Museu da Pessoa

Mestre do coração derrancado

autoria: Museu da Pessoa personagem: Antonio Luiz de Matos

P/1 – Então, mestre Antônio, vamos começar nossa entrevista. Eu vou pedir para o senhor falar novamente o seu nome completo, o local e a data de nascimento do senhor.

R – Tá bom. Veja bem, eu sou lá de Minas Novas, do Vale do Jequitinhonha e o meu nascimento foi em 1943, 14 de outubro. E moro numa comunidade que é zona rural, o nome de lá é São Benedito de Capivari, eu nasci, criei e até hoje moro lá, né? Venho sempre a Minas Novas, mas estou sempre residindo lá e meus avós, meus pais também foram nascidos lá e eu dou essa continuação lá até hoje.

P/1 – E qual é o nome dos seus pais?

R – O nome do meu pai era Sebastião Luiz dos Santos e meu avô chamava Artur Luiz Pereira. A minha mãe Maria das Dores de Matos. É por isso que eu tenho esse nome de Antônio Luiz de Matos.

P/1- E seu pai fazia o quê? Trabalhava com quê?

R – Meu pai trabalhou na zona rural, ele era lavrador. Meu avô também lavrador e deu seguimento pra nós e nós continuamos, no caso eu e os meus irmãos fazendo aquilo mesmo que eles faziam. E aí nós fomos tocando o barco pra frente.

P/1 – E o que se plantava, mestre Antônio?

R – Nós plantávamos feijão, a gente fala na língua nossa lá, manaíba que é a mandioca, macaxeira em alguns casos. Feijão, arroz, a terra da gente era brejada, plantava muito arroz, banana, cana e a gente sobrevivia disso… Abóboras, né? E outras coisas, horta, vários tipos de legumes, bem assim tirados da terra, a gente sobreviva disso, a minha bisavó... Minha bisavó não, desculpa, a minha avó Flozina trabalhava fazendo peneira, esteira e esse tipo de coisa e a gente... Isso aí era para sobreviver, era uma ajuda que minha avó fazia pra ajudar meu avô Artur Luiz Pereira.

P/1 – E o senhor falou que ia contar umas histórias do senhor Artur?

R – Sim, eu vou ter o momento para estar contando as histórias do meu avô Artur, da minha avó Flozina, dos meus avós, deles todos.

P/1 – Maravilha. E quantos irmãos vocês eram Mestre Antônio?

R – Veja bem, nós somos oito irmãos, é até incrível, do lado de meu pai... Meu pai casou duas vezes, ele casou duas vezes, minha mãe morreu muito nova, né? E ele casou duas vezes e eu sou da primeira mulher dele. Nós somos quatro irmãos, a gente costuma dizer que é de pai e mãe e são quatro só de pai e a mãe era outra, porque meu pai casou duas vezes. Ele teve a sorte de casar duas vezes e eu parece até que peguei um seguimento dele, porque eu também sou viúvo. Minha esposa é falecida, mas pra mim está dando uma dificuldade pra casar, é porque hoje está assim meio complicado...

P/1 – É mais difícil?

R – É mais difícil, a gente tem que pensar muito hoje, naquele tempo era muito fácil porque o pessoal era mais simples, o pessoal hoje está muito ativo graças a Deus, né? Porque não pode ficar durante todo o tempo do jeito que era, tem que ter certo esclarecimento, eu dou muito valor a isso é o que eu sempre falo com meus filhos: estude e entende mais, porque isso ajuda as pessoas até mesmo no dia-a-dia.

P/1 – E Mestre Antônio, como é que era a convivência nessa casa com oito irmãos? Como era a divisão de tarefas? Cada um tinha que fazer alguma coisa?

P/1 – É incrível essa pergunta... Você não é a primeira, pra várias pessoas que eu tenho feito entrevista fazem essa pergunta. Engraçado, não era complicado. Quando o dia amanhecia, meu pai pegava os mais velhos, levava pra roça pra capinar, carpir... Em Minas Gerais é capinar, em São Paulo é carpir, porque aqui a palavra carpir é capinar e lá no norte é capinar. Ele levava nós pra capinar, as meninas, as mulheres também iam conosco. E quando era à tarde, ficava só a mãe e quando a tarde chegava e tinha aqueles meninos menores que não aguentavam carpir, capinar, iam cuidar da casa junto com a minha mãe. E a gente cuidar nas lavouras pra trazer o sustento pra criar os outros pequenos e esse era o lema nosso e à noite ia contar caso, história. E não era muito assim complicado, já hoje tem um tipo de complicado que um quer fazer uma coisa, o outro já não quer fazer e tem uma mistura... Nesse tempo a pessoa viva muito feliz, contava muita história. Como se diz, recebia aquilo com o maior prazer aqueles cuidados da mãe, do pai, né? Do jeito que eles podiam que eles não tinham como dar uma boa guarida que a gente podia estar dizendo isso e eles viviam bem, né? Dava final de semana tinha aqueles investimentos, aquela festa, que fala festas na roça. Ia divertir e na segunda-feira estava no batente outra vez. E assim ia levando, no final de semana ia nas feiras, levar uma abóbora pra vender, levar uma mandioca, levar uma farinha, levar um milho, levar um feijão, um arroz e assim era a vida. E ia correndo até que chegasse um tempo que cada um já estava de maior. Não falava em estudo, porque não tinha estudo, a gente não tinha o direito de estudar, estudo era pra o senhor fulano... Até que hoje alguns dizem assim: “Mestre Antônio...” quando eles falam Mestre Antônio com grande cuidado eu falo: “Mestre Antônio não é Antônio Bastião”, mas se bem que eu concordo com eles, porque dado pelo pai, eu tenho uma patente de mestre, eu fui agraciado como mestre, porque o meu avô passou isso pra nós, né? Pra mim e eu dei seguimento e hoje eu tenho uma patente de mestre e apesar da idade que eu estou, até que eu fico... Eu falo pra meus filhos “Oh, eu queria ter a idade que vocês têm” eles dizem: “Pai, mas a vida que nós temos é muito sofrida é um corre, corre no dia-a-dia” “Pois é, mas é um corre, corre no dia-a-dia, mas vocês têm o direito de estudar” eu não tive o direito de estudar. Eu não tive direito de estudar porque antigamente a gente comia o pão que o diabo amassou, só Deus sabia o pão que a gente comia pra ajudar os pais a criar os outros pequenos que tinha, né? Aí foi o seguimento que a gente foi dando aos poucos.

P/1 – Maravilha. Me fala uma coisa... Vamos falar ainda assim dessa época de infância, né? Vocês moravam num sitiozinho é isso?

R – Um sitiozinho bem pequeno, num grotão, eu costumo dizer que é um grotão e aí todos me perguntam: “Mestre Antônio...”

P/1 – O que é grotão?

R – A palavra grotão, o que é? É porque a gente morava isolado da cidade, no sítio que a gente morava era... Não vou dizer que é um deserto, porque é buraco, deserto são pedreiras, morros e lá é fundo, por isso que tem o nome de Várzea Caldeirão...

P/1 – Várzea Caldeirão?

R – Por isso que tem o nome, o córrego Várzea Caldeirão. Por que Várzea Caldeirão? Várzea Caldeirão porque… Foi esquisito, né? O pessoal tinha que sobreviver da própria terra, tirar tudo pra poder sobreviver. Pra você ter uma ideia, a família nossa, a família do velho Artur Barreiro que nasceu lá nos quilombos, lá no Macuco Mata Dois e hoje é uma área que tem um trabalho lá dos Quilombolas, né? E a gente... Eu cheguei a vestir algumas roupinhas, na faixa de 17 anos, 14 pra baixo, eu conheci pessoas lá que cortavam uma fita e amarravam na cintura, porque não tinha condições mesmo, meus filhos, quando eu conto essa história, meus filhos choram. “Pai, não conta isso, porque do jeito que o senhor trata nós, o senhor luta pra tratar de nós e em vez do senhor fazer... O senhor passou por isso...” Eu falo: “Meus filhos, eu conto pra vocês pra vocês verem como é que era o tempo passado, como que era o sofrimento do seu tataravô, do seu avô, até mesmo do seu pai até certa altura. E por isso que eu tenho esse cuidado com vocês.” “Pai, me conta essas histórias, porque nós não aguentamos..!. Eu tenho uma filha que chama Eva, ela é... Eu tiro o chapéu pra ela, ela é astronômica, porque ela é... Eu pus nome nos dois Eva e Adão, a Adão mora lá no interior, eles dois são um cartão postal meu, porque eles são dedicados demais, eu costumo dizer pra eles... Eu agora estou com um netinho também do mesmo jeitinho humilde. Não é filho do Adão, é filho da Eva. E assim era vida de um passado que, eu costumo dizer, lá nos cafundó, cafundó é grota. E era muito difícil, a gente ainda ia pra cidade na época das missões, tinham as missões, os padres iam lá na cidade, meu avô ia na frente, fazia uma cabana lá de ramo de folha, de garranste, na cidade porque não tinha...

P/1 – Pra vocês ficarem nas missões?

R – Pra nós irmos nas missões, ficava seis dias.

P/1 – O que eram as missões?

R – As missões são... Os padres vinham da Bahia, vinham lá de Aparecida do Norte, vinham de outros lugares, vinham lá de Conquista, Feira de Santana lá pro Nordeste, lá pro lado de Fortaleza vinham as caravanas de padres. E ali formavam as missões, aí a gente cortava aqueles paus grandes pra fazer aquelas cruzes, aqueles cruzeiros pra assentar pra gente fazer aquelas capelinhas pra estar rezando ali. Naquele tempo, a minha avó, ela fazia penitência: punha nós todos na estrada, o meu pai fazia uma cruz grande assim e longe de casa, uns dois ou três quilômetros, e quando era meio-dia em ponto, punha nós todos pra ir para o rio apanhar pedra, sem nada na cabeça. E naquele tempo não deixava a gente... Hoje eu uso cabelo assim, mas naquele tempo nós não tínhamos direito de usar cabelo, ninguém tinha direito de usar cabelo, o cabelo era cortado, eu costumo dizer, no totó. Você vai dizer assim: “totó?” O que é totó? Totó é isso aqui que a gente tem aqui no fundo, se você levar uma porrada aqui você cai tonto. E aí rapava e deixava peladinho no totó. Minha avó ia na frente rezando com uma pedra na cabeça e nós também com uma pedra fazendo penitência pra chover. A gente plantava as lavouras e vinha aquele sol quente que ninguém aguentava, as plantinhas ficavam todas torcidas, morrendo. E aí minha avó punha nós pra rezar terço de noite, aquelas rezas pedindo chuva, nove dias, e quando era dentro dos nove dias o pai mandava chuva, o pai mandava e aí a gente falava: “Agora beleza”. Nós afundávamos na roça plantando de novo aquelas que tinham morrido pra recuperar, e a chuva continuava. Então eu não gosto de dizer que a gente tinha uma vida sofrida, mas sim, uma vida que Deus preparou pra nós e nós tivemos condições de vencer com a força dele mesmo. E foi isso que foi a vida da gente do início, do começo da vida da gente.

P/1 – Que maravilha. Agora o senhor falou que durante a semana era muito trabalho, mas no final de semana tinha umas festas, que festas eram estas?

R – Sim, eu vou responder você, meu avô ele era, acho que até por isso que eu herdei algumas coisas dele, eu fico muito feliz e tenho certeza que lá onde ele está ele está feliz também. Ele mexia com Folia do Divino. Ele fazia os instrumentos pra ele, pro grupo dele e à noite tinha época da paixão, né? Tinha aquele negócio de salvar as almas e ele tinha um grupo que saía que meu avô era... Hoje lá eles falam capitão, né? Antes falava que ele era o diligente, hoje o mais antigo é capitão e ele era capitão, ele é que dirigia, tudo ele dirigia. E quando era noite de Sexta Feira da Paixão, ele saía com o pessoal e a gente era pequeno, eu ficava doido querendo ir com aqueles negócios tudo feito de madeira que chamava vuco-vuco, né? Amarrado uns cordões e saía vu-vu, amarrando a tal de matraca feita de bambu, tudo coisa feita do cerrado, feita oferecida pela própria natureza, ele não devorava o cerrado, ele chegava com muito cuidado, pedia qual ele podia, consultava com as madeiras, com as árvores, qual podia tirar e fazia os instrumentos, fazia pandeiro, fazia reco-reco, fazia chique-chique, tudo de madeira de coité, né? Aquele coité redondo, cabaça, e ele saía salvando as almas. Você vai perguntar: o que é salvar as almas? Com certeza você vai me perguntar, porque salvar as almas Sexta Feira da Paixão é chegar na casa do pessoal sem eles esperarem, eles não sabem é uma surpresa, hoje eles falam surpresa, né? Meu avô ia caladinho pisando na ponta do pé e aí quando estava próximo pra chegar, uns dez metros, 15 metros, ele mandava todo mundo “oh...” só de dedo, eles iam lento assim do tipo... Hoje que eles fazem aquele negócio ali de... Hoje alguns fazem isso aí, é... Ah, fugiu da mente que eles fazem! Sempre a gente vê isso aí, é um negócio assim muito sutil, né? E quando chegava no terreiro, chamava terreiro que era a área da casa, e na casa todo mundo dormindo, não estavam esperando, né? De repente eles fazem uma roda, de repente! E começam a tocar aqueles vuco-vuco feito de servo, lavrava de um lado e de outro assim, ele fica parecendo um peixe, mas ele corta ventos dos dois lados, tanto pequeno como o grande. Uns dizem que é ronca vento, outros dizem roncador e vai batendo aquele trem e ele fala aquelas palavras de quando Jesus estava no alto do carvalho naquele sofrimento e as palavras que ele falava, era semelhante assim de que tinha alguém sentindo uma dor, né? E aí fazia aquela posição ali e quando eles abriam a porta, eles saíam no mundo de novo ali e ia pra casa de outro. Então ele fazia isso.

P/1 – Ele que comandava, o senhor Artur?

R – Ele que comandava, o Artur lá, eles tratavam ele de Artur Barreiro, porque onde ele morou, esse lugar que é, Carambola, lá tinha uma olaria. Por isso que eles colocaram esse nome nele: Artur Barreiro. Ele fez o Barreiro, ele fez a casa dele lá de pau a pique pra sobreviver mais minha avó. E fez a olaria pra fazer telha, minha avó fazia panela, fazia prato, gamela, aquelas gamelas de lavar pé, né? Umas gamelas quadradas de barro, porque não tinha banheiro, tomava banho com as cuias e as cuias eram feitas de barro, fazia umas cuionas de barro, punha água na cabeça pra poder lavar... Chamava cacimba, que a gente conhecia era um poço furado assim de enxada... “Vai lá menino, ô Antônio, vai na cacimba, traz lá a moringa d’água, traz uma cabaça” falava cabaça, né? Nós corríamos no rio e buscava aquela cabaça. “O compadre chegou aqui, eu vou coar um café pra ele, vai lá lavar o coador!” Aí a gente ia na cacimba lavar o coador, na cacimba a gente lavava coador, lavava vasilha, trazia água pra tomar banho na cuia na cabeça. Era assim, a vida era assim, mas era boa porque tinha aquela humildade, fazia aquilo com o maior prazer. É como uns pássaros do mato, os passarinhos saem voando, ficam bem felizes, não importa o que está acontecendo com ele, se vem chuva se não vem, se vem sol, né? A gente vivia desse jeito. E isso que eu estou falando com vocês é a verdade pura, pode ter certeza. A região de Minas Novas, aquela região o Vale do Jequitinhonha hoje, ainda bem... Com essa delicadeza de vocês, esse interesse que vocês têm está fazendo ficar conhecido o Vale do Jequitinhonha, o Vale do Jequitinhonha ele ficou não sei quantos anos sem mapa, você pode perguntar por que isso que eu vou responder você já já.

P/1 – Por quê?

R – Sabe por quê? Era uma região que tinha muito ouro, muito ouro mesmo, e o carrancismo era demais, por quê? Aquela história que meu avô dizia e eu vejo alguém dizer, aqueles que chegavam primeiro puxavam a sardinha só pro prato deles, não tinha mapa justamente pra que outros não fossem, só eles iam. Agora, como eles iam? Iam dentro do rio de barco, canoa.

P/1 – O Rio Jequitinhonha?

R – Eles iam pelo Rio Jequitinhonha, saíam do Rio Jequitinhonha e montavam no Rio Araçuaí e subia. Pegava uma boa parte do Capivari e do Capivari eles embocavam no Rio Fanado, que é aquele rio lá… E do Rio Fanado, ele chegou até Minas Novas. Engraçado a história de lá, eu conto isso porque meu avô era garimpeiro, ele mexia com muito garimpo, o sitiozinho que a gente morava, que ainda é descendente do meu avô, onde eu moro, eu moro lá onde meu avô viveu os dias de vida dele, eu ainda moro até hoje... Eu sou o único que mora lá e lá tinha ouro também, meu avô gostava muito de mexer com ouro. E ele contava história que a minha bisavó Tereza chegou a conviver com pessoas que tiraram ouro lá no Fanado e que esse ouro não era do Fanado, era do Rio Bom Sucesso. Engraçado… Esse Rio Bom Sucesso é um rio pequeno, de vez em quando ele seca. E tinha ouro lá e tinha um país lá fora que os maiores prédios foram feitos tudo com ouro de lá, desse riozinho que chama Bonsucesso por isso que ele tem esse nome de Bom Sucesso. Eles vieram tirando ouro do Jequitinhonha e do Jequitinhonha eles fundaram no Capivari e veio até a altura do Capivari e quando ele chegou onde tinha o Fanado... Não, largou o Jequitinhonha e fundou no Araçaí e quando chegou uma altura, não achou mais ouro, achava assim alguns diamantes e outros tipos de pedras, mas o ouro mesmo que ele estava correndo atrás, que era o bom mesmo, que era o ouro que naquele tempo era barato e muito ouro, eles perdiam a linha do ouro, aí eles voltavam pra trás até que eles acharam de onde que o ouro estava vindo, o ouro que estava descendo, esparramando pra todo o rio, né? Era do Rio Bom Sucesso. O que eles fizeram? Embocaram o Fanado, você pode um dia... Se Deus ajudar, que o pai permitir que vocês forem em Minas Novas, eu vou ter o maior cuidado pra levar vocês pra esta, mostrando a vocês o Rio Fanado até o Bom Sucesso. Aí eles vieram com aquela ganância tirando ouro e quando chegou no Fanado, eles arrancaram pra riba, quando eles chegaram num lugar lá que chama Córrego das Almas, pra riba da barra do Bom Sucesso. O ouro sumiu. Aí passou na barra do Bom Sucesso, era um córrego meio... Eles falaram: “Esse mundaréu de ouro que está descendo pra baixo não é desse córrego”. Aí eles foram embora pra riba explorando, mas nada de ouro, alguns diamantes, outros tipos de pedras, né? Era muito bem trabalhado e quando chegou na altura eles amoleceram, né? Alguns arrumaram a bagagem e voltou pra lá, pro país de onde eles eram, eram muitos, formaram caravana, ficaram aqueles teimosos que meu avô dizia “pecador teimoso”, o velho Artur Barreiro falava, né? Ficaram alguns lá teimando, aqueles que não tinham tirado ouro nenhum… “Eu não tirei ouro nenhum, como eu vou voltar lá pra Itália, voltar pros Estados Unidos, para aquelas bandas de lá, sem ouro?”

E aqueles caras que ficaram ali, rapando aquele pouquinho, achavam aquele tantinho assim e guardavam. Ir embora de que jeito? Tinha investido pra vir, não tinha achado ouro, aqueles que já estavam já cheio, “Não tem mais ouro acabou”, isso amoleceu muito até mesmo aqueles que tinham gastado muito e não tinham conseguido ouro ainda.

P/1 – Aí acharam no Bom Sucesso?

R – Sim, vai escutando pra você ver como foi a história. Eles ficaram por ali e tal, como se diz ralando, né? Uma palavra-chave: ralando, ralando é o que? Como se diz, hoje eu achei meia colher e vou guardar essa meia colher. E amanhã se eu não achar, mas hoje eu achei, vai quebrar o galho pra amanhã, né? Hoje eu posso comer uma carne, eu vou comer. Amanhã, se eu não puder, eu não vou comer. Então eles ficaram naquela ali e vieram descendo, descendo um deles... Tá vendo que nesse meio sempre tem alguém curioso, né? Disse: “Esse corguinho aqui, vamos furar aqui pra riba, vamos caçar um jeito aqui pra ver! Quem sabe se a gente não arruma ao menos pra gente fazer um almoço amanhã.” O povo já tinha quase tudo ido embora, menina, mas quando esse cara... Não precisou nem furar, foi num lugar, pegou um bocado daquela areia, jogou na peneira. Olhou lá no fundo, estava vermelho de ouro, eles saíram e falaram: “O quê?” um assustou o outro, né? Os outros que estavam pra trás em outros municípios falaram: “Esse fulano está correndo demais, alguma coisa está acontecendo” mas não falava “Fulano está dando ouro?” “Está dando nada!”, é como diz o caso, a gente já está aqui mesmo, então é coisita mesmo, é “pueirica”. Sabe o que é “pueirica”? “Pueirica” é ouro fino, aquele ourinho fininho voador que você sopra e ele voa, porque o ouro grosso é pesado, aquela “pueirinha” no fundo da vasilha. O povo falou: “Mas você está muito rápido nesse trabalho seu aí, eu vou também!” “Aqui não, só se for ali em cima.” Aí pronto! Acertou

no veio do ouro, aí foi que eles foram tirar ouro mesmo e foi regaçando ali e tudo enquanto foi grotinha que eles foram achando, eles foram arregaçando e foi subindo, foi subindo até a cabeceira dele, eles ainda entraram ali na Igreja do Rosário. A Igreja do Rosário tem um veio de ouro ali

que eles não gostam de falar nisso não.

P/1 – Em Minas Novas?

R – Eles têm medo dos caras chegarem e arrebentar a igreja. Está debaixo da igreja, eu mostro vocês lá onde que é, tem um tabuleirão no fundo bem no Bom Sucesso que eles foram tirando. Foi tanto que lá tem uma que o Exército é que olha, que é desse ouro que passa debaixo da igreja. É muito ouro, é ouro demais mesmo! Vão as pessoas lá fazer pesquisa porque eles têm um aparelho que eles sabem onde tem o ouro, mas mexer lá não pode, de maneira que todos eles olham lá. Mas a vida é assim, essa é uma parte que eu estou contando da história do ouro daquela região de Minas Novas, eu estou falando pra vocês verdade pura.

P/1 – Agora conta pra gente, também de Minas Novas, a questão do casarão que tem três andares? O que a sua avó contava pro senhor no encontro do Dom João... Do Tiradentes? O que ela falava?

R – Minha bisavó Tereza contava história que ela falava que o sobradão foi feita por mão de escravo lá dentro de Minas Novas porque aquela região ali tinha muitos escravos. Eu vou contar pra vocês a história de um padre que recrutava escravo.

P/1 – Mas conta então do casarão, o casarão foi construído por escravos? O que é esse casarão?

R – Foi construído por escravos.

P/1 – Esse casarão, o que tem de diferente?

R – O casarão, uma coisa diferente que ele tem, porque lá na região era de pau a pique e lá tem muitas coisas que foram passadas por mãos de escravos, eu ouvia dizer que teve um engenheiro lá, foi um baiano lá de Ilhéus ou daqueles bandas de lá que eu não sei, até o nome dele parece que está num livro lá alguém que olhar, eu acho que tem o nome dele. E ele foi feito numa atitude na época dos coronéis, até que na verdade eu costumo dizer que essa história de coronel, as pessoas olham aí e falam: “Mestre Antônio, o senhor com essa barba não tem alguma coisa a ver com coronel?” Eu digo assim: “sinceramente, talvez eu fico assim e ninguém sabe por quê! Talvez é um despeito, porque meus descendentes foram muito sofridos por coronel, carregou muita pedra na cabeça, arrastou corrente, né?” E eu ando assim, só Deus sabe, porque é uma história que eu não gosto nem de comentar, mas e se as pessoas perguntam, eu falo “Tá bom” “Você usa essa barba, esse cabelão comprido assim...” Eu falo: “Isso é uma história que vem do pai” e uma coisa assim da gente e a gente... Ás vezes alguém pode achar que é outra coisa, mas não tem nada a ver com esse negócio de coronelismo, é uma história que vem de vida da gente e a gente tem que dar esse seguimento. Até mesmo pra meus filhos faço observação minha, porque essa história minha não foi vinda por acaso é só o pai do céu é que sabe, né? Porque ele é que é o poderoso e eu tenho essa característica de tempo, gosto de usar uma roupa branca “Mas por que, o senhor é pai de santo?” Aí eu digo assim: “Sim, pai de santo, mas na minha família teve alguém nessa área, né?” Eu carrego também uma cruz, mas não sou um pai de santo.

P/1 – E, Mestre Antônio, nas histórias que sua bisavó contava, ela falava do quilombo?

R – Falava muito dos quilombos.

P/1 – Ela morou em quilombo?

R – Ela é descendente do quilombo porque os parentes dela lá os Machado, os Ramos, que era que meu avô, casou com uma pessoa da região lá mesmo. A minha mãe, eu acabei de falar pra você que minha mãe, o cabelo dela era desse tamanhinho, eu tenho o cabelo assim mais ou menos por causa do meu pai, porque meu pai tinha uma mistura de caboclo. E o caboclo é mais claro, o caboclo é foveiro, você vai perguntar o que é foveiro? Foveiro é aquele branco do cabelo torcido, é foveiro. E tem o branco do cabelo bom e tem aquele branco que é vermelho e o cabelo dele é a mesma coisa de um fogo vermelho de natureza, mesmo o homem. Então eles chamam o branco de foveiro, foveiro por quê? Por causa que tem mistura de caboclo, né? Com caboclo nagô, minha mãe tinha um sangue muito forte do lado nagô, ela era bem escurinha, daquele escurinha que tem o beiço bem vermelho, eu tinha o maior cuidado com ela, porque ela era minha mãe, ela era muito boazinha pra mim.

P/1 – E dessa época de criança ainda, fora as festas e os dias de trabalho, vocês tinham brincadeiras?

R – Ah sim, tinha muita brincadeira, a gente tinha as brincadeiras de festa na roça, né? Meu avô gostava muito de cantar, hoje eles falam repentistas, o meu avô cantava coco. E batia nos tambores, ele era uma pessoa muito incentivada com a história do passado, ele era dedicado, ele gostava... Fazia, ensinava a troco de nada, meu avô era assim.

P/1 – Mas tinha brincadeira assim de criança?

R – Tinha caboclo, dança, roda de viola, caboclo, nove, papai ferreira...

P/1 – O que era papai ferreira?

R – Papai ferreira é uma dança que dança trocando as mãos e os pares num cruzamento, assim. Muito bonito, papai ferreira, vilão, caboclo, dança de viola, roda, tinha o canto do mangangá, tudo nessa linha africana, tudo coisas mesmo de raiz.

P/1 – O senhor se lembra de alguma música dessas?

R – Algumas eu lembro sim, até hoje eu toco... Eu sou membro do Congado de São Benedito. Eu tenho alguns cantos... Eu toco acordeon. Eu que toco, nós somos dois: eu e o Gonzaga. Quando eu estou viajando, o Gonzaga... E quando eu estou lá, nós dois vamos com uma sanfoninha acompanhando os cantos do congado.

P/1 – Mas o senhor se lembra de alguma música assim pra cantar pra gente?

R – Sim.

P/1 – O senhor pode cantar?

R – Você fala do congado ou de qual?

P/1 – Qualquer uma que o senhor quiser.

R – Eu vou cantar uma, eu vou tentar cantar uma do meu jeito, do jeito que a gente canta lá com grande cuidado, com grande respeito com vocês, e espero que vocês vão gostar talvez até que é uma música assim que mexe com santo, né? É uma música que fala assim... Primeiro deve fazer uma abertura do congo e depois eu vou cantar outra música na frente que faz parte do congado que é dos homens pretos de Santa Efigênia, Nossa Senhora do Rosário. lá de Minas Novas. É assim: “Eu vim do congo, vim trazendo nosso congado, vim trazer nosso congado. Agradeço São Benedito, Santa Efigênia e Nossa Senhora do Rosário” Aí as mulheres respondem: “Eu vim do congo...” falando bem fino, as mulheres todas. Essa é uma parte de abertura do congo e aí depois tem o fechamento no final. E aí uma outra música que... Aí depois que canta isso na porta da igreja, aí pode cantar as outras músicas tudo, mas sem que não canta... Que não faz essa abertura com esse canto que é aquele privilégio e não pode cantar as outras músicas de jeito nenhum, isso é um significado mesmo que é uma história que vem de um passado. E aí pode cantar, tinha outra música que fala assim... Que cantou: “Eu vi Santa Rosa na beira da mata, vestida de branco e coroada de prata” essa são as mulheres que cantam, aí os homens “Eu vi Santa Rosa na beira da mata, vestida de branco e coroada de prata” é a segunda e assim vai cantando as outras.

P/1 – Ai que lindo!

R – São assim do tempo mesmo dos escravos, são tudo música buscada deles, buscada dos escravos. Daquele sofrimento que acontecia. Tanto que lá tinha um grupo que eles tocavam os instrumentos com as enxadas e o som quem estava lá fora ouvia eles batendo as enxadas, o som saía de tambor, porque eles não tinham tambor dentro do cerrado. Enquanto que o capataz ia pegar uma comida: “Vocês ficam escondido aí dentro dos mato”, aí enquanto eles iam almoçar aquelas comidas boas deles lá, eles ferviam lá dentro do mato fazendo as cantigas deles pra distrair com as enxadas, com foice, picareta que eles estavam com elas. E quem estava de longe, o som saía como se eles tivessem batendo os tambores. É incrível, é uma coisa muito séria. (pausa)

P/2 – Eu queria que o senhor contasse pra gente um pouco esse significado de ter que fazer uma abertura antes de cantar as outras músicas?

R – Ah sim, pois eu vou responder pra você. Eu vou tentar responder pra você, olha o significado. Eu vou falar, é uma ciência fortíssima até mesmo do mesmo grupo, você lembra que eu falei que é por isso que eu sempre uso roupa branca. Ali, quando a gente está naquele trabalho, está todo mundo concentrado e a gente não pode sair fora do que está escrito no Velho Testamento, porque ali todo mundo somos irmãos, porque tem uma história que diz assim: “Somos todos irmãos do Rosário” e quando se fala de irmão do Rosário, eu tenho um fundamento fortíssimo ali, está todo mundo ali... Eu podia até estar dizendo assim, uma família real, outros irmãos nenhum assim... Eu vou dizer a palavra com má intenção com o outro, ali tudo mundo que está ali num paraíso, podia dizer assim, num paraíso e por isso tem essa história, esse respeito com a religião, esse cuidado com a Nossa Senhora do Rosário. Porque Nossa Senhora do Rosário é poderosa, ela dá pra nós uma força é por isso que nós dizemos que nós somos unidos do Rosário, porque o Rosário vem de Maria e essa história que o rosário vem de Maria, ela tem uma sequência fundamental, sem dúvida fundamental. E a gente tem esse cuidado, por isso vêm vários grupos nas festas, quando vocês forem lá vocês vão ver, vários grupos banda de taquara, congado, Folia de Reis, tudo é um conjunto só, guarda de honra, tamborzeiro, “cotopéus”, grupo de “cotopéus” e é muito grupo. Quando está junto, todo mundo está num sentido só e aí no finalzinho vem uma história que diz assim: “Unido do Rosário” e somos grupos tudo... Uma família só com grande respeito, por isso é que tem esse cuidado como o congo, é um cabeçote, tem aquele que comanda, aí tem essa história de abertura e fechamento, agora depois que faz o fechamento aí não, aí pode... Aí já missão terminada, com nós aqui fazendo esse depoimento aqui, a hora que nós terminamos tudo, vocês vão fazer o fechamento aí, né? Essa história do congo e Nossa Senhora do Rosário também é desse jeito, você pode ver: aqui dentro, nós estamos tudo concentrado, aqui nós estamos concentrados, tem o rapaz lá, está você aí, tem ela ali, também nós estamos aqui tudo num sentido só. Nós não estamos aqui e lá fora, está saindo algumas coisas de lá de fora, mas somos nós que estamos buscando a nossa mente, puxando a nossa memória e distribuindo aqui na presença, nós aqui somos quatro, né? Você passando pra mim e eu passando pra ele e nós vamos fazendo uma coletânea, é isso. O grupo do congado que vem do congo também é assim, quer dizer, a gente tem esse privilégio, esse cuidado porque, como dizem, tem que ter esse respeito que é até mesmo uma coisa do passado a gente te que segurar isso, né?

P/1 – E quais eram aquelas histórias que o senhor Artur contava?

R – Sim, meu avô contava muita história, ele falava muito dos passados do tempo dele, ele foi daquela região lá... A minha bisavó Tereza foi daquela região de Salinas, não sei se você conhece. E teve uma época que ficou sete anos sem chover. Ele contava uma história que eu vou falar pra você. dava dor... O coração da gente doía com aquelas histórias, eles saíram em busca de água. Ficou sete anos sem chover ali naquela região do Vale do Jequitinhonha, do Vale do Mucuri, aquela região do Alto do Jequitinhonha. Ficou sete anos sem chover. Ele contava umas histórias que eu vou falar pra você que dava pena. As histórias que ele contava, mas ele foi um guerreiro. Ele foi um guerreiro que conseguiu vencer e criar os filhos dele, e criar a família dos outros, meu avô... Eu vou contar uma história do meu avô pra vocês que ele era... Tanto faz, ele como a minha avó Flozina, meu avô criou, entre ele e a minha avó Flozina chegou a criar acho que duas famílias lá... Morreu um senhor, num dia morreu a mulher e no outro dia morreu o homem, e esse homem é um tal de Artur Cândido. A mulher, eu não me lembro mais o nome não, a mulher era alguma coisa do meu avô, eu não sei se era irmã do meu avô, uma coisa assim, eu sei que era uma coisa que ele teve que acolher essa família, o meu avô acolheu essa família, eu acho que com uns dez meninos mais ou menos, era muito menino, eu lembro até hoje que tinha um tal de Olímpio, um tal de Zé Valeiro, tinha umas mulheres que tinha uma que chamava Geralda. Tinha outra que chamava Felsbina, era uma porção! E meu avô criou esse povo tudo, quando eles pegaram as idades deles, eles sumiram, até que de vez em quando eu falava com a minha avó, né? “Ô dindinha...” Esse povo antigamente, lá das grotas não chamava vó, nós chamávamos de dindinha. “Ô dindinha, por que esse povo sumiu tudo, não vem aqui hoje nem pedir uma bênção do vô, o meu padrinho Artur?”... Ela disse: “Ah, meu filho, é assim mesmo! Sumiram tudo!”, nem quando ele morreu, eles apareceram, mas meu avô contava muita história, além dessa, e ele fazia uma coisa que... Ele mais a minha avó Flozina, toda vez que minha avó fazia comida... Isso é uma coisa que vocês vão ver que é incrível, minha avó fazia almoço e chamava “Ô Artur...” as roças eram tudo encostadinho assim, perto da casa “Ô Artur, vem almoçar, está passando de hora” ele falava assim: “A comida está pronta?” “Está pronta, pode vir”. Ele passava a mão na enxada, jogava na cacunda e chegava no terreiro e dava três gritos, minha avó saía e falava com ele assim: “Por que você está dando esses gritos”? “Eu estou dando esses gritos porque se tiver alguém vindo aí com fome, eu espero ele chegar pra nós comermos.” Enquanto não punha comida pra esses meninos tudo, ele não comia uma bocada de comida, minha avó também era do mesmo jeito. Enquanto não punha comida nas gamelinhas de barro no chão, menino sentava era pro chão, no meio da terra lá pra poder comer com a mão, porque não tinha nada. Ele falava: “Fulô, põe comida pra eles tudo primeiro” “Você que está trabalhando que tem que comer” “Não, tem que tratar é das crianças, nós comemos é por causa das crianças, o que nós temos aqui pra comer é dado, que o pai está dando, mas o pai dá pras crianças, nós somos pecadores velhos, nós temos que comer por derradeiro”. Meu avô contava essas histórias tudo e eu tenho esse seguimento lá em casa até hoje, todo mundo que chegava lá dava bênção ao meu pai, meu avô e beijava a mão, meus filhos fazem comigo do mesmo jeito, não tem vergonha! Pode estar com as namoradas deles, porque as namoradas dele são meninas tudo de linha e coisa e tal... Meus filhos, aquele Bastião mesmo chega em mim e fala: “Bênção pai”. Até hoje tem esse seguimento. Isso é um passado que são poucos que seguem, lá na região o pessoal fala: “Mestre Antônio, como esses meninos seus são tudo assim”? “Não sei, eles têm esse cuidado comigo, né?” Mas por quê? Veio de raiz, veio de família, pegou aquilo que eu fiz e hoje estou recebendo. Então é tudo dirigido do meu avô, meu avô contava muito caso, ele fazia muita maromba, né? Isso eu lembro, a época das marombas.

P/1 – O que é maromba?

R – Maromba é que ele fazia muita roça, né? E veja bem! E aí eu chamava as pessoas, tratava de camarada, hoje eles falam mutirão, eu falo as coisas pras pessoas saberem pelo menos a linha de um passado, chamava de maromba. Passavam de 15 homens na roça capinando, era maromba. “Ih, o Artur está com uma maromba grande!” “Quantos tem?” “Lá tem 15 homens capinando” capinava e cantava o dia todinho na roça e quando era cinco horas, o sol quase entrando parava, as minhas tias... Eles vinham da roça cantando com as enxadas na cacunda e cortava um pé de milho, enfeitava eles de nota, trocava o dinheirinho em nota e amarrava nos pés dos milhos e vinham trazendo aqueles pés de milho tudo enfeitado de nota. Aí era assim: os rapazes solteiros iam na frente levando esse pé de milho e juntava as meninas, as moças... É incrível, é fantástico, eu conto essas histórias e é verdade pura Deus é muito mais... Aí as meninas... Eu tinha umas tias muito bonitas, uma chamava América, a outra chamava Laurinda e a outra chamava Gessília e eles pegavam as roupas melhores que elas tinham, aquelas mocinhas caipiras igual nós todos caipira da roça, né? Mas tinha um brilho dado pelo pai que trocava uma roupinha, jogava uma aguinha no corpo, tomava um banhozinho mal tomado e quando saía estava bonita demais! Eles ficavam: “Leva esse pé de milho lá”, era pra você dar esse pé de milho, era pra dar a mais bonita, cada uma delas estavam com um galhinho de flor na mão. Elas ficam esperando na chegada cada um com um galhinho de flor, de rosa. Passava o pé de milho pra ela e ela passava aquele galhinho de flor pra ele e isso era bom demais. Aí o dono da roça que era meu avô falava assim: “Ô chega lá, vocês escolhem...” três moças, mas quem recebia o pé de milho primeiro era a mais bonita, a mais bonita ficava no meio, porque ele já ia e já ajeitava. “Você fica no meio, Fulana fica daqui, Fulana fica dali.” E eles iam cantando, cantando sossegados tomando uma marafinha, uma maracá… Você sabe o que é maraca na boca da gente lá? Maraca, não sabe não? É pinga é na linha africana.

P/1 – Aí tomava uma maraca...

R – Ia tomando maraca e chegava lá, eles iam cantando e quando chegavam, paravam e davam mais uma pausa, cantava pra elas. Pra todas três tinha um cara que cantava pra elas e quando terminava de cantar, aí pegava e dava o pé de milho enfeitado de dinheiro e ela passava uma coisa... Aí eles entravam pro terreiro, aí fazia a roda no terreiro, deixava aquele monte de enxada do lado de fora e cortava a noite todinha na sala tocando viola, cantando moda, caboclo, roda. Aí chegava, porque eles chamavam o pessoal: “Ôh, tem função...” chamava função, né? Tudo, tudo é incrível, não sei nem se está no dicionário, mas existia esse tipo de nome, aí você vai dizer “mas função não está no dicionário” é por isso que eu digo com o maior cuidado, mas se você chegar na região e perguntar “Mestre Antônio falou que aqui existia função...” pra você ver se alguém vai falar: “Não, antigamente era função mesmo” é verdade pura, cortava a noite todinha e isso não cortava um dia só não, quando era o outro dia dançava a noite todinha e no outro dia amolava a enxada e fundava na roça de novo. Eram três funções que faziam, enquanto não acabava a roça, meu avô já combinava: “Você só vai embora depois que terminar a capina”. Enquanto tinha capina, era função direto, eles não paravam. Minha avó fazia bolo, biscoito, licor pra dar eles pra comer, janta pra comer e tudo.

P/1 – O que tinha de janta?

R – A janta era frango caipira, galinha feita na panela de barro e no fogão a lenha, café, moía a cana no “estroçador”, com a garapa da cana fazia o café, tudo bem natural, tudo da terra mesmo, nada de indústria e essas coisas. A comida era canjiquinha de milho com feijão muito gostoso, ora-pro-nóbis que tem uma proteína fora de série e outros tipos de folha. Tudo mesmo: a folha de taioba, folha de batata, fazia aqueles virados de feijão com muito torresmo, com muita carne, tudo de porco caipira. Matava, porque tinha tudo, tinha galinha, da própria roça sobrevivia, era tudo assim.

P/2 – Essa função terminava em namoro?

R – Sim, no finalzinho acabava um namoro e tinha até casamento. Era uma história mesmo da roça, até casamento formava, muitos deles. Aí quando era no outro dia que eles iam pra roça, eles iam disputar lá na roça e sabe como eles disputavam? Era na enxada! Um querendo cortar mais que o outro e aquilo incentivava. “Você está gostando de fulana, porque ela é mais bonita, agora você vai ter que trabalhar!” ele ficava carpindo bastante, chegava a suar assim e coisa e tal. E ele não querendo perder ponto… É, tudo isso era uma coisa certa e que era mesmo, e no fim dava casamento, namoro, casamento, formava uma amizade porque aquilo entusiasmava muito, o cara ficava muito entusiasmado. Era tudo caipirinha lá da roça assim naquela vida lá, mas era bom demais.

P/1 – Tem um lado de Minas que tem esse costume, eu não sei se na região do senhor tem, de colocar a carranca do boi na roça, na plantação, tem isso lá?

R – Tem.

P/1 – Por que faz isso?

R – Carranca do boi, litro branco.

P/1 – Pra que faz isso?

R – Veja bem, essa história é questão de pano vermelho, isso aí é só questão do tempo, olha lá. O caboclo faz um feijoal muito grande, o que acontece? Ele fica de quina em quina, ele põe uma manta de algodão, aquele algodão no... Meu avô fazia muito isso, davam meu avô pra poder pôr, “põe, Artur, lá no feijão” você sabe por que faz isso? Pra que quando der eclipse na lua, aquele sereno que cai da lua, ele não é bom nem pro ser humano, ele deixa uma... Eu poderia estar dizendo uma nódoa, uma coisa assim, uma ferrugem na folha do feijão, na gente mesmo ele deixa assim uma gripe, um trem assim, o caboclo fica de mal estar e coisa e tal, ele fica assim com um tipo de enxaqueca, que hoje o povo diz enxaqueca, é uma coisa mais ou menos assim. E dá amarelão nas mandiocas, nos mandiocais, caem as folhas tudo, seca e só fica os pauzinhos em pé. Então essa história de carranca, de chifre de boi, manta de algodão, um pedaço de pano vermelho bem vermelhinho, um litro branco é pra segurar essas coisas que vem de cima, esse negócio que eles falam efeito estufa, como que é?

Eu não sei falar essa palavra.

P/1 – É isso mesmo.

R – Mas então isso é um tipo assim de uma simpatia pra proteger, é isso viu? Você pode, se você for fazer uma horta, você põe sempre um chifre ali perto, você põe uma garrafa, porque a garrafa é... Lava ela bem lavadinha, tira os rótulos e vira ela de cabeça para baixo e põe nas esquinas assim uma manta de algodão, um pano bem vermelhinho assim é bom. Aquelas coisas que vêm ficam tudo ali naquilo que você pôs.

P/1 – Principalmente quando tem eclipse?

R – Principalmente quando tem eclipse. O pano vermelho tem um sentido, não sei se você já ouviu dizer? O pano vermelho tem um sentido muito significado, eu vou passar isso pra vocês, porque minha avó nessa área ela buscava muito fundo, a minha avó Flozina, né? O vermelho é pro ser humano, o chifre também um pouco. Não tem uma história que a pessoa fala assim (gesto), não sei se você já ouviu dizer, a usura, né? Usura na palavra. Vem alguém falar assim: “Flano tem o zóio grandes.” Então o pano vermelho é pra atrair o caboclo quando vai chegando, ele vê o vermelho e pronto. Eu fui entrando aqui e fui vendo aqui essa... Eu olhei um pouco lá e vi, atrai chama. Atrair é muito bom isso, viu? Tem outros tipos de...

P/1 – Uma fitinha vermelha também, né?

R – Uma fitinha vermelha e outros tipos, né? Um alecrim, arruda, uma certa espada que eles falam, a espada de São Jorge, essas coisas são muito boas nessa área, coisa que tem um fundamento muito bom. E aí uma história que é verdade, pode ter certeza, então é por isso que tem esse significado, alguém põe lá... Pega lá uma ferradura, aí você vai ver a ferradura que tem sete furos que você põe lá… E tudo isso são coisas que vêm justamente do congo, tudo isso vem do congo, é uma coisa que é incentivada muito antes do finado Zumbi, há milhares de ano antes de Zumbi. Zumbi foi um herói, foi uma pessoa que lutou muito e ele veio do fundo do baú! E tem essas histórias que não podemos duvidar que é verdade.

P/2 – E também tinha aquele jeito... A gente tem a tradição de colocar algum detalhezinho vermelho em crianças?

R – Sim, um detalhezinho que põe no braço assim, a criança quando está... Ah, uma coisa importante que eu quero falar com vocês, a criança quando está com soluço, né? Soluçando, você pega da sua roupa um fio de algodão, está vendo aqui? Pega ela arranca da roupa sua, da mãe ou do pai, pega e arranca e leva na boca três vezes e põe no meio da testa da criança e para o soluço na hora, não sei se você já ouviu falar isso. Outra coisa: amarrar aqui é muito bom e deixar soltar sem ninguém tirar, também é bom, evita de muita coisa, a minha avó dizia “mau olhado” é contra mau olhado, mau olhado são pessoas que não tem muita fé em Deus e fica só desejando mau para os outros, ele tem os olhos dele ruim, né? E em vida ele dá seguimento e ele olha e se esquece de falar “benza Deus”. Você viu eu cumprimentando a sua filhinha ontem...

P/1 – Então é esse cumprimento, né?

R – Esse cumprimento, e sempre falando “benza Deus”, é isso. A palavra-chave Deus de todo mundo, o pai é muito bom.

P/1 – Com quem o senhor aprendeu esse cumprimento?

R – Isso tudo veio da minha avó, minha avó rezava terço, ela rezava ofício de Nossa Senhora e minha avó era... Meu avô, isso veio tudo da minha família mesmo, eu aprendi tudo isso com eles, eu tinha uma tia que rezava uns terços bonitos, chamava Laurinda, ele é falecida. E eu não pude aprender ler e nem escrever, não tive condições. Porque nós não tínhamos o direito de aprender ler e nem escrever, mas Deus guardou aqui na minha memória essas coisas e isso está me ajudando muito.

P/1 – Então esse gesto quer dizer... Esse gesto que o senhor faz?

R – Saudar Nossa Senhora, porque Nossa Senhora quando passou perto do Cristo, que o Cristo estava no alto do calvário, né? O que ela fez foi isso, todos três saudaram Maria Madalena. E isso é um gesto de solidariedade, de uma pessoa solidária. É um gesto de peso se você tem um peso, você olha uma pessoa e fica com dó dele e coisa e tal, um jeito de você... De coração, isso é muito bom.

P/1 – E tem outro gesto que o senhor faz?

R – Assim (gesto) esse gesto é saudando, isso é quando eu vou embora.

R – Ah, que lindo!

R – Então é isso. E isso a gente aprendeu, você não me viu falando que meus filhos saúdam, podem estar as namoradas deles, eu acabei de falar isso aqui tem pouco tempo, e eles não ficam com vergonha, os filhos dos outros não fazem isso. Aí quando eles falam: “Bastião, como vocês tudo dão bênção seus pais?” “Nós aprendemos o que ele aprendeu com nosso avô.” Pois é gente, as coisas são assim.

P/2 – Senhor Antônio, o senhor aprendeu com seu avô e com sua avó, né?

R – Tudo com esse povo, né? Com as minhas tias também, as mais velhas. E também com a experiência de vida que a gente tem. Porque hoje você vai aprendendo com outros, com outras pessoas, eu vou dizer que foi só... Eu tive muito... Onde tinha um velho, eu estava sempre com ele, eu me lembro disso que meus colegas falavam: “Antônio, mas você só gosta de ficar onde tem velho” “Eu gosto porque sempre sai umas coisas boas e a gente tem que ter esse cuidado, porque essas pessoas mais velhas é que tem uma coisinha boa pra falar pra gente, os novos também têm, mas eles têm mais experiência”. Quer dizer, eu agradeço muito meus avós, meu pai morreu aqui nos meus braços, o velho Artur Barreiro, mas eu tenho muito que agradecer os outros velhos, meu padrinho, meu tio Antônio, meu tio Antônio, meu

Júlio. Pra mim foi um senhor lá com o nome de Zezinho. Um tal de Pedro da Rocha que é um senhor de idade também descendente de escravo, esse tal de Pedro da Rocha que morreu não sei com quantos anos, não sei a idade que ele morreu, mas eu gostava muito de trocar ideia com ele. E isso pra mim foram muitas lições que eu aprendi, então hoje eu estou passando, isso pra alguém que tem boa vontade de aprender. Alguém fala pra mim assim: “Ô Antônio como é que você vai ensinar o que você sabe aos outros se você vai viver de que jeito?” Eu falo assim: “Eu não paguei nada pra meu avô me ensinar alguma coisa e meu pai também, o que for meu Deus dá pra mim, o que for meu, vem na minha mão, nós não somos dono de nada! Quem é dono de tudo é o pai do céu.” Então eu não perco nada com isso, “mas por onde você anda dando oficina?” Porque eu dou muita oficina, dou palestra e tudo quanto é lugar, graças a Deus, mas isso não sou eu que estou dirigindo, isso é meu avô que está comigo fazendo isso. E eu tenho a maior certeza no mundo de Deus que eu sou muito bem acolhido, tanto faz do meu avô como do meu pai, minha avó Flozina, minha avó Maria do Levindo e esse... Eu tive lá em Itaobim agora há pouco tempo e aí fui lá fazer uma palestra, lá era pra fazer uma oficina e quando chegou lá, eu não dei oficina, fiz palestra e acabei fazendo uma palestra lá, eu encontrei com muita gente, inclusive encontrei com essa que estava no livro aí, a dona Isabel, lá fomos nós três eu, a dona Isabel e o Ulisses de Itinga e um menino de Turmalina que conta muita história de Folia de Reis, né? Ele foi também lá e alguém fez uma pergunta e eles ficaram encantados com a pergunta, inclusive naqueles DVDs têm algumas coisas. Se vocês quiserem passar pra vocês poderem ver... Tem uma coisa que eu fiz lá em Chapada do Norte que se vocês passarem no vídeo, vocês vão gostar, viu? Um trabalho que ficou tão bem feito que parece até que foi feito dentro do mato, as pessoas tudo assim com sentido de escravo, eles juntaram tudo lá, eu fiquei lá oito dias, eu fiz questão de filmar tudo e ficou muito bom, eles conseguiram fazer o DVD.

P/1 – E Mestre Antônio com quem o senhor aprendeu e como foi esse aprendizado dos instrumentos musicais?

R – Olha, isso veio mesmo do meu avô, né? Meu avô fazia pro grupo dele, inclusive eu peguei o grupo que era incentivado por um tio meu que chamava Francisco, um baixinho e gordinho já falecido que era da era que ainda tinha pessoas do tempo do meu avô, ele mais velho, né? E não quis tocar e aí meu tio ficou mexendo com aquilo com pouca gente e aquela coisa e tal e depois que eu peguei eles, até que chegou a 22 componentes esse grupo, tudo de grupo assim na faixa... Esses meus tudo na faixa de 13, 14 anos já dos outros dele já era mais velhos, eu fiz questão de entrar mais na área das crianças, porque justamente pra incentivar. E é muito bom, porque um fala pro outro e é bom porque tira menino de rua. É um trabalho incentivado e atraindo crianças pra não ficar na rua que não vale a pena. E aí foi assim e meu avô fazia os instrumentos pra ele, fazia pra outros grupos, fazia pra folia de Nossa Senhora do Rosário, aquelas caixas muito grande e esse trem foi tocando até que ele faleceu... Ficou, e inclusive eu tenho lá em casa umas caixas que ainda foi ele que fez ainda, né? Eu só fiz reformar elas, lá na Igreja do Rosário tem os tambores, lá tem um tamborzão preto enfumaçado que foi ele que fez esse tambor. Lá em casa na roça também tem. O Antônio falou comigo assim: “Esse tambor aqui foi seu avô que fez e ele está jogado aí no canto, você não quer pegar pra reformar ele?” Eu falei: “Eu pego ele, mas quanto você quer nele?” Ele falou: “Me dá dez reais” eu falei: “Toma 20” eu entreguei os 20 e o tambor está lá em casa. É o tal de Antônio, ele é tamborzeiro, ele bate tambor e foi uma herança que vem de raiz dos meus antepassados e aí eu estou dando esse seguimento pra frente.

P/1 – Mas tem todo um jeito, né? Que o senhor estava falando de chegar na natureza, como é esse processo de chegar na natureza, escolher a madeira? Como é isso, Mestre? Pedir licença? Como é isso?

R – Eu quero dizer uma coisa pra vocês que é aí que está a ciência, você tem que estar preparado. Você tem que ter uma concentração, porque aí você já vai mexer com a natureza. Olha o trabalho não é muito difícil, mas tem uma parte que eu podia estar dizendo que é complicada, porque aí você já vai mexer com a natureza e quando você parte pra mexer com a natureza, você tem que ter esse cuidado, porque nós sobrevivemos do cerrado. Aí é que tem a história, aí que você tem que estar pensando como é que você vai dar seguimento pra poder estar pegando essas madeiras lá no cerrado pra estar fazendo os instrumentos pra poder estar servindo a você e servindo a outros e dando aquele seguimento pra trás, até mesmo ensinando. É o cuidado que você vai ter com a natureza, você está chegando lá primeiro, você vai ao cerrado hoje... Amanhã, você vai amanhã, no caso, hoje você tem que estar preparando pra você ter a consciência pra chegar lá com a sua alma limpa. E como você vai fazer isso? Você vai fazer isso, eu aprendi assim, que na hora que você deita na cama e você faz suas orações, que você tem o costume de fazer, pra proteger, pro seu anjo da guarda e levantar e não se esquecer de por o pé direito no chão. Fazer um preparo fundamental, bem feito, na hora que vai sair, o pé direito na frente e chegar e escolher o dia certo de você ir, depois da Lua Minguante, três dias que corresponde seis dias... Você está colhendo as madeiras quando você chegar lá no Cerrado... Você não pode estar chegando lá aos trancos e barrancos, chegando e roçando tudo, primeiro você tem que pedir pro rei da mata, né? Que é o ideal é fazer de novo suas orações, benzer seu corpo “Pai, Filho e Espírito Santo” e entrar lá com a ferramentinha sua, consultar com as madeiras, ver qual você pode tirar pra não prejudicar aquelas pequeninas, aquelas lá em cima que tem folha, não mexer nelas, porque ela é a sombra dos pequenos, ela é a casa dos pequenos como a casa de você e sua criancinha que você tem, você um cuidado total com ela se alguém... Ontem eu cheguei “acarinhei” ela, peguei ela assim, no cerrado tem que fazer mesmo assim com as árvores, fazer mesmo assim com as plantinhas, não pisar pra poder quebrar elas, chegar no pé das árvores consultar nos ouvidos, bater com um martelinho ou um toco de pau pra ver se ela tem oco, olhar se tem galho seco se tiver galho seco ela tem oco. Aí você vai tirar ela oferecido pela natureza, não deixar cair pra não quebrar os outros galhos e mesmo assim, você ainda... Você, eu, ela, ele ainda tem direito de plantar as mudas… Que tem fotografias pra mostrar pra vocês, meu filho plantando muda no cerrado, retribuir a natureza, porque nós dependemos dessas árvores maravilhosas pra nós sobrevivermos. Ai de nós se não tivessem essas árvores! Essas árvores são as nossas coberturas, nós estamos tomando fôlego aqui dentro, até parece que não tem árvores, mas nós temos o ar que está descendo e nós estamos sobrevivendo. E isso não vem por acaso: vem do cerrado, isso vem das árvores, então esse cuidado a gente tem que ter com a natureza, estar sempre contribuindo lá, tirando um pouquinho, eu costumo dizer cedendo, tirando assim como o que eu faço, tirando um pouquinho do coração e distribuindo, porque a gente precisa... A natureza, ela cobra secreto, essa preparação que a gente faz quando a gente chega no cerrado, com todo cuidado com a natureza, essa preparação, ela é feita assim pra evitar que um marimbondo pique você, que uma abelha ferroa, que uma cobra pica, que um cupim lá em cima quando você está cortando cai. Quantos morrem no cerrado por não ter esse cuidado com a natureza... A natureza é viva há muitos milhares de anos atrás, no tempo de Adão e Eva as árvores conversavam umas com as outras, as árvores ficaram mudas a partir do momento que Adão teve que viver do próprio suor dele pra tratar de Eva por isso mesmo que as árvores ficaram mudas, elas ficaram mudas e surdas, mas elas cobram. Elas cobram de um modo assim bem sereno, o caboclo chega lá, devora, vem um marimbondo e ataca, uma formiga e pica e ele não sabe, ele chegou lá e estragou, ele pisou nas plantinhas que são os filhos das árvores, aquelas mudinhas ele cortou, quebrou lá aos trancos e barrancos, quebrou galho e tudo. Elas não ficaram contentes e o que acontece? Ela fala assim: “Você fez isso? Fica aí debaixo que vai cair um cupim em cima de você!” cupim é aqueles troços redondos que dá lá em cima ou então se não cair um cupim, vem uma cobra e pica o caboclo, porque não teve o preparo, não pediu licença à mata, ele não pediu pra cortar a mata. Então esse cuidado, tudo enquanto é lugar que eu dou oficina por tudo quanto é lugar que eu dou curso, eu peço aos alunos: “Tenha esse cuidado que você vai se sair bem” e porque você pega aquilo que a própria natureza está oferecendo a você, você vai fazer um pandeiro, você vai fazer uma caixa que tem um som maravilhoso. Os tambores conversam com Deus, você pode ter certeza onde os tambores estão tocando, ninguém está ali pensando em fazer ruindade, pensando em roubar, pensando em matar… Tudo bem, depois que terminar aquele evento ali depois no outro dia, ele pode estar pensando, mas naquele momento que ele tiver ali na roda dos tambores, jamais ele vai pensar em tomar uma bolsa de você, meter uma arma em você pra tirar... Porque os tambores têm um fundamento com o pai do céu, com a Nossa Senhora do Rosário, o manto de Nossa Senhora está ali cobrindo, ninguém está ali pra poder fazer maldade, mas sim pra agradar a Deus e os anjos da guarda porque eles ficam muito felizes.

P/1 – Quem é o rei da mata?



R – O rei da mata é um assessor, ele tem no pingo da noite, na hora que ele dorme, o rio também dorme, a água dorme, os peixes adormecem tudo, ele leva uma seção do pai, de Deus, ele é como sereno naquela hora que você estiver no rio. É esse que é o rei da mata. Que ele paralisa, ele tem um poder tão forte que ele paralisa tudo, até os peixes dormem. Naquela hora ali, no pingo da meia-noite, naquela hora ali, se você estiver no rio caladinho, sem conversar, os peixes viram todos e você pega eles com a mão. O rei da mata é um assessor de Deus. É um anjo, ele é o rei da mata, ele é que comanda os passarinhos tudo, ele é o dono da mata, ele comanda tudo ali. Ele é… Como na sua casa, se eu chegar lá e pegar aquela criancinha de você e começar a beliscar ela, bater nela, daqui a pouco você sai de lá com um pau, mete os cachorros em mim, o seu marido também, nós somos reis, ela também é uma rainha da casa dela, ela comanda lá onde ela sobrevive. Então é assim e o que ela tem é do pai, o pai providenciou e ela tem isso aí, a mata também tem do mesmo jeito, então é isso o seguimento.

P/1 – Maravilha. (troca de fita) Então, Mestre Antônio, ainda falando dessa questão da mata, tem alguma madeira que é melhor? Que é mais apropriada pra esses tambores?

R – Sim, eu vou falar, a pergunta é boa e eu vou fazer tudo pra responder, tá bom? Ô, cada instrumento tem que ter uma madeira pra poder fazer, ela tem que ser uma madeira sofisticada. Nos casos pra fazer caixa de folia... Existem os vários tipos de folia, folia do Rosário, folia do Divino, folia de Reis. Aí vêm os congos, vêm os grupos de congado, grupo de Cotopéus, cada um tem um tipo de canto e de acordo com aqueles tipos de canto, você tem que estar escolhendo a madeira no lugar certo. É por isso que eu falei antes que tem que estar consultando. Quando você está consultando a árvore, batendo nela pra ver se ela está ocada por dentro, se ela já está morta, quando você faz essa consulta com ela, quando você colhe assim, você já sabe qual o instrumento que ela serve pra fazer. “Essa daqui serve pra fazer caixa de Folia do Rosário.” “Essa daqui serve pra fazer caixa de Folia do Divino.” “Essa serve pra fazer caixa de Folia de Reis.” E por uma você vai tirando as outras pra fazer reco, um reco pra dar um som mais agudo, outro pra dar um som mais assim… Que eu costumo dizer, rouco. Essa coisa assim, muitos dependem da madeira, dependem da qualidade da madeira. E essa qualidade nas apostilas, quando eu passo as apostilas pros alunos, eu ponho o nome das madeiras tudo, nas apostilas já tem todos os nomes das madeiras. Pra Folia do Divino a qualidade da madeira, o nome da árvore e tudo, eu passo isso tudo na apostila. A caixa de Folia do Divino Espírito Santo, principalmente da Folia do Divino Espírito Santo, ela é mais complicada pra você conseguir arrumar ela, ela tem que ser uma madeira bem seca e uma madeira que quanto mais ela tinir quando você bater, mais ela dá um som bom, porque o som de Folia do Divino Espírito Santo é um som quase igual ao som de tarol, só que com outra voz. As folias, os sons das caixas não batem com a outra não. No meio dos grupos, se você for a Minas Novas com vários grupos, você pode corrigir isso: “Bem Mestre Antônio falou”, você vai nos grupos, você chega e pergunta: “Esse grupo é de quê?” E você vai escrevendo isso: “Folia do Divino”. Você vê as caixas tudo diferente e tudo isso tem um significado no fazer. Caixa de folia de Nossa Senhora do Rosário, o tronco, a grossura tem que ser de 20, a grossura do bojo e cada uma tem... E justamente isso pra dar o som certo pra cantoria, a folia do Divino é bem fininha aqui, a madeira é outra madeira sofisticada e tem as qualidades tudo, farinha seca, cupinzeiro e várias, mas tudo, porém, tirado lá com grande cuidado, não pode tirar madeira lá no cerrado, de qualquer jeito tem que ter certos preparos. Até mesmo porque o IBAMA dá em cima e com toda certeza... O caboclo não tem cuidado, tem que ter uma pessoa pra ficar olhando ele, esse respeito tem que estar tendo com isso, até mesmo no tirar. Então assim, você consegue fazer os instrumentos e no fim dá uns instrumentos maravilhosos, muito bons.

P/1 – E no caso dos tambores como faz pra arrumar o couro?

R – O couro lá... Todo esse trabalho do couro é tudo natural, tudo que eu faço, né? Às vezes quando eu estou ensinando, quando é um pouco difícil, porque é um lugar muito longe, a gente pede às pessoas pra poder comprar o couro mesmo já preparado na indústria pra poder fazer os ensinamentos. Aí eu levo pequenas quantidades de couro pra ensinar ele a preparar o couro tirado da própria... Como se diz, tirado da mesma comunidade deles, né? Quer dizer, tem um matador de boi e ele vai e seleciona e fala: “Eu quero tal couro assim, assim”. Eles matam, outros falam: “Junta tantos couros pra mim”, “Eu quero assim, quero couro de bezerro”, “Eu quero couro de cabrito” Eu quero couro de carneiro”, aí ele seleciona. E eles mesmos trazem e eles mesmos preparam, ele espicha ele e tira o cabelo dele, nas apostilas vêm tudo isso.

P/1 – E assim, eu não sei se vou dar um salto de tempo, mas como o senhor ganhou, obteve o título de mestre? Que o senhor falou que foi uma dádiva?

R - Ah sim, é uma pergunta muito boa, eu vou tentar responder. Pra mim conseguir ser agraciado como quando eu fui agraciado… Essa palavra agraciado, quando eu digo agraciado ela tem um fundamento. A palavra agraciado é uma coisa que eu fico assim pensando, porque foi uma coisa que veio assim como... Eu costumo colocar até mesmo como a história de Nossa Senhora, está vendo como são as coisas, porque eu não esperava, eu mexia com todos esses trabalhos, tinha grupo de jovem, trabalhava, fazia pra mim, pro meu grupo até mesmo pra eu vender lá naquela região tudo enquanto era tambor, tudo enquanto era caixa, não existia, era eu que fazia e às vezes viajando pra São Paulo, lá pro Nordeste e aí quando eu chegava lá: “Oh, Fulano de tal está com umas caixas e aqui não tem ninguém que mexe com isso...” Eu falava assim: “Tá, leva lá pra casa. O dia que der tempo, eu vou fazer isso”. E essa história, ela foi rendendo, alastrando e pá e aí vieram os festivais, você me achou num festival lá em Joaíma e eu comecei a andar porque esse jeito meu de contribuir... Essa história de contribuir, não veio por mim, veio do meu avô e eu costumava fazer… Às vezes eu ia lá e fazia pra todo mundo ver, né? Aquelas caixinhas pequenas, vendia muitos, chegavam e compravam. Eu nem sabia que era uma história que tinha uma coisa a ver de um passado... Que veio da África, né? Que aqueles lados tinham perdido, eu tive dois mestres da África quando nós tivemos o encontro em Fortaleza, mestres do mundo inteiro, eu tive com dois mestres e eles votaram em mim pra dar palestra, né? Eles mesmos que vieram até de lá pra rever o ponto e o perfil desses tambores, porque a história desses tambores... Esses tambores que eu faço, pra você ter uma ideia, você pode observar, a caixinha de ferramenta, ela é quadradinha aqui e a largura... É claro que eu tenho outras ferramentas grandes, mas não mexo... Eu não tenho uma serra tupi, eu não tenho uma máquina elétrica pra nada, eu fazia no facão e é feito do próprio tronco, foi assim que veio essa história que eu fui agraciado como mestre e eles fizeram uma pesquisa três anos ou quatro anos. Quando eles chegaram em mim, eles já tinham percorrido... Só achou dez extintos, tem muitos tipos de tambores, mas a característica dos tambores que eu faço, ela é bem assim... Eu estou falando isso, mas não é que sou uma coruja que estou gabando o toco, não é não? Eu estou falando isso é porque já escutei isso de pessoas artistas, não é que estou falando isso pra: “Ah, ele está querendo é crescer” não, eu falo isso com todo cuidado, com todo respeito e é só examinar esse trabalho que vai ver que ela tem... É feita na fornalha com ferro quente, é cavado com alavanca, né? Esculpido sim naquelas carrancas, não sei se você chegou a ver, naquelas fotografias lá tem, falam talhar madeira, né? Eu falo esculpir madeira, fazer aquilo que ela quer ser, eu chego no cerrado e vejo: “Quer ser isso?” Eu vou fazer isso, é peça única, é só uma só. Ela queria ser uma carranca, eu vou fazer. Ela queria ser um tambor feminino, eu vou fazer, ela queria ser um tambor masculino, eu vou fazer. Antigamente no outro mundo passado, podia dizer assim que naquela época as árvores conversavam como os outros, elas queria ser gente, por isso que elas comunicavam umas com as outras. Então tem algumas peças que você encontra no cerrado que é só você dar um trato nela e ela vira uma pessoa e fica bonito, vira uma pessoa é como... Não tem o cabeleireiro? Eu chego lá e sento lá. De repente: “Mas é o Antônio Bastião que está saindo” “Não é ele não, essa é outra pessoa”, é porque ele deu uma lavagem em mim, ele esculpiu eu. “Aqui vai ser o nariz…” Então no cerrado também é assim e tem alguém que faz isso. “Você quer ficar bonitinha?’ “Quero!” “Então eu vou ajeitar você.” É igual uma gente. Então é isso e é isso que esse trabalho meu veio dessa linha.

P/1 – E aí o título de Mestre quem deu? Foi um órgão público?

R – Sim, vou responder a vocês agora, aí o que aconteceu? Eu recebi uma visita de Ouro Preto, da Fundação Ouro Preto, eu recebi uma visita lá. O moço, nem só porque ele tinha feito pesquisa, mas ele fez questão igual São Tomé foi lá cheirar, ficou três dias mais eu lá em Minas Novas, três dias foi pra roça, fez igual são Tomé e ficou lá só olhando aqui, olhando lá. “Vamos pro Cerrado...” Eu mexo com um negócio... Eu mexo com raiz, com ervas medicinais e nós fomos pro campo, pro Cerrado mostrando ele às raízes: “Aquela serve pra isso, essa é boa pra isso” tudo isso nós mexemos lá e quando ele voltou... Aliás, ele não voltou, quando ele acabou de fazer isso, ele falou: “Olha, sabe o que eu vim fazer mesmo aqui? É fazer ao senhor uma visita pro senhor ir lá em Ouro Preto” e aí ele abriu: “É pro senhor ir...”

Era um convite lá da Fundação Ouro Preto e tem outro grupo lá que o FAOP, o Sebrae e virou aquele negócio e eu fiquei preocupado: “Ah meu Deus o que será isso?” E quando eu cheguei lá, eles já estavam com a mesa toda formada lá. “Olha, sabe por que nós chamamos você aqui? porque você, lá no Vale do Jequitinhonha, foi o único no trabalho que você mexe lá... Já tem quatro anos que nós fazemos as pesquisas e você foi o único nessa área dos tambores na linha africana que deu esse...” falou esse nome lá e eu fiquei esquisito assim: “Mas será que... Eu não sei o que vem a ser isso” “E você está sendo convidado pra você dar uma oficina lá na sua cidade” eu nem sabia o que era oficina, meu negócio era fazer tambor de caixa e vender pequenas coisas, sabe? Aí o que eles fizeram? Aí eu fui embora pra Minas Novas e na data que eles marcaram, eles foram lá, aí já foi a caravana deles todos lá, né? E lá eles me fizeram... Me chamaram pra dar oficina, aí já falaram dos outros que iam fazer parte, nós éramos dez e eu fui um dos agraciados, foi como uma loteria, sabe como é? Eu não estava nem... Eu sabia que tinha algum fundamento e isso... Vários trabalhos que eu andei fazendo em festivais e foi indo aquela coisa e eu fui convidado e fiz a oficina lá em Minas Novas, acabou que eu fui muito bem assim recebido, eu fui um dos mestres que parece que eu fiquei em segundo lá, eu e um mestre com nome de... Ele até faleceu, o Mestre Betinho de lá mesmo, ele mexia com aquelas pedras sarami é uma coisa assim, umas pedras que fazem uns trabalhos muito bonitos e que hoje vê só na mesa do senhor Fulano de tal. Ele ficou em primeiro e outro também de lá que fazia aqueles vasos de pedra, aquelas carrancas de pedra aquele modelo assim do tempo lá dos reis, né, lá em Ouro Preto. E aí foi seguindo e ele foi dando esse seguimento... Aí as maiores gravadoras... Não, como se diz? As redes: Rede Vida, a TVE de Minas, a Rede Globo, né? A Rede Globo foi lá em casa e fez um trabalho comigo lá. Captou eu bem no rio e eu lá em casa quase morri de medo nessa época, porque eu não sabia de nada, foi de repente e eu chego lá em casa e... O terreiro da minha casa estava cheio de câmara e naquele tempo eu nunca tinha visto aquilo e pra mim foi um sufoco, minha mulher também nesse tempo, a finada dona Rosária quase morreu de medo, nós não sabíamos de nada. “Ah, nós viemos aqui pela FAOP e tal.” Eu custei a chegar e eu cheguei assim, né? Praticamente eu mexo numa área de remédio de ervas medicinais do Cerrado, tudo isso rolou uma mistura assim, tem alguém já fazendo uns projetos lá disso aí, eu estou aguardando pra ver esse negócio e aí essa história que aí a gente vai se encontrando lá pras bandas do Vale do Jequitinhonha e hoje eu vim esbarrar aqui em São Paulo.

P/1 – Como é para o senhor ser considerado um mestre?

R – Engraçado, ela faz essa pergunta e eu vou contar a vocês uma história pra responder essa pergunta. A gente é uma família, eu vim de uma família tão... Eu não gosto de dizer pobre, Deus é mais, a gente vem de uma família tão fraca, a gente comeu um pão que só Deus e que lá em Minas Novas o pessoal altíssimo, o pessoal de fora... Eu conto isso porque aconteceu, não estou mentindo abaixo de Deus e aí quando vinha gente de fora igual a vocês, pessoas de cidade grande, igual a vocês, aqui que chegam e procuram... Agora não, porque está tendo o cuidado, eu passei por isso e aí logo quando começou a Rede Globo, a Rede Viva chegar em Minas Novas com aquelas caravanas... “Onde mora o Mestre Antônio?” Alguém vinha e falava: “Um analfabeto daquele...” e aí beleza, é assim que as coisas vão rolando e aí até que eles me achavam lá e fazia e coisa e tal e precisava fazer e eles iam embora e com pouco outro vem. Aí aparece lá um pessoal de Belo Horizonte que foi lá fazer uma entrevista comigo lá e chegou lá em Minas Novas e procurou um moço lá do fórum. “Você conhece aqui o Mestre Antônio?” Ele disse: “Esse aí eu não conheço não, eu conheço aí um Antônio Bastião” Aí ele enfiou a mão na pasta e arrancou o documentário, eu estou procurando o Mestre Antônio” encarou ele assim e o cara ficou todo deslumbrado e o cara trabalhava no fórum. E naquilo que eles estão conversando assim aparece essa figurinha aqui, eu não sabia também, eu vou chegando e eles conversando e aparece essa figurinha aqui que é o Antônio Bastião. Quando eu vou chegando, ele fala assim: “A pessoa que vocês estão procurando é esse” Ele me chamou e fez questão de gritar bem alto: “Mestre Antônio faz o favor de vir...” e vi essa pessoa e quando eu cheguei, ele me abraçou. “Oh Mestre Antônio, o senhor está bem? E a família com vai?” E o camarada olhando, né? Quando nós acabamos de cumprimentar, eu fiquei todo desapontado, com esse jeitinho todo desapontado e quando nós terminamos de conversar: “O senhor entra aqui que eu preciso conversar com você e quero que você vai me levar aqui em todo lugar que for ponto histórico aqui.” Eu falei: “Tá, beleza” aí quando eles estavam acabando de ajeitar as coisas lá dentro do carro, esse camarada chegou pra mim assim e deu uma

cortada em mim: “Ah, como você fica todo “vantageiro” quando chama você de mestre” aquilo foi a mesma coisa que dar uma facada no coração, porque a humildade que não sou que estou falando que tenho, mas que alguém falou, foi

a mesma coisa de dar uma facada no coração, eu ouvi assim... E ele é lá do fórum, acho que até em falta do juiz ele faz alguma coisa no lugar do juiz, ele é um cara estudado, um cara poderoso. Aí quando ele falou foi a mesma coisa que dar uma punhalada no meu coração, eu olhei pra ele e falei: “Veja bem, na verdade eu não fico muito feliz quando você me chama de mestre, mas eles aí estão me chamando, fazer o que, né? Você acha que eu não tenho qualidade, mas eu respeito você demais, você pode não assumir com todo respeito, eu respeito você demais, porque eu sei que você é uma pessoa do fórum, eu tenho cuidado com você talvez não é por você, talvez é pela patente que você tem. Então você para e pensa, mas eu não sou uma pessoa que vê vantagem porque a pessoa me trata de mestre não, agora eu tenho um cuidado é com o respeito, né? Respeitar a sua patente, agora se você quiser, beleza.” Então é isso que eu estou falando, eu estou respondendo assim, essa história que eu contei... Agora eu não estou enfrentando mais essas que eu costumo dizer... Lá chama tirar o outro, isso chama discriminar, ele me discriminou, porque eu ali do lado... Vocês viram que eu falei que pra mim foi uma surpresa, porque eu acho que vim de uma história de Nossa Senhora quando o divino veio nela e nasceu o pai, né? Foi uma coisa que ela veio de família pobre, eles nem podiam... E o outro lá de fora disse: “mas logo da família desses pobres aí vai nascer o rei poderoso? Podia ser de uma família aí...” Mas isso são histórias que nós fazemos, é uma revelação que vem do pai e isso eu acho que eu mesmo tenho esse cuidado.

P/1 – E o senhor gosta de ser chamado de mestre?

R – Sim, veja bem como é a história, eu não sei se você já observou quando eles me chamam de mestre, eu falo assim: “Não, com todo respeito é Antônio Bastião”, eu gosto de ser chamado de Antônio Bastião por causa do meu pai que chamava Bastião, né? Quando falam Bastião, eu me lembro do meu pai e isso pra mim é bom demais e depois eu viro e falo: “Pode chamar, na verdade eu tenho mesmo uma patente, graças a Deus”, mas se o caboclo me chamar assim: “Oh mestre...” pessoas assim... Eu fico me sentindo assim, porque eu não sou uma pessoa que tenho essa capacidade de estar chamando de mestre, porque eu penso assim: mestre sim na terra, agora o mestre dos mestres é o pai do céu, porque é ele que nos dá essa força pra estar fazendo isso. É nesse sentido que eu falo, mas eu tenho privilégio de ter essa patente de mestre, porque o pai viu que eu merecia e quando você merece ninguém tira, não é isso? Então eu me sinto muito bem quando me chamam de mestre da terra, mestre aqui da terra e nosso mestre mesmo é o pai do céu, né?

P/1 – E quando o senhor como mestre que dá as oficinas, como o senhor vê o conhecimento que o senhor tem de ser transmitido, quer dizer aquilo que o senhor sabe o senhor ensina para os outros como o senhor vê esse processo?

R – Olha, eu fico feliz demais de ensinar, sabe por quê? Eu fico feliz porque eu estou dividindo, eu estou compartilhando, então quando você compartilha você é compartilhado, quando você tira um pedacinho do seu coração e cede pra alguém, você pode ter na certeza que você nunca vai ter dificuldade na sua vida, porque quando você compartilha um prato de comida com uma pessoa que tem necessidade, são muitos anos de vida. As pessoas me olham assim e falam pra mim: “Você nessa idade que está... A gente olha você e você com esse espírito seu forte” meus filhos falam pra mim: “Pai, para de ficar andando, porque o senhor não aguenta, a idade que o senhor está...” Eu falo assim: “Já é o contrário! Se eu ficar parado meu corpo dói” eles vão passear lá em Minas de vez em quando, inclusive o Adão na subida de morro lá, eu vazo na frente e ele fica pra trás e quando chega no terreiro eles estão tudo cansado. Ele fala: “Oh pai, mas o senhor é forte demais!” Então é assim, essa história disso assim... Várias pessoas já falaram pra mim que quando eu dou oficina, no começo da oficina uns dois dias assim, o primeiro dia é só pra concentrar é só pra falar do Cerrado é meio complicado, mas os alunos quando saem, saem tudo chorando, acaba eu também com o meu coração... Não sei depois que eu fiquei velho, meu coração não sei por que, eu acho que ele está meio derrancado, né? Acaba que eu também fico sentindo aquelas dores no coração, sai aluno chorando, porque eu faço de um modo com eles sabe como é? Eu junto eles tudo e formo assim como uma família, né? Como uma família, ali vira tudo irmão, ali um vai acabando e ajudando o outro e tudo sem nenhum passar uma pequena decepção do outro, um pito, eu poderia estar dizendo, não sei se você já ouviu falar pito, pito é uma palavra... Quando é no final tem a entrega de certificado e tem muitos que choram, eu já vi muitas mulheres chorando, muitas moças chorando, muitos rapazes chorando e acaba eu também ficando meio derrancado também, né? Então é assim.

P/1 – E como o senhor pensa desse mundo moderno, atual, que a gente corre tanto, principalmente aqui em São Paulo, né? Mas como o senhor vê a importância de transmitir esse conhecimento que o senhor tem?

R – Olha, essa importância de transmitir conhecimento é muito boa, até mesmo que alguém de boa vontade aprenda pra estar passando para os outros, pra não acabar isso, porque enquanto... Olha, se eles tivessem feito esse... Juntando aí uns anos atrás, uns 50 anos atrás aí, talvez hoje não estava dando muito trabalho, até mesmo pra você estar fazendo essa coletânea pra estar dando esse seguimento, por isso é assim, toda oficina que eu dou, todo curso que eu dou, na entrega de certificado eu passo pra eles essa missão: “Oh, contribui com seu amigo lá, ensina, faz igual eu faço e você ensinando, não está ensinando a ele, você está ensinando a você, porque você não vai ter dificuldade, porque a partir que você passa a compartilhar igual eu compartilhei com você e um compartilhou com outro, você tem um seguimento muito pra frente.” E esse mundo de hoje tem que ficar fazendo esse tipo de coisa... Unir é da união que nasce a força se não tiver união as coisas não vão, ela fica altos e baixos, um lado derrama, outro lado nem derrama ou não enche, eu conheço vários locais que não tem união e também não tem produção onde não tem união não tem produção, não é?

P/1 – Verdade. Agora pra gente ir encerrando a nossa entrevista, depois eu ainda faço mais uma pergunta, mas assim, já é a segunda entrevista que a gente faz, né? A gente fez uma entrevista mais curta de cabine que foi 30 minutos e agora o senhor contou a sua história mesmo desde criança. O seu trabalho todo, a questão dos instrumentos, essa transmissão de conhecimento, né? Como que o senhor vê a importância de deixar a sua história e a sua experiência registrada aqui no Museu da Pessoa?

R – Olha, veja bem, pra mim vai ser bom demais e acho que muito melhor pra meus filhos, pra mim vai ser bom demais, eu estou muito feliz e eu acho que pra meus filhos, meus netos, vai ser um tesouro que eles vão encontrar, eles vão dizer... Eu falo pra eles assim: “Oh sabe por quê? Porque...” Eu acho que não é só pra meus filhos, mas também pros outros de um modo geral, vou tornar a repetir, eu sou obrigado a fazer isso, porque eu tenho uma missão pra cumprir, então eu preciso de estar deixando isso mais ou menos claro e pelas providências do pai, vocês aqui do Museu, os anjos tocaram vocês em cima de mim, a gente se encontrou lá em Joaíma e a minha história chegou aqui em São Paulo no Museu aqui. Eu não tenho nem o quê dizer mais outras coisas, porque foi uma coisa que pra mim foi bom demais e está sendo bom e vai ser ainda muito melhor.

P/2 – Eu queria que você falasse um pouquinho dos seus filhos e da sua esposa, eu queria que você contasse um pouquinho pra gente como foi conhecer a sua esposa e quantos filhos que vocês tiveram? Qual a idade deles?

R – A finada dona Rosária, Deus que a tenha, ela foi uma pessoa que foi no início da minha vida, a dona Rosária era bem baixinha, moreninha e cuidava muito de mim com o jeito dela, né? Aquele modo assim bem caipirinha da roça, né? Eu fiz questão de... Eu também era, era não, ainda sou caipira, eu sou da zona rural e a gente tinha uma vidinha muito boa, nós tivemos uma vivência de quase 45 anos que outros não tiveram até mesmo alguém da família dela, ela tinha um problema muito sério. A finada dona Rosária, eu trouxe ela aqui em São Paulo, ela fez um tratamento aqui em São Paulo, ela ficou três anos fazendo tratamento, ela tinha doença de chagas e eu tive aquele cuidado de trazer ela, o problema dela estava no sangue, ela tomou remédio 36 anos, né? Ela chegou a uma posição que só podia lavar as roupinhas dela íntima, né? A gente teve esse cuidado pra não deixar ela... Pra ver se ela tinha um ponto de vida, mas chegou a uma altura o médico aqui no Hospital das Clínicas aqui falou comigo assim: “Oh senhor Antônio, a sua dona, ela já é mãe de seis filhos e ela não pode pegar serviço pesado a partir de hoje.” Eu falei: “O que a gente puder fazer a gente vai fazer” “Mas esse remédio aqui ela vai tomar durante toda a vida dela, ela só não pode engordar, quando ela tiver 46 anos, ela tem que ter o cuidado pra não engordar.” E ela foi tomando esses remédios e foi vivendo, a gente foi vivendo a vida da gente conforme Deus marcava pra nós, né? E aí chegou a uma altura que ela começou a engordar, ela era bem baixinha com pouco ela virou aquele tolete grosso, eu falava pra ela: “Dona Rosária, você está engordando muito” quando eu falava que ela estava engordando muito, por fim eu parei até de falar com ela que ela estava engordando, porque ela já sabia que o médico tinha avisado, né? Ela falava assim: “Antônio você está falando que eu estou engordando...” Eu falava: “Não, você não está engordando não, eu falo assim é brincando, você sabe que sou muito brincalhão.“ Ela falava: “É, você está me distraindo” “Não, eu não estou distraindo não.” Ela passou a comer só frutas, pois mesmo assim ela engordava, ela engordava com o próprio remédio, ela tomava um remédio de nome Ancoron, esse remédio nunca sai da minha vida, ela tomou 36 anos, ela tinha chagas, o bicho barbeiro pegou ela quando ela tinha, até isso foi descoberto, eu acho que ela tinha dois ou três anos na casa do avô dela, aquelas casas feitas de pau a pique barreada, o bicho escondeu dentro daqueles buracos e picou ela. Aí quando eu casei com ela, ela estava com 20, é engraçado, né? A idade nossa é quase tudo igual, ela estava com 20 e eu com 22 uma coisa assim, aí daí a três anos quando ela teve a segunda criança, ela começou a sentir dores nas pernas, aí os médicos lá não conseguiram, uns médicos mal preparados, e eu tinha um irmão que morava aqui em são Paulo, né? Aí ele falou pra mim: “Oh compadre Antônio, manda comadre Rosária pra cá que nós vamos levar ela nas Clínicas” eu vim com ela, eu trouxe ela, e levou nas Clínicas e descobriu o que ela tinha. Fez um Machado Guerreiro, eu não sei se vocês já ouviram falar num exame que o pessoal do interior fala Machado Guerreiro? Quando não está conseguindo descobrir o que a pessoa tem, eles falam assim: “Vai fazer um Machado Guerreiro" e todo mundo acha: “Machado Guerreiro, o que será isso?” É um exame que faz, acho que hoje não faz ele mais não, que dá um check-up por dentro do coração, de sangue e tudo, que no final eles descobrem que tem um sangue e ela descobriu com o exame Machado Guerreiro que ela tinha Chagas, mas só que estava no sangue, né? E ela ainda conseguiu viver 55 anos, então foi assim a gente cuidou dela com muito cuidado, no dia que ela faleceu, ela faleceu andando. Um tio meu, o compadre Antônio Levindo que hoje é finado também, ia passear lá em casa na zona rural e eu fui embora pra roça e falei: “Ô dona Rosária, você fica aí pra pegar...” a gente não tinha geladeira na roça, né? “Fica aí pra você levar um frango e levar alguma coisa, carne também” porque a única carne que tem lá é a galinha, mas se não a gente enjoa de comer galinha. Ela falou: “Então Antônio eu vou ficar aqui pra levar que eu vou mais compadre Antônio.” No tal dia eu fui embora na base do meio-dia e quando foi tardinha ela foi lá no mercado comprar as coisas e quando vem com meu netinho perto da igreja, puft, morreu de morte instantânea. Levou ao hospital e quando fez o laudo lá era dois minutos, ela já caiu praticamente morta. Então foi assim a vida nossa.

P/1 – E quantos filhos foram?

R – Seis, uma menina é falecida que eu tenho duas marcações na minha vida, vocês pediram pra contar a história minha de vida, eu vou contar. A minha filha morreu no dia do Carnaval. Lá tem um posto de turista que é a barragem. Lá é um ponto muito bom. E elas foram tomar banho. Lá tem aqueles tubos de canhão, água de canhão sai água de tudo enquanto é cor. À noite, Carnaval lá na cidade. E o dia lá nessa barragem. Lá é uma área muito boa, tem muita água e eles vão tomar banho lá dentro da represa, tomar banho dentro dos canhões. Ela vai pra lá, meu filho tinha um carro,uma D10, o Bastião, né? De sociedade dele mais outro cara e eles vão pra lá e levaram... Eu estava na roça e quando chegou lá eles andaram tomando algumas “catiloias” como a gente costuma dizer, né? Carnaval não deixa de tomar alguma cerveja, ele fez uma misturinha lá, alguma coisa assim e quando ele vem, ela pula do carro, a menina pula do carro com 16 anos nunca tinha tomado uma bomba, você sabe o que é bomba quando a gente fala bomba, né? É de escola, nunca tinha tomado uma bomba, era nota boa todo final de ano, ela tinha uma cabeça muito boa, eles falavam assim: “Essa aí está puxando o Antônio Bastião, você está puxando na leitura e ele está puxando no trabalho dele se seu pai tivesse estudado ele seria do seu jeito.” Mas aí só 16 anos que ela viveu, ela morreu, no dia que eu fiz aniversário, dona Rosária me deu esse presente, dia 14 de outubro, ela morreu nesse dia, eu estava na roça, ela me deu esse presente de viúvo, mas mesmo assim eu sou uma pessoa feliz porque isso tudo não foi dirigido por mim, foi o pai que mandou e por isso eu sou desse jeito, as pessoas conversam comigo: “Antônio você é demais” Mas fazer o quê? Nós aqui somos promovidos e não adianta porque eu sei que... Você desesperar não vale a pena. Então você tem que ser você mesmo e tudo que vier você acolher com grande cuidado, porque tudo que nós colhemos é dirigido pelo pai, então nós temos que ter recebimento.

P/1 – Então eu quero agradecer ao senhor a entrevista, foi linda e o senhor ter vindo aqui foi uma dádiva.

R – Eu é que tenho que agradecer, só esse cuidado que vocês têm pra estar me escutando buzinando aí.

P/1 – Imagina.

R – É como se diz, eu vou embora, mas vou tranquilo.

P/1 – Pode ficar aqui com a gente. O senhor vai embora, mas vai deixar lembrança mais uma vez, né? Mestre?

R – Eu vou levar um peso no coração, mas sei que pra trás está ficando bastante gente e são gente boas, né?

P/1 – Está deixando saudade também.

R – Estão às ordens, eu agradeço.











P/1 – Valeu a pena ter voltado, né? Não valeu?

R – Se você gostou, eu assino embaixo.