Museu da Pessoa

Na escola da vida, não há férias

autoria: Museu da Pessoa personagem: Renaldo Perez

Museu Aberto
Depoimento de Renaldo Perez
Entrevistado por Claudia Leonor e Ana Paula Severiano
São Paulo, 19 de fevereiro de 2005
Realização Instituto Museu da Pessoa
Entrevista número: MA_HV109
Revisado por Fernanda Regina Ferreira

P1 - Bom, começar a entrevista, vou pedir pro senhor falar de novo o seu nome completo, o local e a data de nascimento.

R- Renaldo Perez, estou com 87 anos, nasci no dia 20 de maio de 1918 na cidade de Cuiabá, Mato Grosso.

P1- E o senhor estava nos falando que ficou vinte dias só em Cuiabá.

R- Eu saí logo após o meu nascimento. Meu pai tinha vendido um hotel que ele tinha, apesar dele ser marceneiro, ele tinha hotel cosmopolita e houve um tiroteio no hotel, político, e minha mãe, quando eu nasci... Eu nasci até preto, meio carbonizado, eu nasci antes da data. E logo em seguida, alguns meses depois, saímos de Cuiabá. Naquela época levavam-se muitos dias no transporte de... fluvial, era o único transporte que existia com o resto do Brasil, era via o Rio Paraguai que ia pra Corumbá. De Corumbá já pegava a estrada de ferro que vinha pra São Paulo para o resto do Brasil. O único meio de comunicação com Cuiabá nessa época, mesmo quem vinha de fora, era através de Buenos Aires, via Rio Paraguai, pra pegar no Rio da Prata, pegava o Rio Paraguai e subia pro Rio Cuiabá...

P1- Mas o senhor foi morar em Corumbá? Ou o senhor foi morar em outra cidade?

R- Fui morar pra Corumbá. Viemos pra Corumbá, ficamos radicados lá porque já tínhamos um tio que morava em Corumbá. E papai então ficou em Cuiabá, por algum período. Nove, oito anos, nós ficamos em Corumbá, depois nos mudamos para Campo Grande, que já tinha um irmão que era contador de uma grande empresa, que era a Vasques e Companhia, ele favoreceu a ida de meu pai, minha mãe e os filhos, éramos oito, ele já morando em Campo Grande.

P1- E me fala uma coisa seu Renaldo, o que o senhor lembra... O senhor lembra de alguma coisa de quando o senhor era criança lá em Corumbá, assim, que o senhor cresceu, como é que era?

R- Ah, em Corumbá, eu lembro bem de uma revolução. Entraram pela minha casa, pularam o muro, a tropa do exército se esquartelou dentro da minha casa, da casa que nós morávamos. Tinha uns buracos em que eles colocavam os fuzis, os mosquetões e era uma revolução que tava havendo no país e lá em Campo Grande, em Corumbá, houve esse movimento revolucionário. Isso foi mais ou menos em 1925, 24, por aí. Era um acontecimento enorme. Eu tinha um tio que morava em Corumbá, chamava-se Miguel Perez, ele era fotógrafo. E até a história desse meu tio é muito interessante, mas muito mesmo, porque ele fez parte da primeira coluna Prestes, era um portador do Prestes com a imprensa brasileira em Corumbá. Então, ele que levava os recados para repórteres, levava os que queriam fazer entrevista com o Prestes, era ele quem levava de barco até Guaíba, onde estava Prestes escondido. Prestes tinha dado a ele uma lanterna alemã que tinha as cores vermelha, verde, azul. E ele tinha um código com o Prestes e fazia sinalização se conviria ou não pro Prestes estar presente. Antes de chegar onde estava aquartelado os rebeldes, e o Prestes inclusive, ele fazia sinalização que o Prestes não devesse estar porque tinha pessoas duvidosas dentro do barco. Então, alguns repórteres eram frustrados da entrevista por causa da sinalização. Quando chegavam lá, não achavam o Prestes. “Ah, o Prestes, ele saiu”, achava o pessoal da tropa e “Eu acho que ele foi embora. Nós vamos ficar aqui mais um tempo e tal...” Mas o Prestes estava lá. Ele era a pessoa de confiança de Prestes, esse meu tio tem uma história tão fantástica, mas tão fantástica, que ele, certa ocasião, o pai do Franklin Delano Roosevelt, Theodoro Roosevelt, presidente dos Estados Unidos, foi fazer uma caçada em Mato Grosso. Ele era o fotógrafo da comitiva do Theodoro Roosevelt e ele tirava as fotografias da caçada, disso, daquilo... Até tem uma passagem que uma anta, o Theodoro Roosevelt atirou duas, três vezes, não acertou na anta e deu a espingarda para tio Miguel. E tio Miguel no primeiro tiro acerta e derruba. Então, até ele queria que tio Miguel fosse o atirador, né? (risos). Aí o tio Miguel não quis mais dar um tiro (risos), ele só cuidava da fotografia. Ele tinha guardado em Cuiabá, numa caixa, daquelas antigas, de cebola, as chapas fotográficas que eram de vidro, na ocasião as fotografias ficavam gravadas num vidro. Ele tinha da Coluna do Prestes, inteirinha a coleção, ele tinha da caçada do Franklin, do Theodoro Roosevelt guardada. Acontece que um rapaz chamado Gercy (?) Jacó, que era casado, ia casar-se com, casou-se com uma prima nossa, filha da tia Dolores, que era irmã de tio Miguel, a minha tia chamava-se Dolores, espanhola também, ele era Integralista, falou pra tia Dolores, que era sogra dele, que a polícia ia revistar a casa dela, se encontrassem alguma coisa do Prestes, ela seria presa. Aí ela pegou, chamou um moleque lá e mandou fazer um buraco atrás de umas bananeiras _____ na casa dela, e pegou todas aquelas chapas fotográficas, quebrou com machado e enterrou. Tudo, da Coluna Prestes, da caçada do Roosevelt, tudo. Quer dizer, seria uma preciosidade muito grande hoje pros Estados Unidos, pela história do presidente deles, a caçada em Mato Grosso, né, do Theodoro Roosevelt. Toda a história do Roosevelt em Mato Grosso.

Isso são fatos que a gente grava na memória e lembra-se muito bem. Outra passagem também foi a ida de uma avião de Pinedo à Cuiabá, o hidroavião pela primeira vez, tal. E depois teve outra que era do, foi um Estulcarte(?), que ele tinha um avião pequeno, fez a travessia do Atlântico, ia pra Corumbá... No caminho deu pane. Ele pegou o avião e aterrissou e acoplou em cima de uma árvore muito grande, frondosa, largou o avião ali, porque o avião tava já em pane. Aí ele ficou. Aí ele olhou, olhou, como a rota dele era via a linha telegráfica feita por Marechal Rondon, ele seguia a rota pela linha telegráfica, ele ficou. Ele foi lá e cortou os fios telegráficos, cortou, e ficou no avião. Depois de dois dias, ele não descia por causa de onça, bichos que passavam ali perto dele, né, mas ele falou: “Eles devem chegar aqui pra consertar e me acham” (risos).

P1- Uma hora eles consertam...

R- É. (risos) Foi isso, com certeza.

P1- Que era famoso por ter feito essa travessia...

R-... Vieram pra consertar, aí acharam ele. Era o que ele queria, né? (risos). Aí levaram ele, e consertaram o fio. Quando estavam procurando, ele acenou, ele não saía de dentro do avião. Ele ficava na árvore, descia para beber uma água, essa coisa toda, e voltava pra lá. Dormia lá em cima, na... E são fatos que a gente lembra da...

P1- E como era a cidade de Corumbá, assim, quando você...

R- A cidade de Corumbá nessa ocasião era uma cidade até importante no Estado, porque era o meio de comunicação com Buenos Aires – Corumbá, Corumbá – Mato Grosso, pro resto das cidades do Estado de Mato Grosso. Era a cidade intermediária na comercialização de todos os negócios do Estado. Não havia comunicação muito direta com Corumbá, com Campo Grande. Era mais via Prata. Quando se construiu a estrada de ferro, aí se liberou a necessidade de Campo Grande, de Corumbá, ficar na dependência de Buenos Aires. E assim era aquela vida de Mato Grosso, foi uma cidade importante, Campo Grande na época, já tinha o Urucum, produtora do ferro-gusa, mas mesmo assim não era uma cidade com uma pujança de negócios, não. Era...

P1- E o pai do senhor tinha marcenaria?

R- Tinha marcenaria. A marcenaria não foi lá essas coisas pro meu pai. E atravessamos certas dificuldades, tanto que os filhos trabalhavam. Quando eu cheguei a Campo Grande eu tava com oito anos de idade, foi que eu nasci em 18... Em 26, eu tinha oito anos. Eu cheguei a Campo Grande, né? Fui para o colégio, grupo escolar, aquela coisa toda, e já me alfabetizei, já desde Corumbá meus pais me puseram lá com professora pra... Primário, né, o pré-primário, vamos dizer. Em Campo Grande eu já fiz no colégio aqui em Murtinho a série toda do primário até a admissão. Mas aí eu trabalhava já. Antes de eu começar a trabalhar de fibra de vidro(?), naquela época não existia Carteira de Trabalho, 1930, não existia. A gente trabalhava, eu trabalhava numa farmácia antes de ir pro Jayme Torres, em 30, fui pro Jayme Torres em 32. Antes de eu começar com o Jayme Torres eu trabalhava numa farmácia, Santo Antônio, mas não tinha registro, não tinha nada. Depois é que eu fui entrar na Drogaria Royal, que era do Jayme Torres, eu já tinha 11 anos, com dez anos eu já tava no Jayme Torres trabalhando com ele na Drogaria Royal. Era gerente até o Manoel Leite, um português muito agradável, tudo mais, né? Aí eu fiquei trabalhando até que foi o seu Pimenta, que era o gerente que o Jayme Torres mandou pra Campo Grande, né? Essa drogaria chamava-se Drogaria Royal, ela era do Doutor Vespasiano Martins, que foi senador da República, foi prefeito muitas vezes em Campo Grande, foi governador do Estado, foi líder em campanhas, da separação do Estado, junto com o meu sogro, Doutor Arlindo de Andrade, que foi quem trabalhou muito pela vida de Campo Grande e de Mato Grosso. Ele foi um dos percursores da separação do Estado. Naquela época ele queria dividir o Estado no Estado do Norte e o Estado do Sul. O Sul...

P1- Por quê?

R- Porque ele morou em Cuiabá como Procurador Geral da República, nomeado por Epitácio Pessoa. Aí ele se aborreceu muito, transferiu-se para Campo Grande, pra Nioaque, que era sede da circunscrição da área quase que do sul de Mato Grosso. E ele não gostava muito de Cuiabá por várias circunstâncias, política, isso, aquilo, ele queria fazer a separação, porque Campo Grande, ele notou que seria uma cidade muito importante, como uma ponta de lança do sul de Mato Grosso contra a Argentina, você calcula, ele tinha um pavor pela Argentina, tinha ódio, porque ele passava por... Quando ele veio de Pernambuco passou por Buenos Aires e lá chamavam os brasileiros de macaquitos e ele se revoltou com aquilo, ficou na mente dele aquela revolta contra a Argentina, de chamar o brasileiro de macaquito. Então ele trabalhou muito na política.

Ele foi o primeiro Juiz de Direito da cidade de Campo Grande, depois ele foi prefeito da cidade de Campo Grande e fez o traçado que hoje existe em Campo Grande, fez com um major do exército chamado Temístocles não sei o que mais.

P1- O traçado da cidade?

R- O traçado da cidade que é hoje. Ele fez um Código de Postura a Prefeitura Municipal de Campo Grande que foi feita, predominava até há pouco tempo esse código de postura, que algumas modificações de trânsito, principalmente, porque era, que o automóvel só poderia andar na velocidade do passo do homem na cidade, porque soltava fagulhas, o carro. (risos) Então ele...

P1- Era adequar a modernidade...

R- ... Da época. Então ele era um sujeito muito inteligente, brilhante.

P1- Agora, o fato de se criar dois Estados, né, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, que poderia amenizar ou ajudar nessa questão da fronteira?

R- É que achava que Campo Grande estava produzindo pra sustentar o Estado do norte, então queria a emancipação, fazer o Norte e o Sul, cujo traçado ele deu para o general José Pessoa de Cavalcanti, que foi comandante da região militar provando da necessidade da divisão do Estado.

P1- Isso que época ele pensava nisso, seu Renaldo? Mais ou menos pra gente estar localizando.

R- Porque a primeira vez ele foi pro Rio com o Epitácio Pessoa pedir a transferência dos quartéis de Corumbá, que era a sede militar do sul de Mato Grosso, pra Campo Grande, provando que Campo Grande, ele como prefeito doava as terras todas ali para o exército fazer a vila militar, pra fazer tudo. Ele via com isso a criação de uma ponta de lança contra a Argentina. O exército ali, aquartelado, achava que a qualquer momento a Argentina podia invadir o Brasil, mas seria através de Mato Grosso. Então, pra evitar, construía-se uma ponta de lança contra a Argentina. Era o pensamento dele naquela época, a rivalidade era tremenda... Havia uma tensão muito grande, né? E ele, como um bom pernambucano que era, era um inimigo fidagal da Argentina.

P1- E não tinha, assim, a questão da fronteira com o Paraguai? Que o Paraguai também é próximo...

R- Não, não se incomodavam mais com o Paraguai, porque o Paraguai estava totalmente aniquilado. Antes de tudo, ele era potência da América do Sul, o Paraguai. Com a guerra do Brasil, que era primeiro com a tríplice aliança que se formou: Argentina, Uruguai e Brasil. No fim ficou só o Brasil sozinho. E essa guerra do Brasil e Paraguai levou-se quatro anos por uma questão que a gente fica sabendo a posteriori. Solano Lopes era chefe da maçonaria do Paraguai, o Paraguai era o grande país da América do Sul. Duque de Caxias era o chefe da maçonaria brasileira. Por uma questão de irmandade que se chama, eu já fui maçom, não poderia guerrear irmão com outro. Então a guerra foi muito monótona por terra e sim mais pela naval, que havia os encontros dos navios com o Almirante Barroso, tal, que desenvolvia. Era mais a guerra via fluvial. Até que a Princesa Isabel casou com o Duque d´Eu e ele assumiu o comando. Assumiu e em questão de meses liquidou-se tudo. O Chico, aquele mineiro, foi trazer a orelha do Lopes, que ele tinha prometido em Minas Gerais, de cortar a orelha do Solano Lopes (risos) como prova da participação dele. E cortou! Foi ele quem matou o Solano Lopes.

P1- É mesmo?

R- É. Isso é da história mesmo.

P1- E dessa história tem a participação dos índios também, né, seu Renaldo?

R- Índios... Eles participaram muito pouco nisso, né? Não tinha grande influência...

P1- Mas os índios ali do Mato Grosso do Sul, principalmente, eles são famosos porque são os únicos índios que montavam cavalo no Brasil.

R- Os índios?

R- É, os kadiwéu.

R- Bom, sempre predominou muito a colônia indígena, mas era preservado isso. Mesmo com o advento do Marechal Rondon, que era o protetor, havia muito respeito ao índio naquela época do que há hoje. E nem os índios eram tão sabidos como são hoje, né? Eram mais pacatos, viviam nas suas aldeias, aquela coisa toda. Hoje o índio tá fazendo até sindicato (risos).

P1- E seu Renaldo, conta, assim, pra gente... Eu ouvi falar muito do Marechal Rondon. Qual é a importância do Marechal Rondon pro Mato Grosso do Sul e Mato Grosso?

R- Foi muito importante. Não só pro Mato Grosso como para o Brasil, porque ele foi o construtor das linhas telegráficas, que, na época, o meio de comunicação era o telegrafo. Não existiam outros meios de comunicação. Você calcula que Cuiabá era uma capital totalmente isolada, só por comunicação via naval, via Corumbá. O rio Corumbá, o Paraguai, Atlântico, pra comunicar com o Nordeste brasileiro. Quem vinha de Pernambuco, da Bahia, tudo, tinha que vir via Buenos Aires pra ir a Cuiabá. Não tinha comunicação aérea, não tinha terrestre, não tinha ferroviária, não existiam essas vias de comunicações tão necessárias. Isso veio com o tempo, né, com o desenvolver do país. Mas indiscutivelmente, eu acho que nós, brasileiros, somos uma raça bem superior a todas as demais, viu? Apesar de não termos uma raça, sermos apenas uma meta-raça, que da raça brasileira só vai surgir daqui milênios né, porque há uma miscigenação muito grande da história da formação brasileira. A mistura de espanhol, alemão, árabe, japonês, enfim... Poloneses, de todos os tipos de raça fizeram, tão fazendo essa miscigenação, que é a raça brasileira, né?

P1- E seu Renaldo, por falar nisso, eu quero que o senhor fale o nome do pai e da mãe do senhor, né, e eles são de origem espanhola...

R- São de origem espanhola.

P1- Como que eles chamam?

R- Meu pai era Rafael Perez, ele nasceu em Granada, minha mãe nasceu em Honda, pertencia a Granada mais ou menos na época, próximo à Granada. Eles tiveram lá dois filhos espanhóis que moraram no Brasil, ficaram brasileiros, era o Rafael Perez Filho e a minha irmã Soledad, a quem eu tenho e nutro até hoje uma admiração muito grande, porque ela foi uma segunda mãe pra mim na vida, a Soledad. Foi uma dessas criaturas fora do comum como mulher. Ajudou, junto com o marido dela, ajudou a formar os filhos e os filhos estão muito bem hoje, todos eles, tem um até que é bem afortunado, né, fazendeiro, três fazendas em Mato Grosso, muito bem de vida. Tem outro... Aí esses dois eram espanhóis. Na Argentina ela teve quatro filhos. Papai veio pra Argentina, saiu da Espanha, veio pra Argentina.

P1- Por que eles saíram da Espanha?

R- As dificuldades de ganho pra sustentação de família, ele veio para a Argentina. Ficou em Buenos Aires, que já tinha um irmão da minha mãe, que chamava-se Gerônimo, morava em Buenos Aires, na cidade de Pergamino, próximo a Buenos Aires. E ele ficou e tiveram primeiro um casal de gêmeos, morreram. Aí teve um filho chamado Rodolfo, o outro chamado Eduardo, que depois vieram pro Brasil, mas vieram crianças, meninos de criança. E vieram pra Cuiabá. Papai pra vir de Corumbá a Cuiabá rio acima, que é contra a correnteza ali, que se chamava rio acima, levou 40 dias. Minha mãe dizia, até uma das expressões da mamãe, que disse pra ele: “Aonde me levas, Rafael?” Ela saiu da Espanha, veio pra Argentina, tudo bem, pega um navio desse pra vir pra Cuiabá.

P1- E leva 40 dias...

R- Levou 40 dias. Tinha semanas que ela passava no mesmo local, ela via a árvore florida que achou bonita, uma semana depois ela tava passando perto dela outra vez, pela sinuosidade do rio. Era tão sinuoso o rio Cuiabá que levava o navio rio acima, levou 40 dias de Corumbá a Cuiabá. Na volta levava 20 dias.

P1- E seu Renaldo, me fala uma coisa, que o senhor acha, assim, que marcou na família de vocês, na sua infância, essa origem espanhola, nas comidas, nos gestos, o que o senhor acha que tem de marcante?

R- Tudo aqui no Brasil é pouco diferente para os meus pais, era totalmente diferente. A alimentação, tudo, eles tiveram que se acomodar com a vida que levavam aqui, né? Que é isso que você me perguntou, da adaptação, da alimentação...

P1- Isso...
R- ... Essa coisa toda, né? Eles levavam essa vida como todos no mundo e todos os fatos na vida dependem de acomodação, nada mais do que... Você ir pra outro país e se acomodar ao modo de vida daquele país, você não pode modificar, você pode ajudar e colaborar em algumas melhorias de alimentação, essa coisa toda que o povo não tava acostumado àquilo e o estrangeiro traz um certo conhecimento de outras alimentações e tudo mais, né?

P1- Tinha algum prato típico da Espanha que a mãe do senhor costumava fazer? Que o senhor gostava?

R- Tinha. Nós tínhamos dificuldade financeira, então temos que levar tudo em conta, a vida financeira de cada família. Mamãe fazia muito era o puchero.

P1- Que é o puchero? Explica pra gente.

R- O puchero, eu faço até hoje também, só que hoje eu faço mais sofisticado, já põe costelas de porco, põe paio, põe alguma alimentação diferente do que é o puchero espanhol, que era mais ou menos um cozido. Mas era o que mais se comia em casa. E a sopa, predominava a sopa, porque era alimentação básica da família. Havia aquele respeito, que hoje não existe mais nada, na mesa quando servia a comida, o filho que não comesse, não quisesse por qualquer razão, ficava o prato dele guardado pro jantar, ele era obrigado a comer no jantar. Ora, nessa época não existia refrigerador, não existia nada. Então tinha que comer aquela comida, esquentava, se tivesse que esquentar. A mãe às vezes sofria, né, de ver o filho, mas a circunstância que o papai tinha não permitia muitos gastos.

P1- Era fogão a lenha?

R- Fogão a lenha. Gás nem pensar... (riso). Nem pensar. Era mais braseiros e fogão a lenha. Nem filtro ainda tinha (riso).

P1- De água?

R- É.
P1- Pegava água onde?

R- Começou nessa época a aparecer os filtros, que eram filtros grandes, de pedra, colocava e tinha água o dia inteiro, água filtrada, né? Isso já foi em 30, 32, por aí, que apareceram os bons filtros e tudo mais, né? Até então não existia.

P1- E, assim, na parte de costumes religiosos, assim, a mãe do senhor era...

R- Mamãe era católica fervorosa. Mamãe era uma criatura que não deixava de ter... Ela tinha um oratório muito bonito, ela hoje está com a minha sobrinha Estelita, casada com José Ribamar. Esse oratório foi feito pelo meu avô e deu pra minha mãe, era marceneiro, ele fez o oratório muito bonito, bem esculpido, bonito oratório mesmo, digno de...

P1- Ela trouxe da Espanha?

R- Trouxe da Espanha. E deu pra filha dela, que é a Soledad, a Soledad já deu pra filha dela, que era a Estelita, né? E era um oratório muito bonito.

P1- Qual era o santo que ficava no oratório, que ela era devota?

R- Era Santa Maria. Isso era protetora dela, ela tinha uma devoção muito grande, rezava todas as noites pedindo sempre uma melhoria de vida, essa coisa toda, né? Éramos bem pobres, bem pobres, então todos os filhos trabalhavam cada um numa atividade. Eu, por exemplo, quando recebi o ordenado, o primeiro ordenado era 20 mil réis naquela época. Vinte mil réis não representa, é 0,0 de um centavo hoje (riso). Naquela época eu recebia 20 mil réis, levava pra minha mãe inteirinho o ordenado, porque naquela época ainda não existia as leis do trabalho não tinha sido implantado, só foi implantado em 30, alguns meses após a posse do Getúlio Vargas, né? Que o Getúlio Vargas fez a grande transformação social no país, foi Getúlio Vargas. Foi o maior presidente que o Brasil teve naquela época. Que o Brasil, pra mim, teve presidente Getúlio Vargas que modificou muito o país, basta citar o voto secreto, não existia. Eu ainda conhecia eleição que era de porta fechada. E na época o patrão levava os empregados pra votar. Na presença deles, tinha que declarar o voto, o voto era declarado, era assim que se procedia as eleições. Eu assisti eleições feitas ainda assim. Aí veio o Getúlio Vargas, criou o voto secreto, isso já foi uma revolução na época, porque se precisava ver a época que era contra todos os bilionários que mandavam no país, era a classe, a elite que mandava no país. E empregado era empregado, se era empregado, você não tinha direito a coisa nenhuma, nada. Tinha direito de uma hora para almoçar, ou meia hora, conforme a empresa, dava meia hora e acabou, não tinha feriado, não tinha sábado, não tinha domingo, não tinha férias, não existia nada, né, não existia nada, o empregado era um escravo. E isso era no Brasil inteiro. Quando Getúlio Vargas fez, por isso que eu considero um dos grandes, o melhor presidente na época foi ele. Segundo presidente foi o Juscelino Kubitschek. Juscelino Kubitschek pra mim foi um dos homens mais extraordinários. Ele, primeiro, ele construiu a Belém-Brasília, tem sua razão de ser... Depois eu conto pra você. Construiu a Régis Bittencourt, trouxe a indústria automobilística pra São Paulo, criou as hidrelétricas lá de Três Marias e outras localidades aí que eu não estou lembrando, me falta na memória agora. Criou uma infinidade de coisas no país, muito básicas para o crescimento. Mas ele criou Brasília. Tudo isso, pra mim, foi tão insignificante, você calcula, todas essas grandiosidades foram insignificantes para a mudança da nossa mentalidade. Nós éramos um povo que não acreditávamos em nós mesmos. O brasileiro nunca acreditou nele mesmo. Foi Juscelino que mudou essa mentalidade. Com a construção de Brasília, mostrou que a engenharia brasileira é superior ou igual à dos melhores países do mundo. Hoje é um orgulho pra nós mostrarmos uma Brasília, toda a engenharia do mundo inteiro vem conhecer Brasília. Isso provou que o brasileiro é capaz de tudo, o brasileiro é mais inteligente, o brasileiro é mais capaz, o brasileiro é uma, essa miscigenação de raça que forma o Brasil, essa engenharia brasileira, esses rapazes com brilhantes, ele pegou esses rapazes daí da Politécnica, daqui de São Paulo, e levou pra Brasília. Transformou o mundo, mostrou que o homem é capaz, quem é o homem, o brasileiro, é capaz de transformar o mundo se for preciso. Qualquer presidente poderia ter feito e não fizeram coisa nenhuma, mas é política, mas é tudo... Segundo, o terceiro presidente, pra mim, foi o Fernando Henrique. Levou uma prova ao mundo que o brasileiro é culto, que o brasileiro não é um analfabeto, que o brasileiro não é o índio, que o brasileiro não é um qualquer, que é uma raça capaz de mostrar ao mundo a inteligência de um povo. E o Fernando Henrique, pra mim, fez. A despeito de coisas que ele poderia ter feito muito mais, ele deixou de fazer por questões políticas, e, infelizmente, a nossa política é que prejudica o desenvolvimento do Brasil. Até o Lula, coitado, nessa... Nesse trabalho que ele tá fazendo, ele é bem intencionado, muito bem intencionado, mas ele é cercado por um grupo que nem, que nem o grupo se entende, criam problemas para eles, o próprio grupo que o elegeu, o povo também elegeu ele porque o povo brasileiro, ele é... Quando votou no Lula foi um voto de revolta, por uma melhoria, por uma esperança, por uma promessa que ele fez, tantas promessas bonitas, sociais para o país, tantas coisas bonitas, todo mundo... Então era o voto contra o governo anterior, não a favor dele, porque o brasileiro não vota em alguém, o brasileiro vota contra alguém, pode prestar atenção. Porque o brasileiro vota, se tem um candidato a favor do Maluf e outro contra o Maluf, ele não queria nem saber quem era contra o Maluf e ia nele por ser contra...

(pausa – troca de fita)

P1- Bom, então retomando a nossa entrevista, seu Renaldo, eu queria que o senhor falasse, assim, como que o senhor arrumou o primeiro, na primeira farmácia, o primeiro emprego como lavador de vidros. Como que o senhor arrumou esse emprego?

R- Na época, eu primeiro trabalhava numa farmácia chamada Farmácia Santo Antônio e ia muito nessa drogaria, que era do Sá Carvalho. Aí, uma ocasião a Farmácia Santo Antônio estava pra encerrar suas atividades e o gerente da Drogaria Royal, que era seu Manoel Leite, disse: “Oh, menino, você não quer trabalhar aqui comigo?”

“Venho sim. Quanto o senhor me paga?” “20 mil réis por mês.” “Aceito.” Então eu aceitei o emprego por 20 mil réis por mês.

P1- E aí o senhor era lavador de vidros?

R- Era pra lavar vidro e lavar a drogaria cedo.

P1- Mas o que fazia o lavador de vidros, assim? Que vidros eram esses?
R- Eram, porque naquela época a farmácia tinha um movimento muito grande de manipulação, então se usava muito os vidros que vinham da Vidraria Santa Marina daqui de São Paulo e ia pra Campo Grande. Mas lá tinha que lavar os vidros antes de colocar os produtos manipulados. Então tinha um farmacêutico responsável, que foi meu cunhado, era Cristóvão Scapulatempo, um grande farmacêutico, com muita vivência de farmácia, né? E trabalhava na farmácia com ele ali e ia aprendendo. Quer dizer, fora essas obrigações, ele me mandava fazer determinados serviços no laboratório.

P1- De manipulação?

R- De manipulação. Então, às vezes era pra fazer, naquela época, supositórios, que se usava demais. Então tinha que fazer, pôr gelo em cima da maquininha, fazer a massa e colocar ali e fazer os supositórios, embrulhar com um papelzinho de alumínio, que era um, vinha de São Paulo uns papéis próprios de embrulharmos os supositórios. Tinha que fazer óvulos vaginais, então ele me chamava pra derreter aquela tigenol com a gelatina, outra, os produtos que faziam parte da fabricação dos óvulos vaginais, que se usava muito pra assepsia e curativos vaginais. E tinha que fazer, passava a fazer limonada purgativa, que se vendia em quantidade.

P1- É mesmo?

R- Era. Nós vendíamos pelo menos vinte garrafinhas por dia de limonada purgativa. E tinha a limonada belford, que era um envelopinho com bicarbonato, que era pra pessoa associar, na hora de ingerir, punha na limonada, fazia aquela efervescência, né, pelo encontro do bicarbonato com o ácido cítrico que fazia parte da solução, sulfato de magnésia. Então formava-se a limonada purgativa em dias em quantidade. Aí foi indo aos poucos, ele achava, falou com a gerência que achava que eu precisava ficar mais no laboratório do que na questão de limpeza. Mas nessa questão de limpeza, eu tive uma briga com um companheiro lá, Álvaro Mendes, lembro tão bem, e tivemos uma briga. Até hoje tenho aqui o sinal da faca, ele pegou uma espátula grande do laboratório pra bater na cabeça e eu defendi, cortei toda a mão aqui, tenho cicatriz até hoje. Ele chamou o Machadinho, acalmou-se a briga, que eu dei um murro na cara do rapaz, o rapaz bate de quina da prateleira e ficou meio tonto. Eu fiquei até com medo, né? Aí veio, acudiram, aquela coisa toda, eu ia ensanguentado. Quando o gerente chegou, já era outro gerente, já era o seu Carlos Pimenta, e o seu Pimenta gostava muito de mim, tudo mais, tinha uma admiração muito especial por mim. E o Machadinho chamou e diz: “Olha o que o Perez fez na cara do Álvaro”. O olho ficou tapado, um olho ficou tapado, o outro ficou arroxeado e ficou, passou o roxo pro outro lado, porque eu dei um murro na cara dele por causa da facada que ele me deu,

ele tinha me dado a facada. Aí ele manda chamar meu pai, chamou e fez: “Dom Rafael”, era o nome que tratavam o papai...

P1- Dom Rafael?

R- Dom Rafael. Papai tinha, todo mundo, a classe ali com quem ele convivia era Dom Rafael. Gostavam muito do meu pai, todo mundo. Ele era um marceneiro de primeira grandeza. Aí... “Olha o que o seu filho fez na cara do Álvaro”, mostrou o Álvaro e tava com a cara. “Agora olha a mão dele como tava”, tava enfaixada, com atadura e tudo mais, aí mandou chamar meu pai. Aí chamou meu pai e... “Dom Rafael.” “Sim senhor, que há?” “Eu chamei o senhor porque o seu filho, eu quero que o senhor dê uma surra no seu filho pra ele ficar seis dias em salmoura” (risos). “Senhor Pimenta, é a primeira vez que eu ouço um absurdo dessa natureza de me mandar bater no meu filho. Meu filho, saia daí, ele não volta mais aí.” E me tirou da drogaria, tirou da drogaria. Eu fui lá para Farmácia Central, que era o doutor Fernando Corrêa da Costa, pra ele ver o corte. Disse: “Gi, vem cá meu filho, deixa eu dar seis pontos aí e tá bom”, e pegou e fez uma costura aqui. Ele disse: “Você tá trabalhando aonde?”, “Eu estava trabalhando, doutor Fernando, na Drogaria Royal”. Chamou o Aloísio, que era o farmacêutico da farmácia dele e disse: “Aloísio, você não está precisando de um rapaz aí? De um auxiliar de limpeza? Olha aqui tem esse menino aí. Fica trabalhando aqui”. Eu passei a ganhar o dobro que eu ganhava na drogaria de cara, deram 120 réis, eu já estava ganhando 60 na drogaria, depois dos 20 eles aumentaram ligeiro pra eu não sair. Aí me deram o dobro, fiquei. Eu ia para drogaria comprar remédio, seu Pimenta que atendia, pra farmácia lá, eu ia de bicicleta, voltava e levava os remédios, aí o seu Pimenta dizia: “Você não quer voltar pra cá?” Falei: “Não posso. Meu pai não deixa”. “Vamos fazer um acordo, que horas que você sai da farmácia?” “Eu saio oito horas.”

“Então das oito às dez você quer trabalhar aqui? Eu pago o mesmo ordenado que você ganhava aqui”.

Trabalhar das oito às dez da noite. Falei: “Feito, topo”. Então eu ia escondido do meu pai trabalhar na drogaria e ganhava mais 20 réis, falava pra minha mãe: “Estou ganhando mais dinheiro, mãe”. Aí eu levava pra ela, que com o dinheiro que eu levava dava pra fazer muitas compras. A minha compra era todo dia de madrugada sair no açougue, comprar um pedaço de carne e tutano serrado, que era pra fazer sopa. Comprava o pão, o leite e levava pra casa e ia trabalhar. Saía pra trabalhar às seis horas, acordava às cinco horas da manhã, pra fazer compras e tudo mais. Quando eu passei a trabalhar, mamãe ajeitou outro pra trazer o leite em casa e pegar o pão, essa coisa, e então ia treinar basquete (risos) das cinco da manhã até seis horas, tomava um banho e ia pro trabalho, seis horas estava entrando no trabalho. Quando veio a lei do Getúlio Vargas, aí a coisa mudou, tinha mais horário, já entrava às sete horas da manhã até às onze horas, aí voltava para o almoço, tinha duas horas para almoçar, tinha hora pra sair, hora pra voltar, a coisa modificou com a lei do Getúlio Vargas, a minha vida normalizou-se um pouco mais nessa questão. Aí com o tempo fui ajeitando, a drogaria consentiu que eu fizesse um... Estudasse das duas da tarde às quatro horas, fazia um curso de comércio, Carlos de Carvalho, era o professor Enzo Ciantelli, que morreu, morou em Rio Claro, era professor Severino Queirós. Eu tinha essas duas horas eu tinha aula do curso, era um curso comercial Carlos Carvalho, um curso já mais aprimorado, já era de nível ginasial, muito bom. E com isso fui, com a escola da vida é a maior escola que a gente tem é a escola da vida, né, que a gente vai adquirindo mais conhecimento, essa coisa toda, é a escola da vida. Mas, indiscutivelmente, não se pode viver sem um estudo e acho que todo mundo deve obrigar seus filhos a estudarem pra terem sempre uma vida melhor, com mais escolaridade, essa coisa toda.

P1- E como era, seu Renaldo, conciliar trabalho, estudo e, assim, um pouquinho de lazer, estar com os amigos, sair para passear, você fazia isso?

R- Era muito difícil isso. Nos domingos estava de folga, porque já existia a lei do trabalho, já tinha o domingo folgado. O sábado ainda trabalhava normalmente, naquela época ainda não se respeitava muito a semana inglesa, nem todas as empresas procediam a semana inglesa, não era obrigatório. Então se pagava o extraordinário, tinha muito essa questão de pagar extraordinário pra ficar mais. Com isso você ganhava um pouquinho mais. Naquela época, pra ajudar meus pais, tudo que entrasse a mais era um lucro pra minha mãe, né? Então aí eu já dava o dinheiro, já sobrava dinheiro pra cinema. Eu pra cinema era um (riso), era uma comicidade. Eu pegava telegramas da drogaria, né, ia ao cinema, falei: “Tenho um telegrama pra entregar pro senhor Pimenta, que é o gerente e está aí dentro”. “Ah, então entra lá.” Entrava e ficava lá com o telegrama na mão, né, não era telegrama, não era...

P1- Nem o seu Pimenta estava no cinema?

R- Nem, nem estava no cinema. (risos) E assim a gente ia se divertindo, né? Eu aplicava muitas injeções, né? Eu tinha um movimento de injeção na hora do almoço, que eu saia de bicicleta aplicando injeções e ganhava um bom dinheirinho. Eu aplicava muito bem injeções na veia, musculares, essa coisa toda. As injeções normais, era tudo muito bom. Com isso sempre entrava um pouquinho mais de dinheiro, né? Fui levando assim, fui sendo promovido, aí deixei o laboratório de manipulação, passei a ser balconista, de balconista passei a chefe de balcão, aí fui pra sub-gerente da drogaria, já era mais crescido e tinha um desenvolvimento, eu tinha uma força de vontade pra trabalhar tremenda, né, eu me esforçava muito. E tudo que eu fazia era muito bem feito. No laboratório, à noite, eu fazia, assim, vamos dizer, 200 cápsulas antigripais que era pra vender no dia seguinte. Todas as noites eu tinha que fazer 200, 250... Se acabava mais cedo a venda das cápsulas antigripais, eu tinha que fazer maior quantidade pro dia seguinte. A limonada purgativa, a água laxativa vienense, que se usava muito nessa época, né, se usava muito era a água laxativa vienense, que era a base de sene, sena maná e preparava a água laxativa e, mesmo depois de ser chefe de balcão, esse serviço extraordinário. Mas voltando àquele assunto da farmácia, trabalhar à noite, um ano depois, seu Pimenta, o gerente trouxe presente pra mim em São Paulo, levou de São Paulo pra mim, cortes de casimira, cortes de linho, cortes de não sei o que, gravatas, que era presente do Jayme Torres para mim pra que eu voltasse a trabalhar com ele.

P1- Na Drogaria Royal?
R- Na Drogaria Royal. Ainda largasse da farmácia e trabalhar o período integral na drogaria. Aí eu vim pra drogaria outra vez já ganhando o dobro que eu ganhava na Farmácia Central.

P1- E Renaldo, o senhor conhecia o seu Jayme Torres?

R- Não, não conhecia, não conhecia o seu Jayme. Mas o seu Jayme pra mim é um homem fora de concurso, um hour concours. Foi um dos grandes brasileiros em que eu aprendi muito a viver e cultivar o comportamento desse homem, seu Jayme. Eu não conhecia, ele foi lá uma ocasião e me viu, mas eu era, eu tava de calça curta quando ele foi lá, mas nem me comunicava, nem nada, ele me viu lá, essa coisa. Mas quando ele ia a Campo Grande ele vinha conversar comigo. E fui repreendido por ele várias vezes pelo meu comportamento gerencial, porque ele era amigo da farmácia, amigo dos farmacêuticos, ele era uma criatura dessas que, quem era do lado, ele era formado em farmácia, ele tinha farmácia, tinha drogaria e tudo mais. E tinha...

P1- Aqui em São Paulo?

R- Em São Paulo, que é outra história. Ele tinha em Campo Grande, ele tinha essa Drogaria Royal e eu não vendia a crédito pra determinado farmacêutico porque ele não pagava o que tava devendo. Esse farmacêutico ia quando eu estava lá, ele naturalmente escrevia para seu Jayme em São Paulo sabendo quando ele ia voltar, né, ele dizia: “Ah, vou em tal data, vou lá”, aí ele vinha. Chegava lá o seu Zeno Resstel, lembro tão bem disso, até foi um homem, um farmacêutico, muito bom. Foi pai de um general que serviu na revolução aqui, Resstel. Ele foi, chegou lá, me cumprimentou: “Como vai, Perez?”, “Bem, o senhor como vai, seu Zeno? Veio pra pagar a conta, seu Zeno?”, “Não, vim pra conversar com o Jayme”, “Ah, tá bom, deixa eu avisar o seu Jayme”. Eu tinha muita obediência à disciplina, essa coisa toda. Falar com o Jayme Torres era o máximo, né? “Seu Jayme, está aí o seu Zeno Resstel, quer conversar com o senhor. Posso autorizar ele a entrar?” Ele disse: “Manda ele entrar aqui, manda já já. Aliás, pera aí, eu vou lá recebê-lo”. Aí eu falei... “Importante o homem...” Foi lá, conversou, conversou com o seu Jayme uma meia hora, ele me chamou: “Perez, vê o que seu Zelo Resstel precisar de medicamentos, pode fornecer”. Aí eu falei: “Seu Jayme, o homem tá devendo aqui. Nós não podemos, o senhor mesmo há de compreender que não devemos vender pra quem não quer pagar”. Ele disse: “Não, ele vai pagar. Não sei o dia que vai pagar, mas atenda do que ele precisar, não importa o valor”. Eu falei: “Seu Zeno, seu Jayme autorizou o senhor a fazer as compras”. Você vê, ele me deu a lista... Ah! A lista era, vamos ver, eram dois mil cruzeiros, cruzados, ou qualquer a moeda. E era mercadoria toda vida, era Biotônico Fontoura, Elixir Nogueira, era de todos os produtos que mais se vendia, pílulas da vida Doutor Ross, aquela coisa, e... Entreguei. Aí encaixotei, até levei com caminhão lá, levei. Aí o seu Jayme me chamou no outro dia, disse: “Seu Perez, precisa ter mais consideração com o farmacêutico. Eu sou farmacêutico, a nossa classe é uma classe sacrificada demais, o farmacêutico é muito sacrificado e mal remunerado. Essa é uma das razões de eu estar montando um laboratório”, e aí ele criou um laboratório Torres, que é uma história, tem até a história todas do laboratório, “Ele não pode ser maltratado”. “Não, mas eu achava que eu tava procedendo certo e ainda acho que o senhor está errado.” “Eu?” “É.” “Pois é, mas eu autorizei.” Falei: “Autorizou e eu atendi, o senhor é quem manda, né, o senhor é o dono”. Aí pegou. Isso é uma prova do Jayme Torres em relação aos seus colegas de farmácia, foi o homem mais extraordinário. Seu eu contar aqui eu levo dois contando a história de Jayme Torres, o maior homem da história pra mim. Aí seu Jayme, mandou o presente pra mim, mandou o presente, eu voltei. Mas antes disso teve uma passagem na minha vida com Jayme Torres que eu fiquei muito grato a ele, por isso que eu criei certa e até certa idolatria por esse homem. Meu pai tava doente, muito mal em Campo Grande e veio pra São Paulo com meus irmãos, a Soledad e o Rafael. Trouxeram aqui pra Campinas e eu mandei um bilhete mal escrito pro seu Jayme Torres, dizendo que me pai tinha ido pra Campinas e tal, se ele pudesse fazer o favor de dar uma orientação caso precisasse meus irmãos, a Soledad e o Rafael, que estariam indo pra Campinas, pro Instituto, era, não era... Do professor Bernardes de Oliveira. Ele foi à Cmpinas, esse homem, era cunhado do Bernardes, professor Bernardes, ia todos os dias visitar meu pai. Ia de São Paulo a Campinas visitar meu pai pra ver o que precisava. Aí mandou dizer pra mim depois que, por intermédio da drogaria, que papai tava com câncer, tava confirmado o diagnóstico, câncer no pulmão, e que a vida dele era por pouco tempo. Eu fiquei tão grato a esse homem, pela gentileza, pela bondade dele, o interesse, eu era apenas um empregado, e ter esse amparo que tive com meus irmãos aqui, né? Infelizmente papai morreu e tudo mais, mas me criou uma obrigatoriedade de trabalhar pra esse homem enquanto ele tivesse essa drogaria. Aí ele vai vender a drogaria num gesto desses que é difícil você encontrar homens como ele. Porque ele, tendo uma fábrica de produtos farmacêuticos aqui em São Paulo, que começou com o Tarvan, Nuran, Colecinol, Fungol, fosse competir com as outras farmácias de Campo Grande, ele tendo uma drogaria e competindo com quem compraria dele. A Drogasil vai pra Campo Grande, Raia vai pra Campo Grande, Neofarma vai pra Campo Grande, então eram três drogarias que constituíam um potencial de compras do laboratório dele aqui de São Paulo para o Brasil. Ele achava que ele em Campo Grande estaria prejudicando. Então ele vende para a Neofarma, pra não ter competição dele, Jayme Torres, como farmacêutico na dependência de, guerreando produtos com a Drogasil, que não interessava pra ele porque eram os grandes compradores dele, aqui em São Paulo, do laboratório. Então ele resolveu vender. Ele vendeu a drogaria, na ocasião ele pegou, teve um lucro mais ou menos de uns 200 contos de réis, nessa época. Ele pegou a metade e separou pra ele, outra metade, ele dividiu pros empregados e a outra metade pras associações de beneficência de Campo Grande, Asilo da Velhice Desamparada, pra todos aqueles que ele constituía gratidão à cidade de Campo Grande. Então nós ganhamos até um bom dinheiro com isso e tal. O Jayme Torres tinha essas qualidades, que dificilmente você encontra aí no meio de hoje, dos industriais e tudo mais. Ele é tão assim, mas tão assim, que o laboratório cresceu, tá crescendo e crescendo cada vez mais. Ele vendeu a drogaria, mas fez uma clausula na venda do contrato, que eu era o único funcionário que deixaria a empresa, porque todos os outros foram remunerados e admitidos pela Neofarma, eu ficava fora, eu ia trabalhar três meses para dar orientação da freguesia, orientação de todos os serviços, orientação geral e receber as dívidas que tinham entrado como valor de mercadoria, eram 120 contos de réis que estavam devendo pra ele, e eu fiquei lá pra cobrar todo mês, tal. Acabei recebendo até de anos anteriores que não constavam na relação, tanto é que a Neofarma teve que devolver mais dinheiro pra ele daquilo que entrou de cobranças extra, que entrou como valor de mercadoria.

P1- Agora, passaram esses três meses, que aconteceu com o senhor profissionalmente?

R- Aí já fui, voltei pra São Paulo pra trabalhar com ele.

P1- Aí o senhor veio pro laboratório?

R- Já vim pro laboratório. Aí comecei a servir adiante do laboratório e vender os produtos em Mato Grosso. Então passei a visitar todas as cidades do sul e, do sul e mais um trecho daqui, da noroeste até Valparaíso, de Valparaíso pra cá, eu era o viajante. Eu passei a ganhar muito mais, mas bem mais, né? Naquela época era em remunerado e tinha uma comissão que era compensadora e eu, nessa ocasião, tirei o primeiro lugar no Brasil de maior venda de per capita de Necroton. Dos Produtos Torres, eu era o líder absoluto per capita no Brasil. Bom, eu tô casado e apareceu uma oportunidade de montar uma loja...

P1- Uma drogaria?

R- Não, de ferragem. Aí eu deixei a loja, seu Jayme ficou muito triste porque eu deixei. Montei essa loja e essa loja deu um bom dinheiro, mas nesse ínterim eu fui, à custa do laboratório, eu fiquei conhecendo muito o doutor Ari Coelho de Oliveira. Esse doutor Ari era um médico operador, de grande reputação na cidade, tudo. E ele veio na minha loja e disse: “Perez”, eu, como eu já frequentava o Jockey Club de Campo Grande, indicaram ele pra presidente do Jockey Club. Ele ficou de aceitar ou não aceitar, foi conversar comigo se eu toparia ficar como tesoureiro dele, do doutor Ari no Jockey Club. O Jockey Club endividado, o Jockey Club só tinha dívida, mas falei: “Vou com o senhor, doutor Ari”.

“Então Perez, eu vou assumir a presidência e você vai ser meu tesoureiro.” Aí foi, deu a palavra lá pra diretoria do Jockey Club de Campo Grande que eu passaria a ser o tesoureiro e passaria a ser, ele aceitaria o cargo de presidente, me colocou como tesoureiro, depois passou, eu exercia a função de tesoureiro e presidente da comissão de corridas. Aí já era da comissão de corridas e já era starter pra largada de cavalo (risos). Fizemos uma amizade muito grande e tal, com muita dificuldade. Um dia ele chegou, todos os domingos ele passava em casa, me punha na caminhonete: “Vamos passear, vamos conversar?”. Andávamos conversando, divagando sobre os assuntos do Jockey e ele disse que o doutor Dolor de Andrade tinha prometido de ver no congresso se arrumava alguma coisa, até agora não veio notícia nenhuma, esse homem não me deu uma notícia. É uma pena, porque o doutor Dolor é uma das criaturas muito íntegras de Campo Grande, talvez falta de tempo isso. Falei: “Olha, uma pessoa que eu não tolero é o Filinto Müller porque esse homem metralhou a casa do meu avô, meu sogro, quase matou a minha mulher de hoje, ela tinha seis anos de idade, quando ele metralhou e as rajadas de bala pegaram em cima da cama dela e o reboco da parede caiu em cima dela. E assim que eu estou nutrindo uma certa aversão a esse homem. Mas, dizem que funciona muito bem pra tudo que se pede aqui de Mato Grosso. Não sei se compensaria você fazer um telegrama pra ele solicitando uma ajuda, dadas as dificuldades que o Jockey Club está atravessando”. No dia seguinte, chega um telegrama dele: “Doutor Ari, tal, prefeito, presidente do Jockey Club, atendendo ao seu pedido, o presidente do Jockey Club brasileiro”, esqueço o nome dele, muito conhecido, eu sabia bem o nome dele... Bom,

“Atendendo ao seu pedido, autorizou um envio em 50 contos de réis no Banco do Brasil, que estará à disposição do Jockey Club e enviará dez cavalos puro sangue para que sejam leiloados com os afeiçoados do esporte, do Jockey e com esse dinheiro creio que ele fará uma boa ajuda e tal”. E vieram cavalos bons, filhos de Fomastério. Fomastério foi o maior reprodutor de cavalos que o Brasil teve, Eron e Ilíaco, cavalos de campeões de Grandes Prêmios do Rio de Janeiro. E com aquilo fez-se o reerguimento do Jockey Club de Campo Grande com esse dinheiro. Bom, então, já se criou um vínculo de amizade do Filinto Müller com o doutor Ari. Bom, o Filinto Müller, isso passada algum tempo, vem à Campo Grande e o Ari queria prestar uma homenagem a ele. Falei: “Ué, põe presidente de honra do Jockey Club e pronto”.

“Ah, boa idéia”, tal. Ele vai e faz. Aí, quando faz ele presidente de honra, ele vai à Campo Grande e faz um coquitel. Nesse ínterim, antes da chegada do Filinto Müller, a prefeitura de Campo Grande corta um subsídio de um conto de réis por mês que dava ao Jockey Club de Campo Grande, cortava. Talvez tivesse sabido que tinha sido telefonado com o Filinto Müller, essa coisa toda, que eram inimigos políticos, que vai cortar, o Ari no agradecimento ao Filinto Müller, que era senador, e dizendo, que estava muito grato a ele e nessa ocasião ele era nomeado, indicado pra ser o presidente de honra do Jockey Clube de Campo Grande. Enquanto ele trabalhava em benefício do Jockey Club, o Filinto Müller, enquanto ele dava aquela ajuda que foi substancial, tal, a prefeitura de Campo Grande cortava o subsídio de um conto de réis, como se isso fosse para uma economia verdadeira, porque essa prefeitura gastou o dobro do que é necessário em qualquer obra que ela faça. E aquilo criou um mal-estar na prefeitura, que era da UDN, do doutor Fernando Correa da Costa, aliás um dos homens mais íntegros de Campo Grande, grande homem, foi um homem extraordinário, trabalhei até com ele, tive passagens com ele, até passagens de anedotário. Até outro dia saiu um negócio na televisão...

P1- Você pode contar alguma?

R- Posso... Posso contar. Essa que contaram na televisão agora, na, não sei que estação foi aí, se foi na Bandeirantes ou na Record. Eu era assistente, trabalhava na Farmácia Central, que era dele, né? Ajudava ele no consultório, e na clínica dele era fabulosa. E tem um casal, tá ali parado e tá entrando gente, entrando gente, ele tá atendendo e diz: “Escuta, agora é a sua vez aqui. A senhora, que é?”. A dona: “Eu tenho um problema uterino”. “Entra aqui”, tal. Pôs na mesa lá, pôs o especulo, examinou, chamou o marido: “Vem cá. Você é muito safado”. “O que é isso doutor?” “O senhor é safado. Olha o estado da sua mulher. Olha aqui.” “Doutor...” “Não tem doutor, olha aqui.” Ele olhou e: “Já vi, doutor, já vi”. “Mas a sua mulher...” “Doutor...” “Cala a boca, eu já falei.” “Ela não é minha mulher!” “Ué, o senhor, não é sua mulher? O senhor não tá junto com ela?” “Mas eu não tenho nada a ver com ela.” (risos) Isso aqui faz parte do... Na televisão saiu uma coisa parecida. Isso é fato ocorrido em Campo Grande, Mato Grosso, com doutor Fernando Correa da Costa, que examinou esse casal. E teve outro também do doutor Vespasiano, esse também que foi senador, governador... Ele também era um grande cirurgião, um homem notável. Teve o caso de uma japonesa que tava casada há cinco anos e não tinha filho. Então o japonês foi lá explicar e tal, doutor Vespasiano: “Entra aqui”, e chamou a enfermeira: “Põe um avental nela, põe ela na mesa”, que ele ia fazer exame ginecológico. Aí, quando o Vespasiano voltou, a japonesa tava chorando, né, chorando, chorando. Aí fala com o japonês: “Que essa mulher tá chorando, né?”, doutor Vespasiano era rude nas palavras dele.

P1- Eu perguntei pro senhor se o clima era diferente de Campo Grande pra São Paulo.

R- Totalmente diferente. Aqui era terra da garoa. Mas era infalível, todos os dias tínhamos uma garoinha boa, gostosa. Se usava muito, naquela época, as galochas, que punha em cima do sapato e cobria, era um sapatão maior pra colocar no sapato, pelo umidade, né, e capas de chuva, então se usava demais. Mas era a coisa mais adorável. Aqui era uma cidade encantadora, São Paulo, realmente era aquela vida. Mas havia uma disciplina, a polícia de São Paulo era um orgulho para o Brasil, não se cometia um crime, o crime era desvendado no dia. Roubo não existia tantos assim, havia os batedores de carteira, os meneguetes, que se chamavam na época, dos meneguetes, era terrível o meneguete, era muito inteligente, mas batia-se carteira demais, batedores de carteira eram demais, em qualquer lugar você estava sujeito a ser roubado. Mas não havia crimes dolosos aí, crimes que impressionavam, mesmo esses crimes passionais, não existiam tanto como hoje. Também a população era outra, né? São Paulo dessa época tinha o que, dois milhões, três milhões de habitantes no máximo. Lembro da Revolução Paulista e tudo mais... Mas era um povo, era um orgulho, tanto é que eu tanto quis um filho paulista que eu tive uma filha aqui nascida, a Maria Tereza Perez. Ela é um orgulho pra mim como paulista, né? Mas não desprezando nenhum dos filhos que nasceram em Mato Grosso, outro que nasceu em Goiás, né?

P1- Quando o senhor, que época que o senhor muda pra São Paulo?

R- Que eu mudei com a família, em 1955, com a família. Antes disso eu vim, em 39 eu já conheci São Paulo, quando tava sendo feito o Pacaembu, tava sendo feita a Avenida Ipiranga, estava sendo feito o Jockey Club, que eu fui conhecer onde seria o Jockey Club e não pude ir porque atolava muitos carros, não dava pra chegar até onde seria o Jockey Club hoje, ali era um atoleiro só. Aí onde é a City, tava criando. A City foi uma coisa extraordinária pra São Paulo.

P1- Mudou muito a paisagem.

R- Mas muito... A City revolucionou, porque fez o planejamento, Jardim América, Jardim Europa, os jardins todos aí, Itaim, enfim... A City de uma contribuição muito grande. Agora as avenidas principais eram a Brasil, Paulista, Brigadeiro Luis Antônio. Daí formou-se a Ipiranga, aí se criou a Nove de Julho, que já foi uma avenida medíocre, pra época já deveria ter sido bem maior do que ela é hoje, ela deveria ser um tipo de 23 de Maio, naquela época devia ser a Nove de Julho uma tipo 23 de Maio, mas houve um, talvez por economia da municipalidade, restringiu apenas um corredor de avenida aí que, enfim, ficou horrível, com aquele viaduto ali sobre a 14 Bis, apesar de ter melhorado um pouco assim, mas prejudicou, tirou o embelezamento. Muita coisa foi tirada do embelezamento de São Paulo. Esse túnel, o prolongamento aí da Avenida São João, o viaduto Costa e Silva, essa é uma imundice para São Paulo.

P1- O Elevado, né?

R- O Elevado Costa e Silva, né? Isso foi uma imundice. A Avenida São João era um monumento para São Paulo, era um símbolo.

P1- Descreve como ela era pra gente. Tinha aqueles postes da Light?

R- Não, já existia. Esse é um problema que ainda não foi sanado em São Paulo, são todas essas ramificações que enfeiam São Paulo, as ruas, as avenidas e tudo mais, são a iluminação. Só a 23 de Maio que já diminuiu a iluminação, ficou mais subterrânea do que aérea, né?

P1- Mas os postes, quando eram os postes da Light, aqueles mais antigos, também eram subterrâneos.

R- Uma beleza... Aqueles postes ali na Praça Ramos de Azevedo, por exemplo, em frente ao Municipal, onde tinha o Mappin em frente, ali era ponto de convergência de todo mundo, a São João, a Ipiranga, era outro... A Avenida Barão de Itapetininga era um luxo, A Rua Augusta, Rua Augusta ditava moda para todo o Brasil, a Rua Augusta, como era Copacabana, Ipanema no Rio, era a Rua Augusta em São Paulo. Barão de Itapetininga, que ditava a moda brasileira e levava pra o, e não existia televisão, não existia nada disso. Então a moda chegava em determinados Estados três, quatro meses depois de ter sido lançadas, hoje é na mesma hora, às vezes com antecipação (risos) aqui de São Paulo. Hoje, com a televisão, igualou.

P1- Seu Renaldo, o senhor freqüentava o salão de chá do Mappin?

R- Frequentei muitas vezes com minha mulher.

P1- Descreve como era?

R- Era alto luxo, era uma beleza. Aqui tinha um também na São Bento, que era, como chama, era o... Ora, esqueci o nome da Rua São Bento, tinha um restaurante que houve até um caso interessante. E tem, existe o escritor, não sei se já morreu ou não, Flávio de Carvalho. Esse Flávio de Carvalho eu associo muito por causa de uma história que ele foi a Mato Grosso, de passagem por lá com Ary Barroso, foram buscar o Frias no Paraguai. E na passagem por Campo Grande, eu inclusive participei de um grupo que prestou homenagem ao Ary Barroso. Prestamos essa homenagem e nas horas omitimos o nome do Flávio de Carvalho, que já era uma projeção nacional, omitimos. Ele fez, num retrospecto da vida dele aqui em São Paulo narrando que Campo Grande, né, ele falou sobre a bruma da viagem e que: “Em Campo Grande se pretendia fazer separação do Estado, a que ponto chegou esta cidade, que estava planejando, porque tinha um Vespasiano, um tal de Vespasiano, creio eu”, disse ele, “creio eu”, que já era senador da República, era doutor Vespasiano Martins, né, “Com mais outros companheiros lá, projetar e fazer a separação do Estado”, como se o que predominava na cidade de Campo Grande era a prostituição, né, porque vinha do Paraguai, todas aquelas paraguaias, então tinha um movimento meretrício muito grande. Então eles achavam que com o rendimento da prostituição pudesse... A turma de Campo Grande ficou revoltada, lembro bem que o Ivo Máximo, Dari(?) Barcelos, Tenente Severino, diversos companheiros lá de, resolveram vi a São Paulo para dar uma surra nesse homem. (risos) Procuraram ele aí, seguramente por uns três, quatro dias, mas não apareceu nem iam permitir e ficou por isso mesmo então. Mas faz parte do folclore de Campo Grande.

P1- Seu Renaldo, e o senhor participou, viu as comemorações do quarto centenário?

R- Assisti, aqui em São Paulo. Assisti a chuva de prata feita pelo Pignatari, que era de alumínio. À noite ficou bonito, porque acenderam holofotes e despejavam aquela carga de...
P1- Papeizinhos...

R- Papeizinhos...

P1- Os triângulos?

R- Não, eram pequenos, bem pequenos. Até eu tinha guardado, até hoje tinha... Não sei, mudança daqui pra lá acabei perdendo. A chuva de prata feita pelo Pignatari... Era uma coisa fantástica, é uma coisa fantástica. Pega esse Matarazzo, né, o Matarazzo que representa, hoje é muito... Não, o brasileiro não cultua um homem como foi Francisco Matarazzo. Matarazzo fez a indústria no país, a indústria. Eu ainda lembro do tempo em Corumbá, quando eu era guri, que camisa vinha da França, manteiga vinha da França, é inacreditável como o povo esquece rapidamente dos grandes homens. Matarazzo, pra mim, foi um homem extraordinário, merecia um monumento no centro de São Paulo como exemplo do maior desenvolvimento que deu, não só à cidade, ao Estado, ao país. A criação das indústrias que ele fez, as Indústrias Reunidas. É sabão, macarrão, enfim, todas as espécies de tecido, tudo esse homem fez pelo Brasil e, no entanto, foi omitido. Outro que fez um grande sucesso foi o Milani, que era dono dos sabonetes Gessy. Sabe como que foi a história do Milani, interessa?

P1- Interessa, mas qual é o primeiro nome dele?

R- José Milani. Esse homem tinha uma fábrica de sabão em Valinhos, sabão de lavar roupa, era mais o que se usava na cidade, não existia sabonete. Mas ele próximo da guerra, ao invés de comprar dez tambores de soda caustica e dez tambores de breu, ele dobrou, ou triplicou, pediu 30 e 30. Ele tinha muito crédito, seu Zé Milani em Valinhos pediu isso da Europa, prevendo a guerra, triplicaram o que ele pediu, invés de mandar 30, mandaram 90 (risos). E assim, foi com do breu e da soda caustica. Chega aqui, ele não tem dinheiro nem pra pagar, mas ajeitou pra pagar vendendo um pouco de breu e soda pro Matarazzo, pra outras empresas aí, o frete do navio. E o resto ele ficou com todo o estoque lá. Nisso acaba o estoque de todo mundo, estoque que só ele tinha. Aparece um cara da Itália, fugindo da guerra, que era um perfumista e disse se ele não queria fazer sabonete que se usava na Europa, então ele fez o sabonete Gessy, que foi o primeiro sabonete do país, foi o sabonete Gessy. Aí ele fez o Gessy e foi aquela explosão de crescimento. Aí muita gente queria comprar soda e breu, ele não tem, só ficou pra fábrica dele. Então, durante a guerra toda, ele tornou-se uma das grandes fortunas que foi feita com a guerra. Esse o seu Zé Milani teve a morte mais terrível.

P1- Por que?

R- Ele ia de Jundiaí, de Valinhos pra Campinas no carro dele, era um afortunado já. Veio a guerra, a Segunda Guerra, na Segunda Guerra, um guarda: “Cadê seus documentos?” “Eu, Zé Milani, mostrar documento? Eu sou Zé Milani”, porque ele se achava o todo poderoso, porque era, na região, o homem mais poderoso. “Então o senhor desce do carro e vai a pé pra Campinas”. E foi a pé e o chofer, o policial foi de carro. Chegou desmaiando, levaram para o hospital e acabou morrendo no hospital nesse mesmo dia. É, a morte dele foi assim. Tanto é que depois foi condenado o soldado, não sei que fim levou a guarda. Isso é época de São Paulo daquela época em que fizeram as grandes fortunas, como foi a questão do, aqui de Jafet. O Jafet, ele num baile encontrou-se com um comandante de um navio alemão com uma carga que ia pra Buenos Aires e não pôde ir, por questão de guerra, ficou aqui. Era tinta que ele tinha, anilinas da Idantren, que era da Bayer alemã. Ele chegou e perguntaram, ele: “Eu podia examinar?”, “Não pode abrir nada”, tal. Mas deu um porre no comandante alemão, levou ele pra Santos, pro navio, já bêbado e tal. Ele entrou no navio, é o que ele queria. Entrou e colheu amostra da tinta que ele tinha. Tá bem, ficou satisfeito, saiu, aí ele falou que compraria a carga, mas só poderia pagar o frete. A Alemanha autoriza, porque tava em guerra, não podia voltar o navio, que ainda podia ser torpedeado e tudo mais, né? Fica com a carga toda e passou a vender anilina no Brasil todo, só ele tinha anilina pro Brasil e América Latina, era só ele que tinha. Então ele fez essa fábula de fortuna, que foi o Jafet, também, esperto que era ele, fez a fortuna pela, de tinta e Idantren.

P1- Jóia... Seu Renaldo, a gente tá já... Pela gente, continuaria por mais duas, três horas, né? Mas a gente precisa começar a encerrar a entrevista. Eu queria perguntar pro senhor, assim, como o senhor conheceu dona Maria Andrade?
R- A minha mulher eu conheci, não só, pela projeção do nome, que ela era filha de Arlindo de Andrade Gomes, que era, foi prefeito, juiz de paz, era o eminente advogado em Campo Grande, era um líder político, um homem muito estimado na cidade, essa coisa já causava um nome já. E ela era muito bonita, as pernas da minha mulher eram as pernas mais lindas que eu já tinha visto na minha vida. Eu fiquei olhando aquelas pernas, ela ia à drogaria fazer compras, né, eu via: “Que pernas lindas...” Parecia porcelana. Mas não... Vestido sempre abaixo do joelho, aquela coisa toda, você não via nada. Nem transparência, que na drogaria tinha aquele sol que batia de frente, né, quando a mulher entrava, que estava sem combinação, qualquer coisa, era uma transparência total. (risos) Mas nem isso a gente via. Ela ia pagar a conta do pai e eu dava um presentinho pra ela, uma água de colônia, Regina, naquela época que se usava, sempre de agradecimento pelas compras que havia feito no mês, aquela coisa. E assim, mas nunca conversei com ela, nem ela comigo, nem nada. Eu a achava, os modos, tudo, uma pessoa muito educada, muito... Aí, passado o tempo, ela chegou a ter um namorado, mas foi passageiro esse namorado dela, foi num carnaval até, mas eu vi, mas não notava, eu seguia bem os passos dela, né? (risos). Aí, num gabinete dentário, eu ia lá, tinha hora marcada, ela chegava, tinha que esperar, tal, eu cedi o meu lugar pra ela, ela ficava muito agradecida, tal. E assim fui conhecendo. Um belo dia eu perdi a paciência (risos) e fui de bicicleta atrás dela. Fui dar lá numa avenida em Campo Grande, na marginal da estrada de ferro, que não sei se ainda existe hoje, mas acho que tão tirando, porque desviaram, o trem passava em frente à chácara do pai dela, contornava a cidade ali. E eu me aproximei dela... Aí eu falei que estava interessado em namorar com ela, mas que meu namoro não era só pra namorar, não, que a minha intenção era casar, assim. Foi o primeiro encontro que eu tive com ela.

P1- E ela?

R- Ela ficou pensando e tal e começamos a nos encontrar, irmos ao cinema, essa coisa toda, né? Naquele tempo não, até pegar na mão era um problema muito sério. (risos)

P1- Era difícil?

R- Era difícil.

P1- E tinha footing lá em Campo Grande?

R- Tinha, tinha.

P1- Aonde que era?

R- Era na Rua 14 e na Praça Pública do Jardim.

P1- Vocês iam até o footing?

R- Não, eu, nós íamos mais ao cinema, era o Cine Alhambra. Era primeiro no Trianon, depois montaram um novo cinema, o Cine Alhambra e aí foi o nosso tempo de namoro e noivado.

P1- E vocês tiveram seis filhos, seu Renaldo?

R- Tivemos seis filhos. Dos seis filhos, com a graça do bom Deus, já nos deram 19 netos, 9 bisnetos e felicíssimo com a família que eu tenho. Eu tenho até neta que é desembargadora Federal. É um dos orgulhos pra mim, de ter na família, tem sangue meu, da minha mulher. Ela, por exemplo, tem uma adoração pela minha mulher que é uma coisa, ela tem uma adoração. Ela, a Patrícia, Paloma, enfim, as netas todas são muito apegadas à avó, têm um amor pela vó, que ela é intocável pra essas netas, todas elas. E já tem os bisnetos, né, tem bisneto com 15 anos, 16 anos, é capaz de nos dar um tataraneto aí. (risos)

P1- O senhor tá na torcida, né?

R- Tão... Mas é assim.

P1- Tá jóia. A última pergunta, então. Você quer fazer alguma pergunta, Ana Paula?

P2- Não.
P1- Eu ficaria mais tempo aqui até, mas a gente já tá com o nosso horário finalizando. Que o senhor achou de ter ficado esse tempo com a gente, registrando a sua história, olhando pro passado e deixando isso registrado aqui no Museu da Pessoa?

R- Muito interessante, porque eu mesmo, eu agora nessa entrevista com você, veio recordações que eu já nem lembrava mais. Tem tantas coisas que a gente vai relembrando, essa coisa toda, e é uma coisa extraordinária. Eu fico até muito agradecido a vocês por essa atenção e me causou até surpresa, fico muito grato, porque rememorar um passado, né, que a gente deixa, eu poderia ficar aqui o dia inteiro conversando sobre Campo Grande, uma terra fabulosa, e São Paulo, que eu adoro... Não tem outras coisas mais a acrescentar de agradecimento a você.

P1- Nós é que agradecemos a colaboração do senhor, essa, esse empenho, essa entrevista maravilhosa.

R- Muito obrigado.

P1- Brigado o senhor.