Museu da Pessoa

Minha história é um livro aberto

autoria: Museu da Pessoa personagem: Eleonora de Barros Hamoy

Depoimento de Eleonora Barros
Entrevistada por Karen Worcman
Obidos, Pará, 26 de abril de 2010
Entrevista_Nº MB_HV_118
Transcrita por Vanuza Ramos
Revisado por Flávia Cristina
Tags: família, infância, comércio, escola, catolicismo, primeiro emprego, casamento, namoro, adoção, conflito familiar, Óbidos, marido, judaísmo, enterro judaico, indústria de castanha.


P/1– Dona Eleonora, sabe o que eu queria começar, assim, perguntando pra senhora? Nome completo da senhora...

R - Minha biografia.

P/1– A sua biografia, mas vamos começar do simples que é o nome, o local e a data do seu nascimento.

R– Tá.

P/1– Qual o seu nome?

R– Meu nome é Eleonora de Barros Amoe.

P/1– A senhora nasceu onde?

R– Nasci aqui em Óbidos.

P/1– E quando foi isso?

R– Dia 15 de abril de 1929.

P/1– Como é que chamavam a sua mãe o seu pai?

R– O nome da minha mãe era Elvira Menezes de Barros e o meu pai Guilherme Lopes de Barros.

P/1– A senhora sabe um pouco como era a família dos seus pais e o que eles faziam?

R– Era uma família numerosa, né, bastante. O meu pai foi uma pessoa batalhador, mandou educar os filhos, tá? A vida dele mesmo, à custa dele. Ele não era uma pessoa que fossemos dizer rico, mas trabalhador e venceu pelo trabalho dele. Tinha panificadora, tinha comércio.

P/1– Ah, então ele tinha panificadora...

R– Tinha! Comércio, estivas gerais.

P/1– Onde ficava esse comércio dele?

R– Ficava ali na Siqueira Campos, Armazéns Campeão era o nome da loja dele.

P/1– E ele vendia de tudo lá?

R– Tudo, era de tudo, secos e molhados.

P/1– O seu pai nasceu aqui em Óbidos também?

R– O meu pai nasceu em Santarém.

P/1– A senhora sabe...

R– Mas filho de portugueses. E minha avó, eu tenho impressão que ela tinha... Ela era meio... A nossa família é quase raça mãe porque tem japonês no meio, casado, tem filhos e tem... A minha mãe, o pai dela era filho de holandeses. Nasceu em Sergipe, era sergipano. A minha avó nasceu em Juruti.

P/1– Então ela era uma mistura de sergipano com Juruti?

R– É. Paraense, né?

P/1– Paraense. Sergipano com paraense de Juruti. E o seu pai era?

R– O mau pai nasceu em Santarém, Pará também, né?

P/1– A senhora sabe como eles... Dona Eleonora, a senhora sabe como foi que a sua mãe casou com o seu pai?

R– Bom, a minha mãe, naquele tempo era muito restrito os laços de amor, sabe? Que os pais tinham aquele cuidado lá, mas eles casaram.

P/1– Era restrito como?

R– Assim, não tinha aquela liberdade. Era uma coisa mais fechada, era assim, né? Hoje está mais fácil (riso).

P/1– Mas a senhora sabe como foi? Foi ele quem pediu a mão dela?

R– Ah, claro, foi ele. Porque meu avô era muito ríspido. Meu avô Aristides (Felix?) de Menezes, o nome dele.

P/1– E o que ele fazia, a senhora sabe?

R– Ele era empresário industrial, ele tinha sítios de, como era? Ele tinha alambique de açúcar, de cana-de-açúcar aqui na colônia mesmo, aqui em Óbidos, aí nas colônias. Ele era pecuarista.

P/1– Ah, é? Então ele era bem de vida, Dona Eleonora.

R– Muito bem, era quase dono da metade de Juruti, ele. Hoje as terras se acabaram, foram todas, né?

P/1– Esse era o seu avô materno?

R– Era, o avô materno.

P/1– Então ele era uma pessoa muito respeitada.

R– Era! Ih! Compara quando passava aquele... Igual ao Paraguaçu, era assim que ele era! Andava, tinha aqueles capangas, sabe? Tinha. Vinham aqueles jumentos que traziam as coisas de lá da fazenda, do sítio dele. Ele era muito bem aqui na colônia.

P/1– Esse é o seu avô.

R– Meu avô materno, da parte da mamãe.

P/1– Então a sua mãe foi educada, assim...

R– Sim. Casaram, foram muito felizes, graças a Deus!

P/1– A sua mãe foi para a escola de freiras?

R– A mamãe esteve em Belém. Foi, eu também estudei em colégio de freira aqui! A mamãe estudou em colégio de freiras, foi para Belém. Mas lá, na casa em que ela ficava, a família não colocava ela pra o colégio melhor. Eles faziam até com que ela fosse babá.



P/1– Ah é?

R– Eram padrinhos dela, mas não davam aquela atenção que ela merecia. O vovô podia dar os estudos pra elas todinhas. As minhas tias foram muito bem, eles tinham ateliê de costura, eram alfaiates, tudo aqui em Óbidos, tudo!

P/1– Quantos filhos ele...

R– Ele teve? Tio Júlio, tio Lucas, tio João, tia Maria, tia Ana: seis. Tio Júlio, tio Lucas, mamãe, tia Maria, tia Ana e mais outro; seis filhos.

P/1– E todos estavam bem de vida?

R– Todos ficaram, mas depois, sabe como é, quando morre o patriarca a coisas vão se desfazendo, como foi o nosso também, nosso caso.

P/1– A gente vai chegar lá. Vamos chegar lá! Vamos ainda nos seus pais, seus pais. Então seu pai já não era de uma família tão rica?

R– Não. Papai não. Papai era de uma família, vamos dizer de remediados. Tinha, tinha, mas não podiam dizer que eram ricos, não. Meu avô era! Mas o vovô tinha pelo esforço dele. Meu avô era português, sabe? Tinha panificadora aqui, tinha comércio.

P/1– Esse é o pai do seu pai?

R– Pai do papai.

P/1– Ah é?

R– É. Era o José Joaquim Lopes Barros, José Joaquim Barros.

P/1– Então ele era também...

R– Ele era, tinha... Era remediado, como diziam, assim, né? Tinha!

P/1– E aí os seus pais se casaram.

R– Casaram.

P/1– Quantos filhos eles tiveram?

R– Quem?

P/1– Seu pai e sua mãe. Quantos irmãos você...

R– Catorze.

P/1– Meu Deus! Qual é o nome?

R– Treze, um natimorto, né?

P/1– Conta os nomes dos seus irmãos.

R– Ah sim, até data de aniversário, se for o caso. Francisco, Grijalva, Eleonora, Maria Antonieta, Constantino, Fernando, José, Guilherme, Aluízio, Eleomar, Euri, Eurides, Amauri e Elzira, todos! Deixa ver: Francisco, Eleonora, Maria, Constantino, Fernando, José, Aluízio, Eleomar, Euri, Eurides, Amauri e Elzira, ainda tem isso, (riso) pra não esquecer. Eu tenho que contar assim pra não esquecer nenhum!

P/1– Tem de falar de vez.

R– É, é, de vez.

P/1– E é tudo seguidinho assim?

R– Um ano e um mês. Em um ano e três meses já tinha um na fôrma. Era São Bento o protetor: um fora e um dentro (riso).

P/1– E onde é que a senhora nasceu? Por exemplo, em casa, como é que foi?

R– Nasci em casa. E a mamãe teve todos os partos em casa, assim como eu. A minha última filha, a Márcia, que deu problema porque eu já tinha 36 anos, já estava bem madura e ela nasceu com bem peso. Ela nasceu com cinco quilos e duzentas. Ela nasceu em Santarém, essa minha filha. E sabe quem foi meu parteiro? Dona Maria do Carmo, a prefeita de lá.

P/1– Mas vamos voltar aqui, quando você nasceu. Onde vocês moravam?

R– Sempre moramos aqui. Eu nasci ali – deixa eu te dizer – aqui na Doutor Machado, esquina da Justo Germão.

P/1– Era uma casa grande?

R– Era uma casa boa. Naquele tempo, eram daquelas casas que não podiam ser demolidas, eram antigas. Depois não, foi vendida, papai saiu, vendeu. E outros fizeram casas bonitas, também da época, agora, né?

P/1– Como é que era a casa? A senhora lembra?

R– Lembro! Era de barro também, era casa de alvenaria. Tinha a lojinha dele, de papai. Papai era muito batalhador, teve 14 filhos sem a ajuda de... Sabe? Ele mesmo, com o esforço dele, o comércio. Ele era pecuarista também: tinha gado, tinha fazenda;

o meu pai.

P/1– E ele tinha um comércio dentro da casa?

R– Tinha! Um comércio dele, uma loja grande. Essa esquina que tem aí era dele ainda. Embaixo também, onde o Paulo Henrique tem a... Eu não sei qual é a faculdade lá, também foi dele. Armazéns Campeão, ele sempre colocou assim, Armazéns Campeão. Só que esse aqui já botou Vila Bel (riso). Era Guilherme Lopes Barros, Vila Bel.

P/1– E aí, Dona Eleonora, o que a senhora... Como é que era: as meninas dormiam onde, os meninos dormiam onde?

R– Ah, todos em rede! Rede, rede mesmo.

P/1– No mesmo quarto?

R– Tinha... Separado, era um salão onde ficavam as meninas e os meninos, né? Assim, éramos sete irmãs e seis irmãos.

P/1– Qual é a primeira lembrança que a senhora tem?

R– Ah, a primeira lembrança foi da minha mãe com todos os filhos, a gente em casa ajudando, fazendo, cooperando, estudando, fazendo aquela força para todo mundo estudar. Estudamos em colégio de freira...

P/1– A senhora entrou no colégio de freira aqui. Qual era o nome da escola?

R– Colégio São José, Colégio São José, já existia.

P/1– E quando foi que a senhora...

R– Colégio de freiras...

P/1– E o que a senhora aprendeu lá?

R– Era Imaculada Conceição. Oi?

P/1– Como foi a escola de freiras?

R– Muito boa. Tinha todas as... Fazia os serviços manuais, recebiam também aquelas que não podiam pagar, como é que era o nome? Internas! Tinha o internato de quem podia e de quem não podia, sabe? Eram dois tipos: as que podia pagar via particular, do Oeste aqui do Amazonas vinham pra cá também, estudavam aqui.

P/1– E aí pagavam para as freiras?

R– Pagavam pras freiras, era uma escola. Depois tinha também as que não poderiam pagar, tinha também o internato delas.

P/1– Era diferente?

R– Não! Bom, a diferença era o seguinte: elas estudavam e faziam todo o serviço do colégio pra ajudar, né? Aprendiam também com isso: tinha lavanderia, todas elas cooperavam porque estavam estudando, né?

P/1– Quem pagava não fazia essa parte do serviço?

R– Não pagava não, mas fazia também. Ajudavam as freiras. A capela era dentro do colégio... Ah, mas eu me lembro muito quando aquele monte de meninas todas de fardas, era tão bonito... Era um exemplo, era uma coisa colégio de freiras!

P/1– Vocês rezavam muito?



R– Ah, o aprendizado era muito bom.

P/1– As freiras eram brasileiras?

R– Acho que eram, muitas eram sim.

P/1– A senhora lembra de alguma freira especificamente?

R– Ah! Irmã Antonieta, Irmã Consolata, Irmã não sei... Ih, tinha muita freira!

P/1– Mas de nenhuma a senhora gostou especialmente?

R– Ah, de todas. Todas eram boas, eram boas freiras, mãe e irmãs, sabe? Faziam a gente aprender do bom e do melhor.

P/1– Nessa época, o que a senhora lembra de ruim da sua infância?

R– Da minha infância, nada! Porque eu sempre fui extrovertida, eu sempre fui feliz, eu sempre fui alegre. Eu fazia carnaval, eu fazia brincadeira, eu era do teatro, eu representava em praça pública, tudo eu fazia! Que eu era mocinha, em tempo de festa, de arraial, professor Toste, era o professor que nós tínhamos aqui - professor José Maria Toste, tem até um colégio com o nome dele. Ele também foi um grande professor aqui; ele fazia tudo, a gente fazia... Eu aprendi a escrever muito, eu sou ambidestra, eu escrevo direita e esquerda porque aos sábados ele fazia isso: aprender a fazer escrita. Sábado era dia de fazer caligrafia, era caligrafia, eu fazia. Eu estudei também em paleógrafo, que tinha. Paleógrafo, né? Sabe, né, eu sei as letras tudo, ortografia, tudo isso. Hoje muita coisa já mudou, né? Porque às vezes davam até pelo antigo, fonética antiga, né?

P/1– E a senhora, então, gostava de estudar?

R– Eu gostava, sempre gostei de estudar. Eu não ficava, assim, sem trabalhar, não. Papai foi prefeito aqui em Óbidos. Eu fazia assim, eu trabalhava em cartório eleitoral, sabe? Eu trabalhava!

P/1– Com que idade?

R– Papai era perfeito, mas eu não tinha nada com prefeitura. Era tudo... Nem ganhava, era só experiência, só experiência que eu tinha. Trabalhei com o Doutor Maranhão...

P/1– A senhora começou a trabalhar com que idade?

R– Hein?

P/1– Com que idade...

R– Eu tinha 17 anos pra 19, 18, por aí assim. Dezessete para 18 anos de idade.

P/1– E quais eram os trabalhos que a senhora...

R– Eu fiz datilografia para minha madrinha, eu tinha diploma também, né?

P/1– A senhora fazia datilografia?

R– Tudo! O que eu podia aprender aqui eu fazia mesmo. Não podia ir pra fora, né, tinha que acelerar aqui mesmo dentro de Óbidos.

P/1– O seu pai era rígido? Ele deixava...

R– Era! Foi um bom pai, soube nos criar.

P/1– Ele deixava a senhora sair na rua, assim?

R– Não! Era muito restrito. A gente ia pra missa, ia junto dele (riso). Era lá no Bom Jesus, lá no Bom Jesus era muito lindo, tinha aquele alpendre, a tua mãe deve lembrar. Aqui é o São José e subindo lá... Eu tenho uma foto que tinha eu, a Milze, a Maria José,a Edite, tudo aqui na subida do colégio onde era.

P/1– E ele, então, era muito rígido, não deixava...

R– Era, o papai era. Assim, não deixava, sabe? Mas eu fazia em casa minhas festinhas pra ele, dava uma enganadinha, sabe? Fazia pra ele, mas ele não sabia que eu estava envolvida com as colegas, boas amigas daquele tempo. Até hoje ainda existe, tem a Jomélia, não é Edite? A Jomélia, a Edite sabe.

P/1– E ele batia em vocês?

R– Não!

P/1– Nunca?

R– Nunca!

P/1– E a sua mãe?

R– Idem. Era só em conversa. Prometia: "Olhe, se fizer errado, vai pegar umas lombadinhas, uma palmatória", era palmatória naquela época. Ainda adotei o meu sistema para ensinar aos meus filhos pequenininhos, “'umbora', todo mundo deitado aqui, vamos brincar com o ABC, fazer a sabatina". Na minha escola fazia sabatina, era assim: eram com homens e mulheres, dois tipos, as meninas e os meninos. Era sábado e o professor passava rápido pra gente dizer rápido, na memória. E ninguém queria perder! Nesse tempo o (Jofrei?) era o... Eh, dos colegas que se formaram muitos já morreram, muitos.

P/1– Mas aí a senhora estudou até que série?

R– Quinta.

P/1– E o que é que aconteceu?

R– Eu ficava... Sabe como é que eu fazia? Aí pronto, aí eu já não queria ficar em casa. Ai eu voltava pra ver: "Porque, Seu manduco, eu quero ficar com o senhor", particular, eu queria ficar. "Mas minha fia, não tem mais o que ensinar." "Mas professor, faça isso pra gente..." Mas eu trabalhava na loja com o meu pai, trabalhava sim. Eu era caixa da loja dele, meus irmãos que eram médicos...

P/1– Todo mundo ia pra loja?

R– Não. Só eu e o meu irmão Fernando.

P/1– Por que?

R– Porque os outros estudavam também e só quem sobrou fui eu e o meu irmão Fernando.

P/1– Por que... Alguns continuaram a estudar, foram pra fora?

R– Por exemplo, os que tinham força de vontade, os queriam mesmo, foram; os outros pararam, não quiseram estudar. Casaram, casaram novos.

P/1– Quantos foram pra fora estudar?

R– Quase todos, só não fomos eu e o Fernando, meu irmão. As mulheres foram...

P/1– Foram? O seu pai não achava que as mulheres não precisavam estudar?

R– Não. Muitas ficaram, não quiseram, desistiram. Casaram e desistiram.

P/1– Mas conta pra mim: iam estudar onde?

R–Estudavam em Santarém, Belém, Belém, no Colégio Nazaré.

P/1– Mas eles iam e moravam onde?

R– Ah, em casa de amigos e família. Não tínhamos ainda a casa lá, então ficavam na casa de amigos. Papai pagava, né? Depois não, eu consegui e fui pra lá com meus filhos. Eu fui, eu mesma aluguei casa lá. Já tinha marido, ele não queria, queria botar em hotel: "Tá doido? Botar em hotel, meu filhos não vão aprender nada, não vão passar bem. Nem que seja num cubículo, mas vou ficar até conseguir. Nós tivemos apartamento em Belém e tudo, mas o tempo acaba, né? O patriarca acaba, acaba tudo, né?

P/1– Pois é. Aí a senhora estava lá, a senhora parou de estudar e continuou trabalhando na loja do...

R– Na loja. Só saí da loja do meu pai para casar.

P/1– E aí? Como é que foi que a senhora conhece...

R– Eu casei com 23 anos.

P/1– Então me conta como é que a senhora conheceu o seu marido.

R– Ah, o meu marido. Foi tão bonito o nosso amor! Ele era judeu, de pai e mãe, de sague azul (riso). Aí foi viajando, nos encontramos, ele já trabalhava para os pais. Ele estudou, estudou o curso de... Ele fez Comércio em Belém. Aí eu viajei uma vez com papai pra Belém, para passear, ia num navio em Parintins, eu me lembro, viemos. Aí nós nos conhecemos, mas nós chegamos aqui depois de muito tempo. Ele tinha a namorada dele e tudo, né? Eu o convidei para morar na minha casa, assim. Eu tinha meus paqueras, claro, que a gente tinha, né? Flertava, naquele tempo era flerte, né? (riso).



P/1– Como é que era o flerte?

R– O flerte era um namoro como uma paquera hoje. Não é essa coisa de ficar ou estou ficando. Nada disso existia! Era paquera, assim, de olhar, de conversar, passear de mão dada.

P/1– A senhora tinha muitos paqueras?

R– Eu tive e só gente boa, só gente fina. Joguei voleibol, eu era do esporte, eu gostava disso também. Eu fui muito alegre, eu fui muito feliz e sou! Sou feliz mesmo por ser mãe e por ter tido seis filhos. Ainda criei uma, criei uma! Essa está em Macapá há dez anos, ela é nutricionista. Ela tem 35 anos, é filha do meu filho. Esse foi um rebote que a gente teve em casa: ele foi pra Belém e aí teve; e eu criei. Nasceu, veio pra minha casa e eu criei com meu marido e com meu filho, que deram todo o estudo pra ela. Ficou comigo todo o tempo. A mãe se dispersou, que eu mandei mesmo! Apresentei a filha, e ela sabia! Com três aninhos eu fui levar pra ela conhecer a mãe. Eu não escondo nada, minha filha. Eu sou muito aberta, um livro aberto.

P/1– Mas por quê? Porque o seu filho teve uma filha e...

R– Não! Não era casado, era estudante, estudante.

P/1– E a mãe era o que?

R– Ah, a mãe era uma serviçal, né? Sabe por que? Porque eles começam em casa, né, mana? Eles vão testar; testa as empregadinhas, assim, pra ver. Mas ela não tinha casa porque já era uma pessoa já

livrezinha. Morou comigo por terceiros, por que veio trabalhar comigo enviada por terceiros para trabalhar comigo.

P/1– Mas aqui ou em Belém?

R– Não, começou aqui, assim, que nem bem eu conhecia. Eu mandei pra lá porque eles foram estudar e precisavam. Eram quatro: Maurício, Meire, Mauro... Eram quatro filhos: Maurício, Meire, Mauro. Não, eram os três que foram primeiro.

P/1– E aí ela foi junto pra lá?

R– Não, passou um tempo. Tinham outras lá, mas não davam certo e aí eu a mandei daqui.

P/1– E aí o que é que aconteceu?

R– Deu a flor, como diz o outro (riso). Aí pronto, eu criei na minha casa, adotei quando tinha 15 anos. O presente que eu fiz pra ela de 15 anos foi a adoção, entendeu?

A mãe nunca mais eu vi, uma vez ou outra mandava notícia pra mim, mas nunca mais. Se empregou em outras casas boas também, foi muito bem acolhida onde ela vive. Hoje a filha se entrosa com ela.

P/1– A filha fala com a mãe?

R– Já! Ah, mas ela conheceu, eu fiz, né? Ela não queria, sabe? "Não, minha filha, não é assim! Hoje eu estou velha, você precisa da sua mãe. Ela já criou o filho dos outros e pode criar o seu." Ela não quer, ainda não quer. Já com 35 anos, ela não quer: "Não, vovó, eu estou bem". Aí eu digo: "Mas menina vocês são tantos, vão me dar mais bisnetos?". Eu já estou com 80 anos. O primeiro eu já tive, é o Miguel que está com sete meses.

P/1– Mas ela e o pai, o seu filho, ela se dá bem com o pai?

R– Tá, muito bem! Com os irmãos da parte dele, com a mulher dele, se dão bem. O entrosamento foi muito bom. Não teve, tanto que nós criamos, era estudante até. Pronto, casou-se com uma moça, depois de cinco anos ele casou. Ela tinha três aninhos, a menina. Eu disse "não, ela fica comigo por aqui". É bonita a moça, muito exótica! (riso). Mistura de sangue, índio com o sangue meio azulado do lado dos pais, né, do pai.

P/1– Vamos voltar lá. Como é que o seu marido chamava?

R– Meu marido chamava Isaque Amoi.

P/1– E ele então era judeu? Como é a história dele?

R– Porque os pais vieram do Egito, da Alexandria. Eles vieram de lá para a Amazônia tentar a vida, naquela altura.

P/1– Isso quando, a senhora sabe?

R– Ah, não me lembro, filha.

P/1– Eles falavam que língua?

R– Ah, francês. A minha sogra, ela era poliglota. Veio pra Amazônia por acaso. E eram primos.

P/1– Ela era prima do pai?

R– Era.

P/1– E aí a senhora conheceu ele num navio.

R– É, lá não conheci. Pra namorar mesmo foi depois de muito tempo aqui, uns dois ou três meses. Foi quando nos conhecemos e foi um amor até casar, foi um amor sem fim (riso). Foi muito bom! Eu namorei cinco anos com ele por causa da guerra que havia na família. Eles, a família Amoi, que não queria que filho casasse... Que judeu é assim, não quer que o filho case com católico. Tem que ser com a raça. Mas ele não respeitou, ele disse "vou casar e pronto".

P/1– Então demorou cinco anos por causa disso?

R– Isso, foi. Foi uma guerra! Eu ia embora, papai não queria porque era amigo da família, eram de maçonaria, aquilo tudo, sabe? Eu já ia embora também, ia pro Rio. Mas aí não deu. Aí ficamos mesmo, programamos e casamos.

P/1– Me conta, os pais deles eram ricos ou eram pobres...

R– Não! Vieram pra Amazônia lutar. Depois ficaram ricos, quase donos dessa cidade. Tudo que tinha aqui era deles, colocaram... Já meu marido, ele que colocou usina de castanha, prensagem de juta, serraria, pecuarista, tudo isso, fazendas, loja.

P/1– Aqui em Óbidos.

R– Aqui.

P/1– Para o seu pai não se importava que ele fosse judeu?

R– Não, não, ninguém.

P/1– Só a família dele.

R– Só a família dele, que eram mais assim, sabe? Não tinha porquê.

P/1– Quando ele levou a senhora pra conhecer a família, como é que foi?

R– Ah, quando ele me levou pra conhecer eu estava até grávida já (riso)!

P/1– Ah é?

R– É (riso).

P/1– Eles não vieram no casamento, então?

R– Não! Meu casamento foi em casa, com o Doutor Júlio Golveia. Eu fui casada só no civil, nunca casei no católico.

P/1– Então me explica melhor como é que foi.

R– Foi bom!

P/1– Mas conta essa história.

R– Sobre?

P/1– O dia que a senhora casou com ele.

R– Ah! Casei no dia 28 de outubro, numa quarta-feira, na casa dos meus pais, na residência deles.

P/1– Não foi na igreja por quê?

R– Porque ele é judeu e eu católica, então foi só no cartório mesmo, com o juiz.

P/1– A sua mãe não se importou?

R– Não. Ela gostava muito dele, ele era muito bom, era muito gente fina.

P/1– E os pais deles não vieram?

R– Não. Mas eu não me importei, o amor era com ele, né? Era com o filho, não com o velho e nem a velha, né? Não! Nos demos muito bem, nós fomos felizes até... Olha, quando ele morreu nós tínhamos 42 anos de casados, fora os cinco que namoramos. Mas foi muito bom, passeei muito, conheci esse Brasil todinho. Ele me levava, passeando. Aqui ele fez muitas coisas dentro de Óbidos. Ele se tornou um grande empresário-industrial.

P/1– Aqui em Óbidos?

R– Aqui!

P/1– Ele era uma pessoa brava? Como ele era?

R– Não! Não. Ele era excelente, adorava as pessoas humildes, ele ajudava muito as pessoas, graças a Deus. Por isso que Deus triplicou tudo para nós, né?

P/1– Aí vocês tiveram quantos filhos?

R– Seis e uma que eu falei que criei. Que foram Maurício, Meire, Mauro Jorge, Maristela, Benjamin Max (por causa do avô, que era Benjamin) e Márcia Regina. A última foi a Márcia Regina.

P/1– E por que todo mundo começa com "m"?

R– Porque foi a minha escolha: m, m, m (riso).

P/1– Mas por que "m"?

R– Porque eu gostava de "m". Começou pelo Maurício, que era o nome de um tio dele. Aí depois teve Meire, que é uma tia, irmã dele. Irmão, Maurício; tia... Porque judeu é assim, eles gostam de colocar sempre os nomes repetidos na família. Tanto que a minha sogra, o nome dela era Rebeca e na família tem duas netas Rebeca, Hanna, tudo assim, Meire, tudo era parente.

P/1– Como era o nome dela?

R– Da minha sogra era Rebeca.

P/1– E do pai?

R– Era Ion Tob (assoletra): I-on T-O-B.

P/1– Depois, então, a senhora começou a se envolver com a família, né?

R– Não, depois de muito nós ficamos amigos. Eu nunca fui inimiga de ninguém! Eles me toleravam porque eu não era da religião, mas não tinha outra coisa. Família, todas as duas eram famílias boas e nobres.

P/1– Ele tinha outros irmãos?

R– Quem?

P/1– O seu marido.

R– Tinha! Tinha Félix, Benjamin, Meire, que ainda é viva, Ester, e tem outros falecidos já. E Maurício também, que é médico.

P/1– E eles não casaram com nenhuma judia?



R– A judia que eles casaram fez o que fez...

P/1– Conta pra mim.

R– Ah, é caso passado, deixa pra lá que eu não vou me envolver em família. Já que passou, né?

P/1– Ah, mas conta aqui.



R– Ah... Casaram, mas não viveram com as famílias hebraicas, eles. Nenhum! Todos com católicas, católicas apostólicas e brasileiras!

P/1– Por fora do casamento?

R– Como?

P/1– Cada filho casou com...

R– Casou com quem eles queriam e pronto acabou. Eu só abri o caminho e pronto, deu tudo certo. Quando casaram com quem eles não queriam, deu errado. Agora, as filhas não. As filhas casaram com quem eles escolheram: "Tá morrendo? Vai casar com o fulano!", foi assim, duas casaram com judeus. Hoje são falecidos, né?

P/1– Mas aí a senhora casou com ele e como foi? Ele era muito trabalhador? Como ele foi desenvolvendo os negócios dele?

R– Ele estudou em Belém, né? Ele foi desenvolvendo porque ele era muito inteligente. Ele gostava, ele sentia, assim, que achava nossa cidade pobre. Ele achava que se ele fizesse uma coisa pra a cidade, que tivesse o poder aquisitivo, dava emprego. Ele empregou mais de mil pessoas aqui nessa cidade entre serraria, empresa de juta, gado, fazenda, tudo isso ele fez. Ele foi presidente de clube aqui, quantas vezes! Ele foi gente boa, meu marido era muito trabalhador. Morreu muito cedo, mas Jesus precisou dele e ele lá deve estar fazendo o que não fez aqui, então tá bom, tá tudo bem!

P/1– Como era o trabalho dele? Ele saía para viajar?

R– Viajava muito, viajava muito. Porque para exportação tinha que fazer, ia pra São Paulo, ia pra toda parte, né?

P/1– Ele exportava o que?

R– Castanha. Depois ficou ali a fábrica, acabou tudo. Os empregados da fábrica não souberam levar, né?

P/1– Ele exportava, foi ele quem começou com o negócio da castanha ou foi o pai dele?

R– Ele foi o pioneiro. O pai não. O pai tinha o comércio, mas indústria foi o filho, ele, o Isaac. O velho, não; o velho tinha o comércio que exportava coisinhas poucas: cumbaú, pele – naquela

altura podia, era liberado. Era assim, mas o forte mesmo foi o meu marido, que foi a exportação de juta, cacau, castanha, tudo quanto era da Amazônia nós exportávamos.

P/1– Ele vendia pra onde, a senhora sabe?

R– Ah, vendia pro exterior também, pra Alemanha, pra Inglaterra, pra toda parte.

P/1– Quem comprava dele aqui? Santarém?

R– Não, São Paulo, aquelas fábricas que fazem chocolate, né, que tem a castanha. Vendíamos cacau, toneladas de semente do cacau. Ah, essa cidade tem muito a dever para o meu marido e os amigos também!

P/1– Que amigos...

R– Um foi o pai desta moça aqui, que construiu - ele com meu esposo - uma sede social que nós temos. Oito amigos se juntaram e construíram, coisa boa mesmo, não é (Dilamar?)? Ela já está até dormindo ali (riso). E outros amigos, que já se foram, né, mana? Ele dizia, o meu marido: "Poxa, os meus amigos já se foram". Quando morria um, a gente tinha que deixar uma semana pra dizer: "Olhe, está muito mal, já vai assim...". Tem uma foto dele ali sentado comigo.

P/1– Depois eu vou lá ver. E ele era bom pai também?

R– Muito, muito bom!

P/1– Como é que ele era com os filhos? Ele queria que os filhos fizessem o que?

R– Ah, estudassem, trabalhassem. Chegavam e iam pro comércio trabalhar. Não podia dizer que eram vadios de rua, nunca! Nem eu gostava disso.

P/1– E a senhora trabalhava também?

R– Trabalhava na loja com ele também, 50 anos de loja eu fiquei.

P/1– É mesmo?

R– Com eu pai e com ele, a continuação foi com ele na loja.

P/1– O que a senhora fazia no comércio?

R– Tudo. Eu vendia na loja, no balcão; assessorava as meninas lá dentro, tínhamos várias funcionárias que hoje são balconistas, mas antigamente eram caixeiras, chamavam caixeira. O caixeiro viajante era aquele que vendia mercadoria. Hoje não é mais, né? Hoje tem outras palavras já, que mudou. O paleógrafo tanta gente, que é difícil. Mas ainda vou pra antiga, quando não entendem eu digo como era, o porquê.

P/1– Mas e aí? A senhora ficava na loja e ele ficava fazendo o que?

R– Não! Ficava sogra, sogro, cunhado, ficava todo mundo, em conjunto trabalhávamos.

P/1– Nessa loja.

R– Na loja. Era grande a loja, tinha de tudo.

P/1– Vendia o que?

R– Tudo, tudo!

P/1– Quem comprava na loja?

R– Os empregados mesmos da nossa usina, eles recebiam por semana e podiam tirar antes, né, pra manter a semana. Compravam mercadoria, o pessoal do interior. O pessoal do interior que vendia o cacau, a juta, a gente pagava, tudo era pago por lá. E compravam também, né? Mas não eram obrigados a comprar na nossa loja, compravam onde quisessem. Recebiam o dinheiro e gastavam no comércio onde quisessem.

P/1– Mas a senhora tinha um caderninho?

R– Ah, nós tínhamos as faturas para fazer.

P/1– Com o é que era? A senhora tinha um caderninho...

R– Ah, tinha! Cada uma tinha o seu, as copiógrafas, copiógrafos, né? Cada uma tinha o seu e atendia, fazia as faturas para os fregueses que queriam pegar a mercadoria para pagar em mês. Por exemplo, como a gente fazia com os juteiros: eles levavam a mercadoria para trabalhar o mês na juta, para ter o trabalho dos empregados e quando recebiam vinham pagar as contas. Era assim!

P/1– O juteiro levava os mantimento para os empregados?

R– Não. Os juteiros levavam mercadoria para trabalhar um mês, dando mantimento para os empregados que faziam o plantio. Quando eles vendiam a juta, um mês, dois meses, três meses depois, eles vinham saldar as contas deles.

P/1– Os juteiros ou os empregados dos juteiros?

R– Não! A pessoa que tomava conta, o responsável. Os juteiros eram os empregados. Eram os donos que faziam... Como é que diz? Hoje chamam como eles? Eram os que...

P/1– Empreiteiros?

R– Não.

P/1– Lá no Sul é assim.

R– Os donos mesmos que se manifestam, que fazem. De onde vêm esses homens que vendiam batata, que vendiam laranja, que vendiam tudo isso. Os das indústrias...

P/1– Os proprietários das terras. Eles compravam nas lojas para os empregados deles?

R– É.

P/1– E o pessoal da usina da castanha?

R– Da castanha, eles ficavam assim: recebia o fim de semana, toda sexta-feira. Aí recebiam e eles tiravam o que precisavam na casa deles: um quilo de café, um quilo de açúcar...

R– vinham na nossa loja. Chegavam lá, tiravam, botavam, no fim da semana eles recebiam e vinham pagar. E se quisesse tirar mercadoria, tirava pra pagar na outra semana, era assim.

P/1– E sobrava muito dinheiro ou em geral eles gastavam tudo?

R– Não! Sobrava, deviam pagar outras dívidas que eles faziam em outros comércios, né, onde vendiam outras coisas: supermercado, onde vendia outras coisas que não tinham na nossa loja. Não era obrigado comprar só na nossa loja, comprava se quisesse.

P/1– Esse pessoal de barco comprava na loja?

R– Sabe quem comprava muito? Olhe, Dilamar, o Isaac comprou muito do Antônio Rocha, hoje ele é deputado. Ele tinha um barquinho pequenino. Ele ia pra Manaus e trazia gasolina, combustol, querosene e vendia em latas e tudo. Meu marido comprava deles. Você lembrou um dia comigo, disse lá na praça. O deputado disse: "Olha, eu me lembro, a senhora era uma registradora lá".

P/1– E como era o seu dia a dia? A senhora tinha seis filhos e ainda criava uma...

R– Mas na minha casa tinham mais de oito empregadas. Todas, não eram empregadas, eram filhas. Madrinha, que eu era. Porque no interior antigamente não tinha essa... Esse bairro que tem hoje, a Bela Vista. Aquilo tudo era nosso! Era lá que era nossa serraria, três serrarias.

P/1– Nesse bairro?

R– Nesse bairro. Aí, sabe o que eles fizeram? Foi um cara lá, queimou tudo lá pra poder ficar... Sei lá o que eles fizeram, mas eu sei que no fim formou um bairro lá. Nós perdemos, o governo não pagou, ninguém, né? E nós ficamos assim, eu não tive nenhuma terra lá, que era meu. Nada!

P/1– O governo não indenizou vocês?

R– Não. Acho que se indenizou, não me lembro, foi pouca coisa, na certa uma indenização muito irrisória. Sabe como é, tem que ir devagar com as coisas. E de forma que fizeram esse bairro muito bonito que está. E o meu marido pensava um dia de colocar... Não era Bela Vista, era Vista Alegre, que ele queria colocar. E colocaram Bela Vista, eu acho que os próprios de lá que sabiam, né, gravaram aquela palavra dele. Ele queria montar aqui para meninos de rua, para aprender, fazer uma escola de aprendizado lá.

P/1– Ele fez...

R– Não. Não chegou a fazer, porque ele foi antes.

P/1– Bom, vamos voltar aqui pra sua casa. A senhora tinha oito funcionários? Oito empregadas?

R– Não eram empregadas, eram afilhadas. Porque elas não tinham onde morar e as senhoras do interior vinham: "A senhora não tem... meu filho não tem onde estudar, não tem onde colocar...". Aí eu dizia "então traz". Eu não morava nem aqui, morava lá na Rua do Comércio. Depois eu colocava aqui dentro da minha casa: "Vem, vem pra aqui". Mas de lá, minha filha, eu ensinava a fazer tudo: cozinhar, lavar, passar, fazer doce, tudinho. Todas que aprenderam comigo saíram casadas. Estão em casa em São Paulo, tem em Manaus...

P/1– Mas aí a senhora... E quantos anos elas tinham quando vinham?

R– Ah, elas tinham 16 anos, 15, não tinha menina de oito anos, de quatro. Para eu criar, para me dar trabalho? Eu tinha meus filhos já, né? E elas nem criavam meus filhos porque a gente nunca deixa as crianças para os outros criarem, quem é mãe cria! Ajuda, é uma ajuda que a gente tem: "Pega isso, pega aquilo". Ajuda, mas criar é a mãe. Eu não confiava, fazia o mingau, fazia tudo. Ensinava, né?

P/1– Então as meninas moravam nessa casa e vinham para cá? A senhora já tinha essa casa?

R– Não, não. Essa casa foi construída.

P/1– A senhora morava onde com seu marido?

R– Lá embaixo na Rua do Comércio, próximo à nossa loja mesmo. Era naquela rua lá do colégio inteirinha, aquela esquina lá; depois daquela loja de confecções, para lá era tudo nosso até perto do mercado.

P/1– Todas aquelas casas?

R– É, mas não eram aquelas casas que têm hoje. Eram armazéns: armazéns de gasolina, armazém disso, armazém daquilo, era assim, sabe?

P/1– E era tudo de vocês?

R– Era.

P/1– Nossa, era então... Podemos dizer que era a família mais poderosa de Óbidos?

R– Tínhamos, tínhamos condições mesmo. Depois vieram outros, claro. Vieram outras pessoas também; o Chocron também, que veio, né?

P/1– Mas na época os Chocrons já existiam?

R– Como?

P/1– Já era uma família poderosa também?

R– Todos eles! Todos eles, os Chocron... Aí tinha os italianos, tinha Samuel Coen, tinham vários italianos também aqui que tinham um poder bom.

P/1– Quais os nomes dos principais que tinham negócios...

R– Aqui tinha Samuel Coen, Jayme Belicha veio depois de Juriti para cá.

P/1– Então espera aí, deixa eu entender. Me conta o nome dos grandes homens de negócio aqui: era o Seu Isaac Amoe...

R– Chocron.

P/1– Como era o nome dele?

R– Fortunado Chocron.

P/1– Quem mais?

R– Samuel Coen, que era da mesma... Também era comércio.

P/1– Também era judeu, né?

R– Judeu. Belicha também, que teve, que hoje tem indústria de castanha, Jayme Belicha. A indústria de castanha também ele tem. Chocron também tem indústria de castanha. Os pioneiros fomos nós, né? Depois vieram eles.

P/1– Quem mais que tinha?

R– Ah, tinham vários. Bem, comércio sem ser de exportação, entendeu? Tinham vários comércios de tudo.

P/1– E a senhora trazia as meninas e elas moravam numa casa e vinham ajudar na sua casa?

R– Não! Moravam comigo, eu dava tudo, do colégio à tudo.

P/1– Elas estudavam?

R– Estudavam, estudavam sim. Eu não queria ninguém burro em casa.

P/1– Estudavam que horas? De noite, de manhã?

R– Não, não. Estudavam de manhã com as minhas filhas. Saíam para colégios de freira, aprendiam a fazer doce quando aparecia um colégio. Tudo junto com as minhas filhas.

P/1– Mas se elas saíam para ir à escola, quem cozinhava para o almoço?

R– Mas tinham as senhoras. As mocinhas não. Tinha até garotão que eu ensinava a servir mesa. Quantos foram pra mineração e lá se empregaram? (Barulho de construção)

P/1– Então as meninas iam para a escola junto com as suas filhas?

R– É. Já casaram, estão em São Paulo, Manaus, foram crescendo, ficando mocinhas e...

P/1– Mas a senhora não pagava, não, né? Só ajudava...

R– Não, não pagava. Eu pagava o colégio, roupa, manutenção, tudo.

P/1– E elas ajudavam na casa?

R– Ah, ajudava, assim, porque eu tinha cozinheira, lavadeira, tudo.

P/1– Quantas que a senhora pagava e quantas a senhora ajudava?

R– Pagava a umas três, quatro.

P/1– Que era a cozinheira...

R– Lavadeira e arrumadeira. Elas eram ajudantes de brincar com as meninas, sabe, preencher.

P/1– Quantas pessoas tinham na casa, então?

R– Olha, com empregada tinha, contado com todas, umas 12 pessoas ou 15. Mas todo dia tinha gente, todo dia! Tinha o pessoal da fazenda que vinha e ficava; tinha amigos da gente que vinham de São Paulo; hoje tem almoço, tem isso, tem aquilo... Nunca virava.

P/1– Muita gente pra almoçar?

R– Muita gente.

P/1– E o que a senhora botava na mesa pra alimentar tanta gente?

R– Ah, minha filha, o que eles comem aí fora: o peixe, o pirarucu – um

peixe muito bom da Amazônia, da água doce, muito bom, que é o nosso bacalhau. Salmourado e salgado vira o nosso bacalhau. Bem preparado! Peixe, tinha variedade de peixe.

P/1– Todo dia tinha variedade de peixe?

R– Aqui na Amazônia sim.

P/1– Mas aqui na sua mesa?

R– Não. Aqui a gente come o peixe esporadicamente, quando quer. Quando quer: peixe, carne, frango, assim.

P/1– Tinha alguma coisa que era, assim, todo dia?

R– Ah, farinha! Adoro farinha, sou bem cabocla.

P/1– Me conta dos seus filhos. A senhora foi tendo seis filhos e eles todos iam para a escola aqui e depois iam estudar fora. Todos os seis foram estudar fora?

R– Foram, todos os seis se formaram.

P/1– Se formaram em que?

R– Olha, advogado; esse que está na loja hoje, o Maurício, ele é engenheiro agrônomo; A Meire é advogada; a Maristela é advogada; a Marcia está se formando agora em ação social, é ação social? Ela está se formando agora em Belém. Ela fez o vestibular e não concluiu porque veio aqui para dar assistência ao pai, que já estava ruim, diabético, perdendo a visão.

P/1– Quem? Seu filho ou seu marido?

R– Meu marido. Aí ela veio para dar assistência aqui para ele. Deixou tudo lá, até lanchonete ela tinha lá em Belém. Essa é a mais nova, ela tinha um lanche lá bom. E veio para cá e ficou.

P/1– E todo mundo estudou advocacia?

R– Não. Três. O Mauro é bacharel... (pausa)

P/1– Mas conta para mim, com o que eles trabalham hoje?

R– Hoje? Comércio. Meu filho tem comércio hoje. Ele trabalhou na Imater, depois ele não foi mais, casou e tem loja.

P/1– Esse filho que está aqui em Óbidos. E os outros que estão em Belém?



R – É, estão em Belém. Tem um nos Estados Unidos, que é o Max. Este foi empresário, ele tem TV, a televisão em Óbidos é dele, a Sentinela da Amazônia.

P/1– Ah, é dele?

R– É dele.

P/1– Bom, então seus filhos foram para Belém e depois que estudaram não voltaram mais?

R– Não. Trabalhando, né? Ficaram trabalhando, casaram. Só Max que está lá nos Estados Unidos, trabalha. Ele tinha lá um negócio de televisão, mas ele me disse: "Mamãe, eu estou enjoado já". Ele teve um problema no coração, né, a válvula mitral dele. Ele teve que ir para os Estados Unidos para fazer a cirurgia dele, mas não foi safena nem nada.

P/1– E aí ele não voltou mais.

R– Não. Ele está lá faz dez anos. Ele está com vontade de vir, que agora ele é cidadão americano. Já saiu o Green Card dele: é cidadão americano.

P/1– Ah, decidiu imigrar para lá. A senhora já foi lá visitá-lo?

R– Não, ele não me convida, não me leva. Anda me comparando com esses velhos que andam tudo caquéticos quando vêm aqui pra Amazônia, não quero. Quando eu estava mais nova... Não cheguei a ir para lá, né? Fui para o Uruguai, Paraguai, Argentina...

P/1– A senhora viajou muito?

R– Viajei o Brasil todo.

P/1– Viajou com seu marido?

R– Com meu marido.

P/1– Ele levava a senhora para passear ou para trabalhar?

R– Não! Passeio, nem ele... Ele unia o útil ao agradável.

P/1– Como assim?

R– Assim, São Paulo: se ele tinha uns negócios lá, eu saía com ele de noite, tudo e de dia eu saía para o comércio, ficava comprando com amigas da gente. Amigas, mulheres dos esposos que faziam negócios com eles também, nossos agentes. É isso aí, eu saía para fazer os negócios e a vida à noite era livre. Saía para jantares, concertos, teatros. A gente saía muito...

P/1– Qual o lugar que a senhora mais gostava de ir quando viajava?

R– Todos os lugares, para mim. Todos os lugares que eu fui foram ótimo porque eu passeei, gostei, né? Foi bom.

P/1– Mas a senhora preferia, por exemplo, ir para o Rio de Janeiro, São Paulo ou...

R– Não. De preferência, se eu tivesse que sair, eu queria ir para Fortaleza porque minha filha morou dois anos lá e eu gostei de lá. É uma cidade boa mesmo para a gente viver com muita saúde...

P/1– E em todas as cidades que a senhora ia, a senhora aproveitava para fazer compras?

R– Fazia.

P/1– Mas era compra pro comércio ou era compra pessoal?

R– Ah, não! Pra mim, pessoal, presentes que eu trazia aí para esse povo todo. Presente pra caramba que eu trazia para todos, para todos! Aqueles que tinham cargo de confiança, sabe? Para minhas empregadas de casa também, não eram empregadas, eram funcionárias.

P/1– A senhora não tratava...

R– Não!

P/1– A senhora tinha funcionários de quem não gostava?

R– Não. Todos me tratavam bem! Eu sempre fui feliz.

P/1– Todo mundo trabalhava bem ou tinha gente que não sabia trabalhar?

R– Não. Eu só queria quem soubesse; se não soubesse, não entrava aqui, que eu não queria. Eu exigia antes, para fazer comigo. Cada qual tinha o seu setor de trabalho. Sou eu e uma senhora, que está velhinha, que me ajuda. Ela que faz pra ele, pro meu filho, é ela que lava a roupa dele, ajuda ele. Ela me ajuda e eu ajudo, são assim as coisas aqui.

P/1– Com quantos anos o seu marido faleceu?

R– Ele tinha 66, ia fazer 67.

P/1– Isso faz quanto tempo?

R– Hoje faz 15 anos, mas ele para mim não morreu, está aqui.

P/1– O que aconteceu com ele?

R– Diabete, ele teve AVC, teve dois; perdeu a visão. Pela diabete, né, hipertenso.

P/1– Ele era muito tenso, muito nervoso?

R– Não. Mas devido à diabete... Todos nós somos hipertensos, né, a gente que descuida de saber o que é e o que não é.

P/1– Ele teve AVC ou enfarte?

R– Não, AVC. Estava bem, menina, um dia, às dez horas da noite, eu subi lá e tinha dado o troço nele. Aí fomos pra Belém de avião e morreu.

P/1– Foram pra Belém?

R– Foi. Ele morreu lá e foi enterrado lá no cemitério israelita.

P/1– Foi no cemitério israelita?

R– Ah, foi. Lá onde tem lá a família dele. Porque não se chama nem... Não vai lá para aquilo, a gente chama cova, não é. É (fraguancia?) o nome, ele está na (fraguancia?) lá, quer dizer no túmulo, é que lá não existe túmulo, ele tá na (fraguancia?).

P/1– Mas por que ele foi para o cemitério israelita lá?

R– Porque ele era judeu!

P/1– Ele que pediu?

R– Não. É porque é judeu e é isso, os pais dele foram assim, é da família.

P/1– Os pais dele já faleceram?

R– Já. O pai dele e o irmão foram enterrados em Belém; a mãe aqu,i e o avô, parece.

P/1– Não no cemitério israelita?

R– Tem aí, é separado dos outros.

P/1– E quem faz a reza se eles morrerem?

R– Claudia (Manique?) também, as pessoas que entendem. Até eu já entendia, menina, eu fazia também. Mas eu fazia assim: ele ia na minha igreja, em várias que eu fui. Ele me levava: "Vamos na igreja x?", me levava. Ele gostava até de rezar o Pai Nosso. Nós íamos batizar um rapaz, sabe, um mocinho daqui e o padre era muito bom conosco, era até o Frei Angélico. Aí eu ensinei, "vamos embora, batizar igual ao João". O rapazinho até já faleceu. Ensinei a ele a dançar, a gente dançava, a gente era muito animado aqui em casa. Essa casa aqui era de muita festa! Quando ele viajava, quando ele chegava, eram essas portas todas abertas e um banquete era servido.

P/1– Para recebê-lo?

R– Para recebê-lo. Avião teco dando volta no centro da cidade, sabendo que ele ia chegar; meu filho tocava piano, ele vinha tocar para quando alguém chegasse, eu, ele, quem viajasse; eu toda bonita ficava esperando ele (riso).

P/1– Aí a senhora mandava botar uma mesona!

R– É, aqui. É aquela ali. Essa mesa foi feita na nossa serraria mesmo, foi feita lá.

P/1– E como foi o enterro israelita dele?

R– Ah, mas tão bonito aquilo. Olha, vou dizer: é muito bonito aquilo! Em Belém, ele foi enterrado lá no cemitério israelita, mas eles lá, ninguém vê mais. Morreu, ninguém vê. Eles pedem, foram antes... Eles ficam num reservatório gelado, sabe, lá. Aí eles dão banho, fazem tudo. Sabe por que eu entrei? O rabino lá deixou entrar. E o rabino, lá em Belém, é meu sobrinho, era sobrinho dele, do meu marido. Então ele... Mas antes disso, eu entrei. Sabe, ele estava na pedra, mármore. Mas tão embrulhadinho, sabe, parecia uma múmia. Aí eu beijei, cheirava, parecia um bebê recém-nascido, com talco, tudo com mercúrio. Tudo arrumado, você não vê o rosto. Aí ficamos lá, esperamos os últimos filhos chegarem, que estavam todos... Um para o Rio, um para ali, outro para aqui, aí chegaram todos e aí que foram ver, trouxeram pra onde fica. Punham lá o corpo, os familiares sentados... Mas, sabe, que não dá vontade de chorar, a gente fica tão feliz, tão alegre.



P/1– Por quê?

R– Porque é uma alegria a gente ver a casa toda cheia... É um jardim, um jardim! No dia que ele faleceu, depois eles serviram banquetes, no último dia. Os doces, biscoitos, pães, tudo feito de trigo e são os judeus que fazem isso.

P/1– Mas quem faz?

R– Em Belém, eles têm lá.

P/1– A família dele?

R– Dele, toda. Família de judeu é uma só e eles todos se congregam, têm tudo organizado, sabe?

P/1– Entendi. Aí servem...

R– Servem de tudo pra gente tomar um cafezinho, um refrigerante, uma azeitona, uma coisa assim. Muito bom, ficam oito dias lá, com aquelas luzes acesas dentro. As senhoras ficam embaixo, os senhores em cima –separados, completamente –e

no enterro só vai homem, mulher não vai. E o filho mais velho desce na sepultura para se despedir do pai, meu filho fez isso. Agora, lá no fundo mesmo da cova, é tudo assoalhado pelos lados, é igual a um quarto. O corpo vai fora do caixão; eles levam num caixão e chegando lá eles debruçam naquela armação, na terra, né, feito um quartinho, assoalhado. Aí tiram o corpo e põem lá, aí fecham e bota as terras, né?

P/1– E a senhora foi também?

R– Não. Só ia homem. Oito dias depois, que tinham as orações, que fazem aquela festa...

P/1– A senhora ia nas orações?

R– Ah, era obrigada a ir, sim!

P/1– Dentro da sinagoga?

R– Dentro da sinagoga, dentro da sinagoga.

P/1– Aí a senhora não ficou triste.

R– Não! A gente não chora, a gente fica satisfeito de ver que ficou tão bonito, que ficou tão bem, bem assessorado por tudo, a gente não tem medo por nada.

P/1– Ele tinha família lá?

R– Tem. Tem família lá, em São Paulo... Era muito bonito, o meu marido. Altão, ele.

P/1– É?

R– Era.

P/1– Era louro ou era moreno?

R– Não, moreno. Não escuro, mas claro, mais claro do que eu. Bem sobrancelhudo, bigode, bonito. Tem fotos dele por aqui por casa.

P/1– Depois eu vou olhar. Mas aí a senhora voltou para cá?

R– Aí eu fiquei um tempo lá em Belém, os filhos não queriam que eu voltasse para cá. Mas eu quero estar aqui no meu cantinho, que a gente quando fica com mais idade, a gente quer estar no cantinho da gente. Filho é bom, filha, nora, todos são maravilhosos, mas a gente tem que ter o cantinho da gente. Porque nós, com a idade, nós temos os nossos apegos, assim, de querer uma coisinha, outra, se preparar, arrumar, ter o que é seu, né? É assim que eu me sinto bem.

P/1– Mas aí a senhora voltou e como ficou o seu dia a dia? A senhora não ficou com falta? O que aconteceu?

R– Ah, não... A falta é todo dia, mas ele está perto de mim todo dia, me dá força e eu vivo bem.



P/1– E como é que continuou o trabalho?

R– O trabalho ficou: os filhos trabalharam, trabalham, né, cada um tem sua família; eu fico aqui, me mantenho com o que eu tenho, que sobrou pouco, só pra eu viver. Só pra eu viver! E meus filhos que me dão uma ajuda.

P/1– Mas por quê?

R– Aquele império terminou.

P/1– Como foi isso?

R– Sabe quando não está o esteio, que chama, né? Então as coisas vão...

P/1– Algum filho ficou pra cuidar?

R– Passou, mas não deu porque havia coisas passadas que não podia.

P/1– Tipo o que?

R– Porque hoje, minha filha, tudo é negócio empregatício, então pronto.

P/1– Me explica melhor, eu estou um pouco perdida. Eu não entendi. O que foi dando errado no império?

R– Foi dando errado? A Justiça tira isso, deve aquilo, paga com isso, tira aquilo, tira isso... Tudo vai embora!

P/1– Mas a Justiça estava corando pelo que? Era processo de...

R– Trabalhos, processos que tinha também para pagar. O que vinha atrasando, o que vinha atrasando e foi ficando. Aí pronto, encerrou, foi assim.

P/1– E aí o que aconteceu? Foi tirada a serraria, a usina fechou?

R– Tudo, tudo. Não tem mais nada. Acabou, sefinir, pt, saudações (riso)!

P/1– Quanto tempo demorou esse processo?

R– Ah, eu não sei, mana. Eu não sei. Já é outro quadro que eu já não posso nem dar explicação, né, que só mesmo...

P/1– Entendi. E o que ficou pra senhora?

R– Sobrou o que eu tenho, é com que eu vivo o dia a dia.

P/1– E os seus filhos passaram...

R– Meus filhos me ajudam. É assim: esse que está comigo, o que faz aqui, eu estou junto com ele; outros pagam meu Unimed, é assim.

P/1– A senhora tem saudade daquele tempo?

R– Ah, eu tenho. A gente lembra com saudades, que era tão cheia a casa, tanta alegria, tanta coisa. Mas continua a mesma coisa pra mim, nunca faltou nada, só ele que faz uma falta muito grande pra mim.

P/1– A senhora sente mais falta do que?

R– Da presença dele.

P/1– Ele era carinhoso?

R– Era. Era presente em tudo, pra mim ele era, pros filhos também. Deus o livre! Filhos e filhas pra ele eram em primeiro lugar.

P/1– Me conta, assim, qual é o seu sonho agora?

R– O meu sonho? É viver mais um pouco e viver para os meus filhos, meus netos, minhas noras, meus genros. A minha vida é essa agora: quero viver mais um pouco até quando estiver dado por... Jesus todo poderoso é que vai marcar o dia, que a gente vem, né, com o dia x. Então pronto, nesse dia eu terei que partir. Mas aqui na Terra eu não quero deixar um inimigo! Eu não tenho, se tenho é gratuito. Eu sempre fiz tudo para nunca... Tive e nunca fui nariz empinado. Tive e muito, muito e não sou de... Não, sou a mesma, continuo a mesma: feliz com todo mundo e gosto de receber as pessoas dentro de minha casa. E sei tratá-los com amor, com carinho e como antes, como ele fazia, eu continuo.



P/1– E no fundo, o que te faz falta?

R– Ele!

P/1– Só?

R– Que era meu companheiro ideal.

P/1– E da parte, assim, de dinheiro...

R– Não! Dinheiro é a mola que a gente precisa pro dia a dia. A saúde em primeiro lugar! Viver bem com as pessoas, né? Amar o próximo como a si mesmo.

P/1– A senhora vai muito à igreja?

R– Não. Eu sou da igreja sim, mas nas horas certas. Por exemplo, o mês de julho é aqui da nossa padroeira. Eu frequento os 15 dias de festa dela; vou à igreja, faço as minhas orações, as minhas obrigações, mas aqui dentro de casa eu tenho o meu templo armado. Eu tenho minhas imagens que eu cultuo aqui: é o casarão de todos os santos, olha só!

P/1– A senhora tem muitas imagens?

R– Tenho também outras imagens, de outros, outras réplicas. Eu cultuo tudo aqui, entendeu?

P/1– Não é só santo católico, não?

R– Não! Meu marido era espírita, judeu espírita, fazia curas. Ele ajudava as pessoas, ele tinha aquele dom dele, né? A gente segue um pouquinho, as filhas seguem.

P/1– As filhas são espíritas?

R– São.

P/1– Nenhum quis voltar para entender mais sobre o judaísmo?

R– Não. Nem os que são filhos de judeus mesmo não entendem, não sabem. Nós começamos deles, né? É assim, não tem nada anormal não. Tem os parentes dele, eu vou, eu falo, eu converso, não tenho nada de anormal.

P/1– Tá bom, Dona Eleonora.

R– Pois é, minha filha! A gente vê até a vida da gente, né?

P/1– O que a senhora sentiu contando a sua história?

R– Ah, me senti feliz porque tem escrito tudo isso aí. E muito mais, né?

P/1– Quando a senhora vê tudo isso, o que a senhora pensa da sua vida?

R– Eu penso em tudo de bom que eu já tive, que eu tenho e que eu terei daqui pra frente aí. Feliz, vendo os meus netos, bisnetos, filha, filho, amigos, todos me cumprimentando, falando, ouvindo, me visitando. Eu fico satisfeita porque eu ainda sou lembrada, não sou esquecida, então é isso que me satisfaz. Eu preencho meu vazio e meu tempo aqui. Para mim isto aqui é uma terapia que eu faço todo dia, com a ajuda de Deus. Que a gente sempre pede saúde, né? O que eu mais desejo é a minha saúde, nada mais. Todo o dia eu agradeço, todos os dias eu agradeço! Todos os dias eu faço as minhas orações, às cinco e meia da tarde, eu estou aqui sentadinha. Vou à porta, tomo meu banho, vou lá, volto e sento aqui, fico fazendo as minhas orações com fé.

P/1– Todo dia?

R– Todos os dias da minha vida, vai ser. Tanto faz em casa, em terra, viajando, no ar, no mar, em toda parte eu estou sempre consciente com as minhas orações.

P/1– É nisso que a senhora se dedica mais.

R– Me dedico muito. Não peço só para mim, eu agradeço pelos meus dias e peço pelos meus amigos: os que estão encarcerados, os que estão parindo, os que estão andando, os que estão bebendo. Eu peço luzes, que Deus ilumine o caminho, né? É a minha vida essa aqui. E eu sou feliz; passa um "oi", e outro, e outro, depois vem outro. Quando vem um bêbado que eu digo: "Volta depois, que não dá para conversar contigo agora", mas eu não enxoto, não faço nada, não. "Meu filho, volta em outra hora que eu quero muito conversar melhor contigo." Eu já fui quase assaltada aqui na frente de casa, minha filha. O cara veio, mas eu tenho uma presença de espírito muito grande! O cara veio e perguntou a hora, aí eu disse. Ele ficou olhando, estava tudo iluminado aqui, aberto e eu sozinha. Num domingo tem um sírio de lá de Oriximiná, ele veio andando e ficou. Ele falou "você está só?" "não, em primeiro lugar eu estou com Deus e em segundo lugar, meus filhos que estão...", não tinha um, maninha! Porque aqui tudo é parente, tudo é irmão por aqui, ali, aí. Eu disse: "Por que? Tu queres conhecer meus filhos?". Aí chamava o nome dos meus irmãos: "José, Aluízio? Tu queres conhecer?". Aí eu brinquei: "Olha, tu vais se espantar com a altura dos meus filhos. É cada um "purrudo", tu vais ver", ainda disse bem assim (riso). Aí ele ficou, ficou, ficou andando por ali. Aí vinha um casalzinho, deserto, que sexta-feira na nossa rua aqui é um deserto. As pessoas estão pelos seus balneários, não estão em casa, né? Aí ele veio, o rapaz veio andando e eu chamei "venha cá, meu filho", eu nem conhecia. Aí eu chamei "vem cá, meu filho. Meu filho, esse rapaz que estava aqui, eu acho que ele quer me assaltar porque ele está me indagando muito, não vai ainda". Aí ele se afastou um pouco. "Onde está sua cadeira? Vamos colocar sua cadeira pra dentro." Meu irmão não estava ali, o Zé Guilherme, que é vizinho, estava pro sítio dele. Aí eu peguei e disse assim: "Tá", aí eu entrei, meti a corrente e fui para a casa do meu irmão. Antes disso eu perguntei: "Meu filho, quem tu és?". Eu nem conhecia, pra te ver! Ele disse "eu trabalho no Barco Ana Maria, essa moça é minha noiva". Eu disse: “Tá, meu filho, muito obrigada porque tu me salvastes agora". Ele foi embora e na volta ele passou na casa do meu irmão, eu já estava sentada lá. Eu disse: "Olha, mano, este rapaz que me salvou ainda agora de um cara que estava querendo até me assaltar". "Aí ele pegou..." Eu disse "ele me salvou", contei pra ele... Aí o dito cujo foi preso lá em baixo, fez um assalto lá em baixo e foi preso.

P/1– Olha só!

R– Deus é grande, né, mana?

P/1– Eu acho que a gente também já terminou...