Museu da Pessoa

Histórias do Quilombo do Mandira

autoria: Museu da Pessoa personagem: Francisco de Sales Coutinho

Projeto: Memórias do Vale do Ribeira – Diálogos
Entrevistado por Danilo Eiji e Iamara Nepomuceno
Depoimento de Francisco Sales Coutinho – Chico Mandira
Iguape, 29/07/2011
Realização Museu da Pessoa e Núcleo Oikos
Entrevista: MVRHV009
Transcrição revisada por Iamara Nepomuceno


Francisco Sales Coutinho – Chico Mandira
...
P/ 1 – Falar da sua família assim?
R – Conheço um pouco sim, não cem por cento, mas acredito eu que 80 por cento. É para eu falar da história da comunidade?
P/1 – Pode ser, deve ter a ver com sua família?
R – Tudo tem a ver.
P/1- Queria saber como eles vieram parar aqui, de onde eles vieram, os nomes?
R – Bom, então aqui o Mandira a gente conta história desde 1868, aqui era uma fazenda de produção de arroz e o dono escravo tinha escravo que trabalhava para ele, e naquela época ele teve um filho com uma escrava, o dono do escravo se chamava Antônio Florenço de Andrade, ele teve um filho com uma escrava, e o filho chama-se Francisco Vicente e ele tinha também uma filha, na verdade ele tinha três filhos, dois filhos e uma filha, eu acabei de saber isso esses dias, eu sabia só da filha dele, agora essa semana passada acabamos descobrindo que ele tinha dois filhos, e naquela época ele faleceu e os filhos queriam ir embora, então, a história do Mandira conta de 1868 para cá, mas já existia a fazenda do Mandira, fazenda de arroz.
P/1 – Desculpa, Mandira é o sobrenome?
R – Não, Mandira é o sitio, o nome da comunidade é o mesmo nome do sítio.
P/1 – Tem um significado, Mandira?
R – Não sei, a gente nunca descobriu o porquê do Mandira, porque até uma história de Cananéia de um dilúvio de Mandira, no livro de história de Cananéia, de 1615, eles já falavam do dilúvio, então isso já, Mandira é um nome muito antigo, o porquê do Mandira não tem.
P/1 – Indígena a origem?
R – Não tenho noção do que seja Mandira.
P/1 – Poxa, já tem referências da região de mil e seiscentos então?
R – É já tem uma história do dilúvio do Mandira.
P/1 – E o que é o dilúvio?
R – O dilúvio é uma enxurrada de chuva, faz tempo que aconteceu, muita água desceu da serra e levando tudo para o mar, então foi conhecida como dilúvio do Mandira, uma cheia muito grande. Naquela época o Antônio teve um filho, com uma escrava, e esse filho dele chamava-se Francisco, ele tinha mais três filhos, como eu já falei, e naquela época eles queriam ir embora, então a Celestina Benícia de Andrade doou a terra do Mandira para o irmão dela, o filho bastardo, o Francisco, em 1868 então daí para cá que contamos a história da comunidade, ai o Francisco casou, teve vários filhos, ai alguns foram embora daqui da comunidade, e aqui ficou dois filhos de Francisco, um que se chamava João e o outro Antônio, e naquela época também tinha um coronel chamado coronel Cabral que se dizia dono de toda essa área, desde Itapitangui até Guaraqueçaba, até Paraná, inclusive a terra do Mandira onde o Francisco herdou da meia irmã dele, e o João era um negro super inteligente, ele nunca tinha ido na escola, mas aprendeu a ler e a escrever, e se tornou aqui na região como advogado dos pobres porque ele era super inteligente, e era vidente também, ele previa o que poderia acontecer com ele, ou qualquer pessoa da família e esse coronel, ele brigou muitos anos com esse coronel, ele para brigar com esse coronel ele fazia esse caminho que a gente acabou conversando no início, lá no começo da conversa, daqui de Cananéia para Iguape, muitas vezes ele ia a remo daqui até Cananéia, daqui de Iguape, porque não existia estrada, muitas vezes ele pegava a canoa aqui no Mandira e ia até Cananéia, e daí passava pela Ilha Cumprida, pegava a beira da praia e ia até Iguape e de lá pegava um barco, na época conhecido como vapor, ia até Santos e São Paulo brigar por causa desse terreno Mandira, e ganhou a questão com esse coronel, registrou o título da terra em nome dele, em nome do João Vicente, já não é mais nome dele, João Vicente Mandira em 1912, então em 1912 ele registrou a terra no nome dele, é como ficou só o João e o Antônio aqui, ele registrou no nome dele, só que naquela época o Antônio era um negro muito forte, muito forte mesmo, assim fisicamente, ele carregava uma canoa de três palmos nas costas sozinho, minha mãe contava que o remo dele, eu não conhecia ele, eu conhecia um dos filhos dele, mas minha mãe contava que o remo dele, ele jogava na beira do barranco, assim ninguém remava com ele de tão pesado que era, só ele que remava, e ele era um negro muito briguento, vamos dizer assim, ele brigava com o João, e João fazia roça aqui no salto do Mandira, e ele ia lá e colhia o milho, o João ia lá e fazia canoa, porque o sitio era dos dois irmãos, que era mil e duzentos alqueires que eles herdaram, e ele acabava cortando a canoa do irmão dele e levava para casa, então, ai para parar essa briga, o Antônio falou, o João falou para ele, Antônio então você fica com o salto, e eu fico com a parte do Mandira onde a gente mora, então foi isso, e esse João teve vários filhos também, acredito que uns oito, eu cheguei a conhecer alguns, tinha o Francisco que era meu avó, tinha o Joaquim, tinha Osvaldo, tinha Amâncio, tinha João, tinha Henriqueta, Maria, Teodora, então eram bastante filhos, tinha mais algum que agora eu não to lembrando e ai eu sou neto do Francisco então a minha mãe é filha do Francisco, filho do João, um dos filhos de João, ela, eu nasci na comunidade. Naquela época era tudo, nascimento era de parteira, ninguém procurava médico, na verdade nem tinha mesmo, nem tinha ir para cidade atrás de médico, então aqui no Mandira tinha três, quatro parteiras na época, então as crianças que nasciam eram tudo em casa com parteiras.
P/1- Você lembra dos nomes delas? Quem eram elas?
R – Três eu lembro ainda, uma morreu faz uns três anos, mais ou menos, a última, uma era Henriqueta, aquela irmã do meu avô, que era parteira, e a outra era Zulmira, e a outra era Martinha, chamava de Martinha, deveria ser Marta, mas como a gente só conheceu ela como Martinha, o nome mesmo dela não sei, não sei se era Marta ou era Martinha, então a gente conheceu como Martinha, e ela morreu como Martinha, nunca ninguém chamava ela por outro nome assim, era só Martinha.
P/1 – Hoje ainda têm parteiras aqui?
R – Hoje não, a Martinha era mãe da mulher do Frederico, um senhor mais velho que tem aqui na comunidade, que tem 82 anos, hoje não, hoje não tem mais parteira, ninguém, dirigido a questão das parteiras naquela época foram muito perseguidas, pela medicina, então chegou uma época que as parteiras não podiam aparecer, vamos dizer assim, então eram muito perseguidas pela medicina, e aí acabou que ninguém queria ser mais parteira, você vê que hoje o próprio Norte, Nordeste tem muita parteira que até dá aula para o médico, e mostra que é parteira, e hoje é muito reconhecida essa profissão, no Norte, mas aqui, por causa da dificuldade também deles trazerem alguém para aqui, então existia uma perseguição muito grande em relação às parteiras, ai ninguém queria ser mais parteira.
P/1- O senhor se lembra disso? Aqui que era vinha um médico, ou vinha entre vocês?
R – Não, o pessoal recebia notícias, parteira não, era proibido a parteira fazer um parto, tem que ir para o médico, tem que ir para cidade, para o hospital, as parteiras estão proibidas de fazer, então por isso que se fala assim que naquela época existia uma certa perseguição dos médicos em relação às parteiras.
P/1- Me conta um pouco sobre sua infância aqui no Mandira, como que era aqui, mudou muito?
R – Mudou, mudou. Aqui quando eu era criança eu morei um pouco, na verdade me criei até mais ou menos sete, oito anos, eu me criei com meu pai, na casa da minha mãe, até ficar um molequinho, ai fui morar com minha avó, com o Francisco e minha avó que se chamava Dolores, que é mãe da minha mãe, e naquela época depois minha mãe foi embora, meu pai foi embora para Biguá, ai eu fui para lá, morei lá um certo tempo e voltei para casa da minha avó, e logo em seguida quando eu tinha mais ou menos, dez, 11 anos minha avó morreu, daí eu fui morar com meu pai, chama Benedito Mandira, muito conhecido como Bendito Machado, ele morava em Iguape e trabalhava no bairro naquela época, e eu morava com minha avó, e fui morar com ele, morei até uns 12, 13 anos por ai, voltei para casa do meu pai, da minha mãe, e me criei aqui na comunidade, então assim eu estudava, jogava bola, futebol, bola de pano, não tinha bola para jogar, como tem hoje a facilidade de ter uma bola, era bola de pano, ou enchia uma meia de pano, de papel, de folha de banana seca, e fazia uma bola, também tinha, o pessoal que brincava muito de peteca, não sei se você conhece peteca, então era uma brincadeira, tinha bolinha de gude, tinha as brigas, as brigas de crianças, eu era muito briguento, quando estava na escola, não dava um doce eu ia brigar, eu ia lá e já “poquete” (dava um cascudo), para ganhar o doce (risos), é, então era assim, me lembro muito, muito bem, a primeira vez que eu fui na escola eu estava lá em Biguá, lá perto de Miracatu, minha mãe me colocou na escola, eu, meu irmão mais velho e minha irmã mais velha, e naquela época a gente saiu para apontar o lápis, me lembro até hoje, era assim, perto da escola um bananal, meu pai trabalhava com bananas, era bananal assim, então o pessoal foi lá apontar o lápis, meus irmãos, minha irmã, molecada tudo, e eu também fui, mas ai fiquei lá enrolando, tempo de apontar o lápis e eu enrolando lá, e quando a molecada entrava para escola eu ia para casa, corre, corre, era longe, corri, mas foi a pior viagem que eu fiz, a pior viagem que eu fiz foi ir para casa, eu cheguei em casa, minha mãe perguntou por que eu tinha ido para lá, falei que eu não queria estudar, e o cipó comeu solto (risos), apanhei que nem gente grande, ai no outro dia fui para escola e não queria mais voltar (risos), não quis mais voltar, depois meu pai veio para cá, nós viemos trabalhar na roça, naquele tempo o povo trabalhava na roça, cortava caxeta e palmito. Veio naquela época uma firma aqui para Mandira, chamava FOSFASA (Fomento Industrial de Fertilizantes S/A), então era, fazia uma fazenda de produção de coco, eu tinha mais ou menos 15 anos, naquela época a gente já cortava palmito, não é que nem agora, que as crianças ficam vagando na rua até 16, 17 anos, hoje 17 anos é criança, o cara faz tudo que quer e é criança ainda, naquele tempo desde o 7 anos a gente enfrentava o “basquete”, como dizia a história, era machado e foice, se preocupava com filho na rua porque tinha que ir trabalhar, não é que ele tinha que ir trabalhar, era o dom de trabalhar, então trabalhava muito e eu comecei a trabalhar nessa fazenda, eu era novo aí eu e meu primo, nós éramos dois moleques, mas já enfrentávamos machado, meu encarregado era meu cunhado, ele não queria que o cara pagasse o mesmo preço que os adultos, para a gente, porque a gente era criança, então tudo que eles faziam nós fazíamos também, era derrubado machado, cortado picareta, derrubar madeiras, tudo que se fazia nós fazíamos, então já tinha o costume de ir trabalhando, depois nós começamos a ir trabalhar, mas esse trabalho não rendia muita coisa para gente, a gente trabalhava dia inteiro e só recebia uma mixaria, ai meu cunhado, naquela época não éramos cunhados ainda, éramos só primos, ai ele falou ‘’Chiquinho você, vamos embora, vamos cortar palmito?’’ Porque cortar palmito dava mais do que trabalhar lá. ‘’Vamos cortar palmito?’’ Ai eu falei ‘’Vamos’’, pegamos e nos mandamos, aí o cara, o dono da fazenda, ele gostava de nós, a gente era moleque, mas a gente era trabalhador, nós trabalhávamos igual os outros, ai ele ficou com raiva da gente sair do serviço de cortar palmito, e nós íamos roubar palmito lá onde era a fazenda do cara (risos), aí o cara encrespou conosco, porque não podíamos passar para lá, porque não sei o que, não sei o que, mas ele tinha que passar na comunidade para entrar na fazenda, ele tinha que passar pela comunidade, ai meu cunhado, falou para ele, olha, nós não passamos para lá para seu sitio, mas você também não passa no nosso sítio, você não passa mais aqui, se você passar aqui vai entrar no facão, e meu cunhado falou para ele, nos éramos tudo garotão, meu cunhado era mais velho do que eu, hoje ele tá com 59 anos, por ai, sessenta, está perto, naquela época ele tinha 19, vinte anos, e ai ele falou, ‘’Não, não é para você entrar em nossa fazenda, não é para você entrar demais, então você não passa mais aqui no sítio do Mandira, se passar aqui vai entrar no facão’’, foi uma briga, não briga, briga mas discussão boa, porque o cara era obrigado a passar pelo sítio do Mandira, como para ir na fazenda dele fosse passar por Mandira (risos) ele teve que ceder então nós começamos a pegar palmito, trabalhar com caxeta.
P/1 – Como que era essa empresa de coco,

ele era de fora?
R – Ele era de Goiás, chamava FOSFASA, o encarregado, dono, encarregado, dono ele era de Mato Grosso, ele era um homem alto, parece que era do Mato Grosso.
P/1- Vem investir na região assim?
R – É, eles vieram investir na plantação, plantar coco, ai eles traziam um caminhão de coco, rapaz, a turma comia tudo (risos), trazia um caminhão de coco, primeiro começaram a trazer coco em pé, assim, muda já pronta, depois começaram a trazer coco assim para brotar aqui, quando começava a brotar o coco, começava a soltar aquela muda, assim, o primeiro “talinho” para

a primeira folha, e nós descobrimos que o coco dentro fica macio e doce,

cara, aí começamos a quebrar o coco e comer aquela massa que era gostosa (risos), e o cara ficava muito bravo com nós, quando a gente comia o coco dele, sei que foi plantado, sei que foi jogado lá no meio do mato, sei que as fazendas hoje são mato, não tem nada, acabou em nada.
P/1 – Várias assim, várias pessoas de fora comprando, como que era tinha outros investimentos de outros fazendeiros vindos para cá?
R – Não, naquela época não, a primeira que veio foi a FOSFASA, a primeira firma que eu trabalhei assim esta, depois eu sai também, naquela época da Mendes Junior, começou a ampliação, a duplicação da BR 116, na serra, eu fui trabalhar com meu primo, tinha 17 anos, fui para lá com ele, não era primo, era meio parente assim, nós nos dávamos muito bem, foi criado aqui junto com nós, começamos a trabalhar para lá, ficamos lá um pouco também, depois fui plantar palmito aqui na barra do Azeite também, no meio do sertão lá, não deu certo e viemos embora, nesse tempo nós já éramos jovens, começamos a namorar, e tal (risos), daí a gente não queria sair.
P/1 – Os planos foram mudando?
R – Foram mudando, e aconteceu que eu casei bem novo, casei com 19 anos, eu e minha esposa tínhamos a mesma idade.
P/1 – Poxa Chico. Antes de ir para essa parte, deixa

eu voltar, quando você largou e foi para o palmito, você falou que rendia mais, como é que funcionava, vocês iam para dentro, vendiam onde, como que era?
R – É, nós entrávamos nesse fundão de Brotas, ou para cá do lado da vargem e cortávamos, eu era bom no facão também, cortava bem o palmito, a gente cortava bastante palmito, era cem dúzias, cento e cinquenta dúzias de palmito, tinha um cara do Registro, que vinha buscar os palmitos, ele vinha aqui comprava nossa carga, pagava e levava palmito para a fábrica de Registro, e depois tinha outro de Juquiá também que pegava aqui, mas geralmente eram os de Registro que vinham pegar, mas não era fácil não, cara, depois a Policia Ambiental começou a vir para cá, o negócio ficou feio, ficou feio porque não podia dar moleza, não podia bobear, entrava no mato, cortava palmito, lembro que era em um sítio nosso, no Mandira, mas você não podia aparecer, se os caras viessem e vissem você com palmito te levavam, com palmito e com tudo, então tinha que trabalhar escondido, tinha que entregar esses palmitos para o cara que comprava a noite, daí o cara chegava duas horas da madrugada na sua casa, buzinava e você jogava o cobertor, às vezes nem era cobertor (risos), e tinha que ir lá entregar os palmitos, podia estar chovendo, não tava, na hora que o carro chegasse tinha que entregar, era assim.
P/1 – Isso foi quando teve a reserva aqui?
R – Não.
P/1 – Quando que isso começou?
R – Não, a reserva foi muito depois, muito depois.
P/1 – Isso desde quando você era jovem então?
R – Desde quando eu era pequeno, meu pai também cortou palmito, meu pai caçava muito e era um ótimo caçador, além de pescador, era um caboclo muito forte, ele trabalhava o dia inteiro, cortando e carregando caxeta, de tarde, lá não tinha muita facilidade em comprar as coisas, ele nem tinha dinheiro, essas coisas de andar calçado era pouco tempo, era muito difícil, meu pai chegava cansado, ai fazia uma taboca, taboca era um pedaço de taquara com pano, colocava querosene dentro, fazia uma rolha de pano para acender para ir pescar, ai pescava e na boca da noite até mais ou menos na hora que a maré enchia, ai matava, era bom de pescar, tinha uma sorte de pescar danada, o homem era triste, e ele matava bastante tainha, Badra, parati, essas coisas assim, trazia, ele sempre fazia Jacá, aquele cesto que carregava nas costas, e trazia aquilo chapado de peixe, ai chegava de madrugada em casa, ai minha mãe ia lá, consertava esses peixes, que às vezes nem jantar tinha jantado, não tinha o que jantar, eles chegavam essa hora da madrugada, minha mãe consertava o peixe, cozinhava, chamava nós, cada um comia um bom pirão de caldo de peixe, cozido naquela hora da manhã, da madrugada, e ia dormir de novo, aí acordava para ir para escola (risos), não era fácil a vida, e o velho era bom, depois ele ficou doente, ele se sentia muito saudável, muito forte, ele acabou um pouco abusando da saúde, primeiro deu água no pulmão dele, teve um pouco internado em Santos, depois ele ficou um pouco mais velho, deu derrame nele, morreu ano passado, mas ele era muito forte, muito trabalhador, fazia roça, caçava, para caçar ele era bom (risos).
P/1 – Você se lembra de ir com ele assim?
R – Sim, muitas vezes, desde pequeno ia com ele pescar, eu sempre fui, eu nunca fui trabalhador, mas nunca fui vagabundo, nunca fui preguiçoso, eu sempre fazia, gostava de fazer as coisas, de aprender, sempre ia pescar com ele, às vezes íamos para Cananéia, eu e ele, eu descalço, ele descalço, às vezes ele levava sapato, amarrava os cadarços um com outro e jogava nas costas aqui, e só ia calçar na hora que chegava em Cananéia, lá calçar o sapato para ir fazer a compra, amarrava, às vezes a gente andava a pé daqui a Cananéia, às vezes não, a maioria das vezes, ali fazia uma compra que pudesse trazer nas costas, amarrava dois sacos brancos com as compras e jogava para trás, e eu era pequeno, naquela época eu não podia trazer muita coisa, trazia não sei se você lembra, seus pais devem lembrar, naquele tempo tinha latas de cinco litros de querosene, então, não podia trazer uma lata de 18 litros, trazia uma lata de cinco litros, querosene no dedo de Cananéia até aqui, chegava aqui morto (risos), mas tinha que trazer, porque era o que a gente usava a noite, era querosene, então tinha que trazer, ele trazia a compra e eu trazia a querosene no dedo, tinha uma argolinha assim de metal, eu colocava no dedo e vinha embora.
P/1 – O que eram as compras assim, o que vocês precisavam mais?
R – Era mais assim, açúcar, sal, querosene, farinha era difícil comprar, arroz também, comprava, mas era muito difícil, comprar arroz, era maioria das coisas que, sabão, que não tinha no sítio que não dava para fazer, por exemplo, naquele tempo dava para fazer sabão, mas não tinha conhecimento para fazer sabão, então tínhamos que comprar sabão, sal, açúcar, café também, às vezes comprava café, dependendo da época do ano, depende da época do ano não comprava porque eles tinham cada morador aqui do Mandira tinha um cafeeiro pequeno, mas tinha para ter café para tomar, café da lavoura, e era assim.
P/1 – Aqui eram várias famílias, assim, foi crescendo, como foi?
R – Aqui tinha, famílias, antes do pessoal vender o sítio do Mandira, todo mundo morava aqui, além dos Mandiranos ainda tinha algumas famílias de fora que os Mandiranos deixavam morar na comunidade.
P/1 – De onde que eram essas pessoas, como foi crescendo?
R – Daqui do rio das Minas, perto do Mandira, então eram vizinhos, eram conhecimentos e tal, não tinha muita coisa e queriam vim morar para cá, para facilitar, para ir cortar palmito, cortar caxeta, alguma coisa, eles acabavam fazendo uma casinha de pau a pique e morando dentro, mas aqui tinha várias famílias, tinha a família do meu avô, que eram bastante, filhos por aí, tinham famílias do Geraldo Mandira que era também umas sete, oito famílias, por aí, tinha família do João Vicente, que eram todos irmãos, tinha família do Joaquim, tinha, era mais ou menos essas famílias.
P/1 – E como que era a relação, eram todos pequenos agricultores?
R – Não, todo mundo fazia roça no lugar que queriam, não tinham.
P/1 – Vocês trocavam, como era a relação entre as famílias?
R – Não, era muito, com relação às famílias era muito bom, melhor do que hoje, a relação familiar era melhor do que hoje, quando falei para vocês que meu pai pescava bastante, e caçava, na verdade todos eles caçavam e pescavam aqui da comunidade, então quem pescava um cesto de peixe, por exemplo, dividia com todo mundo, principalmente as famílias mais próximas da casa, então era dividido, ninguém comprava um quilo de peixe, ou um quilo de carne, então matava um porco do mato e se tinha dez famílias perto, cortava dez pedaços pelo menos para uma comida do dia, dava para todas aquelas famílias comerem, então hoje não, se a pessoa tiver dinheiro, ela compra e come, se não tiver não come, porque não tem mais essa coisa de troca, ela emprestava muito, se você tinha arroz, e meu arroz não tava maduro, eu ia emprestar arroz seu para mim comer, e quando o meu amadurasse eu pagava para você, quando era feijão, milho, farinha, então tinha essa coisa de eu, no meu modo de ver hoje a relação assim, era melhor do que hoje, porque hoje envolve muita coisa do dinheiro também, não é que nem agora, hoje envolve a coisa do dinheiro, e antigamente não tinha dinheiro, era que ninguém passava necessidade, não tinha dinheiro mas tinha o que comer, porque quando você não tinha o que eu tinha, te dava, e quando eu não tinha o que você tinha, me dava, então era assim, hoje não, hoje pela questão de ter lucro, se você não comprar, você não come, se eu não comprar seu, também não como, entendeu, então não é que a relação nossa é pior que do passado, não, é porque antigamente não tinha a questão.
P/1 – Quando que o senhor acha que foi mudando isso, onde você vê que o que foi acontecendo que essa relação de ajuda, de coletividade foi se extinguindo?
R – Isso começou, acredito eu que, eu acho que na década de sessenta, setenta porque até nossa festa, a festa de santo Antônio, ninguém vendia nada, se vendia, não sei se você conhece Broinha, ela é, tira a massa, o polvilho da massa da mandioca e faz, e aquele polvilho eles faziam uma broinha para vender no dia de baile, só a moça que fazia mais isso, vender a broinha para o pessoal do baile, da festa, e ninguém pensava assim em lucro, por exemplo, a festa de Santo Antônio, era assim o pessoal, tanto da comunidade, como de outras comunidades, até de Jacupiranga vinha para cá para o Mandira, eles traziam carne de porco, farinha, traziam feijão, traziam arroz, sabe, todo mundo trazia alguma coisa para festa de Santo Antônio, ali rezava o terço que hoje a gente faz ainda, o terço cantado, ai antigamente tinha um baile, depois meu tio proibiu porque estava dando muita confusão, muita briga, festa de Santo Antônio para brigar, então foi melhor não ter mais o Fandango, então foi feito só o terço, depois acabava o terço, iam as mulheradas para a cozinha, faziam uma janta, a janta saía lá para meia noite, onze horas, meia noite, saía uma janta, mas uma janta coletiva, era colocado a comida no meio da casa, colocava uma esteira, forrava o meio da casa, colocava a farinha, cada um tinha uma panela grande com feijão, carne de porco, arroz com carne de porco, o pessoal ia fazia seu prato, e comia todos juntos, ai chegava de manhã tinha alvorada, que era um outro terço cantado de manhã, saía um café, fazia um biju de arroz, cuscuz de arroz, ninguém comprava, todo mundo trazia, mas chegava a fazer um monte assim, no meio da casa, todo mundo trazia, quando ninguém tem, mas se o que eu tenho, eu ajudo, então cada um trazendo um pouquinho, pouquinho em pouquinho vai formando, um monte muito grande, isso fazia uma série de biju assim de cuscuz, todo mundo sentava ali perto daquela esteira, esteira de piri de paina forrado e a turma tomava um café, assim que era a festa, depois já começou a mudar, começou a fazer a fogueira, fogueira existia, começou a fazer barraca,

vendia umas coisinhas, vendia outra, ai foi mudando, foi mudando, mudando, mudando, até que de uma conta em diante para cá, de 80 para cá, mais ou menos de 80 para cá a festa já não tinha mais a janta, nem nada, era uma festa para ganhar dinheiro, você fazia festa de Santo Antônio e aí você fazia barraca, todo mundo já trabalhava na barraca e comprava refrigerantes, cervejas, pedia bolo para turma e tal, cada um levava um bolo para Santo Antônio e colocava lá e vendia, então começou a mudar, mudar, mudar, e hoje é totalmente diferente, você já faz uma festa para ganhar dinheiro, para ter lucro.
P/1 – A música foi mudando também?
R – Não, a música não.
P/1 – Então retomando, a gente estava falando da festa, e eu lhe perguntei se a música tinha mudado também, foi mudando o costume?
R – Da festa de Santo Antônio não, as orações do terço são as mesmas orações, não mudou, não muda, tem outras coisas que mudaram, por exemplo, o que faz parte da comunidade, isso mudou muito, por exemplo, os mutirões, mutirão que nós tínhamos, hoje se convida duas, três pessoas para trabalhar para você, a pessoa já chama de mutirão, mas não é mutirão, então aqui nós tinha mutirão, nós tínhamos a pojuva e nós tínhamos o ajutório, então são três modalidades que são diferentes, entendeu, por exemplo, o mutirão, se você queria fazer uma roça eu convidava trinta, quarenta homens, quando era para roçar e fazia uma roça, plantava arroz, e depois eu fazia para colheita, outro mutirão para a colheita, ai era homens e mulheres, ai eu, geralmente o pessoal, o costume era engordar um pouco para fazer um mutirão, engordava um pouco e para fazer a comida, então o cara dava a comida, o café, o mutirão era assim, o café, o almoço, um café bom a tarde e a noite lá pelas dez horas, uma janta, e o baile, e fandango, a pojuva era o cara mandava o almoço, eu convidava ele e mais vinte, trinta, quarenta pessoas para ir para trabalhar para mim depois do almoço, o cara ia almoçado, saia almoçado de casa, trabalhava depois do almoço até seis horas, até a hora que desse para trabalhar, vinha para cá, tomava um café forte e tinha o fandango, fandango, no mesmo horário mais ou menos da janta do mutirão era janta da pojuva, e o baile também, o ajutório era diferente, o ajutório convidava dez, 12, 15 pessoas para trabalhar para mim, ou era convidado para trabalhar para outra pessoa, lá trabalhava, chegava na casa do cara cedo, tomava café, ia para roça, ai almoçado, o cara dava um almoço, ai a tarde dava um café, não tinha janta, nem baile, era o ajutório, então hoje qualquer trabalhinho o pessoal fala de mutirão, mas não é, é um ajutório.
P/1 – O senhor se lembra de uma década que tenha sido muito marcante assim, que tenha juntado, ou seja, ter feito alguma coisa, juntado muita gente, ou o baile, você poderia descrever um que o senhor participou que tenha sido?
R – Não, na verdade todos os fandangos, bailes, mutirão era a mesma coisa, então ia muita gente, a única coisa que marcava naquela época era assim, convidava todo mundo para ir para o mutirão, para trabalhar para dar, para ter o baile à noite, então naquela época o baile era tudo, então ia para dançar, ia para dançar, ia para ganhar o baile, e naquela época tinha muita gente, meu cunhado, meu cunhado era nó cego pra danar, esse que mora aqui, João Mariano, ele tomava umas cachaças e queria brigar com os outros (risos), e às vezes ele combinava com os colegas dele na época e ia para noite para entrar na marra no baile, entrar para dançar, não trabalhava, mas queria dançar, e ninguém deixava, ou às vezes ele mesmo estava na mutirão, às vezes ia alguém que tenha sido convidado, mas não foi trabalhar, só ia para se aproveitar do baile, e ele também não deixava o cara entrar, era todo mundo, não deixava, não deixava, não deixava e tinha vezes do cara pagar uma diária para o dono do mutirão para entrar, então isso era legal por isso, se o cara não trabalhasse não fosse porque não entrava para dançar, então era assim, às vezes um cara metido que tinha uma namorada, e a namorada dele tivesse no baile, ele ia à noite porque a namorada já estava no baile, mas ele não entrava, ele tinha que voltar e deixar a mulher lá no baile, os caras foram dançar com ela (risos).
P/1 – Não participou (risos).
R – Não, não, quantas vezes isso já aconteceu.
P/1 – Essa era a diversão das pessoas?
R – Sim, sim, carnaval também, carnaval a gente dançava quatro noites carnaval fandango, e era uma brincadeira muito boa, muito sadia, e isso acabou há pouco tempo o carnaval, então tinha o baile à noite, quando era de madrugada, de manhã cedo, quando o galo cantava o pessoal pegava trigo e já começava a colocar na cabeça das damas, e as damas começavam a colocar na cabeça dos homens já, borrar assim, ai clareava o dia, era barro, e lodo, fazia o lodo na panela assim, e pó de café, a gente fala o bagaço, pegava o café do café que foi feito e já ia guardando lá em um canto em uma lata, que a hora que amanhecesse o dia, aquele que não corresse ficasse borrado, e tinha que se borrar, era dia inteiro assim, a mulher pegava um homem que não tinha sido borrado ainda, nossa, judiavam dele, e o homem era a mesma coisa, pegava uma mulher que ela não tinha sido borrada a noite ou ela corria, caía na garra dos homens, ela ficava feito um porquinho borrado de lodo, e isso era muito gostoso, era uma brincadeira sadia.
P/1 – Era aqui?
R – Aqui na comunidade, aqui rio das Minas, Piranguinha, Taquari, Mandira, a brincadeira era desse jeito.
P/1 – Juntava todas as comunidades?
R – Juntava todo mundo, era fandango, baile, carnaval, já vinha o pessoal de Estaleiro, perto de Cananéia, pessoal de Pindaúva, porque a brincadeira era gostosa, era sadia, era muito bom.
P/1 – Então o carnaval tocava fandango também?
R – Fandango, era fandango.
P/1 – Fandango era música daqui?
R – Fandango é uma música, tradição da, na verdade dos Caiçaras, parece que desde o rio para cá, Paraná aqui, tem a tradição do fandango, então era o que dominava no baile era fandango.
P/1 – Tem outras festas também? Desde sempre foi Santo Antônio, carnaval, tem outras festas?
R – Era Santo Antônio e o carnaval, só que tinha muito baile, muito fandango, sem ser festa, então tinha muito baile, então nós fazíamos baile danado assim, ai nós se juntava, quatro, cinco rapaz, seis, dez, sei lá, vamos fazer um baile sábado, por exemplo, hoje era sexta feira, ‘’Vamos fazer um baile amanhã? ‘’E todo mundo combinava já, e todo mundo saia convidando todo mundo, saia, olha vai ter um baile, já é pedir uma casa do cara, os caras já fazia uma sala bem grande para poder dançar mesmo (risos), aí fulano tem baile amanhã, ou hoje, já arrumava dinheiro, ia à vila, pegava a bicicleta, na vila porque naquele tempo ninguém tinha carro, tinha nada, ia na vila comprava café e farinha de milho, era mistura que predominava no baile era café e farinha de milho, comprava café e farinha de milho e vinha e fazia o baile e dançava até de manhã, e isso era direto, direto.
P/1 – Como que era a comunidade, ela é pequena, como que era namorar aqui, conseguia namorada, porque todo mundo se conhece, né?
R – Não, mas aqui na comunidade, hoje é pequena, mas antes do pessoal vender aqui na década de setenta, que o pessoal vendeu, foi vendida mais ou menos em 74, 74 para 75, e além do pessoal de fora que vinha, tanto o pessoal daqui da comunidade ia para outras comunidades, brincar, como o de fora vinha para cá brincar, ai não, era a família toda, então desde criança eu vinha lá do Pindaúva para cá, com criançinha de colo, às vezes montado no ombro assim, no ombro do pai, da mãe, e vinha para o baile, vinha dançar cara, e era assim, então o pessoal hoje tem medo de levar família no lugar, porque o pessoal vai armado, é perigoso, porque isso, porque aquilo, antigamente não, antigamente tinha nego valente em todos lugares, tinha cara que era bom na porrada, mas era na porrada mesmo, aquele que chorava, aquele que aguentasse mais chorava menos, entendeu, era assim e até tinha a questão, tinha o pessoal contava que quando tinha os caras que era briguento, valente, eles amaravam, eles falam frauda da camisa, da camisa de botão assim, eles desamarravam assim e amaravam um com o outro assim, aquilo ali só ia desamarrar na porrada, na hora que rasgasse a camisa de tanto cacetada, então.
P/1 – O senhor já participou de uma dessas?
R – Eu nunca participei, mas um dos meus tios já participou, já amarrou a camisa dele com outro cara para, e brigavam assim, mas era tudo na cacetada, no braço, é difícil até pegar madeira para bater no outro era difícil.
P/1 – Resolvia ali?
R – Resolvia no pé ou na mão, mas hoje não, hoje você olhou torto para qualquer um, “ah! está me olhando torto, pá”.
P/1 – Seu Chico então foi esvaziando aqui?
R – É, aí na década de setenta o pessoal resolveu vender o Mandira, e eu, nós éramos, não éramos pequenos, eu já era casado, não, era casado ainda não, eu casei em 76, mas eu já era rapaz, nosso pessoal resolveu, nossos tios resolveram vender o Mandira, a gente não sabe por quê, quer dizer saber se sabe, o pessoal naquela época, foi uma época muito ruim, de o pessoal querer vender terreno, tinha os cara que vinham comprar, não só aqui no Mandira, mas em vários lugares, então virou uma venda de terra muito louca assim, e o Mandira entrou nessa loucura de vender suas terras, o pessoal que queria ficar rico, morar na cidade, morar não sei onde, e aí venderam, venderam a parte que ficou para o João, que eu falei para vocês que foi dividido em partes entre os dois irmãos, os parentes do João venderam para um cara, para um tal de Esplendor Buzaide e acabou que saindo, minha mãe e alguns dos meus tios, de 655 alqueire aquele que tinha de terra que o João na verdade ficou tomando conta, ele não foi dividido no documento, foi dividido em boca assim, “então João, Antônio fica para lá, e João para cá”, e essa parte deles, mediram 655 alqueires, desses 655 alqueire, porque quem não vendeu ficou com cinquenta alqueire, o resto venderam tudo, venderam trezentos e pouco alqueires para cara e deram mais trezentos, deram para o cara trezentos, deram dado, fazia inventário e esse inventário, foi dado entrada nesse inventário e até hoje não foi executado.
P/1 – Foi especulação de fora, assim, pessoas de fora que foram comprando?
R – De fora, e o que aconteceu, os meus tios venderam naquela época da parentada do meu avô, só tinha a Teodora, Henriqueta e a Maria, que eram as mais velhas do Mandira, que também venderam, meu pai e minha mãe não vendeu, não venderam, nós não morávamos aqui, nós morávamos bem para lá para cima, perto da casa de pedra, não sei se você conhece para lá, um quilômetro para frente, e acabaram saindo, nós não morávamos para lá mas devido a questão do parque também que foi uma coisa criada na década de sessenta, entre 68 e setenta, foi criado o parque, foi proibido o pessoal de fazer as atividades que falei de roça, da exploração do palmito, da caxeta, foi tudo proibido, foi criado a Policia Ambiental naquela mesma época que foi jogado das comunidades, o governo não deu nenhuma alternativa de vida para esse povo, e só proibiu, proibiu, proibiu, e ai acredito eu, que isso foi uma das consequências que levou a vender, a venderem os sítios por aqui, não só do Mandira, não se fazia mais nada aqui, não podia fazer roça, não podia tirar palmito, não podia cortar caxeta, não podia, entendeu, não podia.
P/1 – Essa região aqui, ela faz parte do parque?
R – Aí o parque pegou a metade do sítio do Mandira; no Jacupiranga, então, porque o parque pegou desde aqui de Cananéia até Iporanga, são sete municípios envolvidos dentro desse parque de Jacupiranga, só que o governo não deu alternativa de vida para esse povo, proibiu, proibiu, proibiu, não deu nada para que o povo pudesse ter.
P/1 – O senhor poderia nos contar um pouco como foi, como assim, vocês estavam aqui ai chegou uma lei, vocês chegaram a ter repreensão policial, como que foi essa, o senhor se lembra?
R – Então eu me lembro um pouco, então quando foi criado o parque de Jacupiranga, teve um engenheiro que veio medir, medir não, veio cortar onde o governo achou que era, era deles, por exemplo, e isso foi muito ruim, que nem estou falando, e acabou que o pessoal perdeu toda a liberdade de trabalhar, porque naquele tempo o pessoal, como falei, meu pai caçavam muito, meus tios caçavam muito, nós caçava, nós andava com a espingarda para o meio do caminho, para a estrada sem medo, porque hoje não se pode ter arma porque é proibido, porque vão matar gente, naquele tempo não, era para procurar comida para seus filhos comer, a espingarda era para isto e essa liberdade acabou, foi a policia ambiental passou a perseguir todo mundo, não podia andar com espingarda, não podia caçar, não podia, se fazer uma roça em qualquer lugar aqui você ia queimar, porque aqui para dar alguma coisa tem que queimar, o cara, o filha da mãe via a fumaça, porque a fumaça sobe, via fumaça e o cara já ia lá na roça procurar quem era o dono e já ia encher o saco, ia querer multar, ia querer fazer tudo, palmito a mesma coisa, o cara cortava palmito, tinha que correr, se esconder, entregar palmito meia noite, uma hora da manhã, caçar nem se fale, então isso fez com que o pessoal desistisse de morar no sitio, e acabou desistindo, como é que vou ficar em um sitio, no mato, se eu não posso viver do mato? Viver do sítio? Como é que vou fazer, tenho que ir para periferia, não tem, eles resolveram vender, venderam e nós não vendemos, veio naquela época, acho que foi em setenta, 72, eles estavam negociando, ou já tinham vendido a terra, a primeira, tinha o pessoal aqui no “Boacica” que eles trabalhavam com ostras, vendiam ostras para o cara do Rio de Janeiro, ele vinha buscar aqui, mas ninguém aqui no Mandira trabalhava com ostras, até diziam que os caras eram vagabundos que quem trabalhava com ostras, era vagabundos (risos), e veio um japonês morar no Porto Cubatão e ele veio aqui no Mandira para comprar ostra desses caras, meu tio Frederico, esse que mora aqui, faz 82 anos, foi o cara que primeiro que começou a mariscar ostras aqui no Mandira, nós morávamos para cima ainda, e não tinha outra coisa para fazer, um começou a fazer e os outros começaram a fazer junto, meu cunhado também entrou em fazer essa atividade, que já comprava ostra dos outros, trazia, mariscava tal, levava para São Paulo, e até que ele começou a ganhar um dinheiro bom, cara, logo, ficou doente também, morreu, e nós começamos, daí eu saí daqui, me casei em 76, sai daqui do Mandira, fui trabalhar fora, fui trabalhar de empregado, trabalhei um pouco na Ilha do Cardoso, um pouco em uma fazenda aqui em baixo, depois resolvi vim morar para cá, e comecei a trabalhar com ostras, eu vivo da ostra desde 78, foi a única saída para nós, para nós permanecer em cima da terra foi a ostra, aquela atividade que nós, muitos deles chamavam, que achavam que era serviço de vagabundo, acabou que nós vinha fazendo essa mesma atividade, então estamos fazendo isso até hoje, então foi a maneira que nós, garantiu para nós permanecer em cima da terra.
P/1 – Chico, vou voltar, vou chegar na ostra também, voltando, enfim, voltando para sua vida, você estava trabalhando, etc., você falou da duplicação da BR, me chamou atenção, como é que foi esse período ai da, deve ter mexido com a estrutura da região, como foi, eram muita gente trabalhando, descreve um pouco para a gente, como foi?
R – Não, quando nós, fomos trabalhar para lá com esse rapaz que eu fui com ele, daqui do Mandira foi só nós dois lá para, é uma outra convivência, outro conhecimento, nós nunca tínhamos saído daqui para trabalhar com meio de peão, morar em barraca.
P/1 – Há muita gente?
R – Muita gente, um amontoado em cima do outro (risos) praticamente, aqueles beliches de madeira, foram assim, então foi uma experiência não muito boa assim, foi bom porque acabei conhecendo bastante gente de outros lugares, mas não deu para ganhar dinheiro não, tivemos que voltar para trás de novo, tinha que continuar nessa vida.
P/1 – Você lembra-se de algumas pessoas assim, quem eram as figuras que estavam ali com vocês mais próximos?
R – Ah, conseguimos colegas bons lá, ainda mais nós jogávamos bola sabe, nós jogávamos bola e esse rapaz que foi comigo, ele na época jogava bem até, e ai arrumamos uns parceiros, colegas bons, aquele pessoal que já tem um certo conhecimento de vida fora, e os caras andava tudo armado e eram nossos colegas, diziam que eram gente valente, não sei o quê, mas para nós eram gente finas, eles respeitavam nós, nós respeita eles e eles eram nossos amigos, então para onde eles iam, eles tinham um carro, tinha um jipe, tal, para onde eles iam, combinava um jogo de bola, eles iam lá na barraca chamava a gente para ir jogar bola, então era duas cara, então hoje nem me lembro o nome dele mais, um parece que era Gérson, mais ou menos assim, faz muito tempo já, nem me lembro mais os nomes dos caras, mas me lembro de como eles eram nossos amigos assim, eles eram muito amigos nossos, todos cantos que eles iam jogar bola eles convidavam a gente para ir.
P/1 - Então vocês ficavam trabalhando e circulava também na área, é isso, vocês iam para outros lugares?
R – É, circulava porque a gente chegava final de semana assim, que a gente não ia trabalhar, a gente ia jogar bola com os caras, então a gente ia bem longe, pegava o carro, na Barra do Turvo, não sei na onde, a gente ia jogar bola.
P/1 – Mas saiu da comunidade e nem voltava? Você não voltava você não ia e voltava, né?
R – Não, nós ficávamos lá acampados e depois voltava depois de 30 dias, e depois voltava para lá de novo, depois vinha, depois que me casei eu fui trabalhar na Ilha do Cardoso, ficava também uma semana fora, toda semana, ia segunda-feira e voltava sábado à noite, ia segunda-feira cedo, e voltava sábado à noite para casa.
P/1 – Me fale um pouco como você conheceu sua esposa, como foi esse casamento?
R – Ah, então minha esposa eu conheci aqui na comunidade, que ela é prima, na verdade nos criamos juntos, brincando e depois casando (risos).
P/1 – E por que essa mudança?
R – Então, naquela época eu não tinha casa para morar, eu me casei, minha mulher estava grávida do primeiro filho, eu queria ter uma casa, mas eu fui morar com meu pai.
P/1 – Eu estava perguntando, por que essa mudança para a Ilha do Cardoso?
R – Então, queria comprar uma casa, porque eu fui morar com meu pai, depois eu fui morar com meu padrinho, eu não tinha casa, minha sogra queria que eu fosse morar com eles, mas ai eu não, ai fui trabalhar no Cardoso, deixei minha esposa na casa da mãe dela, e fui trabalhar lá, vinha ganhar um dinheirinho até que eu consegui, antes disso, antes de eu comprar a casa fui trabalhar aqui na outra fazenda, sai do Cardoso ai fui trabalhar em outra fazenda de um japonês aqui perto, trabalhei lá um ano e pouquinho, também, ganhei um dinheirinho, vim e meu tio, um dos que venderam, tinha comprado um lote no Pitangui, e queria construir, madeira aqui, de tabua, bonitinha a casa, e ele era muito, além desse tio era muito meu amigo, se chamava Lúcio Mandira, e ele era muito meu amigo, gostava bastante de mim, ele falou Chico, eu estou indo embora, se você quiser comprar minha casa, eu vendo para você a prestação, quanto você quer? Ele falou o preço, naquela época era mil, mil e duzentos, alguma coisa assim, dinheiro antigo (risos), não é mil agora, ai eu vi que dava para pagar, porque eu ganhava um salário mínimo e ai eu comprava muito pouca coisa, sobrava uns trocos, comprei a casa dele, depois que eu comprei a casa dele, eu vim morar, de morar aqui no Mandira de novo, e depois fui morar na casa, depois devido a questão do pessoal vender, minha mãe não vendeu, nós tínhamos que mudar para cá, e eu trouxe todo material, a telha, tabua, madeira da casa tudo para cá, chega a primeira casa de tabua aqui, e isso foi em 79 para oitenta, por ai.
P/1 – E foram o que, grandes fazendeiros, foram comprando tal, mudou tudo aqui?
R – Não, na verdade, graças a Deus o cara que comprou é um cara poderoso, o cara parece que chegou até a ser ministro o cara, nunca conseguiu plantar um pé de banana aqui cara, nunca, nunca conseguiu, não sei por que apesar disto, colocou um caseiro e só, esta ai até hoje, desde 75, esta do mesmo jeito, mudou porque onde era a capoeira, onde era lugar de roça hoje é tudo capoeira, já de trinta, quarenta anos quase, então mudou, a característica da mata, mas ele fazia alguma coisa aqui graças a Deus nunca fez.
P/1 – Ele não mexeu?
R – Não, não mexeu.
P/1 – Comprou, nem tentou?
R – Ele tentou fazer um loteamento, aquilo abriu para baixo, ele abriu várias trilhas, de marcação para fazer loteamento, daqui no mangue, só que também não deu nada, não deu nada.
P/1 – Mas foram as leis ambientais, o que foi?
R – Não sei, acho que não conseguiu fazer nada, acho que o poder divino (risos), o cara não conseguiu plantar um pé de banana até hoje, graças a Deus.
P/1 – Então retomando, bom, esse pessoal saiu, foram saindo, foram para cidade grande, e aqui, como foi esse esvaziamento, como foi, quais foram os passos?
R – Não, na comunidade ficaram bem poucas pessoas, ficou a família do Frederico, Frederico e os filhos, a minha mãe, que na verdade meu pai trabalhava fora, quem veio para cá primeiro foi eu e um dos meus irmãos, nós que abrimos essa parte, fomos nós que abrimos para construir, plantamos uns pé de bananas com meu irmão, mas depois foi embora para cidade, acabou falecendo, eu fiquei aqui, depois de muito tempo que meu pai veio para cá,

onde a gente mora, tinha meu tio ali em cima e algumas famílias que não venderam também acabou indo embora para o porto,

que não venderam, não venderam para o Esplendor, mas também, não quiseram vir morar aqui, então na verdade ficou três núcleos de famílias, então tem a família do final Cristiano ali na frente, tem da minha mãe aqui e do Frederico ali na frente, era só pouquinhas pessoas, pouquinhas casas, você pode ver que até ali na placa do ITESP (Fundação do Instituto de Terras do Estado de São Paulo ) tem 16 famílias, porque na época ficou muito menos, hoje tem 24 famílias, então os filhos foram crescendo, foram casando, foram construindo, então tem 24 famílias.
P/1 – E mudou muito a relação da comunidade assim, em questão do mutirão, por exemplo, de se ajudar, troca, continuou isso?
R – Não, mudou.
P/1 – Com o esvaziamento?
R – Mudou com o esvaziamento, então mudou bastante porque o mutirão nunca mais ninguém fez, a não ser um tio que mora para frente da comunidade Mandira, ele fez um mutirão dele, último mutirão foi colheita de arroz, colher arroz no canivete.
P/1 – Faz tempo isso?
R – Faz tempo, faz uns oito para dez anos, e daí para cá ninguém mais fez mutirão, nós fazemos ajutório aqui na comunidade, a gente chama de mutirão vamos fazer mutirão porque a gente até já se acostumou falar mutirão, mas na verdade é ajutório, então a gente se junta a fazer um barraco, roçar, limpar, agora essa semana passada mesmo fizemos um mutirão, um ajutório para construir um caminho, uma trilha, fazer uma base de madeira, então ajutório, e isso mudou bastante, porque acaba que os nossos jovens de hoje não sabem mais o que é mutirão, mutirão mesmo eles não sabem, não conhecem, pojuva muito menos, e nem ajutório eles sabem, se falar meu filho caçula sabe o que é ajutório? Ele, “não sei”, vai dizer que não sabe, porque não sabe mesmo, então mutirão ele sabe, se junta e trabalha, mas na verdade esse mutirão que eles conhecem hoje, para nós é ajutório que tinha antigamente, então isso acabou descaracterizando um pouco esse tipo, essas três atividades, modalidade de trabalho.
P/1 – Seu Chico gostaria que você contasse um pouco dessa experiência fora daqui, como o senhor foi embora, se já morou em outros lugares, como foi sair, né, e a experiência fora? E o porquê do retorno, né?
R – É, na verdade morar fora assim, fora bem longe daqui nunca fui,

no máximo que eu fui, foi para Pariquera-açu, morei um pouco ali, trabalhar em chácara, outro tipo de trabalho que é totalmente diferente do que a gente faz aqui,

então foi onde eu fui trabalhar, era solteiro também, lá depois eu casei fui começar a trabalhar aqui no “Boacica”, japonês, trabalhei um ano e pouco e depois voltei e não saí mais, estou aqui até hoje, e pretendo não sair, pretendo não sair daqui.
P/1 – O senhor já viajou bastante para fora? Já foi para vários lugares?
R – Já, já viajei bastante mesmo, então depois que o pessoal do Mandira vendeu, que começamos a trabalhar com ostra, teve uma mudança sabe, mudança radical mesmo, porque nós pegávamos ostra do mangue, trazia para casa, quebrava uma por uma, tirava da concha, e vendia ela embalada, em pacotinho de oitocentas, novecentas gramas limpa já, a ostra, e esse trabalho desde 78 até praticamente dois mil, até 97, 98, ai em 93 o pessoal da USP (Universidade de São Paulo) vieram aqui para o Mandira, um tio meu Fernando Cristino que já faleceu, para fazer um trabalho aqui na comunidade e esse rapaz, não sei se você conhece, é um, chama-se professor Antônio Diegues, e ele é da USP, ele é natural de Iguape, ele é para nós, assim foi o nosso, não é pai porque não é, mas quase que pai, então ele que trouxe a ideia de fazer um trabalho aqui na comunidade de membro da comunidade, que não seria necessário a questão da ostra, ele e um cara da fundação florestal chamada Renato Salles, esses dois rapazes, eles tiveram uma consideração muito grande pela comunidade, que a comunidade pudesse, mudar de vida, assim, a fundação na época contratou um técnico, um oceanólogo, e ele tinha feito um trabalho no Sul, e nos falou, e ao Fernando Cristino que ele tinha intenção de trabalhar com a ostra, fazer um trabalho com a ostra, que nós trabalhávamos com ela, e meu tio me chamou, falou para mim, ah tio vamos experimentar, vamos ver o que é isso ai ele falou, eu fiz um trabalho no Sul, com guarda mexilhão, pegava mexilhão da pedra, pé na perna, colocava água na corda para crescer e tal, e foi muito bom, é uma experiência nova que eu aprendi, e eu queria fazer isso com a ostra para ver se isso dava certo, ai o pessoal da comunidade falava não, trabalhava com ostra há muito tempo, desde setenta e pouco até hoje, trabalhando com ostra, a gente já sabe mexer com o bichinho, eu falei ‘’Não eu vou fazer esse experimento.’’, chamei um técnico do instituto de pesca, ele viu a área para mim daqui perto, e a gente implantou o primeiro viveiro de engorda de ostra, quando tirei a ostra e coloquei no viveiro eles começaram a acompanhar, e a ostra começou a crescer, o pessoal da comunidade começaram a ver que elas estavam crescendo, então se animaram, se animaram para fazer a criação das ostras, engorda de ostras, começamos a fazer, até ai nós vendíamos ostras, eu vendia, eu com meu irmão Nilson que mora aqui do lado, nós vendíamos ostra em dúzia, e vendia ostra mariscado, naquela época nós vendíamos a dúzia de ostras a quarenta centavos, uma dúzia de ostra, um pacotinho desses de ostras, novecentas gramas limpas nós vendíamos a sessenta centavos, então era muito pouco, então ai começamos a trabalhar, começamos a trabalhar com a questão engorda ostra, e ai começamos, tinha um rapaz que vinha pegar ostra nossa em dúzia e lavava para o litoral, e ai o pessoal que começou a trabalhar com ostras de engorda, começaram a pedir mais ostras de viveiro porque a durabilidade dela fora da água é maior do que do mangue, por causa dela sai lá do meio do mangue, vai para uma área mais aberta, no mesmo lugar, é aberta, pega sol, pega chuva, pega tudo ali, acaba sofrendo alguns stress e acaba morrendo como morre, ela se adapta melhor fora de dentro do mangue, e então para o mercado é um produto bom, porque a durabilidade dela fora da água é grande, e ai o pessoal de fora começaram a vim aqui na comunidade, o pessoal de outros bairros aqui, e vinha aqui no Mandira ver o sistema que estava fazendo de engorda, na comunidade, então começamos a nos organizar a nível, a nível municipal para mudar a forma de nós trabalhar, porque até ai nós já éramos um povo que trabalhava com a ostra há muitos anos, mas trabalhava com medo, trabalhava com medo da policia ambiental, quando a policia chegava ali naquele lugar que nós escutávamos barulho do carro, a gente se jogava, as crianças no mato, quando as crianças estavam trabalhando comigo, quando estavam de férias, quando estava final de semana, não tinha aula, ai eu jogava as crianças no meio do mangue, do mato, virava a canoa, corria de medo da policia ambiental, então era uma tristeza só, bom falando da policia ambiental (risos), então a policia ambiental vinha aqui, corria atrás da gente, e a gente tinha medo de ser pego, eu fui pego uma vez com ostra, tive, fui multado, tive que fazer atestado de pobreza, tive que recorrer para não pagar, porque eu não tinha com o que pagar a multa, então é toda uma coisa ruim assim para nós, então começamos a nos organizar a nível municipal para nós mudar nosso jeito de trabalho, até porque aqui em Cananéia, quem trabalhava com ostra era considerado como pessoas miseráveis, além de nós, nosso povo antes também falava que era vagabundo, o pessoal aqui em Cananéia achava que quem trabalhava com ostra eram pessoas miseráveis porque trabalhava no mangue, no lodo fedido, sabe aquele lodo do mangue tem aquele odor, aquele cheiro forte, para quem não conhece, aquilo ali é sujeira, mas na verdade é onde, onde cria, alga, microalga para alimentação dos peixes, do camarão, do mundo, se não fossem os manguezais, da água dos manguezais, então nós éramos considerados pessoas miseráveis aqui em Cananéia, e éramos discriminados por isso, e nós acaba aceitando isso, achando que nós éramos mesmo pessoas miseráveis, acabávamos concordando com esse pessoal, só que nós tinha, eu principalmente tinha vontade de mudar isso, e com essa proposta do pessoal da fundação nós começamos a trabalhar e graças a Deus conseguimos a nível municipal criar, criamos primeiro uma associação em 95, começamos a se organizar em 93, 94, 95, criamos a associação porque veio um recurso da Finlândia, o professor Diegues conseguiu para nós um recurso da Finlândia, nós compramos um barco, e esse barco ficou em nome da NUPAUBE (Núcleo de apoio à pesquisas sobre populações humanas em áreas úmidas brasileiras), que é um núcleo ligado a USP, nem sei como que é a sigla completa, mas também não importa, é e ai veio a NUPAUBE e houve a necessidade de nós criarmos uma associação, até os técnicos falavam, ele mesmo professor Diegues, nós criarmos uma associação, que ai o recurso que viesse vinha em nome da associação, então não precisava passar para mão de terceiros, criamos a associação em 95, ai em 97 devido a demanda, muita gente veio procurar nós, aqui a comunidade, implantar seus viveiros nas suas comunidades, então cria-se, houve necessidade de nós criar a corporativa, na época até foi citado nós criar uma microempresa, ou uma corporativa, nós não sabíamos nada, nós não entendíamos o que era uma corporativa e muito menos o que era uma microempresa, depois que os caras, os técnicos começaram a falar, microempresa funciona desse jeito, pode ser um dono, dois donos, três donos, tal, e vocês pegam a ostra dos caras e vende e como é uma corporativa? Ah, uma corporativa quem é sócio é dono, então tem obrigações, deveres e tal, e é dono, é sócio, é dono, ele tem obrigações com todo, falamos então vamos criar uma associação, pelo menos, uma corporativa, porque pelo menos quem é sócio é dono da corporativa, então ter obrigações e deveres também, ai nós criamos a corporativa em 97, em 97 criando a corporativa começamos a nos valorizar com esse nosso produto, valorizar o produto, valorizar nosso trabalho, então nós ganhamos autoestima, então nós tinha vergonha de trabalhar com ostras, quando alguém vinha na minha casa para falar de ostras, a gente tava mariscando as ostras, a gente deixava a ostra e corria, tirar foto principalmente, ninguém, até hoje ninguém tem foto nossa antiga de trabalho com ostra na casa da gente, porque naquela época nós não queria aparecer (risos), nós não queria aparecer como tirador de ostra porque era considerável miserável, ai então criando a corporativa passamos a valorizar nosso produto, então em 97 nós vendia pacote, um quilo, um pacote de ostras por sessenta centavos, e uma dúzia de ostras por quarenta centavos, nós passamos a vender através da corporativa mais ou menos assim em torno de trezentas por cento em cima daquele valor que nós vendia, então nós passamos a valorizar nosso produto e se valorizar, então isso trouxe uma grande, além da autoestima, vamos supor, uma valorização do trabalho, e o povo de fora via nosso trabalho como uma coisa que podia dar certo, podia, tinha que ser valorizado, então ai nós ganhamos o primeiro prêmio, prêmio Eco 99, em 99, pela Shell também através da fundação Margareth, que era uma ONG, ela acabou conseguindo patrocínio da Shell, para ajudar nós aqui, e eles ganharam um prêmio, ganharam um troféu, mas era um prêmio importante que foi a questão ambiental e socioeconômico, da comunidade, então foi um prêmio importante assim, ainda fizemos, não sei se foi antes ou depois, foi feito um projeto do PDA para ampliar estudo técnico aqui na comunidade e tal, e esse projeto ele trouxe uma viagem, a primeira viagem aqui do, no Brasil mesmo sabe, mas para um mandirano sair daqui da comunidade e ir conhecer um outro estado, que nós nunca tinha saído, nem São Paulo nunca tinha ido, imagina ir para outro estado, e ai ninguém queria ir, ai eu falei, ‘’Eu vou nessa desgraça (risos), eu vou. ’’, ai minha esposa chegou, ‘’você vai Chico, Chiquinho’’, ‘’eu vou, ninguém quer ir eu vou.’’, mas você não conhece e vai, não era para ir técnico, era para ir uma pessoa de casa comunidade, era um encontro nacional de vários projetos PDA no Brasil, lá no Santarém no Pará, ai eu falei, ‘’Eu vou’’, ai tinha uma moça da Fundação Florestal, ela falou ‘’Chico você vai?’’ ‘’Eu vou’’, ‘’Ai então eu vou te ajudar, vou te deixar na porta do avião’’, eu falei, ‘’Tudo bem, porque eu não conheço nada, é a primeira vez que eu to saindo fora, fora de Cananéia.’’, e ai peguei e fui, fui lá, cheguei e falei para ela, o nome dela era Vanda, eu falei, Vanda já tem a passagem de ida e volta, porque tenho que ir e voltar (risos), ela falou, esta aqui a passagem de ida e volta, ai peguei e fui, entrei lá, peguei minha passagem, passei no Check-in e fui lá para dentro daquele galpão grande, não conhecia nada, mas ai pelo número, eu fui e peguei o vôo e fui pro Pará, ai do Pará peguei outro vôo e fui para Santarém, então foi minha primeira viagem, até tem uma história com relação a isso, porque eu não sabia nada, nem abrir aquela, aquela coisa de colocar ali meu, a mesinha ali, eu não sabia destrancar, então eu fui igual, igual macaco, igual papagaio, então, e para acabar de desgraçar eu nunca tinha andando de avião, do meu lado foi quem, um casal de gringo para o Pará, de São Paulo para o Pará (risos), e ai eu de olho neles, ai tudo que eles faziam ali eu faziam ali eu também, para dizer que eu sabia também, eu olhava lá (risos), essa foi a primeira, a minha primeira viagem assim para fora daqui de Cananéia no caso.
P/1 – E o olhar de cima, como foi olhar de cima?
R – Nossa, na hora que subiu o avião, esfriou tudo assim, eu queria, ai depois foi tranquilo.
P/1 – E o encontro como foi?
R – O encontro foi muito bom assim, foram várias comunidades indígenas, todos os projetos PDA do Brasil estavam lá, de outros lugares, de outros estados, então foi assim um encontro bastante, para mim foi muito importante que eu acabei aprendendo, conhecendo pessoas de outros estados que, eu não sabia, e aí abriu a porteira cara, aí abriu a porteira, aí comecei a ir para vários lugares aqui no Brasil, conheci outras experiências, aí tive a minha primeira experiência fora do Brasil também. Então, bom, a primeira dessas coisas boas, que aconteceu é que em 99, não foi antes, acho que em 95, 94, foi em 94, o pessoal estava trabalhando aqui com nós em 93, acho que foi em 94, é, tinham os ambientalistas, lá no Varadouro um casal de mico leão dourado que agora mudaram o nome do bichinho, nem é mico leão dourado, é mico leão da cara preta, da cara amarela, da cara verde, sei lá, e aí eles queriam fazer uma estação ecológica dentro de Itapitangui até Guaraqueçaba, então aí o Renato estava em São Paulo, estava acompanhando porque a Fundação é ligada à Secretaria de Meio Ambiente do Estado, e aí ele estava acompanhando todo o processo e aí ele veio e falou para nós “Está acontecendo isso, isso, isso e vocês não vão poder morar aqui se acontecer, se for criado uma estação ecológica o povo dessa região vai ter que ir tudo embora, aqui vai ficar para estudo, só para estudo, não vai poder morar ninguém.”, eu falei “Mas o que nós fazemos?”, meu tio e tal, “O que nós podemos fazer?”, ele voltou e depois logo em seguida ele já voltou, não se passou nem quinze dias, e falou “Olha, eu tenho uma ideia de vocês criarem aqui uma reserva extrativista.” E eu falei “Mas o que é isso? O que é essa reserva?” “Olha, é uma reserva assim, assim, assado.” E falei “Bom pessoal, então a única coisa que a gente tem que fazer é pedir a criação da reserva”, então em 95 mandamos um abaixo assinado para Brasília pedindo a criação de uma reserva extrativista aqui no Mandira para garantir para a população um pedaço de terra para o pessoal poder morar. Naquela época o diretor do IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) e ele falou que estava tudo ok, que ia sair a reserva e tal, aí foi embora, passou 15 dias mandou uma carta dizendo que o IBAMA não podia criar essa reserva porque eles não tinham dinheiro para as desapropriações, porque como foi vendido, a terra, então nós queríamos uma parte, e a parte de mangue para garantir para o pessoal terra firme para morar e trabalhar e uma parte de mangue para trabalhar também, e recebeu essa notícia, aí o Secretário de Meio Ambiente na época, o Fábio Feldman e fez uma proposta também de ser criado uma reserva estadual, então criamos uma reserva estadual porque aí o Estado garante que ele tem dinheiro para fazer isso. Mandamos outro abaixo assinado para o Estado e também não teve resultado, e depois em 2000, parece que foi depois, em 2000, recebemos uma carta do IBAMA dizendo que ia sair a reserva extrativista do Mandira, então foi decretado, foi assinado um decreto da reserva em 2002, então em 2002 foi um ano bom para nós, em 2002 foi assinado o decreto da reserva extrativista do Mandira, em 2002 fomos reconhecidos como comunidade quilombola e em 2002 ganhamos um prêmio internacional, então foi, assim, um ano que acho que tão cedo eu não esqueço, sabe? Foi um ano bom, foi um ano dez assim para nós aqui do Mandira, e esse prêmio também, até foi um dia engraçado, eu estava indo para a Amazônia, indo lá para Manaus, eu com a Vanda da Fundação Florestal, nós íamos passando assim naquele painel que anuncia os vôos e tinha um vôo para África do Sul, e naquela época a ONU (Organização das Nações Unidas) tinha mandado um edital para o Brasil, para vários lugares do mundo e para o Brasil também para mandar experiência, de trabalho envolvendo meio ambiente, comunidade, e a Vanda falou “Chico, vamos para África do Sul, para Johanesburgo? Ali ó, eu falei “Vamos.”, assim, brincando com ela e ela brincando comigo, falei “Vamos.”, e ela “Você vai mesmo”?”, falei “Vou.” “Então vou escrever o nosso projeto da Ostra e vamos mandar pra ONU e nós vamos ganhar.”, e eu falei “Pode escrever que a gente vai.”, nós no trajeto indo lá para Manaus, e você quer saber que ela escreveu, mandou e nós ganhamos? Ganhamos dentre 427 projetos do mundo inteiro em nível de Equador nós ficamos entre os 27 melhores projetos do mundo voltado a questão ambiental e socioeconômico, então daqui do Brasil tiveram quatro projetos selecionados para o prêmio, que na verdade ganhou o prêmio também, foram três projetos da Amazônia, foi o sabonete de resina de madeira que eles fazem lá na Amazônia, couro vegetal e um trabalho de fibra de coco, e o nosso aqui da ostra, e aí eu tive, eu falo isso com bastante orgulho, que eu tive, fui o primeiro mandirano a sair fora do Brasil e ir para Johanesburgo, pra África do Sul, conheci outra experiência, conheci gente da África também, então foi assim uma experiência muito dez cara, muito bom. Aí depois eu tive, assim, com esse nosso trabalho, esse nosso trabalho também, graças a Deus que foi conhecido no mundo inteiro, hoje vem gente de vários países nos visitar, temos até um intercâmbio com a Itália para trazer turista para cá, e já estive uma vez na Itália e meu sobrinho também, Neiva já esteve no Chile, não sei se no Chile ou no México, eu já estive, eu já fui convidado para participar da Copa, que foi em Copenhagen, eu estive lá em Copenhagen o ano passado também, então quer dizer, são experiências para mim muito boas, foram coisas da vida, sabe, que muitas vezes você vê que nossa história ela vem cheia de altos e baixos, de muita dificuldade, muito trabalho, conquista e reconhecimento, alegria, às vezes choro, e a gente vem assim, entendeu, e cada vez mais, graças a Deus, estamos tendo muito mais alegria do que tristeza para o nosso desenvolvimento aqui da comunidade, hoje nós temos um trabalho muito bom na comunidade, somos reconhecidos, estamos tentando hoje, o INCRA está trabalhando na questão da titulação da terra, que nós não temos, somos reconhecidos mas não temos a titulação da terra, então assim, tem muita comunidade que é muito maior do que nós, tem muito mais, outro tipo de desenvolvimento que não tem o que nós temos, entendeu, eles não conseguem se organizar para chegar onde nós chegamos, claro que precisa mudar ainda, nós estamos dando os primeiros passos.
P – Eu tenho várias questões, na verdade. Você foi falando, assim, a experiência é muito rica, né? Você citou essa questão do quilombo, então o senhor estava contando a sua história aí começou as ostras e de repente entrou o quilombo. Quando que começou essa questão de um movimento de resgatar a questão de raízes e de ver, e tem toda uma questão jurídica. Conta um pouco essa história aqui como foi.
R – Então, aqui no Mandira acho que como em todas as comunidades, nós começamos esse trabalho foi em 2000, em 2000 porque a gente sabia, desde que eu nasci a gente sabia que nós éramos uma comunidade afrodescendente, assim, quer dizer, descendente de negro, nem afrodescendente a gente sabia o que era isso, o que era afrodescendente, e nem o que era quilombo, quilombo a gente só ouvia falar o Quilombo dos Palmares, lá onde Zumbi morreu, mas aqui tinha como nós éramos uma comunidade negra, uma comunidade de preto (risos), era assim, e nós éramos muito tachados, assim, com uma discriminação muito forte, até por uma questão de organização como você falou aquela hora, era para o povo sair daqui da comunidade geralmente ia um grupo grande, iam dez, 15 pessoas para ir fazer compra, para ir trabalhar, ia trabalhar todo mundo junto, o líder, porque sempre tinha um líder, o irmão do meu avô era um líder muito forte aqui da comunidade e quando ele falava que era pra voltar, todo mundo ia para aqueles lados e tal, e até tinha um dizer que o pessoal falava que quando alguém batia na cara de mandirano doía na cara de todos eles, eles eram bem unidos, hoje não, hoje se alguém der um tapa na cara de um mandirano, outro mandirano vai lá e soca aquele que apanhou ainda (risos), mas antigamente era diferente, tinha briga até, quem não tem uma discussão, mas não era uma coisa assim de marcar, de mágoa, essas coisas, então era tudo assim.
Depois que o pessoal vendeu, foram embora e ficamos nós aqui e tinha um padre ele veio uma vez na comunidade fazer uma missa e ele já conhecia um pouco do trabalho de Ivaporunduva, acho que aqui em Ivaporunduva foi a única comunidade que já tem um bom tempo de luta sobre o que é quilombo, título da terra, até que graças a Deus ano passado conseguiram, o título da terra, então hoje é a única comunidade que tem o título da terra definitivo é Ivaporunduva, os outros, em algumas comunidades tem algum trecho, alguma parte que é titulada, mas não é o território como um todo como em Ivaporunduva, e aí devido à questão de Ivaporunduva e das irmãs trabalharem com Ivaporunduva esse padre veio um dia e falou para nós que nós éramos comunidade quilombola, comunidade negra, comunidade afrodescendente e o pessoal ficou muito puto da vida com ele, muito bravo mesmo, assim, porque estava chamando nós de preto, de negro, sabe, e aí depois que nós, depois que começou a cair a ficha, do que ele estava querendo dizer para nós, o que ele estava falando para nós, e aí o pessoal de Eldorado começou a conversar com a comunidade, ainda meio tímida.
A gente até escuta falar que alguns querem estudar, querem sair, ter uma experiência fora, porque também faz parte, é uma coisa que eu acho que faz parte da vida assim como eu saí e voltei, todo mundo tem direito de sair e voltar, eu acho que é isso, então assim, o jovem, tanto o jovem quanto os velhos estão ligados na questão das coisas da comunidade, hoje nós até nós temos aqui uma oração do terço cantado, o terço cantado como eu falei pra você, da festa, e hoje tem um livro e agora esse mês agora acabamos de gravar um DVD, acho que vai sair agora em agosto um DVD do terço cantado, e assim, o pessoal ajudou, todo mundo ajudou, o mais velho, o mais novo que sabe ler um pouco porque, então como eles sabem as orações e aí eles acabaram ajudando na gravação, foi muito legal.
P – Quem estava na gravação? Outros parceiros?
R – Então, nós, nós um pouco mais velhos e na verdade toda a comunidade, a comunidade toda, de fora não, mas a comunidade toda estava na gravação.
P – Mas vocês mesmo que fizeram com equipamento?
R – Não, não, tinha, quem está fazendo o DVD é o Verbo Filmes de São Paulo.
P – Procuraram vocês e fizeram uma parceria?
R – É, porque tinha um projeto, tinham dois projetos, porque na verdade nós tínhamos um projeto aqui que é ruim até de falar, mas aconteceu, tinha um projeto de fazer um livro, era um projeto no valor de dez mil reais do ProAC (Programa de Ação Cultural) e aí o proponente era a Associação, mas o coordenador era o meu irmão, e aí ele cresceu o olho nesse dinheiro e acabou que era para fazer o livro e o DVD, que dava para fazer, na época, e aí ele fez o livro, gastou dois mil e poucos em livro do terço, nós ajudamos na elaboração de escrever o livro, até porque eu tenho, meu tio antes de falecer ele escreveu as orações, que as orações ninguém tinha escrito, nunca ninguém escreveu, era tudo oral, tudo oral, ninguém sabia, ninguém colocou no papel, aí quando meu tio colocou no papel as orações aí ficou mais fácil então na verdade as letras do livro que foram feitas foi tirado do livro que o meu tio escreveu, no caso, inclusive está comigo aí o livro que ele escreveu, e aí foi assim uma coisa triste, sabe, para nós, para a comunidade, até hoje não foi prestado conta, não sei se o ProAC não vai cobrar a Associação um dia, porque eles precisam, porque geralmente quando faz eles dão o dinheiro para fazer alguma coisa então quem recebe o recurso tem que dar parece que trinta por cento do montante que você deu do livro tem que voltar para eles para eles doarem para as escolas, e parece que não foi dado. Aí eu queria fazer o DVD, queria porque queria e aí escrevemos outro projeto ano passado, mas eles não aceitaram porque já estava no final do ano e aí esse projeto voltou depois para a mão deles através do IDESC (Instituto de Desenvolvimento Sócio Cultural), uma ONG, e conseguimos recurso, foi pago esse Verbo Filmes e nós conseguimos gravar, acho que agora até o final do mês de agosto a gente vai estar com esse CD na mão, esse DVD, então foi uma coisa boa para a comunidade também.
P – Em relação à titulação, né, esse reconhecimento e tal, o que muda do que era, assim, e o que muda a partir da titulação?
R - Da titulação?
P – É, o que significa, por exemplo, agora a propriedade é de vocês, as posses da terra, não é possível mais vender? A questão da extração, porque era uma reserva? O que muda?
R – Então, duas coisas diferentes, nós temos a reserva extrativista que só é área de mangue, então a reserva a gente já tem a concessão de uso, que é exclusivo da comunidade, da Associação. Claro, a gente tem deveres, a cumprir dentro desse trabalho e nós temos a terra do quilombo, nós não temos o título da terra ainda, mas o título da terra muda muito na vida da comunidade, por quê? Porque não tem herança quando, se você recebe você é conhecido como quilombola ou você recebe o título da terra ela não vai para Chiquinho, para Chico, não é Chico quem recebe, é a Associação, então todos aqueles que são associados são donos da terra, ninguém vai poder vender e todo mundo vai poder morar ali para o resto da vida, então quer dizer, nunca mais ninguém vai poder vender um pedaço de terra, um lote de terra sequer, então isso vai garantir para filhos e netos, bisnetos e tataranetos, porque que nem meu, quando o meu tataravô, sei lá, recebeu a herança, a terra, ele deixou para os filhos, os filhos deixaram pros filhos, os filhos deixaram para os filhos e chegou até nós,

quando os meus tios venderam eu já era rapaz de 15 anos, 16 anos, então eles pensaram no futuro de quem irá vir e nós também temos que pensar dessa maneira,

se nós recebermos o título da terra hoje a hora que receber ela é uma garantia para que, não sei, daqui a mil anos quando vierem herdeiros, vierem mandiraninhos nascendo então eles tenham a garantia da terra que vai estar aqui, porque a terra nunca vai acabar, vai acabar se nós vender, destruir, acabar com o rio, acabar com a mata então vai acabar, mas a terra, quantos mil anos não tem essa terra, milhões de anos, quantos milhões de anos, então assim, é isso que eu penso,

a partir de, nós recebermos o título da terra é uma garantia para os futuros que virão.
P – E você acha, assim, o fato de ter, enfim, ser reconhecido como quilombo traz pessoa de volta para cá ou não? Teve esse movimento de pessoas que saíram voltarem para cá?
R – Tem, tem e o movimento está meio crítico, sabe, nós estamos com uma experiência negativa aqui para caramba, porque o pessoal vendeu, o pessoal vendeu na década de setenta porque Mandira não dava mais nada, era uma coisa negativa, aí depois de mais de trinta anos de venda, eles estão achando que eles tem direito de voltar pra cá, então eles entraram na justiça contra, porque o cara fez bastante lambança na compra na época, é, então eles entraram na justiça, é, e já vieram, já entraram aqui desrespeitando a Associação, desrespeitando quem mora aqui, fizeram um barraco aqui dentro do território do Mandira, o cara que comprou ele já foi lá e queimou o barraco dos caras, semana passada mesmo eu tive que ir lá no Fórum porque eles me puseram lá no Fórum para eu dar uma explicação para ele de uma coisa que ele já sabe, eles já estiveram lá em São Paulo falando com o pessoal do INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), com o pessoal do Itesp (Fundação Instituto de Terras do Estado de São Paulo) para querer entrar aqui no Mandira e os caras falando para eles que eles não podem entrar porque a Constituição dá direito para quem mora em cima da terra, eles só podem entrar aqui se a Associação autorizar, quiser, através de documentos, então a Associação faz um documento, registra, eles assinam e aí eles podem entrar, só que o que eles fizeram aqui dentro eles não podem vender, tem que deixar para a Associação, a partir de quando eles saírem daqui e forem embora, então isso eles sabem de tudo só que eles ficam querendo brigar com nós de qualquer maneira, para querer entrar. Estiveram aqui na minha casa agora no dia 19 e fui ao Fórum, aí falei para o Promotor, o Promotor também não entendia muito de como é a lei dos quilombos, aí eu falei para ele, até falei para ele “Oh, se o senhor quiser a gente traz a nossa advogada aqui e conversa.”, que advogada com Promotor eles se entender para falar, porque eles falam em língua técnica de uma coisa que eu não sei falar a técnica, eu sei falar o bê-a-bá mal e mal (risos), e eu falei para ele que a lei do quilombo é assim, assim, assado e eles têm que respeitar, eles não podem invadir, não podem entrar, a não ser que a Associação autorize, dê um aval para alguns deles ou para todos eles, do contrário eles não podem entrar dentro do território quilombola.
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(Aviso de troca de fita, mas o áudio termina aqui).