Museu da Pessoa

Histórias que vem do berço

autoria: Museu da Pessoa personagem: Ruth Machado Lousada Rocha

Memória da Literatura Infanto-Juvenil
Depoimento de Ruth Rocha
Entrevistado por José Santos
São Paulo, 21/10/2005
Realização Museu da Pessoa
Código ABC_HV001
Transcrito por Susy Ramos
Revisado por Ana Calderaro

P/1 – Ruth, bom dia!

R – Bom dia!

P/1 – Queria começar nossa entrevista pedindo para você falar seu nome completo, data e local de nascimento.

R – Meu nome completo de casada é Ruth Machado Louzada Rocha. Eu nasci em 1931, dia 2 de março. Nasci na Vila Mariana, aqui em São Paulo.

P/1 – Ruth, você poderia falar os nomes dos seus pais e as atividades que eles faziam?

R – Meu pai era médico, Álvaro de Faria Machado. Minha mãe era dona-de-casa, Ester Sampaio Machado.

P/1 – Ruth, do lado do seu pai, quem eram seus avós? Você chegou a conhecer?

R – Cheguei a conhecer meu avô. Minha avó morreu antes de eu nascer. Meu avô era farmacêutico, descendente de portugueses e formado em Coimbra. Ele tinha farmácias, tinha até duas farmácias, mas era um avô chato. Era um avô muito chato. Com os meus avós maternos é que eu tive mais contato. Meu avô se chamava Francisco Sabino Coelho de Sampaio e minha avó era Rosa Coelho de Sampaio. Meu avô era o “Vovô Ioiô” e a minha avó era “Vovó Neném”, e o meu avô era um grande contador de histórias. Ele contava histórias com muita graça. Ele era nordestino mas se dizia nortista porque nasceu no Pará, mas ele era descendente de um baiano e de uma sergipana, então ele contava história daquele jeito nordestino de dançar, cantar, fazer brincadeiras... Ele era muito engraçado. E ele tinha lido, pelo que eu entendi, todas as histórias do mundo porque ele contava tudo do Perrot, ele contava tudo do Grimm, ele contava tudo das Mil e Uma Noites, contava tudo do Nordeste, de histórias populares. Ele sabia todas as histórias de coelho, de veado, de onça... Todas ele contava. Eu vejo hoje: eu leio o Câmara Cascudo e outros folcloristas que contam histórias e eu fico boba de ver que eu conheço todas, porque meu avô contava e contava muito. Ele morava no Rio, era ferroviário e vinha para São Paulo a trabalho. Ele vinha muito para São Paulo, então quando ele chegava, coitado, às vezes chegava cansado, e a gente ficava atrás dele. Ele queria dormir e a gente queria que ele contasse: “Vovô, conta aquela!” Ele contava, dormia no meio e a gente: “Vovô! Vovô! Acorda! Conta aquela!” Ele sabia muitas histórias, eu nem sei como ele aprendeu tudo isso, onde ele leu tudo isso. Eu desconfio que minha bisavó, que eu também conheci, a dinda Maria dos Anjos, que ela contava para ele, porque ela era sergipana. Devia ter aquela tradição do Nordeste de contar história. Minha avó, vovó Neném, que era mineira e me ensinava a cantar. Eu aprendi a cantar com a minha avó, minha avó gostava de me fazer cantar e ela me ensinava modinhas antigas. Eu cantava todas quando tinha voz – agora não tenho mais voz. Eu, quando tinha voz, cantava modinhas imperiais que a minha avó me ensinou. Quando estava mais velha, com uns 15 anos, eu aprendi a tocar violão e gostava de cantar, cantava muito e cantava essas modinhas todas que a minha avó me ensinou. Eu nasci na Vila Mariana, como eu contei para você, e é uma lembrança bonita que eu tenho da Vila Mariana porque era um bairro muito campestre, era um bairro cheio de chácaras. Eu ia para escola, eu ia para o Colégio Bandeirantes. Eu estudei no Colégio Bandeirantes desde o segundo ano primário, então eu ia a pé. A partir do terceiro ano eu já ia sozinha com um bando de crianças da rua, da vizinhança. A gente ia chamando os amigos um por um, batia na porta de um, batia na porta de outro e ia indo aquele bando. A gente atravessava aquelas chácaras... Em vez de ir pelas ruas, a gente ia pelas chácaras, aquelas chácaras tinham uns corregozinhos, umas pinguelinhas... A gente pulava na pinguelinha e ia atravessando. Tinha muita chácara de flor... Tinha muita flor e eu me lembro do cheiro daquelas chácaras, que era delicioso. Eu pegava a esquerda da Rodrigues Alves, era toda de chácaras, descia até lá embaixo. Tinha um vale e a gente atravessava por ali e ia sair perto da Rua Cubatão. Tinha uma ruazinha que era pequeninha, de casinhas pequeninhas que tinham jasmim – aquele jasmim azul – nas cercas, todas cobertas de jasmim. Tinha um cheiro maravilhoso. Eu atravessava aquilo todo dia e ia para o Colégio Bandeirantes, que era na Cubatão, naquele tempo. Logo depois mudou para a Rua Estela, onde está até hoje. Eu estudei até o segundo ano colegial lá.

P/1 – A rua que você morava era?

R – Rua Morgado Mateus.

P/1 – Então você ia a pé da Morgado até...

R – O colégio. E a rua era um território das crianças porque antigamente criança brincava na rua, era uma coisa maravilhosa. Quando minha filha tinha oito anos eu fui procurar uma rua para ela brincar. Eu mudei para uma casa só porque tinha uma rua. Eu brincava na rua porque eu morava no meio do quarteirão, entre a rua Rio Grande e a rua Áurea, que eram as esquinas. Para cima da Rio Grande, no outro quarteirão, tinha o meu tio, que era o único parente nosso em São Paulo. Os meus pais vieram do Rio, eram cariocas os dois e vieram para São Paulo em 1930. Essa casa do meu tio, a casa em frente foi onde eu nasci. Depois mudamos dessa casa e passamos para uma no quarteirão de baixo, e era nosso território entre a minha casa e a casa do meu tio. A gente corria tudo lá de bicicleta, brincava de pega-pega. Na verdade eu era a menorzinha do grupo todo, era um grupo grande de crianças. Eu comecei a brincar na rua tinha uns quatro, cinco anos, e tinha minha irmã dois anos mais velha, meu primo dois anos mais velho e um amigo do meu primo que foi nosso amigo a vida inteira, que era dois anos mais velho do que ele. Era um grupo de várias idades e tinha os amigos todos ali no meio. Eu era a menorzinha. A minha lembrança de infância é correr atrás dos outros porque eles corriam, chegavam no quintal do meu tio e subiam nas árvores. Quando eu começava a subir na árvore eles estavam descendo já, indo embora (risos).

P/1 – Você tem mais irmãos?

R – Eu tenho quatro irmãos: uma irmã mais velha e tenho três irmãos bem mais moços. Meu irmão depois de mim tem nove anos de diferença, a outra irmã tem 13 anos de diferença e o outro irmão tem 14 anos de diferença.

P/1 – Qual o nome deles?

R – O meu irmão mais moço se chama Alexandre Machado, é jornalista. Minha irmã se chama Eliana Ferreira, é advogada. O meu outro irmão se chama Álvaro Machado, como meu pai, e é médico. A minha irmã mais velha se chama Hilda, que é um nome inventado. Hilda, porque minha mãe tinha uma prima Hilda, com “h”, que era filha de alemão, então chamava-se Hilda, e minha mãe pôs esse nome porque gostava muito da prima. Eu mesma escapei de chamar Hermengarda.

P/1 – Ah, é?

R – É! Meus pais gostavam muito de uma amiga deles que se chamava Hermengarda. Imagina! Então minha tia, que foi minha madrinha, minha tia Rita, vetou. Falou: “De jeito nenhum! Hermengarda parece espingarda.” Então escolheu meu nome Ruth, que quando eu era pequena nem gostava muito porque tinha muita Ruth da minha idade. Se você olhar em volta você vai ver a Ruth Cardoso, a Ruth de Souza, tem a Ruth Escobar... Tem muita Ruth da minha idade, depois é que caiu de moda o meu nome. Hoje eu fico muito contente com o meu nome. Como eu casei com Rocha, eu acho que Ruth Rocha casou bem, então hoje estou contente, mas naquela época não gostava.

P/1 – Nessa época você brincava mais com a sua irmã mais velha?

R – Muito! Eu sou amiga dela, nós ficamos amigas para sempre, muito chegadas. Ela é dois anos mais velha que eu, já está mais velha, nós somos muito chegadas, muito amigas até hoje. Brincávamos muito as duas.

P/1 – Do que vocês brincavam nessa época, na década de 1930?

R – Então, nós brincávamos do que menina brinca, brincávamos de boneca. Meu pai fez uns caixotes para nós, grandes... Eram quatro caixotes grudados para cada uma onde a gente fazia casinha de boneca. Ainda fez um para uma amiga nossa que brincava conosco. Ele punha aquilo tudo dentro do carro – não cabia direito –, levava os caixotes para a casa da nossa amiga para a gente brincar. Brincava muito de boneca, brincávamos de bola, pular corda, amarelinha... Brincávamos de correria na rua, mais tarde de bicicleta. Eu tenho até um livro que conta essa história da minha primeira bicicleta, que chama Quando eu comecei a crescer, e é uma lembrança de quando eu ganhei minha primeira bicicleta, porque a bicicleta é como se fosse uma promoção. A gente subia de status quando tinha bicicleta, porque antes a gente andava de velocípede, era criança, era pivete. Quando eu ganhei a bicicleta eu senti aquela melhoria de status, então é muito importante na minha vida. Nós fazíamos muita bonequinha de papel, eu já desenhava os vestidos das bonecas, adorava fazer isso. Desenhava vestidos, arranjava papéis coloridos para fazer vestidos de boneca, brincávamos muito. Brincávamos dessas coisas: de comidinha, fazer comidinha de boneca, brincávamos de rua, pegador, correr atrás dos meninos que iam brincar de outra coisa. Brincava muito com menino porque tinha esse meu primo que morava na mesma rua e a gente brincava muito com eles.

P/1 – Essa rua já era calçada?

R – Não, não era, era de terra. E isso fazia essa rua muito boa porque não passava carro. Só tinham os carros da rua mesmo, aquela rua toda esburacada, e eles entravam. A gente andava de bicicleta, conhecia os pedaços onde podia andar e brincava muito. Na verdade eu andei muito de bicicleta no Parque Ibirapuera que, nessa ocasião... O pedaço do Ibirapuera que encostava na Rodrigues Alves... A gente descia a Rua Morgado Mateus, chegava na Rodrigues Alves, lá embaixo, porque a Rodrigues Alves desce e vira. A gente chegava lá embaixo e tinha um pedaço do Ibirapuera que era asfaltado, perfeito, largo e vazio. A gente andava ali. Quando a gente via um carro, a gente falava assim: “Olha o carro!” Vinha um carro lá embaixo... A gente parava e vinha um carro. Eu me lembrei disso ouvindo um depoimento do Chico Buarque. Ele falava que quando vinha um carro – ele jogava futebol na rua, ali na Henrique Schaumann, jogava nesses lugares – eles diziam: “Olha a morte!” (risos). A gente então parava e passava o carro.

P/1 – Você ia sem os pais para o Ibirapuera?

R – Tudo sozinha. De noite a gente saía, em dia de verão, a gente saía aquela criançada toda, subia a Rodrigues Alves até o Largo Dona Ana Rosa para tomar sorvete lá em cima, sozinhos. Eu imagino que eu tinha nove, dez anos nessa época. Minha irmã era um pouquinho mais velha, meu primo um pouco mais velho, tinha as amigas minhas, colegas de escola... Era livre na rua, impressionante. Por isso que eu quis alugar uma casa em um lugar que tivesse uma rua para brincar.

P/1 – E fez muito bem! Ruth, você consegue descrever essa casa em que você morou?

R – Consigo, consigo acho que todas. Eu morei primeiro nessa casa onde eu nasci, que era uma casa térrea, minhas primeiras lembranças de gente são nessa casa. Eu mudei de lá com três anos. Eu tinha menos de três anos ou três anos. Tinha um quintal muito grande com uma parreira muito grande em que a minha mãe botava umas mesinhas – eu tenho foto disso –, cadeirinhas para a gente ficar brincando ali embaixo da parreira. Eu me lembro muito... Meu pai era moço. Quando eu tinha três anos meu pai tinha 34, então ele lavava o quintal. Ele com a minha tia. Eu tinha uma tia que era muito nossa amiga – era do Rio e vinha muito para São Paulo –, a tia Lila. Era mocinha, solteira, e eles lavavam aquele quintal. Eles adoravam, com esguicho molhavam tudo e eu me lembro deles lavando o quintal, varrendo aquilo, divertidíssimo. Tinha o jardim também, e tinha em frente a casa dos meus tios. A gente ia muito porque esse meu tio era dez anos mais velho que o meu pai e, nessa ocasião, ele já tinha uma posição econômica boa. Ele foi empregado do Moinho Inglês, um empregado relativamente modesto. Ele era contador e ele trabalhava _____. Houve um desfalque aqui em São Paulo e ele foi mandado para cá para resolver o problema do desfalque, e em um instante ele foi promovido. Ele foi caixa da empresa

– quer dizer, o contador maior

– e foi a diretor da empresa. Era uma das poucas multinacionais que tinha no Brasil, era uma empresa inglesa e ele tinha uma boa situação econômica. Não era rico, mas tinha uma casa bonita, tinha automóvel... Então era lá que a gente se reunia, fazia o Natal, Ano-Novo, e a gente todo domingo ia para lá. Meus pais iam jogar cartas com os meus tios, jogavam bisca, um jogo que eu nem sei mais o que é. A gente ficava entre as duas casas e depois mais tarde em uma casa já um quarteirão para baixo. A gente frequentava muito o meu tio. Nós mudamos um tempinho para a alameda Santos porque houve a Revolução de 1932 e a situação econômica em 1933 ou 1934 estava muito ruim. Foi depois da crise de 1929 e meu pai ficou com medo de não poder manter aquele nível de vida e mudou para a alameda Santos, para um sobrado. Era muito divertido lá porque era uma rua muito boa a Alameda Santos, naquele tempo. Sabe onde é o Bambi? Era exatamente onde é o Bambi. Ali tinha umas casas de frente de rua que a gente entrava por uma escadaria e era lá em cima, tinha o porão e tinha dois andares. Tinha aquele porão enorme onde a gente brincava. Era um porão alto, mas ele ia diminuindo de altura até o fim, então chegava em um ponto... Tinha os quartos que pareciam casa de boneca. Tinham portinha, janelinha e a gente adorava aqueles quartos para brincar. E tinha dois andares, no andar de baixo... Não, tinha um andar só. Tinha a sala, os quartos, tudo no andar depois da escada. Isso eu vivi dos três aos cinco anos, nesse lugar. Gostava muito. Tinha uma sorveteria famosa chamada Alaska. Até pouco tempo existia essa sorveteria. Tinha um sorvete maravilhoso, a gente tomava esse sorvete (risos), eu adorava! Nesse tempo eu fui para o jardim de infância. Era um jardim de infância pequenininho que tinha, se não me engano era no fim da Avenida Paulista no Largo. Se não me engano, chamado Oswaldo Cruz. Ainda chama Oswaldo Cruz?

P/1 – Chama, perto do metrô Paraíso.

R – Isso mesmo. Ali tinha um jardim de infância, era uma casa muito bonita que tinha um terração todo ladrilhado, colorido... É um jardim… Jardim de inverno se chamava. Bate sol e fica quentinho, e era um jardim de infância. Então eu comecei a ter asma, comecei a ficar gripada. Cada vez que eu ia para a escola ficava gripada, voltava para casa, minha mãe me tratava, eu voltava para escola, pegava gripe outra vez e comecei a ter asma. Tive asma quando eu tinha três anos e até os 11 anos eu sofria de asma bastante grave. Bastante grave nada, nunca fui para o hospital, nunca precisei remédio mais forte, mas tinha asma. Eu acho que essa asma me deu uma capacidade de ficar sozinha e de pensar nas coisas, eu acho que eu fiquei muito paciente, eu sou uma pessoa muito paciente. Eu tenho uma capacidade de esperar as coisas, acho que tenho até uma capacidade de compreender quase tudo porque esse tempo de doença foi um tempo. Imagina para uma criança pequena, muito sofrido. Mas eu lembro das minhas doenças com muito carinho. Minha mãe era uma pessoa muito especial, muito carinhosa. Minha mãe amava criança. Ela teve cinco filhos, mas ela amava os sobrinhos. Os sobrinhos vinham do Rio, passavam férias aqui, ela fazia roupa para eles, fazia festa de aniversário, levava para passear. Tinha um sobrinho do meu pai que era mais velho, ela fez o meu pai ensinar ele a guiar automóvel. Ela era muito boa tia, boa mãe, boa avó e ela me tratou com muito carinho. Eu me lembro dessa doença e do carinho dela. Ela me ajeitava e me dava um livro para ler, catava lâmpada para eu ler, botava rádio para eu ouvir. Eu ouvia quando eu era bem pequenininha – ou não tão pequenininha, talvez mais velha –, eu ouvia o Cassino do Chacrinha, que ele fazia no rádio. Tudo isso que ele fazia na televisão, depois ele fazia no rádio. Ele ficava: “Terezinha! Terezinha!” (risos) Eu achava muita graça, e era de madrugada.

P/1 – Era de madrugada?

R – De madrugada. Eu ficava ouvindo rádio, ficava lendo, minha mãe me trazia uns chocolates, me trazia umas coisas boas e eu ficava calma, embora estivesse doente, de cama. E eu ouvia o relógio bater embaixo. Ele batia, tinha a música do Big-Ben, fazia babababaaa-babababaaa, a noite inteira ele faz, de 15 em 15 minutos ele tocava. Eu acompanhava aquilo. Eu já estou falando da casa da Morgado Mateus, lá embaixo. Eu ouvia o trem, o bonde que descia com barulho de trem: tchatchatchatcha. Daí um tempo ouvia: tchatchatchatcha. É até uma coisa engraçada que não me traz angústia, eu devia ter uma angústia com isso e não tenho, eu tenho uma lembrança. Eu lembro quando amanhecia, geralmente quando eu estava doente eu não conseguia dormir. Eu acho que os remédios para asma me deixavam acordada e eu só dormia quando cantava o primeiro galo. Então o galo cantava, eu ouvia longe, os galos vão respondendo. Um galo, outro galo, outro galo e vai embora. Então outra vez. Um galo, outro galo, outro galo. Eu sempre pensava na volta que o canto do galo dá, ele dava uma volta no mundo e começava de novo. É uma lembrança bonita que eu tenho, não é uma lembrança triste.

P/1 – As restrições da asma eram o que? Ficar na cama?

R – Ficava na cama, tinha muita falta de ar, não ia para a escola, tinha que tomar uns remédios, tinha umas coisas chatas que eram antigas que hoje não se faz mais com criança, e se fazia. Minha avó, quando chegava na minha casa, punha uns cataplasmas que eram um horror, me queimavam, mas ela me tratava também. Todo mundo me tratava (risos), todo mundo vivia me tratando. E quando eu ficava boa, estava ótima. Eu saía, brincava, fazia tudo. Quando ficava doente ficava assim quietinha, mas eu gostava muito de ler. Comecei a ler muito cedo, comecei a ler tudo e...

P/1 – Você aprendeu a ler em casa?

R – Não, aprendi na escola. Eu não me lembro de ter aprendido a ler. Eu fui para a escola, aprendi a ler e não sei como foi. Eu sempre quero contar, me perguntam: “Como foi sua alfabetização?” “Não sei. Eu aprendi a ler.” Eu me lembro que uma tia, essa minha tia Lila. Eu fazia lição para ela, dava lição para ela, ela estudava comigo e dizia: “Então lê!” Eu começava: “Blá, blá, blá, blá.” Ela falava: “Não fala de cor, você está falando de cor.” Eu não sabia o que era de cor, eu: “Blá, blá, blá, blá.” “Você tá falando de cor!” Eu digo: “Não tô. Blá, blá, blá, blá.” Eu aprendi, descobri o que era “de cor” depois de grande, eu não sabia (risos). Mas aprendi a ler e logo que eu aprendi a ler, comecei a ler. Meu primeiro livro era um livro que hoje está esquecido, eu não sabia de quem era, chamava O garimpeiro do Rio das Garças. Minha mãe comprou um dia em uma livraria, me trouxe, eu li e adorava esse livro. Quando já era adulta, já era escritora, eu fui a uma exposição na Biblioteca Infantil –

ali na Vila Buarque tem a Biblioteca Infantil Monteiro Lobato. Tinha uma exposição do Monteiro Lobato. Eu começo a olhar os livros e tinha esse livro, era do Monteiro Lobato, esse livro é dele. Está publicado, mas ninguém fala nesse livro. Quando ele fez as Obras Completas ele não pôs esse livro e eu não sei por que ele não pôs porque o livro é ótimo! Eu ultimamente arranjei uma cópia, comprei e li. Eu falei: “Deve ser ruim esse livro, por isso ele excluiu.” Nada, é ótimo! Acho que ele achou que a obra dele era só a obra do Sítio, daqueles meninos, e excluiu esse livro que é ótimo. Foi meu primeiro livro que eu li.

P/1 – Nossa, que delícia, começou lendo Monteiro Lobato!

R – Pois é. Agora, antes de eu saber ler minha mãe já lia Monteiro Lobato para nós. Ela lia, minha mãe lia muito para nós. Ela leu a obra toda do Monteiro Lobato. A gente já sabia ler, mas ela continuava lendo e a gente adorava. Eu gostava tanto de Monteiro Lobato que quando ele morreu, em 1947, eu tinha uma lembrança de que eu chorei quando ele morreu. Eu pensei: “Nunca mais vai ter livro do Lobato.” Eu tinha 16 anos, fiquei com saudade dele. Já lia tudo, já lia livro de adulto, já lia Hemingway, já linha Steinbeck, já lia e tinha saudade do Lobato.

P/1 – Na época os livros dele já eram muito populares?

R – Ele lançou em 1929 a Narizinho, não era muito popular não. Ele teve uma tiragem imensa porque ele vendeu para o governo 50 mil livros e aí já alavancou. A fama do Lobato foi alavancada por isso. Minha mãe descobriu o Lobato não sei como. Minha mãe era jovem ela tinha nessa época, 1931, ela tinha 25 anos, era moça. Sozinha em São Paulo, porque tinha os parentes do meu pai que eram amigos dela e tudo, mas ela não tinha parentes próximos, irmãs, primas. Eu não sei como ela descobriu o Lobato. Ela ia ao dentista, passava na Brasiliense, e trazia um livro para a gente. E foi trazendo Monteiro Lobato. Quando ela descobriu que Monteiro Lobato era maravilhoso ela trazia sempre um, então apareceram as coleções do Lobato. Ela falava: “Coleção a gente põe na estante e não lê. Vamos ler um por um.” Ela trazia, acabava um, comprava outro. Leu a coleção nem sei até quando. Tinha uns que nós não gostávamos, nem ela. Ela não gostava do livro da Dona Benta, que eu li depois. Eu gostei, mas ela não gostava, tinha uns lá que ela não gostava.

P/1 – E qual você gostava mais?

R – Narizinho, Reinações de Narizinho, todo o mundo de Lobato. Depois tinha uns que eu gostava muito, eu gostava muito das Memórias da Emília. Memórias da Emília é uma ocasião em que o Lobato tem que se expressar muito e de dizer o que ele gostava, de meter o pau. Ele já metia o pau no cinema de Hollywood, umas coisas do cinema. Ele era muito crítico e eu gostava muito disso. Eu gostei muito do Sítio do Pica-Pau Amarelo que era um livro bem adiante já das aventuras, quando eles trazem todo mundo da fábula para viver no sítio. Tem as brigas com a Dona Carochinha. Dona Carochinha não quer que eles saiam dos livros e a Emília brigava com a dona Carochinha e trazia, e trazem o minotauro. Quando eles trazem o minotauro, ele rapta da tia Anastácia e acaba o Sítio do Pica-Pau Amarelo assim. Ele rapta a tia Anastácia. Então em O Minotauro, que é outro livro seguinte, eles vão buscar a tia Anastácia que está lá com o minotauro, fazendo bolinho para ele.

P/1 – Esse livro é maravilhoso.

R – Eu adoro O Minotauro, e aí tem Os Trabalhos de Hércules, que foi o último. Teve uns outros que ele publicou que foram eu acho que restos de coisas que ele tinha, alguns contos. Ele fez alguns livros a mais, mas a última aventura deles são Os Trabalhos de Hércules.

P/1 – Então você começa com Lobato, sua mãe contando. Que história mais ela contava?

R – Minha mãe não contava, minha mãe lia. Meu avô contava essas todas. Meu pai contava duas: uma era o Aladdin e a outra era “O homem da perna amarrada” que é um capítulo do Barão de Münchhausen. Ele contava essa. Depois eu lembro de um livrão que meu pai comprou um dia que eu estava doente, era um livro em inglês que eram Os Contos da Mamãe Gansa, mas era em inglês. Ele achou muito bonito, tinha figuras, a gente lia aquilo e não entendia nada. Foi engraçado porque naquela ocasião, acho que logo depois, nós começamos a aprender inglês. Meu pai tinha um professor de inglês, ele e um companheiro do consultório tinham aula de inglês. Ele botou o professor para mim e para minha irmã. Eu tinha nove anos, comecei a aprender inglês nessa ocasião. Mas aqueles contos da mamãe gansa são absolutamente impossíveis de entender porque é tudo folclórico, é tudo cheio de trocadilhos, não dá para entender nada, mas ele via com certo encanto aquele livro. Nessa ocasião eu já lia também, a Melhoramentos tinha uma coleção que tinha uma velhinha na capa contando histórias e eu me lembro do Patinho Feio. Tinha vários, Cinderela... Eu ainda tenho um livrinho daquele, é uma história, A Canção de Rolando. São histórias de Carlos Magno. Eu ainda tenho aquele livrinho. Eu li nessa ocasião um livro que eu gostava muito, chamava João Peralta e Pé-de-Moleque. Era uma história espantosa, era uma história do Menotti Del Picchia. E olha a história que ele contava: o João Peralta era um menino branco – burguês, né? –, branquinho, que tinha um amiguinho filho da empregada, chamava Pé-de-Moleque. E ele queria muito ver uma exposição de aviação, ia haver uma festa de aviação, e ele pediu para o pai: “Papai, você me leva na festa de aviação?” Ele falou: “Se você tirar notas altas eu te levo.” Ele falou: “Eu posso levar o Pé-de-Moleque?” Ele falou assim: “Se você tirar notas altas eu levo o Pé-de-Moleque.” Porque o Pé-de-Moleque ficava em casa, ele ia para a escola e o Pé-de-Moleque torcia por ele. Quando eu li ultimamente essa história eu quase caí de quatro. Gente! História racista, sem vergonha! E era uma história que eu gostava também. Tinha uma ilustração muito curiosa de um alemão. Eu tenho esse livro até hoje. E, naturalmente, aquele Juca e Chico. Lia João Felpudo, que era uma história apavorante de um menino, um menino que não gostava de cortar o cabelo, ficava cabeludo, não gostava de cortar a unha, ficava com a unha comprida, não gostava de tomar banho e acabou ficando doente, morrendo. Eram umas histórias apavorantes de alemão. Os alemães só contavam histórias apavorantes. Eu nunca me impressionei muito com história, não. Achava tudo muito natural. Então eu fui crescendo. Já estudava no Bandeirantes quando no terceiro ano ginasial – que hoje é a sétima série –, um professor chamado Everaldo Castelo, mandou ler um livro que era A cidade e as serras, do Eça. Ele explicou o que era a história, que a gente ia se divertir, contou um pouco. Deve ter contado bem porque ele contou, todo mundo foi para casa fazer o trabalho e eu fiz sem ler. Entreguei o trabalho e tirei a nota mais alta da classe. Quase morri de vergonha! Fiquei passada, falei: “Que coisa que eu faço.” Eu tinha 13 anos e fui ler o livro. Amei o livro, até hoje adoro esse livro. Já li umas cinco vezes. Uma vez comecei a contar para um amigo meu essa história e contava, ele falou: “Você sabe de cor esse livro?” Eu falei: “Esse livro foi uma revelação!” Sempre que conto essa história eu digo que não foi meu encontro com a literatura, foi a minha trombada com a literatura. Eu tive um espanto. E nessa ocasião minha irmã já estava no primeiro colegial, era aluna do professor Amora, ele foi diretor da Cultura depois. Soares Amora, era professor de Português, foi até muito conhecido. Ela era aluna do Amora e ele mandou os alunos se filiarem, se inscreverem na Biblioteca Circulante, que nesse tempo funcionava na Avenida São Luís, naquele prédio da biblioteca. Era ali a Biblioteca Circulante.

P/1 – Já tinha esse nome?

R – Tinha, era uma enorme biblioteca, eu fui com a minha irmã lá. Quando eu vi a biblioteca eu fiquei absolutamente atônita, eu falei: “Gente, eu tenho que ler todos esses livros!” (risos) Eu não sabia como, falei: “Vou começar!” Me inscrevi na biblioteca e comecei a tirar os livros da estante na ordem que eu encontrava. Eu fui, entrei, tinha uma estante aqui e comecei a tirar. Eu lembro que eu tirei todos os livros de letra “s”, não sei se tirei todos, tem muitos, eu li o Paulo Setúbal inteiro.

P/1 - _________

R – Lembra do Paulo Setúbal? Ele fazia uns livros de história sobre romances históricos. Era a Marquesa de Santos, o Príncipe Dom Pedro, as folias que ele fazia, fugia com o Chalaça, ia tocar violão... Eu achei aquilo o máximo, eu li todos dele seguidinho. Quando eu chegava na estante e faltava um eu ficava furiosa porque eu falava: “Agora eu não sei qual está faltando.” Gostava de ler seguidinho. Li muita coisa seguida. Um dia eu descobri que podia levar dois livros porque a gente era sócia. Podia levar um livro de ficção e um livro que não fosse de ficção. Então eu descobri que toda poesia não era ficção. Foi quando eu comecei a ler poesia. Eu me encantei, também lia nessa base, lia tudo que aparecia, eu pegava e lia.

P/1 – Qual foi a letra ________?

R – Foi “c”, foi o Cleônides Campos. É um bom poeta. Outro dia eu procurei, ele é um poeta desconhecido, quase. Deve ter sido conhecido na época dele, mas sabe que é um bom poeta? Eu procurei faz pouco tempo para saber se eu gostava e achei bom poeta.

P/1 – Ele vem de que escola?

R – Ele é romântico, é o começo do Modernismo. Um pouco simbolista talvez. Mas eu li Castro Alves. Castro Alves eu já tinha na cabeça que eu precisava ler porque meu avô era primo do Castro Alves. Meu avô era primo terceiro do Castro Alves. Quer dizer, os pais deles eram primos, então ele recitava muito Castro Alves. Minha mãe recitava Castro Alves e meu avô recitava muito também, minha mãe também sabia de cor poemas inteiros. Eles sabiam aqueles poemas compridos e eles recitavam muito em casa, eu achava o máximo, eu gostava. Eu gostava de poesia. Quando mais tarde nós mudamos para uma casa na própria Morgado Mateus, pegada àquela que era uma casa maior. Eu tinha dez anos quando nós mudamos para a casa de baixo.

P/1 – Essa foi a casa que você morou mais tempo?

R – É, provavelmente. Morei mais tempo um pouco. Era uma casa um pouco maior e tinha um vestíbulo, mas a minha mãe não gostava daquele vestíbulo. Era uma casa comprida e o vestíbulo era lá na frente, não gostava de abrir a porta lá, então ela trancava aquela porta. E neste lugar tinha uma escrivaninha do meu pai e tinha livros do meu pai. Tinha uma estante com os livros dele e eu estudava ali. Eu me metia lá, o que eu estudava? Eu lia tudo que estava lá menos estudar e, nessa ocasião, eu descobri um livro que foi muito marcante na minha vida, chamava Cantadores. É de um folclorista chamado Mauro...

P/1 – Mota.

R – Mota! Exatamente. Descobri esse livro que meu pai ganhou de alguém e deixou lá. Comecei a ler aqueles repentes nordestinos, eu amava aquilo. Eu acho que eu tenho mania de fazer verso, de fazer redondilha, eu faço muito nos meus livros e eu acho que aprendi com eles porque eu li muito aquilo e eu ficava espantada com aquilo. Há algum tempo atrás eu escrevi um artigo para uma revista e eu dizia, contava que o Darcy Ribeiro dizia que a raça brasileira é a raça mais linda que existe. Você vai ao Arpoador, vê as moças e os rapazes brasileiros bem tratados, alimentados, de dente tratado, com saúde, ao ar livre. Você vê o que é a raça brasileira. Quando eu olhava aquele livro me impressionava muito com aqueles cantadores, tinha fotos. Aquela gente tão feia, tão pobre, cegos, com óculos pretos, aquela coisa e aquele talento, então eu dizia: “Bota esse povo para comer, para fazer esporte, para ter tratamento médico. Que povo nós teremos!” Isso era um pensamento que me vinha. Era menina e pensava isso. Porque era um talento que saltava daquilo. Eu me lembro de ter lido uma coisa que depois ficou muito famosa, era um desafio entre o Zé Pretinho e o Cego Aderaldo.

P/1 – A Peleja do [Cego Aderaldo com o Zé Pretinho dos Tucuns].

R – Não é? Eu achava aquilo o máximo, eu decorei aquilo e tinha aquela história: não há quem cuspa para cima que não lhe caia na cara. Eu achava o máximo, era um talento fantástico. Depois entrou naquele espetáculo Opinião.

P/1 – Entrou?



R – Entrou. Esse diálogo era feito entre o João do Vale e o Zechetti. Quando eu vi os dois fazendo aquilo eu lembrei que tinha aquele livro. Enfim, esse livro se perdeu porque nós mudamos muito de casa, mas eu achei. Eu procurei e achei uma edição mais nova. Tenho todos os livros do Mauro Mota e acho que aprendi muito com ele também. Com ele, com o trabalho dele.

P/1 – Você estava contando um pouco da sua experiência de leitura no escritório do seu pai, que você lia mais do que estudava. Eu queria que você descrevesse um pouquinho como era seu pai. Como era o jeito dele?

R – A minha família... Eu fui uma pessoa abençoada porque eu tive a melhor família que se pode ter. Meu pai era um homem sério, trabalhador, louco pela minha mãe, minha mãe louca por ele, os dois se davam muito bem. Eles se davam muito bem, mas não excluíam a família. Eles eram, nós todos éramos uma família. Por exemplo, eu vejo casais hoje que saem para jantar no dia de aniversário de casamento sem os filhos. Nunca na vida isso houve na minha casa, a gente festejava junto com os pais. Meu pai era mais ou menos severo mas, como o pai dele, era muito chato. Era um avô chato que eu tinha, era severo, era mandão, era autoritário. Meu pai tinha um pouquinho disso. Mas como minha mãe era uma condottieri disfarçada em favo de mel, ela nao deixava. Ele, quando começava: “Não, porque...” Ela: “Você está igualzinho seu pai” (risos) E ele desistia. Eles se davam muito bem, nunca brigaram, foram sempre muito amigos. Meu pai aquela figura sólida que a gente precisa quando é criança e minha mãe aquela figura doce. Eu sempre me senti muito amparada. Nós já éramos adultas, casadas, conversávamos os irmãos e dizíamos assim: “Papai é uma rocha, ele é uma rocha.” Eu chamo Rocha, mas ele que é rocha. “Ele é uma rocha porque ele era um homem forte.” Ele trabalhou sempre, o pai sempre estava bem de vida, eles tinham uma vida bonita naquele tempo. Meu ________ dizia que quem não tinha coisas estrangeiras, louças estrangeiras, cristal, não tinha nada. Aqui no Brasil não tinha. Então eles tinham coisas bonitas, tanto que a gente chegou a ver algumas coisas. Não herdamos nada, mas chegamos a ver algumas coisas. A minha avó ficou muito doente com câncer e meu avô gastou tudo que tinha com a doença da minha avó. Ele mandou buscar médico na Alemanha, raio-X, gastou tudo, ficou sem nada. E meu pai, que estava começando a faculdade de medicina, começou a trabalhar desde o tempo de faculdade. Começou a trabalhar e trabalhar duro para se manter, então ele teve uma vida... Não era dura porque ele era moço, era forte, podia fazer e fez. Mas ele era um cara temperado, uma pessoa que enfrentava a vida, enfrentava as coisas. Ele resolveu vir para São Paulo porque em São Paulo tinha mais possibilidades. Ele veio, não tinha ninguém que ajudasse, não tinha ninguém para pedir um tostão emprestado. Ele sempre contava isso para a gente: “Eu sempre contei comigo.” Porque às vezes a gente queria alguma coisa, minha mãe era mais solta, queria gastar dinheiro, e meu pai falava: “Não pode” “Você tem dinheiro no banco” “Eu tenho, mas eu não posso porque não tenho para quem pedir. Eu tenho que segurar o dinheiro para fazer as coisas”, e ele era muito firme. Isso nos dá uma segurança na vida. Por exemplo, ele cresceu, começou médico pobre em São Paulo e foi melhorando de vida. Nós nunca fomos ricos, mas sempre melhorando de vida. Foi uma infância sossegada. Eu sempre falo que colégio particular hoje em dia é tão caro, e meu pai toda vida pagou colégio particular para nós, nunca ouvi ele se queixar de que era muito caro. Ele não era rico, mas pagava escola particular. Nós tivemos sempre casa razoável, boa, ele sempre teve carro porque precisava, porque era médico, nós sempre tivemos telefone – que naquele tempo não era todo mundo que tinha. Nós tínhamos uma vida modesta, mas boa. Tivemos férias, quase a vida inteira fomos para as férias, para lugares modestos, mas tínhamos. Nós tínhamos festinha de aniversário, uma festinha modesta, nunca tivemos festa pomposa, luxuosa. Era bolinho, bola de borracha. Eu dizia que era bolo, bola e bala. Tinha bolo para assoprar a velinha, tinha bola para jogar – chamava os amiguinhos –, tinha bala de coco e tinha guaraná, porque naquele tempo só tinha guaraná em festa. Todos nós tivemos festinhas, os primos que vinham para São Paulo tinham festinhas, eu não me lembro de problema de roupa. A gente tinha o que precisava. O sapato ficava velho, comprava outro sapato. A roupa ficava pequena, comprava uma roupa. Hoje em dia que tem essa coisa de consumismo, de comprar um monte. A gente nem pensava em comprar. A mãe que comprava para a gente, resolvia essas coisas. Mas tínhamos essa garantia que é uma coisa maravilhosa você ter uma infância garantida. Meu pai está lá, minha mãe está lá, eles gostam de mim e eu gosto deles. É muito sólido isso.

P/1 – E do que seu pai gostava de brincar com vocês?

R – Ele brincava de muita coisa. Ele contava história, brincava muito de lutar na cama. Ficava na cama e a gente pulava em cima dele, ele empurrava... Minha mãe falava: “Você está empurrando com muita força!” Ele empurrava a gente, a gente se enfiava debaixo da coberta, ia até a beirada da cama, aí ele falava: “Tem um bicho aqui, tem um bicho! Eu vou pegar esse bicho!” A gente ria, contava história. Agora, meu pai era menos brincalhão, meu pai vivia cansado. Sempre cansado, chegava em casa e dormia. Ele era cansado, sabe o que a gente fazia muito naquele tempo? A gente fazia muito piquenique. A gente saía de carro, meus tios com os filhos, meus pais conosco, com os primos – tem sempre primo na minha casa – então íamos todos para a Ilha Porchat. A Ilha Porchat era toda deserta, não tinha nada.

P/1 – Era deserta?

R – E a gente ia fazer piquenique na praia. Tem fotos lá, da gente na praia fazendo piquenique. A gente ia, por exemplo, fazer piquenique no Horto Florestal. Não tinha ninguém, a gente ia fazer piquenique. A gente viajava muito para o Rio porque meu pai e minha mãe eram cariocas, tinham a família toda lá. Quando eles podiam...

Minha mãe ia muito de trem conosco.

P/1 – Vocês iam de trem?

R – Primeiro íamos de trem.

P/1 – Conta como era a viagem de trem nessa época!

R – Uma delícia viajar de trem! A gente ia de noturno e primeiro chegava ao trem, ia comer. A gente ia para o restaurante, comia bife com batata frita. Eu não me lembro o que a gente bebia, mas devia ser guaraná também. Então a gente ia dormir, nós duas deitávamos embaixo e minha mãe deitava em cima no beliche. A gente passava a noite acordada olhando tudo e aquele trem tcha-tcha-tcha-tcha, aí parava em todas as estações, as estações todas do Vale do Paraíba. Parava em Taubaté, São José dos Campos, parava em Jundiaí, Mogi, nessas cidades todas, depois no estado do Rio. A gente espiava pela cortina, ficava espiando lá fora aqueles ferroviários passando, batendo com o martelo. Eles batiam com o martelo na roda, batia toc-toc, eu nunca soube o que era aquilo. Eu aprendi isso mais tarde, que era isso que eles faziam. E fazia aquele tchiiiii, era trem a vapor. Nós adorávamos ir para o Rio. No Rio nós tínhamos família, a gente brincava. Eu tinha uma tia, tia-avó, que era muito amiga da minha mãe. Minha mãe passou muito tempo com ela porque meu avô morava muito longe e minha mãe tinha asma também. A minha tia levava ela para a casa para levar ao médico. Era minha tia-avó, tia dela.

Ela tinha uma casa enorme e tinha um porão enorme, onde ela tinha todos os escravos que sobraram. Moravam com ela. Tinha uns oito. E esses escravos eram muito nossos amigos. Quer dizer, não eram escravos, eram livres.

P/1 – Libertos.

R – Libertos. Trabalhavam na casa alguns. Tinha uma que era a Velha Rita, que era babá de uma prima da minha mãe e tinham os filhos da Rita que eram dois, o Tonico e a Mariazinha. Esses dois e mais um outro – que era filho de outra moça –, os três estudaram e se formaram em faculdade. Essa tia-avó tinha mania de estudar, todo mundo tinha que estudar, não tem conversa. Em um tempo que moça não estudava, ela botou as filhas para estudar, botou essa gente para estudar. Eu lembro que nós brincávamos muito com o Tonico. O Tonico era mais velho do que a gente, mas o Tonico era engraçado. Carregava a gente no ombro e fazia – ele e o outro, que era Osmar –, faziam papagaio, mostravam para a gente como se fazia pipa. Eles faziam, empinavam pipa no quintal. Quando eu conto essas coisas eu vejo como minha mãe era democrática, minha mãe era uma mulher democrática. Na nossa rua tinha gente de todas as posses. Tinha gente bem mais rica que nós. Não tinha rico, mas tinha industrial, casa bonita. Meu tio tinha uma casa bonita. E tinha gente muito pobre. E a gente era tudo junto. A gente ia à casa deles, eles vinham à casa da gente. A gente ia ao cinema, minha mãe pagava cinema para todo mundo. A gente ia brincar, vinha todo mundo tomar lanche na minha casa. Era absolutamente junto, perto. Era todo mundo junto. Eu lembro das brincadeiras com esses meninos que eram filhos de escravos e eram nossos amigos. Não tinha coisa de bater em criança pobre, criança empregada. Mas nem pensar! Nós respeitávamos as empregadas. Essa senhora, a Rita, todo mundo respeitava muito. Tinha uma empregada bem velha na casa do meu tio que era a Arlinda, a gente pedia licença para entrar no quarto dela. Ela era uma senhora de respeito, ninguém tinha confiança com ela, não. Ela deixava. Ela era séria, a gente amava ir no quarto da Arlinda conversar com ela. Eu conto essas histórias, eu vejo como era uma vida democrática.

P/1 – Sua mãe era uma mulher moderna para a época.

R – Moderníssima. Meu pai também era. Meu pai, quando a gente começou a namorar, ele falava: “Tem que chegar até dez horas em casa. Se vocês tiverem companhia, pode ficar na rua. Para acompanhar, eu quero gente que traga vocês para a casa, que tome conta de vocês.” “Ah, eu vou com a prima de Fulana que é mais velha, vai nos levar” “Então pode.” Mas deixava a gente ficar na rua com o namorado mais tarde, desde que fosse um grupo, uma turma. Nunca desconfiou de nós. Meu avô – aquele que contava história –, ele era ciumento, seguia a gente no Rio. Nós éramos mocinhas e ele seguia a gente de longe. Uma vez teve um caso tão engraçado... Nós ficávamos no Rio na casa de uns tios. Essa tia da minha mãe que morava num casarão foi para uma casa pequena, depois ela morreu e a gente ficava na casa do tio Carlos, marido dela, que tinha uma prima da minha mãe. Ficamos lá. A gente levava um dinheiro – não era muito –, e quando a gente precisava de dinheiro a gente ia à cidade, porque tinha o Moinho Inglês e lá trabalhava um amicíssimo do meu pai. A gente subia, falava para ele que precisava de dinheiro, ele nos emprestava dinheiro e depois meu pai pagava. Um dia nós descobrimos que estávamos com pouco dinheiro, precisando de dinheiro... Não, não. Nós íamos ao cinema. Tomamos o bonde, meu avô nos seguiu, fomos de bonde. Chegamos a Cinelândia, descemos do bonde para ir ao cinema. Chegamos no cinema, não tínhamos dinheiro: “Não temos dinheiro, temos que buscar dinheiro!” Então a gente ria, sabe como é menina. Era perto, fomos a pé. Chegamos lá, falamos com o Valdomiro – chamava Valdomiro – e o ele não estava, estava de férias. Não tem Valdomiro, então não temos. Descemos do prédio e voltamos. Tinha dinheiro para o bonde, tomamos o bonde e fomos embora para a casa. Então ele contou para a minha tia, o meu avô: “As meninas saíram para encontrar com alguém, elas iam encontrar no cinema, mas os caras não foram. Elas então foram lá em um prédio encontrar com outra pessoa. Chegaram lá, voltaram, a pessoa não estava, então tomaram o bonde e vieram para a casa.” (risos) Teve uma outra prima da minha mãe, também. Uma vez nós fomos ao Parque da Cidade, tínhamos uns namorados cariocas, mais tarde, moças, e nós fomos. Não lembro se tinha meu namorado – acho que o meu nem estava –, era o namorado da irmã, o namorado da prima e mais duas pessoas e fomos passear. Então a prima da minha mãe telefonou para a minha tia: “Eu vi as meninas da Esterzinha no Parque da Cidade com os namorados.” “Você tem certeza que viu?” “Vi. Vi sim.” “Você olhou bem?” “Olhei sim.” “Você não me viu, né? Eu estava lá”. A família da minha mãe era assim. Isso não tem a menor importância na história mas, enfim, é engraçado.

P/1 – Isso é ótimo, são costumes.

R – Costumes de mocinha que não saía sozinha com o namorado para ir ao Parque da Cidade, eu não ia.

P/1 – Hoje, né?

R – É.

P/1 – Ruth, queria voltar um pouquinho no tempo para você nos contar como foi essa chegada na escola, no Bandeirantes. Como era o rito escolar nessa época?

R – Eu entrei em uma escolinha que se chamava Externato Nossa Senhora Aparecida. Eu fiz o primeiro ano lá. Era uma escola muito triste porque já chamava Nossa Senhora Aparecida, então tinha uniforme bem antigo e as donas do externato eram uma senhora de mais idade e uma mais moça. As duas solteironas de preto, eram umas pessoas tristes. Eu acho que devia ser proibido gente triste ser professora. Era um ambiente assim. E tinham umas lendas de que os namorados delas, noivos, morreram antes de casar, na véspera do casamento. Acho que eram lendas, não sei se era verdade. E elas vestiam de preto. Tinha uma, a mais nova, empertigada, era minha professora, a Dona Iaiá. Eu me lembro de uma escola muito triste, muito sem graça. Eu fui para o Bandeirantes. O Bandeirantes era um colégio muito puxado, bem exigente, mas era um colégio mais moderno. A gente já tinha um recreio grande e eu me lembro da escola como uma coisa muito fácil. Eu nunca fui muito estudiosa, mas na minha casa se cultivava uma coisa que é muito importante: respeito. Respeito pelo professor, respeito pela escola. Porque tinha colegas da gente naquele tempo que eram mal criadas, que eram respondonas, faziam coisas, não faziam a lição, iam de qualquer jeito. Eu lembro que eu era, eu prestava atenção na aula, chegava em casa, fazia correndo a lição e dava conta de tudo, porque dá para dar conta sem estudar muito, então nunca fui muito estudiosa, mas era boa aluna. Aluna média. Passei por isso e nem reparei muito no que me aconteceu. Eu não era uma menina agitada, era quietinha, eu faltava muito por causa da doença, não tinha notas muito altas, mas nunca tive problema. Minha família nunca exigiu nota de nós. Exigia sim que fosse à escola, exigia sim que tem que fazer lição, mas tirando nota seis, sete, estava bom. Então a gente acostumou a tomar conta de si, não tinha vigilância. Então a gente via que estava pior, estudava mais. Via que estava melhor, largava um pouco e pronto. Eu acho que nós éramos muito autônomas. Hoje eu estudo Pedagogia, a gente vê que o objetivo maior da educação é a autonomia. É o objetivo maior da educação conseguir a autonomia do jovem. E nós tínhamos autonomia, nós pagávamos a escola, levávamos dinheiro pequenininhas, dez anos, nove anos. Nós levávamos dinheiro para a cidade, comprávamos o sapato, comprávamos roupa, eu e minha irmã.

P/ 1 – É mesmo? Vocês iam onde? No Mappin?

R – É. No Mappin não, Mappin era caro.

P/1 – Era caro?

R – Era uma loja fina. Nós íamos às lojas mais simples. Não me lembro bem, mas lembro de uma Casa Clark onde a gente comprava sapato. Lembro que tinha umas casas de tecido na rua Direita, Casa Skaff... A gente ia lá, comprava tecido para depois mandar para a costureira e fazíamos sozinhas. Eu e minha irmã íamos ao dentista. Tudo sozinhas. Tomávamos bonde, ônibus, íamos para a cidade e fazíamos tudo sozinhas. Depois meus irmãos não foram tão livres porque começavam os perigos, começaram os problemas, condução muito cheia... E meu pai também, mais velho, tomava mais conta deles. Levava na escola, ia buscar na escola e para nós não. Ele levava quando podia, mas íamos sozinhas e ele não se preocupava. Os mais novos ficaram mais no laço.

P/1 – Você contou que a sua trombada com a literatura foi com o Eça.

R – Eça de Queiroz.

P/1 – Antes disso, na escola, alguma coisa te chamou a atenção?

R – Sabe que nada. Nunca! Nunca mandaram ler coisa nenhuma. Quando falam que antigamente as crianças liam mais, é conversa, porque eu não tinha com quem conversar sobre Monteiro Lobato. Não tinha uma colega que lesse também! Era raro quem lia bastante, era bem raro, tanto que eu cheguei ao terceiro ano sem ler. Eu lia muito porque minha mãe trazia livros e eu gostava muito de ler, mas eu não tinha indicação na escola. Eu comecei a ter indicação de livro na escola com esse professor, depois passou mais um pouquinho. No clássico eles começam a pedir, tive professores maravilhosos no segundo clássico e no terceiro que foi para o Rio Branco. Eu tive um professor que se chamava João Batista Damasco Pena, foi diretor do Rio Branco, era um intelectual. Ele era tradutor dos pedagogos todos e gostava muito de leitura, ele era meu professor de filosofia. Naquele tempo tinha aula de psicologia e filosofia, mas o que ele dava na verdade... Ele falava sobre leituras, indicava livros, falava sobre Psicologia dentro dos livros. Eu me lembro dele falando sobre O Primo Basílio, ele contava que tinha o conselheiro Acácio. Eu desenhei o conselheiro Acácio enquanto ele estava falando, então ele viu o que eu estava fazendo, veio ver e falou: “Me dá esse desenho!” Eu dei o desenho para ele. Muitos anos depois eu encontrei com ele e ele tinha esse desenho na carteira.

P/1 – É mesmo?

R – É.

P/1 – Que emocionante!

R – Esse professor sabe o nome de todos os alunos dele. Ele ainda bem mais velho, encontrei com ele – encontrava muito com ele porque ele continuou trabalhando no Rio Branco e eu fui orientadora educacional do Rio Branco, então encontrei muito com ele. Conversava muito com ele e eu falava assim: “Sabe quem eu encontrei, professor? O Plínio” Ele falava: “Plínio de Arruda Sampaio. O Plínio de Arruda Sampaio é muito bom aluno...” “Ah, professor, encontrei a Fulana!” “Fulana de Tal de Tal!” Sabia todos! Ele me ensinou uma coisa que eu acho que aprendi, uma elegância intelectual. A elegância de escrever direito, a elegância de ler bem, a elegância. Era um homem bem vestido, elegante também. Ele era elegante nos gestos, nas atitudes. Eu me lembro que uma vez ele passou um pito com um aluno por causa de uma coisa grave e descobriu que não tinha sido o aluno. Chamou o aluno na diretoria, pediu desculpas: “Você vai me desculpar, eu fui muito injusto com o senhor e eu não sabia.” E aluno era tratado assim por ele, então era uma pessoa importante. Eu tive um professor de português que se chamava Sales Campos que era um barato. Ele era um velho cearense e gostava de Guerra Junqueiro, recitava Guerra Junqueiro. Era muito enfático e falava de literatura, adorava literatura e ele ficou muito meu amigo depois, quando eu fui trabalhar lá. Ele vinha me visitar todo dia. Ele chegava, botava a cabeça: “A senhora está boa?” “Estou bem!” “Tá bom, até logo!” E ia embora. Ele me ensinou a gostar de literatura, a apreciar o bom livro, o livro que tinha conteúdo, o livro que era bem escrito, ele mostrava muito essa coisa do bem escrito. Ele tinha uma aula que era fantástica, era todo sábado. Eram duas aulas seguidas que a gente tinha que falar o que quisesse, levantar e falar. Se quiser trazer uma coisa escrita, você lê. Se quiser trazer uma poesia, você lê. Se quiser contar uma piada, você conta. Se quiser contar de uma coisa que você leu, você conta. Todo mundo tinha que falar, levantar e falar! Era fantástico, as pessoas traziam poesias, traziam coisas e ele discutia porque não gostava de poesia moderna. A gente queria irritar ele e trazia só poesia moderna, então ele olhava e falava. Teve um dia que nós levamos uma poesia do Vinícius que era aquele “Pátria Amada”, e ele escutou inteirinha e ele olhou para nós, ele fazia assim, era careca: “É bom, é bom!”. Ele era ótimo e ele nos entusiasmou muito para ler e para escrever também. Eu tive um terceiro professor... Foi um professor dentro do Bandeirantes, era de História, chamava Eduardo França. O Eduardo França era o professor de História. Ele me ensinou a narrar. Ele narrava as aulas de um jeito muito bem falado. Eu anotava o que ele falava e eu tinha esses cadernos até há pouco tempo. Acabei perdendo, mas eu tinha até pouco tempo. Quando eu estava na faculdade eu pegava os cadernos dele para fazer trabalho de faculdade. Eu cheguei a tirar dez com o professor Murilo Mendes e cheguei a tirar oito com Sérgio Buarque de Holanda – que reprovou a classe inteira –, ficamos só três de fora e ele me deu oito, trabalho baseado no caderno do professor França (risos). Acho que aprendi muito com ele. Eu estava falando dos ritos da escola, mas eu não falei, eu nem me lembro direito, sabe? Não tive traumas na escola.

P/1 – Mas o Bandeirantes era um colégio mais moderno, era mais tradicional?

R – Muito mais do que o Externato Nossa Senhora da Aparecida, mas era moderno na época. Então mudou de dono porque ele era de uma família de educadores, dos Silveira, que eram três irmãos professores da Faculdade de Filosofia. Eles fizeram esse colégio, então eles eram modernos. Mas como eles passaram para o Aguiar, o velho Aguiar. Acho que até já morreu. Ele modernizou muito, mas ainda tinha aquele tipo de colégio puxado que até hoje é. Colégio puxado, lá não tem conversa, tem que saber as coisas, aperta na nota. O Rio Branco era um colégio mais moderno porque tinha o Pena, que era uma pessoa extraordinária e que estava em recuperação. Ele foi um colégio que chegou a falir e o José Ermírio de Moraes, o velho senador, comprou o colégio e deu para a Fundação de Rotarianos. A Fundação de Rotarianos chamou o Damasco Pena para ser diretor e eles fizeram uma reforma. Começaram a biblioteca que hoje é uma biblioteca. Eu não sei quantos volumes tem, mas quando eu trabalhava lá tinha 40 mil volumes. Quarenta mil volumes escolhidos, limpos, tratados, catalogados. Tinha uma bruta biblioteca. Tinha oito funcionários na biblioteca quando eu trabalhava lá. O Pena começou esse negócio de biblioteca, eles mudaram para aquele prédio grande. Era um prédio pequeno na Vila Nova, era onde é agora o Sesc da Vila Nova. Era um prédio ótimo, o melhor, tinha piscina, era divertidíssimo, mas mudou para lá. Eu estudei nesse prédio pequenininho e depois trabalhei no prédio grande. Era um colégio muito bom, foi muito bom muitos anos, agora eu estou um pouco descrente, perdi um pouco o contato, mas eu acho que agora está mais antigo outra vez.

P/1 – Você estava contando dessas aulas aos sábados em que os alunos levavam suas coisas. Nessa época você já escrevia?

R – Nunca! Eu comecei a escrever quando eu já tinha 36 anos. Eu comecei a escrever para a revista Claudia artigos sobre educação. O diretor da Claudia, que era o Caloca Fernandes, era muito meu amigo e eu contava – eu era orientadora já – os casos de orientação. Como eu fazia, o que eu tinha estudado, o que eu tinha achado e ele gostava muito, então pediu para eu escrever. E eu escrevi vários... Escrevi três anos para eles, mas quando eu estava escrevendo para eles começou a revista Recreio, e eles me chamaram para ser orientadora pedagógica da revista. Eu fui orientadora a partir do número dois. Na verdade, o projeto da revista Recreio, as pessoas falam que é meu, mas não é. O projeto da revista Recreio é da Sonia Robatto, que é baiana. Hoje ela mora na Bahia. A Sonia Robatto e o Valdir Gaiara – que era ilustrador –, os dois se juntaram e fizeram um projeto. Esse projeto incluía umas tirinhas que eles queriam fazer... Alguma coisa que fosse educativa e me chamaram para isso. Então eu comecei a fazer exercícios que não pareciam exercícios, pareciam brincadeiras. Eu estava estudando nessa ocasião a tese da Ana Maria Poppovic, que foi uma psicóloga. Não sei se você lembra, foi atropelada lá no Sumaré, a mãe da Silvia. Ela tinha uma tese de doutoramento que era sobre a maturidade neurológica na alfabetização. Eu peguei essa tese e apliquei no Rio Branco, no jardim de infância do Rio Branco eu comecei a desenvolver aquelas qualidades para alfabetização e eram atividades que eram lúdicas, engraçadas, todas com figurinha, bonitinhas, para as crianças de jardim. E quando me chamaram para fazer a Recreio, eu comecei a fazer essas coisas na Recreio. Mas então a Sonia Robatto, que escreveu oito histórias para Recreio seguidas –

porque ela não achava gente que escrevesse –, a Sonia Robatto foi muito importante porque ela estava atrás de um texto que só ela sabia qual era, na cabeça dela. Tanto que ela me achou, fez eu escrever para ela, achou a Ana Maria Machado, fez a Ana Maria escrever para ela, achou o Joel Rufino dos Santos, e fez o Joel escrever para ela. No mesmo ano ela publicou histórias de nós três que nós muitos anos escrevemos para a Recreio porque ela estava atrás de um texto mais cotidiano. Histórias mais do cotidiano, dos problemas infantis mesmo, sem moralismo, mas que tivessem uma certa base. Ela começou a me pedir para escrever uma história e eu falava para ela: “Não sei escrever história.” “Você vai escrever, você vai escrever. Você conta uma história para a sua filha.” Eu contava para a minha filha uma história que era Romeu e Julieta. A borboleta, que eram duas borboletas, uma azul e uma amarela, e não podiam viver juntas porque tinham cor diferente. Essa história, eu contava isso para ela, ela ouvia eu contar porque nós éramos muito amigas, andávamos muito juntas. E um dia eu fui para a casa dela… Eu vou contar isso porque é um caso engraçado. Eu estava na casa dela em um domingo, nós tínhamos chácara perto lá na Granja Viana. Ela tinha uma chácara e, na chácara dela, três pessoas tinham chácara que tinha piscina. Nós éramos muito amigas, viajávamos juntas e tudo. Nós íamos nadar domingo lá. Botei meu maiô, botei minha saída e fui para a casa dela. Ela me botou na sala: “Não, senhora! A senhora não vai para a piscina não! Você vai escrever uma história. Está aqui a máquina, estão aqui as laudas, escreve uma história. Escreve aquela história!” Eu sentei lá... Eu sempre conto nas escolas isso porque eles morrem de rir, mas eu conto que era andar térreo, se eu quisesse eu saía pela janela. Ela me trancou, eu achei graça e comecei a escrever. Ela também voltou, conversou comigo sobre a história, me animou e eu acabei de escrever a história. Eles gostaram, publicaram, pediram outra, pediram outra, pediram outra, e até hoje estou escrevendo. Eu tinha 39 anos quando eu comecei.

P/1 – Eu não sabia dessa história. A Sonia está na lista do nosso projeto.

R – A Sonia é uma pessoa importante agora, é difícil. É difícil porque ela esteve muito doente, não sei... Ela está muito melhor, talvez ela se disponha a vir.

P/1 – Tem que ir lá, nesse caso.

R – Ah, sim!

P/1 – Porque na verdade, a Maristela, da Moderna, veio aqui na semana passada. Deu uma entrevista linda e também conta desse apostolado dos editores que tinham que chamar as pessoas para escrever porque tinham pouquíssimos autores...

R – Tinha uma outra coisa também. Nós, os autores que começamos nessa época, sofremos muito com os editores porque os editores não queriam pagar. Tem uma grande editora que todo mundo conhece e que me chamou, queria histórias minhas, mas queria me pagar uma vez só e ficava para ela. Tanto que teve editoras, como a Ediouro – a Ediouro posso falar porque já mudou de direção – comprou as histórias do João Carlos Marinho e ele não tinha mais direitos. Eu não me lembro como ele fez para obter os direitos de volta. Então tinha muito isso, não pagavam, eu lembro que me ofereceram na ocasião 3% de direito autoral e eu conversei com a Sylvia Ortof, que recebia 3% de direito autoral. Uma grande editora que todo mundo conhece.

P/1 – Selvagem esse mercado!

R – Selvagem. E eu e a Ana Maria Machado fincamos nossos pés e lutamos muito pela adoção de coisas mais corretas. Eu e a Ana Maria pegamos uma agente, chama Ana Maria Santeiro – até hoje ela é minha agente. Ana Maria Santeiro foi uma das pessoas que lutaram pelos direitos dos escritores. Ela conseguiu para mim... Bom, 10% foi o que eu sempre ganhei porque eu não fazia se não fosse 10%, não interessa. E então ela também conseguiu adiantamentos para escritores que ninguém dava. Eles davam para estrangeiro, e dão até hoje mil dólares. Dão para estrangeiro, para a gente não dão, não. Para a gente eles são mais comedidos. Atualmente, eu, Ana Maria Machado, João Marinho e Ziraldo, nós temos um grupo de escritores que tem hoje reconhecimento porque vendemos. Não sei se o reconhecimento é pela nossa qualidade, acho que é mais pela nossa venda mas, enfim, nós temos o reconhecimento do público pela qualidade. Eu acho que esse grupo que começou em 1969. O João Marinho, se não me engano, publicou antes de nós O gênio do crime, em 1968. Depois eu e a Ana Maria começamos em 1969, na Recreio, depois um pouquinho começou Edy Lima, fez grande sucesso.

P/1 - __________

R – Edy? Edy é um encanto de pessoa, adoro a Edy!

E ela começou na Melhoramentos, fez A vaca voadora e foi um estrondo, ela fez um sucesso fantástico. Então começaram a entrar Lygia Bojunga Nunes, que começou a publicar, mas eu acho que... Eu nem sei aonde estava indo, para falar a verdade.

P/1 – Esse grupo é o pioneiro mesmo?

R – Esse grupo é o pioneiro.

P/1 – Na verdade é o seguinte, vamos te convidar uma outra data, fazer um segundo tempo porque tem muita história bacana para contar. Eu queria fazer um fecho da infância com duas perguntas e então a gente fala um pouquinho da Tatiana

Belinky para almoçar porque você deve ter a sua agenda.

R – Perfeito, perfeito! Toda amarrada.

P/1 – Queria que você contasse como era o cotidiano de uma menina de sete, oito anos na Vila Mariana do acordar ao dormir.

R – Bom, eu sempre estudei de manhã. Estudei de tarde muito poucas vezes, talvez uma ou duas séries da minha vida. Mas eu estudava de manhã, acordava cedinho, tomava banho, lavava a cabeça. Tive uma professora que perguntou se eu era doente porque eu lavava a cabeça todo dia. Lavava a cabeça, tinha uma trançona que eu mesma fazia e a gente ia para a escola. Nos primeiros anos da escola meu pai levava de manhã cedo, depois com nove anos eu comecei a ir sozinha. A gente ia para a escola, voltava para almoçar... Eu sempre fiz a minha lição imediatamente querendo me ver livre, então sentava depois do almoço, fazia a lição e ficava livre. Tinha a rua, eu brincava com um monte de crianças. Tinha dentro de casa onde eu brincava também e as crianças vinham brincar de boneca, essas brincadeiras mais de dentro de casa. Depois eu lia, lia muito, ouvia muito rádio. Desde pequena eu ouço muito o rádio, até hoje eu gosto muito de rádio. Eu tinha a minha irmã e quando ela não tinha muita lição ela brincava comigo. Quando ela tinha, ela sempre estava na frente então ela tinha mais lição que eu. Tinha as amigas da minha irmã, vinham os amigos da rua inteira. Vinham brincar e a gente brincava no quintal. Tinha uma brincadeira que era uma arte horrível que eu fazia com uma menina que morava perto da minha casa, pegado. A gente arranjava umas garrafas e fazia, era brincadeira de química. A gente enchia as garrafas de água com coisas para colorir. O que eram essas coisas para colorir? A gente roubava anil – a gente usava anil para lavar a roupa. Roubava anil para colorir de azul, estragava o anil todo, roubava. Meu pai era médico, tinha caixas de amostras em casa, roubava remédios, então fazia amarelo, vermelho, azul, laranja, escondia. Agente sabia que era mal feito e escondia na garagem, e brincava muito disso. Nem sei o que a gente fazia com essas garrafas, brincava!

P/1 – Você tinha bichos?

R – Eu não tinha. Nós tivemos bicho quando minha irmã era pequena, morreu atropelado, minha irmã quase morreu junto e a gente desistiu dos bichos. Eu nunca gostei muito de bicho, eu até hoje não gosto muito. Eu vou na casa dos meus netos, eles têm cachorro, o cachorro me adora. Fica sentado junto de mim, encostado em mim, mas eu não gosto muito de cachorro, não sou de bicho. Eu gosto de bicho solto, eu gosto muito de bicho, mas tudo solto no mato.

P/1 – Voltando, você voltava para a casa...

R – A

minha vida diária. Voltava ao meio-dia, meu pai ia almoçar. Meu pai almoçava todo dia conosco, jantava todo dia conosco e era uma das exigências do meu pai que a gente não chegasse atrasado para o jantar. Não tinha nada de ir para o cinema das seis às oito e chegar depois das oito, tem que jantar junto todo mundo. Todos os dias da nossa vida almoçávamos e jantávamos juntos e a mesa de jantar da minha casa era uma delícia. À mesa era uma conversa ótima, sempre conversamos muito, meu pai conversava muito com a gente e a gente falava dos livros que estava lendo, a gente falava... Teve uma ocasião em que meus irmãos já eram grandinhos, já liam, nós já éramos mocinhas, 18 anos, então meu pai descobriu uns livros que ele tinha lido na cidade dele que eram uns livros de capa e espada, o autor francês chamava Michel Moskau. Ele descobriu, comprou um caixote daqueles... Se chamavam fascículos mesmo, vendiam em fascículos, a gente comprava toda semana e ele achou em um sebo um caixote daquilo e trouxe para a casa e nós todos lemos Michel Moskau. Meu pai lia, minha mãe não lia, mas todos os irmãos, os cinco, desde a minha irmã que já tinha 21 anos, eu tinha 19, o outro tinha dez... O Alexandre, quando ia deitar, deitava e botava um gibi de cabeça para baixo porque ele não sabia ler ainda. Todos liam aqueles fascículos e conversávamos. Meu pai tinha a mania de procurar na enciclopédia as coisas, a gente dizia para ele: “Apareceu um cara, um padre, que fez não sei o quê.” Ele falava: “Vamos procurar no dicionário!” Nós tínhamos um Larousse. Ele procurava em francês: “Ah, esse aqui é o padre Fulano de Tal que matou Luís XIV” “Não, era Luís XIV que morria, um rei,” “Matou o duque não sei do quê.” “Ah, matou o duque!” A gente já tinha lido na história, a gente lia e amava aquilo. A coisa mais engraçada é que o Álvaro, meu irmão, namorou a Ana Maria Machado, foi casado com ela muitos anos, e ela tinha lido Michel Zevaco. Quando houve a revolução eles tiveram que se mandar, se mandaram para Paris, moraram dois anos lá e iam procurar as coisas que existiam no Michel Zevaco. As ruas, o Louvre, iam ver o Louvre. “Era aqui que se passava.” Eles andaram Paris inteira procurando essas coisas. Quando eu fui a Paris, eu fui com a Ana Maria e ela foi me mostrar uma rua que tinha todos os livros. Tinha a Rue du Cherche-Midi, que era a rua de ir para o Sul, de procurar o Sul, que era por onde o Pardaillan fugia da Île Saint-Louis, porque estava atrás dele para alguma coisa e ele fugia por ali. Legal.

P/1 – E à noite?

R – À noite a gente sentava na calçada, conversava muito. Quando tinha calor a gente ia tomar sorvete, tinha uns que brincavam na calçada porque tinha calçada, a gente brincava de amarelinha, pulava corda, brincava, conversava muito. Conversava muito na calçada, isso era quase toda noite.

P/1 – E tinha essa garoa mesmo em São Paulo?

R – Ah, tinha, tinha. Quando eu era mocinha, jovem, a gente dava muita festa porque a gente sempre foi muito festeiro na minha casa. Tinha festas nas casas das amigas, bailinho. Os rapazes todos chegavam com uma capa de gabardine porque eles iam embora de madrugada, não tinha mais bonde e tinha garoa, então eles já vinham de capa. Eles vinham com a capa, entregavam, a gente dobrava e botava na cama, geralmente a cama de casal. Enchia de capa e na hora de ir embora iam todos de capa porque senão eles apanhavam chuva.

P/1 – Que interessante!

R – Eu me lembro muito do frio de São Paulo, fazia um frio…. Nunca mais fez. Um gelo que era São Paulo, um gelo! Era muito frio. Meu pai morou em uma chácara na Granja Viana, essa chácara de que eu falei, naquele tempo em que não tinha muita casa e tinha muita planta. Ele foi o primeiro morador da Granja Viana. A gente punha o termômetro no terraço, fazia menos de zero. Geava, a gente amanhecia e estava o gramado todo coberto de gelo, o vidro do carro ficava todo coberto de gelo.

P/1 – Mudou o clima mesmo.

R – Mudou.

P/1 – Ruth, você podia contar um pouquinho como eram as festas de Natal da família?

R – Bom, toda a vida minha mãe gostou muito de festa e ela começou a fazer festa de Natal quando nós já éramos grandes. Meu pai e meu tio não festejavam Natal porque a mãe deles morreu no dia 24 de dezembro. Ficou aquele tabu, não se festejava. Mas a minha mãe que adorava tudo, minha mãe gostava de tudo, ela fazia umas rabanadas no dia de Natal, fazia uma outra coisa, comprava um vinho do Porto para tomar no dia de Natal. Um dia ela apareceu com uma árvore deste tamanho, artificial, umas bolinhas e botou no meio da mesa na hora de jantar. No outro ano ela comprou mais bolinhas e foi fazendo umas comidas, umas coisas e começou a fazer presente de Natal. A gente acreditava em Papai Noel, eles botavam Papai Noel para a gente e minha mãe era muito engraçada. Ela fazia assim. Natal, a gente não ganhava estes presentes que as crianças ganham, não. Ganhávamos poucos, alguns. Ela pegava tudo quanto era brinquedo velho, ia escondendo e começava a consertar. Pegava boneca que estava feia, ela penteava o cabelo, pintava a boneca, fazia roupa nova e juntava. Depois do Papai Noel a gente ia ver os presentes dela, era tudo o que ela arrumou o ano inteiro. Pintava mobília de boneca toda para ficar bonitinha. Era interessante a minha mãe, e assim ela foi aumentando essa festa. Ela foi aumentando essa festa. Primeiro a gente ia muito na casa do meu tio porque nós éramos só quatro, mas a gente foi aumentando nossa família. As minhas primas foram casando, tendo filhos, foi aumentando a família deles e a gente já foi separando, fazendo o nosso Natal só nós. Então começou, eu namorei, eu me casei, vinha o Eduardo. Depois minha irmã casou, vinha o Fred. Depois nós tivemos filhos, vieram os filhos, depois o Álvaro casou, a festa foi aumentando e ficou uma bruta festa. Minha mãe enfeitava tudo, botava velas nas mesas, toalhas bordadas e talheres de prata, aquelas mesas lindas. Primeiro uma só – pois éramos poucos –, depois começou a ter duas e agora tem três mesas no nosso Natal. A minha mãe e o meu pai morreram, mas nós fazemos o Natal todo ano. Agora nós somos cinco irmãos, nós temos atualmente quatro... Não, minha irmã ficou viúva, mas eu tenho meu marido, o Álvaro tem a mulher dele, a Eliana tem marido e o Alexandre agora está sozinho. Mas vem o Alexandre, vêm os filhos do Alexandre. A gente frequentemente convida a primeira mulher do Alexandre porque ela é muito nossa amiga, a gente gosta muito dela. Depois vêm os filhos do Álvaro – que são três rapazes –, os filhos da Eliana – são dois –, as filhas da Hilda – são três–, os maridos e os namorados. Eu tenho uma filha que tem um ex-marido que vai sempre porque eles se gostam muito. Vão os netos e enche aquela casa. Qualquer almocinho de aniversário tem 20 pessoas. Imagina Natal que ainda vêm outras pessoas, a gente convida às vezes. Por exemplo, quando é na casa da minha irmã, ela convida a sogra da minha sobrinha, porque o marido da minha sobrinha morreu e tem a sogra. Ela convida a sogra, cunhados, filhos, tudo para o Natal e acaba enchendo a casa. Minha sobrinha que mora em Barcelona quase todo ano vem para a festa de Natal. Meu irmão vem do Rio, meu irmão e minha cunhada. Meus sobrinhos... Tem um que mora em Londres, quando ele vem ao Brasil ele vem à festa. Tem outro que mora no Rio, outro também mora no Rio, um vem, o outro vem. Sempre vem um deles e aquela festa vai ficando cada vez maior. Nós dizíamos assim: “A mamãe faz tudo complicado. A gente, quando ela morrer, não vai fazer mais porque eu não estou a fim de fazer isso, eu não estou a fim de fazer aquilo. Tô a fim de _____” E a gente faz igualzinho, direitinho como ela gostava. E a gente fala: “Tá aqui, Esterzinha gostando, tá aqui rindo de nós.” (risos)

P/1 – Queria fazer esse corte, te agradecer por essas histórias que vão enriquecer o acervo de literatura infanto-juvenil e vamos dar um pulinho para a Tatiana. Você poderia contar quando você conheceu a Tatiana?

R – Você sabe que não me lembro porque a Tatiana já existia na minha vida desde o tempo que ela fazia televisão. Ela fazia a adaptação do Sítio do Pica-Pau Amarelo, eu assistia sempre porque esse programa existiu no tempo que meus irmãos eram crianças. Eles assistiam todo dia e eu assistia junto. Ela fazia um teatro, Teatro da Juventude, que era, se não me engano, aos domingos de manhã, que eram grandes peças. Tinha O pequeno lorde, tinha histórias das Mil e uma noites, tinha muitas histórias... Eles faziam um teatro grande com elenco grande, eles representavam, roupa, tudo bem bonito. O interessante é que não tinha vídeo nesse tempo, então era tudo representado ao vivo mesmo. Tinha uma coisa muito interessante: o marido da Tatiana – o Júlio Gouveia –, nesse teatro e outros que ele fazia, aparecia pegando livro porque ele queria que vissem que aquilo saiu de um livro. Então ele tirava um livro, abria o livro, começava a contar e tinha a representação. Quando acabava, ele fechava o livro, ele falava alguma coisa, fazia um comentário qualquer sobre a história e dizia: “Mas isso é uma outra história que fica para uma outra vez.” Ele pegava o livro e botava na estante. Eu me lembro muito disso, então já sabia, conhecia eles de nome. Depois teve uma ocasião em que eu era orientadora já e que eu consegui uma coleção de revistas, era uma revista em que saíam peças para o público jovem, que a Tatiana editava. Eu tinha esses livros todos e acabei dando para esse meu sobrinho Pedro, que mora em Londres e que faz teatro. Acabei dando para ele, mas eu tive durante anos porque eu fiz teatro no Rio Branco, tinha umas pecinhas de teatro que as crianças estudavam, tinha um professor de teatro, era muito interessante. E eu já conhecia muito ela de nome. Devo ter encontrado com a Tatiana em um desses encontros de escritores em que a gente acaba se encontrando. A Tatiana é uma pessoa que a gente encontra e fica amiga de infância. Encontrei com ela e fiquei amiga, não que eu veja muito a Tatiana, mas é uma pessoa muito querida, é uma pessoa muito amiga, ela é uma graça de pessoa, ela é uma pessoa especialíssima.

P/1 – Especial também que criamos verbetes que são de “tatianices”, jeito da Tatiana de ser.

R – (risos) Que engraçado!

P/1 – Podia me contar alguma?

R – Eu não tenho tanto contato com ela para contar uma coisa, mas eu, por exemplo... O que eu conto dela sempre, sempre que eu falo em público e falo disso, eu falo que livro que não dá para rir, não dá para chorar, não tem emoção. E livro tem que ter emoção. Isso ela fala muito e eu repito muito. Ela é uma pessoa muito alegre, ela tem um espírito muito alegre. Eu me lembro e sempre meu marido lembra disso, que nós saímos de não sei onde... Essas coisas em que a gente vai fazer palestra e acaba se encontrando e fomos tomar sorvete, nós três. Eu lembro que ela gostou de tomar sorvete. Ela é alegre, ela gosta das coisas, ela é uma pessoa muito inspiradora.

P/1 – Está ótimo. Uma última perguntinha. O que você acha que não pode estar de fora quando se fala em fazer uma memória da literatura? Tanto de autor, de editor, de ilustrador...

R – Olha, eu acho que o João Carlos Marinho é indispensável, inclusive para depor sobre a Tatiana porque ele é muito amigo dela. Ele é uma graça. Nós nos encontramos... A última vez que encontrei com a Tatiana foi no aniversário dele, em que ele fez uma festinha. Depois, como autora, a Ana Maria Machado não pode faltar. Se vocês conseguirem, a Lygia Bojunga também é uma autora importante. Vocês naturalmente vão chamar o Ziraldo. O Bartolomeu você já me falou que vinha. A Vivina Viana é uma pessoa interessante, ela é muito, tem uns livros muito bons. Outro que tem uns livros é Flávio de Sousa. Outra pessoa que desmontou a menos tempo, mas que é uma grande autora, é Ana Flora Camargo Coelho, minha parceira no Escrever e Criar. Ela é muito interessante, tem uma infância riquíssima, interessantíssima,é muito engraçada, muito interessante, muito inteligente, muito criativa, uma pessoa maravilhosa. Estou fazendo um trabalho com ela que é um material escolar para educação infantil. Para quatro, cinco e seis anos. Nós estamos fazendo tudo: ciência, matemática, português, um calhamaço! Mas ela é de uma criatividade... Ela tem uma graça e ela tem uma operosidade… Ela trabalha com vontade que é uma coisa fantástica.

P/1 – Essa é uma boa dica!

R – É uma coisa que eu nunca teria feito sem ela. Inclusive nunca teria feito o Escrever e Criar, que nós fizemos. Foi um sucesso, ganhamos todos os prêmios, foi uma beleza, nunca teria feito sem ela. Eu posso dizer que ela fez mais do que a metade. Ela é muito boa e ela é muito interessante. Vocês vão gostar dela!

P/1 – Uma ótima dica, Ruth! Da outra ponta, editores... Por exemplo, você já me deu uma dica boa que é sua agente.

R – É, interessante, ela tem muito o que contar. Ela trabalhou muito com a Carmen Balsells e ela é minha agente. Foi agente da Ana Maria Machado, da Lygia Fagundes Telles, da Nélida Piñon... Ela foi agente de muita gente, tem muita história para contar.

P/1 – Ela foi pioneira!

R – Pioneira, é verdade. É uma pessoa interessante. Agora, de autores que eu estava falando. Um dos editores que eu acho que foi mais importante para minha carreira, e foi importante para Ana Maria Machado que eu sei, é o Marcos Pereira, que hoje é editor. Ele é neto do José Olympio e foi dono da Salamandra. O Marcos Pereira, hoje é dono da Sextante. É uma pessoa inteligentíssima, é uma pessoa esclarecidíssima. E tem o pai dele, o Geraldo Pereira, filho do Zé Olympio, que deve ter muito para contar e que é dono da Sextante. Eles trabalham na Sextante, eles são donos. E eles... O Geraldo foi... Eu tive um outro editor antes dele, mas ele foi o meu editor. Quando ele saiu do ramo, venderam a Salamandra e tudo. Engraçado que eu tinha feito uma palestra dizendo que o meu editor era a Salamandra e ele deu a notícia de que estava saindo do ramo, mas era quem eu considerava o meu editor. Embora eu goste muito da Ática, da FTD, da Companhia das Letras, da Melhoramentos, de outros, até das pequenas, da Callis. Mas o Marcos e o Geraldo tinham uma visão de literatura infantil muito bonita, muito boa, muito respeitosa, muito valorizante. Eles são pessoas importantes, eu acho que você vai gostar muito deles e quem sabe você vai para o Rio um dia e faz com eles todos.

P/1 – É, a gente tem um escritório no Rio.

R – Então, fazem no Rio. Ele é ótima companhia, o Marcos e o Geraldo. O Geraldo foi aquele que precisou brigar para ganhar um fígado, você sabe?

P/1 – Ah, essa história?

R – Essa história. Eles foram para a polícia porque ele estava morrendo e tinha um problema com os filhos. Não me lembro, não sei direito, mas eu sei que eles foram parar na polícia para garantir o direito dele de ganhar um fígado. Eu escrevi uma carta para o Serra, que era Secretário da Saúde, pedindo para ele, mas eu sei que ele fazia uma fila, não podia passar na frente, mas talvez ele soubesse algum recurso. Uma pessoa preciosa.

P/1 – Queria te agradecer...

R – Que nada, foi um prazer! Foi ótimo!