quando era eu que começava a aula, eu trazia uma frase, colocava uma frase no quadro negro, uma frase de Roxa Luxemburgo – eu trazia outras referências pra eles – ou algum poeta… aí eles diziam “mas professora, isso aí é oração?”, daí eu “é, a minha oração é essa” (risos), pra ajudar alguma reflexão, alguma referência diferente da que eles tinham. Então foi bastante marcante pra mim. Teve uma escola também que foi no Rio Vermelho, tinha um professor que ficava com as crianças, com os alunos de quinta à oitava série e eu ficava com os alunos de primeira à quarta série. E ele se achava

dono da quadra, então as quadras ele não deixava eu usar. No início eu não sabia, né, chegando na escola nova, né. Eu acabava ministrando aula numa praça que era meio descida assim, inclinada, então a bola caia muito rápido pro lado. Era um auê e era numa praça na frente da igreja e atrás da igreja ainda tinha o cemitério. Então, dia de velório não dava pra trabalhar (risos), então, daí eu achei um lugarzinho bem perto da entrada do cemitério que era mais plano, e o coveiro... , e daí eu ensinava, como era professora de educação física sempre tinha uma exigência da gente ensaiar a quadrilha, era muito forte isso na minha época, né, a quadrilha da festa junina e tudo, né; então eu ensaiava a criançada nos passos da quadrilha e o coveiro ficava atrás de mim me imitando, então era uma piada, né! Uma vez esse coveiro, ele ia abrir um túmulo e chamou a meninada, saiu a turma toda da minha sala: “ei ó, vou abrir um túmulo aqui, quem quer ver?”, saiu a menina toda pra dentro do cemitério.
E outra escola também em Ponta das Canas (é extremo norte da ilha), quando ficou em obras a escola, não tinha espaço pra ministrar educação física fora, a gente também ministrava aula na beira do mar, né, na areia. Então eram vivências que a gente também convivia com o ambiente, com a natureza, né. Então, uma relação aí que eu já tinha bastante grande, nessa época que eu andava bastante de bicicleta, andava muito por trilha e circulei bastante aí. Vivia em contato com a natureza, né. Então, hoje eu tenho alguns contatos de alunos desse período aí, que já são adultos. Recentemente teve uma menina que me contou em detalhes como é que foi uma aula ainda na educação infantil, ela tinha cinco pra seis anos e ela me relatou, vinte e poucos anos depois como é que foi a aula, como foi marcante pra ela aquela aula, né. Então foi muito legal. Outra também que disse que... a gente também tinha aquela coisa que os meninos queriam jogar futebol e as meninas odiavam futebol, eu trabalhei isso com elas, a minha especialização foi sobre a minha vivência. Então, foi um relato, um estudo de caso sobre, onde eu relatava como é que era a aula e os problemas da aula numa turma de quarta série. E era isso, os meninos todos querendo futebol e as meninas todas contra, né. E a gente conseguiu trabalhar de uma forma mais crítica explicando o que que é esse esporte de rendimento e como é que pode ser o esporte comunitário. E daí muitas delas inclusive se lançaram aí a aprender futebol e continuaram jogando.

[01:11:58]
P/1 – A Lila fez uma pergunta, você sabe dizer como é que foi essa aula que ela relatou?

[01:11:28]
R – Uhum, sei porque ela me contou. A aula que ela me relatou foi uma aula que a gente falou... a ideia era dizer como a cultura molda inclusive o corpo da gente. Mas não foi só uma explicação teórica sobre isso, então a gente ficou brincando como se nossos corpos fossem uma argila, fossemos de barro, e daí uma criança experimentava manusear aquela argila e deixar aquela pessoa no formato que ela quisesse, né. Então, como se a pessoa que tivesse moldando fosse a cultura, né. E daí ficava naquela posição por um tempo e trocava de posição, né. A dupla trocava uma pela outra, né. E a gente conversava mais ou menos sobre isso assim, né. Então tinha a questão da formação do corpo. Eu sei que no final a gente fazia tipo um trenzinho e cada criança massageava as costas do outro. Então tentava descobrir, usava com a mão, tentava fazer um desenho nas costas do outro pra tentar adivinhar, pro outro tentar adivinhar. Então, aquelas vivências, tentando transformar esse debate aí sobre a formação da gente. Isso com criança de cinco, seis anos, eu inventava essas coisas.

[01:13:06]
P/1 – Parece ter sido muito legal essa aula.

[01:13:09]
R – É, foi..

[01:13:12]
P/1 – É, você mencionou o acidente, foi em que época? Foi depois?

[01:13:19]
R – Foi em 2003, eu era professora da rede pública municipal de Florianópolis, só que eu tinha recém sido eleita pra direção do sindicato.
Em setembro de 2003 eu fui uma dirigente liberada, eu saí da função de professora pra poder me dedicar só à condição de dirigente sindical, isso em setembro. E o acidente aconteceu em novembro na minha casa, nessa casa, eu era casada. Nessa casa a gente construiu, a gente pediu prum pedreiro construir uma coluna de tijolo a vista, cimento e ferragem e essa coluna serviria pra botar o chuveiro de beira de piscina. Então tinha uma piscina, e também pedimos pra colocar o gancho da rede. A gente não percebeu que esse pedreiro não colocou a ferragem, né, a que consolidaria a coluna, ele só botou cimento e tijolo. E daí o meu marido tava inaugurando a rede, tava deitado na rede quando eu botei uma perna pra subir na rede junto com ele, e por trás de mim (eu não caí da rede), veio a coluna e me soterrou, 150 quilos ficaram em cima de mim.
Eu era bastante forte, consegui me segurar assim e a lesão aconteceu só no final da medula, se não, ela podia ter sido mais grave. Até deu um créquezinho aqui na cervical, que me deixaria tetraplégica, né, mas então no final de 2003, recém dirigente sindical liberada, eu me tornei paraplégica. E quando caiu e eu fui pro chão, eu fiquei consciente o tempo todo e eu já tinha conhecimento sobre essa temática, inclusive na graduação eu já tinha estudado sobre isso, e já caí dizendo que eu não queria ficar paraplégica, né. Então na hora eu perdi a sensibilidade da perna inteira, eu fiquei com a sensação, como eu caí, eu caí com... como se aqui fosse o joelho, né, eu caí assim, eu fiquei com a sensação do pé batendo as minhas nádegas por muito tempo, que foi a última sensação que eu tive, né. Então naquele dia imediatamente eu fui pro hospital, veio bombeiro, me levou pro hospital e no mesmo dia eu fiz a cirurgia na coluna, eu tenho duas hastes de titânio de 15cm e quatro vértebras completamente sem articular, né, oito pinos e uma lesão na L1, na primeira lombar. Então eu não tenho nenhum movimento também, já tentei de tudo, a partir desse acidente eu fiquei seis meses sem trabalhar. Eu fiquei... primeiro me recuperando da cirurgia e depois logo em seguida eu vim pro Sarah, e eu tinha já três meses de acidentada quando eu vim pro Sarah em Brasília, pro Hospital Sarah Kubitschek, né, que é uma referência no atendimento em lesão medular, né. E daí aqui no Sarah, aqui em Brasília eu fiquei dois meses e meio internada. Saí daqui tendo contato com outras pessoas que tiveram experiências, várias assim, que levaram à lesão medular ou trauma cerebral. Mas então foi uma experiência importante de me ver com uma nova estética, né, que era uma mulher cadeirante. Então, como eu não tinha convívio com ninguém cadeirante, era muito difícil pra mim me enxergar mulher com deficiência. Eu tinha, quando eu me acidentei, eu tinha um corpo considerado dentro dos padrões de beleza, né, e de repente eu me senti com um corpo... era como se eu tivesse aquela bola de ferro grudada na minha perna, né, sentindo o peso todo das minhas pernas imóveis, tendo que me carregar numa cadeira de rodas, então tive que me fortalecer bastante no braço. Meu corpo todo se alterou a partir dessa experiência do acidente, então eu tinha pernas musculosas e o braço não era tanto assim, era normal. Mas as minhas pernas afinaram de repente, eu ganhei 10 quilos na cadeira de rodas, eu comecei a trabalhar no Sindicato, eu ficava 14 horas no sindicato trabalhando. Então foi muito... eu mergulhei na relação de trabalho pra não me ver nessa nova condição. Porém, como eu era uma pessoa pública, as pessoas me viam, as pessoas choravam, ficavam com... né, então eu tinha que consolar, muitas vezes eu dizia às pessoas “não, eu to bem!” Daí em 2007 um amigo foi pra Cuba e teve uma experiência, disse: “ah, tem uma cirurgia lá, inovadora que só tem em Cuba, que de repente pode resolver o teu caso”, e aí os amigos do sindicato fizeram uma grande campanha junto com a minha família e os outros amigos, uma grande campanha. E eles reuniram dinheiro, fizeram festa, leilão, fizeram várias, feijoada, teve de tudo, café colonial, então foi uma mobilização bastante grande, envolveu, eu posso dizer que milhares de pessoas que contribuíram e eu fui pra Cuba, fiquei seis meses em tratamento em Cuba, né. Nos primeiros quinze dias só fazendo os exames pra ver se o meu quadro era um quadro dessa cirurgia, daí depois de quinze dias, sete dos médicos que me avaliaram disseram que não, que eu corria mais risco de vida do que retorno à movimentação, né. Daí foi uma pancada bastante forte, eu fui com a minha mãe, minha mãe foi parceira, né. Nesses seis meses inteiros, eu ficava, eles disseram “ó, mas você tem muito como evoluir fisicamente”. Eu ficava oito horas fazendo fisioterapia, atividade física, eu fiquei muito fortalecida e muito autônoma na cadeira de rodas, e também usando órteses em pé, né, usando órteses e andador, eu cheguei a ter uma experiência de andar com muleta, só que as muletas me forçaram muito os braços. Quando eu voltei de Cuba me chamaram no Sarah pra ver como é que eu tava. Me escanearam inteira, olharam tudo, pra me dizer que “ó, fisicamente você tá bem, mas você tá fazendo fisioterapia demais, você tá forçando seus braços. Seus braços são seus braços e suas pernas pro resto da vida”, eu escutei do médico do Sarah. Isso foi de chorar, na hora eu já chorei, né, pô, tanto esforço, e eu sabia né, mas... né, ouvir isso de um médico era bastante pesado e ele disse: “vai pra luta, vai, volta ao trabalho, faz menos fisioterapia”. Eu fiquei bastante brava, né, com esse retorno aí que eu recebi, mas acabei então assumindo. Eu não queria mais ter essa vida de sindicato que era realmente muito intensa, pra poder ter uma vida mais saudável. Eu tentei, pensei em voltar pra escola, onde eu era lotada, mas eu me emocionei muito de voltar lá e ver meus aluninhos, então eu ia ficar como uma professora readaptada, numa função que não tinha uma função, né, um arremedo de função, e isso acabou fazendo com que em 2009 eu viesse pra Brasília estudar pra concurso. Na época a gente tava no Governo Lula, tinha bastante concurso. Estudei bastante, fiquei seis meses só estudando pra concurso e já tinha né vaga especial, uma política afirmativa, vagas de pessoas com deficiência em concurso público e rapidamente eu passei em três concursos. Fiquei seis meses na Receita Federal, numa função na área de desenvolvimento, capacitação de servidores, mas acabei aceitando, indo pra Escola Nacional de Administração Pública trabalhar como técnica em assuntos educacionais. Então fui pruma escola de formação de servidores federais, que tinha mais a minha cara, né, e to lá até agora, desde 2010. Em 2010, é, em 2012, em 2011 eu conheci o meu atual marido. Tinha esquecido de falar, né, que eu me separei um ano e meio depois do acidente. Em 2011 eu conheci o meu marido, em 2012 a gente casou, em 2012 também nasceu a minha filha, né. Eu tenho uma filha de oito anos. Quando eu voltei da licença maternidade, era já 2013, mais ou menos, época das manifestações, não sei se você lembra da revolta da coxinha, né, que começou em São Paulo e o movimento estudantil. Então deu uma onda aí de manifestações. Eu tava lá ainda na Enap, e na Enap é um prédio pequeno, só de dois andares e eu trabalhava no segundo andar como assistente técnica, assessoria técnica de uma diretora. Então tinha relacionamento com algumas coordenações, e o elevador da Enap, era o único elevador, começou a quebrar direto. Eu cheguei a ficar presa no elevador, daí eu ficava com trauma de ir e o elevador quebrando o tempo todo, eles não davam resultado, então em 2013 pra 14, por aí, eu me enchi disso, chamei o sindicato e a gente fez uma mobilização que eu chamei de Aniversário de elevador quebrado, porque já fazia seis meses que eu tava totalmente distante da minha equipe de trabalho, ficava no térreo. E eu dizia: “gente, mas não é um problema meu”, eu não aguentava mais o assunto, “é um problema da escola, a decência tá na escola, porque isso aí não é só eu que me beneficio, os outros trabalhadores que trabalham com carga, tem…”. Toda uma questão que eu tentava descentralizar pra que a pauta do elevador fosse uma pauta que não fosse a pauta da Anna, né? Mas passou seis meses e a coisa não andava, eu acabei tomando a frente, né, e a gente fez esse ato de Aniversário do elevador quebrado, eu recebi uma advertência verbal (risos) sobre isso. Eu achei um absurdo, a gente criou uma comissão pra discutir a questão da acessibilidade da escola, então, foi bastante tenso isso, né, foi porque era dentro do governo que eu defendia, né. Então é uma contradição muito grande eles não priorizarem a questão da acessibilidade e priorizarem outras coisas e outros gastos, né. Mas era um pouco... uma relação de que eu acho talvez de incompetência mesmo da gestão, né? E daí nesse período, em 2012 eu já tinha recebido o convite pra trabalhar na Presidência da República, na coordenação, numa coordenação do Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil e também na coordenação do Programa de Inclusão da Pessoa com Deficiência da Presidência da República. E eu não tinha aceitado porque eu tinha recém tido uma filha, eu disse: “eu sei que vai ser uma função que vai me... eu vou acabar mergulhando na função”, eu me conhecia, né, “e eu to com uma filha pequena”, ainda queria estudar pra um concurso pra ter um cargo melhor, né. E então quando aconteceu esse episódio do elevador quebrado eu resolvi aceitar o convite e fui ter uma experiência muito importante, que marcou demais a minha vida, e que foi a minha entrada na pauta da inclusão da pessoa com deficiência, quando eu fui trabalhar na Presidência da República, né. A minha chefe era a Laís Lopes, uma pessoa que tinha ajudado a construir a Convenção Internacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência – da Pessoa com Deficiência da ONU – ajudado a construir o decreto legislativo que tornou o texto da Convenção como o primeiro tratado de direitos humanos com status de constitucional, conforme todo aquele ritual da emenda constitucional.
E que me ensinou muita coisa e ajudou a gente fazer uma gestão da inclusão na Presidência da República, né. Foi um programa que ele foi criado no Governo Dilma em 2011, mas que antes disso, o Lula foi provocado pelo CONAD – numa reunião com o Conselho Nacional da Pessoa com Deficiência – que perguntou pro Lula quantas pessoas com deficiência trabalhavam no Palácio do Planalto. E ele perguntou pros seus assessores e ninguém sabia, não tinha esse dado na gestão de pessoas da Presidência da República. Então ele disse: “eu vou criar um programa de inclusão”, então foi a Laís que conseguiu consolidar esse programa em 2011, conseguiu trazer mais de 30 servidores públicos. Tanto, houve um edital de seleção com sessenta e duas vagas pra pessoas com deficiência trabalharem na Câmara de deputados, na Presidência da República. Então foi uma experiência de muito aprendizado, porque é uma pauta transversal, né. Então a gente tanto trabalhava com o pessoal de tecnologia da informação, tecnologia da informática comunicacional, quanto com pessoal da arquitetura, de várias áreas. E também na capacitação dos servidores pra fazer uma gestão de pessoas inclusiva pra todos. Então, uma superação do capacitismo, né, que é o principal desafio da gente, é a superação da discriminação em razão da deficiência e a gente conseguir entender que essa pauta da inclusão é uma pauta de direitos humanos, de equiparação de direitos. Então foi muito legal, foram dois anos e meio lá, até que houve o golpe em 2016, quando a Dilma saiu. Eu ainda fiquei um tempinho, achando que depois... quando a gente viu que não tinha mais condições d’ela voltar na Presidência, eu voltei pro meu órgão de origem que foi a Escola Nacional de Administração Pública.
E lá eu voltei com a minha chefe que era a diretora de gestão de pessoas da Presidência da República, ela também era servidora da ENAP, a gente apresentou juntas o programa de inclusão da Presidência e os servidores da ENAP se mobilizaram junto com a diretoria de gestão interna e a gente criou nosso programa de inclusão, de baixo pra cima, né. Duma demanda dos servidores que não sabiam como lidar frente a uma situação de falta de acessibilidade, né, ainda sensibilizados com aquele problema que nós tivemos com o elevador quebrado. Em 2017 a gente consolidou, foi criada a portaria do Programa de Inclusão da ENAP, onde eu atuo até hoje.
Falo demais né, Fernanda?

[01:31:18]
P/1 – Que bom! Eu queria voltar um pouquinho. No acidente você falou que demorou pra se enxergar como uma mulher com deficiência, eu queria saber quais impactos teve na sua autoestima, se você se lembra como você se sentia nos primeiros tempos.

[01:31:40]
R – Então, quando eu me acidentei, como eu tive que fazer uma cirurgia nas costas bastante importante e não tinha movimento das pernas, inclusive um pedaço do meu quadril, o osso do meu quadril serviu pra recompor uma vértebra quebrada, eu me sentia uma mulher que tinha cabeça e braços, e todo o resto tava paralisado, né. Então, o dia seguinte da cirurgia eu pensei assim: “é, eu já tive depressão, se eu entrar em depressão vai ser pior pra mim e pior pra todo mundo que tá ao meu redor”. Então desde o primeiro dia após o acidente eu comecei a tomar antidepressivo, pra poder ter força. O antidepressivo ele tinha duas funções, evitar, diminuir as dores neuropáticas, eu tenho muitas dores neuropáticas até hoje, muitas pessoas que ficaram paraplégicas ou tetraplégicas não têm essa sensação de dor, então apesar de eu não ter o movimento das pernas, eu tenho muita dor no nervo ciático, na minha lombar, etc, o fato de ficar muito tempo sentada. Então eu tive essa sensação de que a deficiência não era uma experiência só minha, era uma experiência de toda a família, tinha impacto em toda a família, né. Quando eu saí do hospital e comecei a ficar na cadeira de rodas e encontrar as pessoas na rua, no trabalho, e as pessoas olharem pra mim e quererem chorar, era muito difícil. Muitas que não me viam há muito tempo e não tinham sabido do meu acidente, duas, foi bastante pra mim. Assim que eu comecei ir pra rua, na cadeira de rodas, uma chegou pra mim: “Anna! Sai disso aí menina, deixa de brincadeira!”, achando que era brincadeira minha a experiência de andar na cadeira de rodas, como uma aventura nova minha, né, até contar pra ela a história e ela ficar toda emotiva. E a mãe de uma outra amiga também, disse: “o que que você aprontou agora, né Anna? (risos) A menina sapeca!” Mas em geral era isso, eu tive uma tia que ela levou um ano pra me ver, que ela não tinha coragem de me ver, uma tia que ajudou a me criar, sabe, era muito presente na minha infância, então isso mexeu um pouquinho comigo, mas eu sempre... Eu já fazia psicoterapia, isso me ajudou bastante só que eu senti muito por não ter tido experiências com outras pessoas com deficiência ao meu redor, né, na minha escola não tinha ninguém, quando eu fui aluna não tinha ninguém com deficiência que eu tivesse convivido e eu senti falta disso. Então, quando eu fiquei com três meses e fui pro Sarah foi um impacto mais forte. Porque a princípio, no início, os médicos não dizem que é definitiva a situação, né, os médicos faz a cirurgia e diz assim: “vamos ver se desincha o edema na sua medula, né?”, então não é uma coisa que eles podem dizer: “ó, não vai andar pro resto da vida”. Mas no Sarah é um impacto concreto, eles reúnem e fazem boas vindas com a equipe, né, fazem uma roda de conversa, eles dizem assim: “você se apresenta, diz qual o seu objetivo aqui no hospital, mas não adianta dizer que quer voltar a andar, porque a gente não vai garantir nada disso”. Então já era tipo: “você não diga isso, porque você não vai…”, tipo, “você não vai sair daqui andando”, né? Então era bastante impactante. E com gente nova também, e gente que tinha mais tempo de lesão. Então a convivência no Sarah com outras pessoas com a mesma estética e de mulheres jovens e homens jovens com deficiência, paraplégicos, tetraplégicos… Eu fui encarando como uma nova aventura, né. Então eu tinha uma amiga que ela era do Mato Grosso e ela foi vítima de uma tentativa de feminicídio aos 17 anos, então ela era ainda bastante jovem, bem mais nova que eu e tava há mais tempo na cadeira de rodas. Então ela contava a história do ex-namorado que atirou no meio da rua, atirou nela, ela se fingiu de morta e ele se matou. Ela sobreviveu mas ficou paraplégica. E ela já tinha experiências sexuais, então ela mostrava pra gente as melhores posições, então tinha uma descoberta nova, uma aventura nova. Então também, final de semana, a gente tinha a liberdade de sair do Sarah, a gente ia pra barzinho, saíam três cadeirantes num táxi só, então a gente fazia vivências outras, de outra perspectiva. Mas não foi fácil, foi tipo… ser uma mulher padrão gostosona pra uma coitada, né, isso abalava bastante, né, me abalou bastante. Um ano e meio depois do meu acidente, eu tava num casamento já em crise antes do acidente e o acidente não nos uniu, nos desuniu mais, eu fiquei esse tempo todo em Brasília, então acabou não unificando tanto o casal porque a gente já estava em crise, não só por conta do acidente, né. Mas foi bastante difícil voltar pra casa da minha mãe e ser a filhinha da mamãe, aquela tratada com aquela super proteção porque é deficiente, né. Mas tive apoio de muita gente, isso foi muito importante, muitos amigos, uma família muito unida, muito harmoniosa nesse sentido assim, foi fundamental pra me reerguer, né? E esse vínculo com a profissão sempre foi muito forte, sempre foi uma paixão, e a coisa que eu era mais enjoada da educação física, que era fazer exercício repetitivo, tipo, o meu carma foi voltar pra fisioterapia, fazer exercício repetitivo. Então eu disse “não, eu tenho que ver isso”. Daí outra emoção muito grande de viver a deficiência foi viver a gravidez numa cadeira de rodas, então, foi bem depois né? Mas foi bastante intenso. Quando eu comecei a namorar meu atual marido, ele dizia assim: “olha, eu sou pra casar e eu quero ter filho”, já chegou dizendo assim, né! Eu: “ah, quem sabe a gente adota”, eu nunca tinha pensado sinceramente em ter filho, eu tive o acidente com 31 anos, né? Então quando eu conheci meu marido eu tinha 38, então pra mim parecia uma coisa meio difícil de caber, né, acabou que a Emiliana, minha filha, nasceu quando eu já tinha 39 anos. E fui atendida pelo SUS, então o SUS tem programa de gravidez de auto risco maravilhoso, pelo menos aqui em Brasília funciona super bem. Na época eu não tinha plano de saúde e fui muito bem atendida pelos profissionais, profissionais experientes em fazer parto em mulheres com deficiência, porém em um hospital que não oferecia acessibilidade, então o dilema com elevador também aconteceu no pós-parto. Eu ficava no 1º andar e a minha filha tava no térreo, ela nasceu muito pequena, então eu tive pré-eclâmpsia, ela nasceu com oito meses e eu tive que esperar ela chegar a dois quilos pra poder sair da maternidade, né. E o elevador, que era o único que funcionava, era o único que carregava o lixo, lixo hospitalar e carregava paciente, né, quebrado! Então eu passei com o elevador... eu morria de medo porque o elevador quebrava o tempo todo e tinha ficado já presa nele, mas eu tinha que descer pra poder dar de mamar pra minha filha.

E ela era tão pequeninha que eu tinha que tirar e dar pra ela num drenozinho com uma seringuinha numas doses bem pequenininhas pra ela poder se alimentar com segurança, né. Então teve um dia desse inteiro que ela não tomou, não foi amamentada por mim, foi amamentada pelo banco de leite, por falta de acessibilidade, porque o elevador estava quebrado. Então foram momentos bastante tensos, o banheiro não era acessível, daí quando a diretora viu, ela pegou e mandou quebrar um pedaço da parede do banheiro, e assim ficou, ele todo aberto, né, com pedaço de azulejo mesmo. E como tava uma superlotação, a minha filha tinha ficado no centro obstétrico, eles nos mandaram pra um hospital em Sobradinho, que era o extremo oposto de onde eu morava, e não informaram nessa maternidade (que era dentro de um hospital público), que eu era cadeirante. E eles me prometeram assim: “não, você vai ficar lá num programa chamado ‘Mamãe canguru’, você vai ficar num quarto com outras mães que tem crianças, que também estão em situação que exige mais atenção”. Só que não avisaram, não cabia nem eu e nem a minha mãe que era a minha acompanhante, né. Então, por ser cadeirante e estar com um corte da cirurgia do parto, eu não conseguia subir num leito, numa maca mais alta, eu precisava de ajuda sempre, pelo menos uma pessoa, e ainda com bastante dor, né, pra ter que me adaptar a uma… Então eu tive que fazer um barraco, né, berrei pra todo mundo que aquilo ali não era situação, e eles disseram assim: “então a sua opção...”, aí a diretora assim: “ó, eu não fui informada que viria uma pessoa com deficiência, se não eu teria dito pra eles que eu não tinha estrutura pra receber você, e a solução é você ir embora pra sua casa e a sua filha ficar”. E daí eu não quis, né. Então eu briguei pra ter um espacinho pra poder ficar perto da minha filha e isso foi mais uma semana. Nesse período eu não sei se eu adquiri... eu já tinha um pouquinho de claustrofobia, acho que a tensão e pressão alta… Então foi um momento muito dramático da minha vida, ver um ser tão frágil dependendo dos meus cuidados, foi uma emoção ao mesmo tempo maravilhosa, mas também que teve um impacto psicológico bastante grande, né.


[01:44:16]
P/1 – Eu queria saber, você me contou desse momento dramático, mas eu queria saber como foi a gravidez? Você pode dar mais detalhes desse momento?

[01:44:28]
R – Então, a minha gravidez... Fui pra um obstetra conversar sobre a possibilidade de engravidar, que eu gostaria de ter uma filha, de que forma eu podia me preparar pra uma gestação, que a minha condição física me permitia. E daí essa obstetra super carinhosa, super também experiente, ela disse que eu tomasse ácido fólico, que era ok, que dava, que eu tinha condições. Ela disse: “mas vamos avaliar se você já não está grávida, porque tem muitas pessoas que querem, provavelmente você já parou de usar o anticoncepcional e já tá se preparando pra isso”, eu disse “é verdade”. Então quando eu tive essa primeira consulta, ela fez o teste de toque e já percebeu a gravidez, eu já tava grávida, né, fui me preparar e já estava. Foi bastante rápida a descoberta, eu ainda não estava casada, morando junto com o meu marido, eu morava com mais quatro pessoas amigas, assim, numa república. E foi uma gravidez que no quinto mês foi exigindo um cuidado maior. Eu tinha (eu tenho ainda), por conta de ter uma bexiga neurogênica, a bexiga acaba recebendo mais riscos de infecção urinária. E tem um bichinho chamado Escherichia Coli, que por conta de tanto antibiótico que eu tomei ele ficou resistente e ele é tipo uma infecção urinária crônica. Eu consigo cuidar mas não adianta ficar tomando antibiótico o tempo todo, né. Então a Escherichia Coli é responsável por 80% dos partos prematuros, então a partir do quinto mês eu tive que fazer repouso absoluto. Então eu tava de licença médica a partir do quinto mês e estava fazendo uma outra especialização, uma segunda especialização que era em gestão pública, sobre educação inclusiva, né. A educação inclusiva que gerou um desafio lá antes, muito antes de eu ter deficiência, né? Eu voltei a ter vontade, porque essa especialização era feita no meu ambiente de trabalho – na Escola Nacional de Administração Pública – e eu quis fazer uma especialização e durante a gravidez eu tava estudando. Então comecei a estudar a distância, fazer uns trabalhos nesse período que eu tava de repouso físico mas absoluto. Então foi uma experiência interessante, daí eu achava que eu ia conseguir terminar minha monografia antes da Emi nascer, antes da minha filha nascer e como ela nasceu antes, eu tive que terminar depois que ela nasceu. Daí eu vi que a minha não era uma monografia, era uma ‘mamonografia’: entre uma mamada e outra eu escrevia, né. E tinha que descansar. Foi um desafio mas que deu tudo certo. O meu interesse na especialização era dar visibilidade aos professores, aos profissionais da educação, né, então eu via que tinha muito distanciamento das diretrizes que o MEC lançava, pras condições de trabalho dos profissionais de educação que atuavam na educação inclusiva, né. Então eu quis dar voz, entrevistei 19 profissionais que atuavam na escola com a educação inclusiva, pra fazer essa ponte aí com os gestores aqui de Brasília. Então essa experiência municipal foi muito importante, né, de aproximar a política nacional da vida, de onde chega a política pública ao cidadão. E essa vivência no SUS, também com a gravidez foi muito legal, foi muito importante.

[01:48:59]
P/1 – E nos primeiros dias assim, de maternidade como foi ficar com um serzinho tão pequeno? Me conta.

[01:49:03]
R – (risos) Já na maternidade, eu não tinha coragem de trocar a fralda da bichinha não, ela era muito magrinha e quem aprendeu primeiro a trocar a fralda da Emi, foi meu marido. Então ele tava muito presente, assim. A gente ficou duas semanas entre maternidades, né. Então quando chegou em casa eu também tinha medo de manusear.

Eu ganhei um trocador de fralda que também era banheirinha, era acessível pra mim, eu conseguia dar o banho e trocar a fralda de forma acessível, sentada na minha cadeira numa altura que me deixasse confortável pra poder ter autonomia de cuidar da minha filha sozinha. Um desafio que apareceu quando ela tinha uns 3, 4 meses, foi o seguinte: eu não sei se é comum, mas as crianças que eu vejo, muitas crianças gostam de colo da pessoa em pé e não da pessoa sentada. Então as pessoas pegavam a Emi e ficavam em pé, balançando, não sei o que. Então quando ela vinha pro meu colo e chorava porque era um colo sentada, isso me doía demais, de um ponto de chorar assim, né, me emociona até hoje, da minha filha tipo, como me rejeitando, sabe, que eu era cadeirante, uma coisa louca, né? E o William, meu marido, ele teve a sensibilidade de dizer o seguinte, ó: “quer pegar a Emi, então senta porque a Emi vai ficar com colo só sentada pra ela acostumar com o colo sentada, né?”, e isso resolveu a situação, né. E daí depois a gente teve uma experiência daí, quando eu já tava um pouquinho mais curada, já tava mais fechada a cirurgia da cesária, eu consegui botar órtese, ficar em pé e botar aquele sling – acho, aquele, um pano onde o bebe fica no colo – e eu consegui, com o andador e as órteses, ficar em pé com ela! Então foi uma emoção bastante importante, assim. E a Emi começou a ficar em pé, é, subindo na minha cadeira de rodas, ela começou a dar os primeiros passos empurrando a cadeira de rodas, ela segurava na parte de trás onde tinha um espacinho pra ela botar a mãozinha e ela ia. E quando ela queria se esconder de mim, ainda quando engatinhava, nem andava, ela engatinhava e ficava embaixo da cadeira de rodas, onde eu não conseguia pegá-la, então era tipo uma brincadeira de esconder em torno da cadeira de rodas. Outra coisa que me chamava atenção, que ela tinha ciúmes quando alguém... por exemplo, a gente ia pra rua e alguém precisava me ajudar pra subir um degrau ou alguma coisa assim, ela não deixava a pessoa tocar na cadeira de rodas, como se a pessoa tivesse tocando em mim, no meu corpo, com ciúmes, ela brigava (risos), então foi uma vivência. E daí assim, na escola, no Jardim de Infância, também teve a semana da inclusão e me convidaram pra fazer uma fala pras crianças e elas conseguiram uma cadeira de rodas infantil pras crianças experimentarem usar a cadeira de rodas, né, então eu tinha que dar as aulas pra como é que usava a

cadeira de rodas. E a Emi super safa, né, a Emi já sabia tocar a minha cadeira, desde pequeninha… ela no meio da palestra, eu falando com as crianças, contando histórias e ela: “é…” (ah,tá, eu tava ensinando a não pegar a mão na roda, porque a roda é suja e toca o chão, que tinha o ferrinho ao redor da roda, que era pra tocar ali), aí ela disse assim: “é, porque a roda suja, uma vez a minha mamãe (eu acho que ela devia ter cinco, quatro anos) a mamãe pisou em cima do coco do cachorro e ficou fedendo”, e daí a criançada toda caiu na gargalhada, né. A Emi então conviveu com isso. E as muitas vezes que eu tinha que dar palestra, ela ia pro meu lado, ficava do meu lado me cutucando pedindo o microfone pra falar, pra contar alguma história, né, da nossa vivência aí na cadeira de rodas, e coisa assim. Ela contava do jeito dela. E eu casei com uma pessoa, o William, ele é intérprete de libras, então ela, desde pequenininha ela se comunicava com pessoas surdas, né, com sinais.
Então pequenininha ela já fazia uns sinaizinhos de comunicação, ela também teve esse espaço de diversidade, tem né ainda, de convivência com a diversidade. Quando ela era pequena ainda, também é uma coisa que ela chamava minha atenção, que ela dizia assim: “mãe, eu quero você em pé igual as outras mães”, né, porque tinha festa da escola e coisas assim, e daí teve um dia que eu resolvi ir com a órtese e o andador, em pé, né, e a alegria dela foi imensa deu estar em pé do mesmo jeito que as outras mães, né? Então, a Emiliana nesse período ainda era muito pequena pra entender que a gente vivia numa sociedade que é corpo-normativa, né, tem um ideal de corpo normal, né, e que todo mundo que foge desse padrão, dessa corpo-normatividade, ela acaba sofrendo preconceito pelo tipo, por estar distante desse ideal de corpo, de comportamento, né, que é a descriminação em razão de deficiência, que a gente chama de capacitismo, né. A gente chama desse nome, capacitismo, exatamente porque nossas capacidades são subestimadas somente pelo fato de termos algum impedimento de natureza sensorial ou física, né, ou comportamental.

[01:55:54]
P/1 – Como a gente tá falando de saúde da mulher, eu vou perguntar pra você o que der pra falar sobre a sexualidade da mulher com deficiência, se você puder falar.

[01:56:07]
R – Um capítulo bastante importante da deficiência é a questão da sexualidade. Então, assim que eu entrei no Sarah, uma das primeiras palestras foi sobre o assunto sexualidade. E foi com uma roda de conversa, e tinha uma senhora bem mais velha que eu, que tinha relatado que a partir do acidente ela não tinha mais vida sexual e ela permitia ao marido ter relações extraconjugais porque ela não era mais um corpo, né não tinha mais sexualidade, não tinha mais experiência sexual. Eu chorei muito nesse episódio aí, nesse relato dela, né. Então sofri bastante com essa perspectiva de que a partir de agora eu não tenho uma vida sexual ativa, né. Mas isso foi desconstruído logo em seguida na própria roda de conversa, sob a perspectiva de construir outras formas de obter prazer e ter uma sexualidade mesmo com a lesão medular, né. Então, a lesão medular depende muito do nível de lesão, se a lesão é completa ou não e de que forma, porque o sexo, ele não é uma questão de estar no… de contato entre genitais, né, é muito mais, o prazer é uma experiência muito maior do que o mero contato com os órgãos genitais, né. E tem uma coisa na lesão medular que é o seguinte: tem uma região que a gente chama região de transição, que é entre o sentir completamente (entre a sensibilidade total) e o não sentir, tem uma faixa. Essa faixa é como se tivesse os neurônios, os centros nervosos, tivessem mais aflorados. Eu tive uma experiência, conheci uma menina que essa faixa de transição era a nuca, era aqui o pescoço, que ela era tetraplégica. Então se encostasse no pescoço dela era como se desse um frenesi de prazer nela, né, então os rapazes acabavam brincando com isso e quando ela tava distraída davam um beijinho aqui no… e ela: “ai!”, ela tinha essa experiência sexual, né. E a minha região de transição é exatamente nessa região genital, né, então tem uma experiência que não é exatamente a mesma do que de antes, é mais profunda, e que foi descoberta. Então, uma nova descoberta da sexualidade. Eu perguntava muito pra todo mundo dos pacientes do Sarah. A experiência do Sarah foi muito educativa no sentido da sexualidade da gente, né. Eu perguntava muito pras meninas, pros rapazes, né. Então… E pros rapazes foi muito interessante ouvi-los, assim, olha: “se apaga a luz eu não sei nada, eu não sei onde é que tá meu pinto, meu pau né?”, muitos deles diziam que tomavam viagra, pra ele ficar duro, mas que não tinham a sensibilidade no pau, mas tinham o prazer de poder dar prazer pra menina, e isso foi uma descoberta pra eles também, disse: “eu era muito egoísta, ia lá gozava e pronto, a menina que... a minha esposa que se virasse aí”, era uma relação muito mecânica com o sexo, né. Então muitos jovens dizendo que tinham aprendido a ter prazer com o prazer do outro foi interessante. Outro que era mais jovem, a primeira experiência sexual foi com uma prostituta, então a prostituta que fez essa iniciação dele e a gente aqui no Brasil não tem essa coisa do terapeuta sexual mas em outros países como por exemplo no Japão é o movimento “mãos brancas” então tem profissional da saúde que ajuda a construir essa sexualidade, a reconstruir a sexualidade de quem tem deficiência, né, ou construir. É interessante isso, aqui no Brasil ainda é um tabu falar sobre a sexualidade de quem tem deficiência, então eu sou muito perguntada, as pessoas, meus amigos “mas como é que é o sexo?”, o meu marido ele reclama que os colegas dele “mas como é que vocês transam? Como é que é?”, essa curiosidade toda em torno da nossa sexualidade. E realmente é uma redescoberta. Como eu já estava em crise conjugal, realmente no início era uma negação total pra a vida sexual por conta de ter a bexiga neurogênica a minha relação com a área genital era muito básica, fisiológica mesmo, de ter que tirar xixi com a sonda né, aprender a tirar, fazer xixi com sonda uretral, a precisar pra defecar ter luva pra poder facilitar extração das fezes. Então no início é muito punk essa relação, né, então essa área genital fica muito voltada pra essas necessidades fisiológicas do número um e do número dois, que é urina e fezes. Então isso é mais difícil, vai com tempo de ir redescobrindo a sua sexualidade, precisa muito da relação com outro e de um ambiente livre do capacitismo, né. Uma experiência daí dessa sexualidade: eu fiquei muito amiga de uma menina que ela começou a namorar, ela é paraplégica, ela namorou com um tetraplégico e os tetraplégicos que eu convivi no Shara, eles tinham, a maioria deles, a mãe como atendente oficial e definitiva da vida deles, né, porque na tetraplegia a necessidade do apoio do outro é para tudo por conta da falta de movimentação dos braços, quem faz a extração, né, faz o cateterismo para a pessoa poder urinar, todos os cuidados básicos, depende do outro, então era a primeira experiência sexual dela, elas foram para um motel e alugaram um quarto do lado onde ficou a mãe dele. Então a mãe deixou ele na posição pra ter a relação sexual entre eles, né, ele tetra e ela para, e depois no final da relação chamava a mãe de novo para ajudar nos cuidados. Então é uma experiência completamente diferente e que teria que envolver realmente muito amor, muita disposição. Envolve, né, e geralmente, ainda nessa relação de gênero que a gente tem nessa sociedade que a gente vive, geralmente em uma hora de acidente que a pessoa fica totalmente dependente, geralmente é a mãe que larga tudo, larga emprego, larga tudo pra fazer esses cuidados aí da pessoa que se torna... tendo uma deficiência severa, dependente de alguém. E também o que eu vi da sexualidade também muitas separações, não é simples, e muitas separações logo após o acidente. Isso que aconteceu comigo e da minha separação um ano e meio depois, não foi por conta da deficiência, mas acontece muito é muito comum. Então quando eu resolvi mergulhar na pauta deficiência, né, a partir da descoberta do elevador quebrado que eu achava uma coisa tão óbvia, né, e entrei na pauta da deficiência, comecei a entrar na pauta de gênero e deficiência, em ver as mulheres com mais dificuldade de exercer seus direitos sexuais e reprodutivos, na saúde principalmente, né. Então eu ajudei a fundar o coletivo de mulheres com deficiência do Distrito Federal em 2016. Eu conheci uma menina no metrô e a gente foi tendo contato com outras mulheres e tendo relatos parecidos, de ginecologista que não quer te atender, alega que não tem acessibilidade no seu consultório, não atende no posto de saúde que não tem acessibilidade, a mulher fica sem fazer exames preventivos. Então isso é muito grave essa situação, né, desde o mamógrafo que não é acessível à mulher cadeirante, o mamógrafo que não muda de tamanho, assim né, de altura...então faz com que as mulheres fiquem muito tempo sem fazer os exames de mama, os outros exames que são fundamentais para a saúde da mulher. A questão da obesidade sempre é um problema porque estar na cadeira de rodas e não fazer atividade aeróbica também é bastante grave, a gente vê muito isso. Então, o prazer que muitas vezes era sexual ou da adrenalina de fazer atividades físicas muitas vezes também a pessoa se volta pra comida né, aquela coisa da ansiedade da carência mesmo. Eu te falei né que eu engordei dez quilos, depois eu fui diminuindo né, então hoje eu estou mais ou menos com o peso que tinha só que ele distribuído diferente né, com o braço muito mais musculoso, estou com os braços musculosos, enquanto as pernas pela falta de movimento voluntário estão bastante finas né.

[2:06:54]
P/1 – Eu queria perguntar, depois acidente, a partir dessa nova perspectiva que você adquiriu é, como mudou a sua visão de mundo?

[02:07:04]
R – Em geral, assim?

[02:07:08]
P/1 – Em geral, o que você quiser destacar.

[02:07:12]
R – Deixa eu dar uma pensadinha antes... Ai, o acidente me mostrou o quanto eu não conhecia nada sobre a deficiência, apesar de já ter trabalhado com educação inclusiva, eu pouco sabia do debate da deficiência. Eu tinha alguma resistência, achava que a pauta de deficiência tinha uma pauta óbvia de mais para eu militar, eu continuava militando no movimento sindical, mas achava que a minha presença em qualquer ambiente já era motor de transformação, de ampliação da visibilidade da pauta da deficiência. Então assim, não é porque eu estou na cadeira de rodas que eu tenho diferenças na luta né, tem sim a luta pela acessibilidade com direito a ter direitos, e ponto. Eu achava que isso era muito óbvio, né. Então estar presente em qualquer ambiente estando acessível ou não, provocava uma mudança, por exemplo, quando eu era dirigente sindical e fui prum debate em uma emissora de TV em Florianópolis, eu perdi a primeira parte do debate porque era uma escadaria e eles não sabiam que eu era cadeirante. Então eu fiz eles me levantarem de qualquer jeito pra chegar lá e dizer “oh, não participei porque a emissora não tinha acessibilidade”. Então achava que era isso, a cadeira de rodas era a bandeira de luta, né, e percebi a invisibilidade da questão da deficiência e que eu também era uma pessoa que não enxergava esses problemas de acessibilidade como problemas tão fundamentais para a equiparação dos direitos de direitos humanos, né. Então a coisa de carro em cima de rampa, carro de pessoas que não têm deficiência na vaga de pessoa com deficiência, falta de acessibilidade da mulher surda, é um absurdo o quanto as pessoas surdas ficam num isolamento comunicacional como se elas fossem estrangeiras no próprio país, sem acesso a informações tão fundamentais para que elas exercessem seus direitos. Então foi assim como ampliar horizontes com a questão da deficiência, me ampliou os horizontes pra entender essa nossa civilização. Me ajudou bastante, e a me perceber também capacitista, né,

porque a gente vive numa cultura que descrimina as pessoas com deficiência, se gente não reflete sobre o assunto a gente vai na onda e essa onda é de uma cultura capacitista. É uma pauta que a gente aprende todos os dias porque a deficiência não é igual, não é vivida igual pra ninguém, né, e a gente ainda tem muito é uma perspectiva caritativa da deficiência, de entender o outro em desigualdade em relação ao outro, né... “o coitado”, da pena. A necessidade, eu tive que entrar na pauta pra perceber que a gente tem que falar sobre isso e isso não é nos vitimizar, é dizer “olha a gente não quer ser visto como pessoas usuárias de serviços de saúde somente, nós queremos lazer, transporte, nós queremos ter emprego como qualquer outra pessoa”. E o modelo também biomédico, né, da pessoa perceber a gente só como a lesão, como a negação de si, né, então a gente como não ser, como se tivesse faltando algo, né, o amputado ser definido pela falta do membro, e a gente é muito mais, o ser humano é muito mais do que isso. É uma pauta que me emociona demais e ter a oportunidade de trabalhar sobre esse tema também é um se trabalhar internamente né. Por vezes acaba sendo um pouco sofrido né, mas quando eu mergulho no trabalho, eu mergulho emocionalmente também né.

[02:12:09]
P/1 – Eu vou fazer mais perguntas sobre seu trabalho, mas eu queria fazer uma última sobre esse tema. Eu queria saber, eu queria que você falasse um pouco sobre acessibilidade, se você tem casos pra contar. O que você quiser falar sobre o tema.

[02:12:25]
R – Então, por ter me tornado pessoa como deficiência cadeirante, os meus relatos são muito envolvidos... o problema de acessibilidade é muito urbanístico e arquitetônico, né, então exigiu reforma na minha casa, na casa da minha mãe, exigiu então que o ambiente se tornasse mais acessível, né. No meu sindicato também. Agora, o problema de elevador sempre foi até um pouco de traumático pra mim. Teve uma época quando eu trabalhava na Presidência da República eu tinha... (desculpa, pode cortar um pouquinho? Eu comecei a gaguejar)

[02:12:27]
P/1 – Tudo bem.

[02:12:29]
R – Eu me distraí um pouquinho. Mas é o seguinte, a questão do elevador é central na vida de quem é cadeirante né, porque ou tem rampa ou tem elevador, se não fica complicado. E quando eu trabalhei na Presidência da República, eu morava em Taguatinga, uma região administrativa do Distrito Federal. Eu pegava elevador no meu prédio, na estação do metrô eu pegava duas, no total de elevadores por dia, eu entrava e saía de um elevador dezesseis elevadores por dia. Então era muita coisa. Eu só fiz essa conta porque eu comecei a encontrar elevador quebrado, muito elevador quebrado, ficava presa dentro do elevador. Depois é que eu fui fazer essa conta, também... dezesseis vezes por dia eu entro no elevador! A probabilidade de eu encontrar o elevador quebrado é muito maior do que qualquer outra pessoa né. Então a gente chegou num período aí que eu estava um pouquinho traumatizada. Uma vez eu fiquei no elevador, minha filha tinha três anos, e a gente ficou no elevador do metrô quebrado um tempo, e ela sem entender direito o que a gente tava vivendo né, então foi bastante difícil. E outra vez também que eu fiquei com no elevador quebrado com uma amiga surda e apagou a luz do elevador então como ele era surda e a gente se comunicava por libras, ela não estava entendendo que estava acontecendo né, e a gente não conseguia se comunicar, então deu muita claustrofobia nela e ela parou de usar depois dessa vez, ela parou de usar elevador e ela vai te escada em qualquer situação, o que não é uma opção pra mim, eu tive que vencer esse trauma do elevador quebrado. Foi também um tempo de exercitar esse entender. Agora eu moro numa casa. A liberdade de morar numa casa e não precisar de elevador pra sair de casa é incrível, é uma coisa que eu valorizo muito. Quando a gente encontra uma cidade que não tem rampa, que não tem espaço pra você transitar com autonomia e segurança, é como se fosse uma cidade inteira dizendo “não” pra ti, então tem um impacto na autoestima das pessoas, sabe. Então tu tem que respirar fundo “eu vou sair de casa sabendo que eu vou encontrar esses desafios, isso não é um problema pessoal meu, é de uma sociedade que a gente vive”. Mas a gente tem que respirar fundo e muitas vezes estar muito bem no seu psicológico, na sua autoestima, pra poder encarar a rua com todos os desafios que a rua tem. Então além desses desafios aí de uma cidade inacessível que não reconhece a nossa diversidade, a diversidade humana, também encontrei situações do preconceito em relação à pessoa com deficiência quando eu fui pedir ajuda. Uma vez lá em Floripa, andando no centro de Floripa, que é um centro histórico então é cheio de desafios, cheio de barreira, eu fui chamar um cara pra me ajudar atravessar a rua e quando eu chamei ele, ele mal me olhou e ele disse “ai, eu não tenho trocado não” como se eu tivesse pedindo esmola para ele. Essas coisas assim, hoje eu rio, mas no dia foi meio pesado. Uma vez eu estava na estação central aqui do terminal de ônibus de Brasília e estava chovendo, eu pensei esperar mais uns minutinhos por que a chuva em Brasília ela chove bem e depois ela para e de repente tem sol até. Então estava esperando a chuva passar pra poder entrar no ônibus, porque como entrar no ônibus significava que o cobrador ou motorista iam pra chuva pra me ajudar a subir a rampa ou mexer no elevador do ônibus, eu esperei um pouquinho, paradinha na estação de metrô onde passa muita gente. Então teve uma hora que veio um cara se oferecendo pra se prostituir pra mim e começou a me mexer a me tocar, “Aqui, olha, to precisando de dinheiro” tipo, querendo me acarinhar e eu “não, eu não topo isso”, ele não forçou a barra mas ele já chegou me tocando. E depois passou um cara, eu estava de vestido, arrumadinha e chegou um cara e jogou uma moeda de um real no meu colo, como se eu tivesse ali parada mendigando, eu: “ei, eu trabalho, não preciso!”, mas o cara já tinha passado e já estava a moeda de um real no meu colo. E de repente chega um bêbado e começa a me empurrar, empurrar a cadeira de rodas, a brincar com a cadeira de rodas como se fosse um carrinho e ele começa a empinar e cai eu, ele e uma coca cola litrão cheia de cachaça no chão, né, então caí pra trás e ele me encheu de cachaça, aquele nojo. Cara, como a gente está vulnerável, principalmente as mulheres estão vulneráveis, os homens com deficiência sofrem outros tipos de preconceito que eu posso até falar. Mas era sete de setembro e daí no dia seguinte a gente já tinha um ato do oito de setembro junto com as mulheres né, com a marcha mundial das mulheres, e a gente do coletivo de mulheres com deficiência estava lá no mesmo espaço, no microfone falando sobre essas coisas, como é importante dar visibilidade pra essas pautas para que as pessoas nos vejam como cidadãos, cidadãs. Mas isso é um impacto diário, é uma cidade que te diz “não” o tempo todo. E a gente fica com essa angústia porque se a gente se revolta “ah, é porque não aceita”, “Deus quis assim”, tem as experiências que dá uma explicação religiosa pra “ta pagando algum pecado na vida, por isso que está na cadeira de rodas”, tem que conviver com essas diversas perspectivas. Em relação a cadeira outra situação que também me marcou bastante, eu tava fazendo concurso e eu não estava me sentindo bem, estava dentro da sala de concurso, na primeira hora da prova você não pode sair nem pra ir pro banheiro. E eu estava passando mal e eu tinha que tomar um remédio, pra tomar o remédio – o remédio estava na bolsa – eu tinha que sair da sala pra tomar o remédio e eu já estava saindo da sala, tocando a minha cadeira (que eu sou rapidinha, né). A pessoa (a fiscal): “você não pode sair” e me segurou aqui, não segurou em mim, segurou na cadeira pra impedir que eu saísse, mas foi o mesmo, a minha sensação, que ela me segurar e me prender no braço porque ela inviabilizou o meu direito a sair, né foi horrível, eu fiz um escândalo “me larga”, eu não falei “larga a minha cadeira” eu falei “me larga!” E aí eu comecei a falar sobre isso, pra explicar que a cadeira de rodas acaba sendo uma extensão do nosso corpo. Então mesmo pra tocar a cadeira você tem que pedir licença, você tem que perguntar se a pessoa quer. Uma experiência também que eu tive no metrô, tinha uma rampa gigante pra tocar cadeira, eu tava lá, devagarzinho mas subindo, e de repente chega um cara sem falar comigo, chega pelas costas e começa a me empurrar, me empurrar com tudo. Aí acabou a rampa eu disse: “olha, muito obrigado pela sua ajuda, eu realmente estava sofrendo, mas sabe o que que eu quero te contar? Você quer ver como é que é o susto que eu levei assim que o senhor começou a me empurrar?” / “eu quero”/ “então fica de costas pra mim”, daí ele ficou de costas pra mim, eu peguei e dei um empurrão nele, porque foi isso que eu senti, um empurrão de uma hora pra outra, não sabe o que que está acontecendo atrás de você. Daí ele “é? Foi isso?” né, levou um susto também, foi só um susto, “então da próxima vez, não tem problema, ta tudo ótimo o senhor me ajudou, mas da próxima vez é melhor o senhor perguntar se a pessoa quer ajuda, as vezes a pessoa não quer ajuda e se ela não quiser ajuda, não é porque ela está revoltada com a vida é por que simplesmente ela se lida melhor tocando a cadeira do que ser ajudada, né, cada um tem...” E eu já ouvi outras situações “ah, eu não dou mais ajuda pra cadeirante, porque uma vez eu fui me oferecer a pessoa disse não”, então como se fosse uma coisa muito ruim, foi uma experiência muito negativa pra pessoa ter recebido o não, “não preciso de ajuda”. É um educar-se, um educar-se em sociedade junto o tempo todo. Quando a gente fala assim que a palavra ‘portador de necessidade especial’ não ajuda o portador de deficiência, não ajuda porque a gente não pode tirar deficiência, deixar de porta-la, o tempo todo ela está conosco e ela acaba sendo tema se a gente vai pra rua. Então muito isolamento da pessoa com deficiência é muito grande e muitas pessoas se deprimem por conta desse contexto todo de ter que encarrar esse mundão.

[02:24:28]
P/1 – Eu queria saber qual é a sua rotina de cuidados com a saúde, com que frequência você costuma ir ao médico.

[02:24:38]
R – Eu tenho facilidade de ser paciente do Sarah, então uma vez por ano eu faço uma bateria de exames no Sarah referentes à minha locomoção, à minha saúde em relação a lesão medular, etc, né. Então eles avaliam bexiga, né, toda essa região interna que pode ser afetada. Além disso pros outros aspectos a minha saúde eu cuido anualmente de fazer exame ginecológico. Eu tive uma experiência muito traumática em relação a uma amiga que é cadeirante, é obesa, e que ela ficou anos sem fazer um exame ginecológico, e essa pessoa quando viu estava com tumor gigante. Então, além de obesa, não dava pra identificar, ela tinha um tumor que quando ela tirou ela se tornou outra pessoa, não era a obesidade que a gente via, era o tumor tomando grande parte do tronco dela. Então, outra questão muito grave é o câncer de mama, né. Eu tenho caso de três tias que tiveram câncer de mama, tive primas que tiveram câncer de mama, eu perdi uma amiga e uma parente vítimas do câncer de mama. Então eu acho muito importante cuidar, sempre alerta para isso. E também faço psicoterapia a vida inteira, tenho essa necessidade de conversar, de me entender melhor no mundo. Mas eu já tinha isso, esse cuidado, antes de eu me tornar mulher com deficiência. É isso, eu também me trato da minha saúde mental com psiquiatra, também uso antidepressivo, essa medicação antidepressiva me ajuda a ter menos dor neuropática. Então eu invejo as pessoas que têm lesão medular e não têm dor neuropática, porque eu tenho muita dor, essas dores mexem mesmo com a saúde mental, né, então ele acaba exigindo tomar essas medidas, medicações de cuidado continuo e isso acontece desde que eu me acidentei. Então em situações mais estressantes eu tenho mais dores neuropáticas. Tem uma forma específica de eu dormir pra eu poder aliviar a pressão sobre o meu quadril. Tem todo um cuidado que eu acho que isso é legal eu falar, que muitas vezes as pessoas não sabem que as pessoas com deficiência, por conta da falta de acessibilidade e outros aspectos da saúde, elas gastam mais energia vital fazendo tarefas básicas para sua sobrevivência, isso justifica o fato da gente ter uma jornada reduzida de trabalho no serviço público, no serviço privado ainda não conquistamos, mas a jornada menor de trabalho para pessoas com determinados tipos de deficiência se deve ao gasto de energia vital que a gente tem com funções básicas. Então exercitar a paciência também é muito importante na vida das pessoas que se tornam pessoas com deficiência, quem nasce com deficiência tem outra vivência diferenciada, são outras questões que não tem como dizer. Agora, ser mulher numa cultura machista, né, ser mulher negra com deficiência também são outras complexidades que eu acabo conhecendo pelos relatos das amigas. É que a gente se unificou e se fortaleceu nessa união do coletivo de mulheres com deficiência.

[02:28:57]
P/1 – A Lila quer saber se têm efeitos colaterais os antidepressivos.

[02:29:03]
R – Então, eu sempre me preocupei bastante com isso, porque antes de me acidentar eu me tratava com homeopatia, elas davam conta. Por conta do acidente, a homeopatia não se encaixou nesse roll

de medicações que eu tenho que tomar. Eu tomo também um medicamento que eu não falei que é pra não ter incontinência urinária, se chama oxobutinina, pra diminuir a pressão interna da bexiga, e isso também dá efeito colateral, eu tenho que tomar água o tempo todo, minha garganta está seca o tempo todo. Então os efeitos colaterais desses remédios antidepressivos, essas coisas, os médicos dizem assim “oh (eu já perguntei pra vários) os efeitos colaterais são muito menores do que você ficar sem a medicação”, então assim que eu fiquei grávida, da minha gravidez até o nono mês, eu fiquei nove meses amamentando a minha filha, fiquei sem medicação, medicações que podiam dar efeitos colaterais na minha filha. Então foi muito sofrido, a coisa da dor ficou muito mais forte quando cheguei no nono mês de aleitamento, então o meu médico do Sarah disse “olha, eu acho que já é o seu limite, vamos voltar pra a medicação e você corta o aleitamento. Afinal de contas, não é toda mãe que dá nove meses de leite materno pro seu filho. Então agora é hora de você olhar mais pra você”, e foi isso que eu fiz né. Eu vejo que eu tenho perda de memória, então a minha memória é um pouquinho mais afetada, mas é uma preocupação... até hoje a gente não tem uma solução pra essa matemática aí de danos colaterais e não uso do remédio. Geralmente quando eu tento (já tentei tirar medicação) é muito mais grave, é muito pior para mim.

[02:21:25]
P/1 – A gente está falando sobre saúde mental eu queria saber como é que você faz para conciliar maternidade, trabalho, relacionamento?

[02:21:30]
R – Ai, eu sou meio bagunceira para encaixar essas coisas todas. E as vezes eu gosto até de perder memória porque se eu tiver toda a lista de tarefas e atividades que eu tenho pra fazer na cabeça eu acho que não conseguia nem dormir por conta de tantas preocupações que me envolvem, envolvem a minha vida. Eu acho que quando eu estou no trabalho e mergulho no trabalho, esqueço que sou mãe. Então já teve muitas vezes da escola da minha filha tocar e eu não reconhecer o telefone, nem me ligar, mas era a minha filha com probleminha de saúde. Mas ainda bem que tem William pra equilibrar essa coisa, que daí ele atendeu, né, mas algumas mancadas aparecem. No relacionamento amoroso, também é isso, o problema de gastar muita energia durante o dia, né, quando vai encontrar com o companheiro só a noite já está muito cansada, então isso acaba afetando o nosso relacionamento. É um equilíbrio que eu ainda estou construindo. A alegria de ter uma filha que é super parceira que a gente dialoga muito, né. Então é emocionante, essa pandemia, a gente desde 12 de março nós estamos em isolamento, ela não vai pra aula e eu não vou pro meu trabalho, estamos em tele trabalho e tele aula, eu consigo perceber lacunas da formação dela que eu não percebia porque ela estudava o dia inteiro e agora a gente está convivendo mais intensamente e vendo lacunas que eu achei que já estavam resolvidas na educação, da relação com a higiene, que não estavam. Quando uma criança tá dez horas na escola e muito menos horas com a gente, a gente é uma das referências, não é a principal. E aqui e agora na pandemia, né, tanto pai quanto a mãe né, somos nós três em casa, acabamos vivendo intensamente a educação e podendo suprir essas lacunas de formação que é bem importante. No início da pandemia foi bastante traumatizante porque ela não tinha uma inclusão digital, ela tem uma resistência de fazer atividades via computador, a gente conseguiu conversar na escola, a gente está equilibrando isso pra ela não ficar o dia inteiro na frente do computador, e achava um absurdo isso, né, uma criança de oito anos ter que ficar.... então é isso é mais assim eu acho que a gente, eu ainda não lido bem com esse equilíbrio. Tento equilibrar mas muitas vezes essa auto exigência de ter uma profissão, de ser uma boa mãe e ser uma boa companheira acaba impactando na minha saúde, e maltratando mais a saúde.

[02:35:07]
P/1 – Eu queria que você falasse um pouco mais sobre esse período de isolamento por causa do coronavírus, como mudou a sua vida, dá mais detalhes.

[02:35:17]
R – Então, a relação de militância que eu tenho, né, das mulheres com deficiência, do movimento sindical, muitas vezes é por conta dessas barreiras todas da cidade, era muito pelo espaço digital já, pelo WhatsApp, pelas relações. Então já tinha um canal de comunicação via WhatsApp nessa relação de militância muito pavimentado por conta de eu morar em Brasília e a minha família toda ser de Florianópolis então também era pavimentada, essas comunicações eram bem intensas nesse espaço no digital. Quando veio o trabalho pra isso também, daí sobrecarregou de mais, daí veio o problema de ser todo o mesmo canal, canal do WhatsApp, o canal das vídeo-chamadas, das reuniões. E isso impactou bastante negativamente meu grau de ansiedade, em ter situações de sentir o público e o privado não respeitado. Eu estava uma vez numa reunião e a pessoa brigou com a funcionária na minha frente, eu fiquei super constrangida de, né, ter que viver situações que a gente não esperava por que quando a gente estava no espaço de trabalho estava bem dividido. Agora, esse isolamento social a gente já vivia, as pessoas com deficiência em geral já vivem em algum isolamento social por conta dessas barreiras que são construídas, tanto pelas barreiras comunicacionais pra quem tem é algum problema, alguma limitação na visão ou na audição, então a acessibilidade comunicacional é bastante grande. O problema de acessibilidade comunicacional já era grande, porque muitas vezes... A gente no coletivo de mulheres com deficiência, a gente tem pessoas surdas, tem pessoas cegas, a pessoa cega geralmente gosta de fazer áudio e daí a pessoa surda não está ouvindo, então “oh, vamos fazer a acessibilidade que a gente quer na vida” então a gente tem que exercitar digitar, se a gente quer

postar um vídeo uma imagem, tem que descrever essa imagem se não ela não vai chegar na pessoa cega, ou se é um vídeo com áudio né tenta fazer a legenda ou pelo menos uma síntese do que foi dito. Então é um exercício de aprendizado contínuo, a gente já vivia um pouco isso, que só se intensificou. Em relação à minha saúde mental na pandemia, no início eu tive crise de pânico, por ser do grupo de risco, além de ter deficiência, ser do grupo de risco. Eu comecei a estudar pra escrever um artigo pra pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz sobre a questão da saúde mental e sobre a pandemia, né, sobre a questão da deficiência/pandemia, e quando achei um documento que é uma recomendação de quatro associações médicas (ANPP, Associação de Medicina Preventiva, aliás Medicina Paleativa, outras na área geriátrica), onde eles recomendavam que no caso de atendimento de COVID para ocupação dos leitos de UTI, eles fizeram um formulário onde pontuava – eles

fizeram não, ainda fazem, ta lá no site deles – é uma recomendação onde pontua quem privilegiar em caso de sobrecarga de demandas de leitos de UTI para tratamento de COVID. Então nessa pontuação, os critérios que eles usam, tem a questão da deficiência e da comorbidade. Então por exemplo, se a gente está no hospital que só tem três leitos para COVID na UTI disponíveis e tem dez pacientes precisando ir para a UTI em função do COVID, esse formulariozinho pontuaria as pessoas que se privilegiaria para ocupar essas vagas no leito. E as pessoas mais prejudicadas nisso seriam as pessoas com deficiência ou com alguma comorbidade. Então, quando eu estudei sobre isso e tive que escrever sobre esse assunto e vi que tão usando a minha deficiência pra me prejudicar no acesso ao atendimento, apesar da legislação dizer que a gente tem atendimento prioritário, né, algumas associações médicas se deram ao direito... e a gente fez então no artigo o debate sobre isso, essa lógica eugenista no atendimento em saúde. E acabei me mobilizando tanto nessa função que acabei escrevendo uma poesia, chamada Testemunho Póstumo, se você quiser, a gente pode terminar lendo essa poesia, se você topar.

[02:41:07]
P/1 – A sugestão foi que você lesse a poesia no final, aí eu vou fazer mais essas três perguntinhas que são bem rápidas, eu garanto.

Eu queria saber quais são os seus sonhos pro futuro?

[02:41:23]
R – Meus sonhos pro futuro? Eu gostaria de viver num país com menos desigualdades sociais, com menos discriminações, onde as pessoas se respeitassem, onde o pensar diferente não fosse ofensivo a ninguém, onde a gente vivesse numa democracia e com acesso, com igualdade de direitos de fato, onde esses direitos que foram conquistados arduamente, que estão presentes lá na nossa constituição, eles sejam exercidos por todos. Na vida pessoal eu quero ter saúde, pra eu poder acompanhar o crescimento da minha filha, quero ver a minha filha, se ela quiser, ter filhos ou, né, ser uma adulta feliz, uma pessoa que vive numa sociedade mais inclusiva pra todas as pessoas. E ter saúde pra isso, né?

[02:42:27]
P/1 – Você tem alguma passagem da sua vida que você queira registrar, que eu não perguntei?

[02:42:34]
R – Nossa, já falei demais, acho que tá bom!

[02:42:37]
P/1 – Eu queria saber o que que você achou desse projeto de convidar mulheres pra falar sobre saúde.

[02:42:46]
R – Eu acho fundamental, eu acho que é parte do empoderamento feminino a gente se ver como pessoas com direito sanitário, direito à saúde. Porque a gente muitas vezes tá cuidando do outro, se dando pro outro, pra fora e pouco se vendo, se enxergando como uma pessoa com direitos à saúde. Acho fundamental essa reflexão e muitas vezes a gente nem para pra pensar sobre o assunto. Então, perguntar promove uma transformação interna com certeza, que é o momento da gente verbalizar e ir refletindo. Eu tenho certeza que as coisas que a gente conversou aqui vão também ecoar aí na minha vida, pra que a gente siga evoluindo, né?

[02:43:41]
P/1 – E o que você achou de dar a sua entrevista, contar desde a sua infância até os dias atuais?

[02:43:47]
R – Então, é muita história, né?! São 48 anos de vida! Eu achei ótimo. Eu acho que é uma oportunidade incrível, que eu to até emocionada agora, com vocês aqui. Eu acho maravilhoso, eu conheço já o Museu da Pessoa já há alguns anos, então sempre falei do Museu da Pessoa para outras pessoas, né? Pra um professor de filosofia eu andei falando esses dias, ele ficou admirado, ele vai começar a pesquisar pra poder trabalhar com os alunos de ensino médio, na filosofia. Então eu acho que é uma oportunidade linda, maravilhosa! Como é que ninguém pensou, né, e ainda bem que alguém pensou em criar esse Museu da Pessoa, porque com certeza é uma... a gente coleciona livros – no caso, né, numa biblioteca – mas eu me sinto como... cada ser humano como um livro, né, tecido aí por tantas vidas, de tantas pessoas.

Testemunho Póstumo

Família, amigas e amigos
Se lhes disserem que o coronavírus me arrebatou,
Investiguem!


Se lhes informaram no hospital que seguiram as recomendações de associações representativas da classe médica em meu tratamento,
Isso significa que declararam a minha morte antes de utilizarem todos os recursos aos quais eu tinha direito.
Se lhes explicaram que a avaliação da equipe médica foi de que eu não tinha força útil,
Saibam que assim usaram a força para me calar!
Frente à escassez de leitos na UTI, equipamentos e insumos hospitalares,
Selecionaram quem mais vale no mercado e utilizaram minha deficiência contra mim.
Sou mais uma vítima fatal da aplicação de preceitos econômicos pra resolver quem fazer viver e quem deixar morrer.
Se tiveram a ousadia de dizer que não permiti que usassem todos os recursos técnicos,
Por favor gritem-lhes: Canalhas, mentirosos!
E os processem por assassinato
Vocês me conhecem, sabem que nunca apanhei sem chorar nem dar umas boas cacetadas,
Não deixei de ser quem fui, só silenciei quando não tinha mais ar nos pulmões
Sobrevivi às aventuras juvenis, à repressão policial nas manifestações,
Não me dobrei nem com a medula partida ou na gravidez de alto risco,
Superei crises de pânico em plena quarentena.
E vocês acreditariam que eu desistiria de viver antes que tenham se esgotado todas as possibilidades?
Nunca!
Hoje me transformaram em mais um número na estatística genocida da pandemia, apagaram minha história e a de milhares de pessoas com deficiência.
Quantos mais são vítimas dessa cruzada eugenista?
Governo de plantão aproveita a pandemia pra dizimar os povos originários do Brasil.
E o povo preto tratado como a carne mais barata do mercado, também é vítima do deixar morrer, bem como do fazer morrer.
Em nossa memória, peço que não se calem frente às injustiças sociais, que se mobilizem para barrar os ataques ao povo preto, aos povos originários e às pessoas com deficiência.
Vidas negras importam, vidas indígenas importam, vidas das pessoas com deficiência importam!

Obrigada!

[02:47:50]
P/1 – Que lindo, parabéns, muito obrigada!

[02:47:53]
R - Magina, obrigada!