Museu da Pessoa

Histórias de um líder Xavante

autoria: Museu da Pessoa personagem: Paulo Cipassé Xavante

Museu da Pessoa – Conte sua história
Histórias de Esperança – 29 anos do Projeto Criança Esperança
Depoimento de Paulo Cipassé Xavante
Entrevistado por Tereza Ruiz
São Paulo 25/11/2014
Realização Museu da Pessoa
Entrevista HECE_HV_31
Transcrito por Ana Carolina Ruiz

P/1 – Primeiro, Cipassé, fala pra gente o seu nome completo, a data e o local de nascimento.

R – Eu me chamo Paulo Cipassé Xavante, tenho 46 anos, nasci em 25 de abril de 1968. Nasci na aldeia Barreira Amarela, a aldeia fica na beira do Rio das Mortes no Mato Grosso, que fica na terra indígena de Pimentel Barbosa, fica no município de Canarana, Mato Grosso também.

P/1 – Agora o nome completo do seu pai e da sua mãe e se você souber também data e o local de nascimento.

R – Do meu pai?

P/1 – Do seu pai e da sua mãe. Se não souber pode ser só o nome.

R – Então eu só vou falar o nome. Do meu pai é Waza’é Xavante, da minha mãe, ela morreu uns dois anos atrás, o nome dela era Fernanda Wautomoaba Xavante.

P/1 – Onde que eles nasceram?

R – Eles nasceram... Hoje não existe mais a aldeia, ela nasceu... Sei não. Mas antes do contato, hoje as aldeias nossas que o pessoal morou, hoje algumas já se tornaram município, cidade, até muito tempo, uns 50 anos atrás ou 60 anos atrás, então eu não sei o lugar.

P/1 – Você sabe como é que eles chegaram? Como o seu pai e a sua mãe chegaram até o local em que você nasceu?

R – Na verdade assim, a minha mãe na verdade morava na outra aldeia e meu pai na aldeia que ele morava não tinha mulher pra casar. Aí a minha mãe veio de outra aldeia pra casar com o meu pai. Assim que se conheceram eles se casaram.

P/1 – Você sabe como é que foi? Quem que entrou em contato pra trazê-la de outra aldeia? Como é que foi essa...

R – Na verdade assim, o meu avô foi o Ahopowê, foi um grande cacique, grande chefe na época dele. Ele que fez contato com o governo federal, na época era SPI hoje é a Funai, e antigamente ele era um chefe de toda a nação xavante. Como ele na época tinha casado quatro, o xavante não pode casar mais de quatro, aí ele teve mais de 50 filhos. Então alguns homens e algumas mulheres. Então na aldeia onde ele estava, que ele chefiava, tinha poucas mulheres e dentro de casar pra formalizar um noivo, pra um rapaz, pra moça, vice-versa, aí tem uma relação política que as famílias acertam, fez uma relação política. E aí conversou com uma família que morava na outra aldeia que tinha muito filho, também a família era muito tradicional e aí eles fizeram o acordo e tal, a relação política, tudo, e aí minha mãe veio aí casou com o meu pai. Ela continuou morando lá, daí depois vieram outros irmãos, primos, até acabar vindo a família dela pra essa aldeia. Então é assim.

P/1 – Quando sua mãe veio pra aldeia pra se casar com o seu pai já era em Pimentel Barbosa que o seu pai estava?

R – Não. Já era outra aldeia.

P/1 – E era no Mato Grosso também?

R – No Mato Grosso.

P/1 – Sempre no Mato Grosso, Cipassé? Os Xavantes estão estabelecidos no Mato Grosso?

R – Não. Na verdade o Xavante é assim, ele na verdade morava lá no litoral, chama Maranhão, entendeu? Então o Xavante vem descendo de Maranhão pelo Tocantins, não tinha, hoje é recém-criado Tocantins passando por Goiás agora até ele atravessar o Rio Tocantins pro Mato Grosso. Então ele chegou a Goiás, depois ele chegando a Goiás atravessou o Rio Araguaia pro Mato Grosso atravessando o Rio das Mortes também. Então ele não é de Mato Grosso, ele vem descendo. Na verdade o Xavante também é da região de florestas, então ele foi descendo, guerreando, fugindo dos colonizadores até ele atravessar o Estado de Goiás pro Estado de Mato Grosso. E hoje a gente mora no Estado de Mato Grosso e nós resolvemos também nos adaptar a região diferente como o cerrado. Então hoje o Xavante já tem mais de 40, 50 anos que vive na região do cerrado.

P/1 – E como é que o seu pai e a sua mãe eram, Cipassé? Como se você fosse descrever pra alguma pessoa que não conheceu os seus pais, como é que eles eram como pessoas assim, o jeito, temperamento deles?

R – Na verdade assim, a única coisa assim que a gente vê com relação de família, vamos dizer do ser humano, não as questões de índio, o ser humano, mas isso também tem nas pessoas que viviam na família sua não indígena, as pessoas que viviam assim antigamente, vamos ver você nas fazendas. Então a relação assim não é muito solidária, é uma relação de amor, ajudar o outro, ajudar o bem estar do outro, quando tem filho de criar, preocupação de não morrer, essas coisas todas, né? Então a minha mãe mais o meu pai, apesar do pessoal dizer que não tem namoro, essa coisa, mas no Xavante tinha. A pessoa escolhe, não sei se você sabe o Xavante tem dois clãs, Poreza'õno e o Öwawê, então pode casar só com outro clã, não pode casar mesmo clã, não. Então a pessoa quer casar com outro clã, então já se forma isso mais ou menos dois, três anos, tanto a menina, tanto o menino. Então já tem um comprometido, noivo ou a noiva. Então a pessoa já vai sabendo que já tem uma comprometida ou comprometido. Aí chega certa idade de adolescente passando a fase já adulta, 18, 19 anos, aí já começa assim a casar. Então mesmo assim não tem um relacionamento de namoro, essa coisa toda, mas apesar de ter esse comprometimento de criar comprometimento mais cedo, então a maioria das pessoas tem esse compromisso de gostar, de quando casar amar e essa coisa. Então minha mãe mais meu pai tiveram isso, na época após o contato tiveram muito doentes com sarampo, pegaram outras doenças, na época não tinha, né? Então a minha mãe perdeu quatro filhos, três meninos e uma menina. Eu escapei dessas doenças todas e minha mãe ficou muito tempo de ter perdido quatro filhos, ela ficou mais de quase cinco anos sem ter filho e aí o pessoal... Porque pra aldeia uma criança é muito importante, quando a pessoa, principalmente a mulher que fica grávida, todo mundo fica contente, não só o casal, mas toda a comunidade. Aí o pessoal começou a pegar no pé: “Não vai ter filho, ficou estéril e tal”. O meu pai e a minha mãe não ligavam porque muito tempo sozinho com filho único, aí eles resolveram ter filho, esse período também ficaram sem clima um com o outro, porque foi uma perda muito grande. Aí eles reataram, começaram a pensar ter mais filhos, aí teve filho, depois disso teve mais filho. Então hoje somos sete irmãos, quatro homens, três mulheres. Então quando minha mãe morreu, 2002, meu pai sentiu muito a perda dela. Meu pai é mais velho do que ela e meu pai pensou que ia morrer mais do que ela, mas na verdade foi acabando minha mãe. Então foi uma perda muito grande. Aí a gente vê assim quanto amor a pessoa tem, essa pessoa como que sente, tem esse convívio com o meu pai. Então eles tiveram um relacionamento muito bom, eram calorosos, era um cuidado do outro, isso que eu vi na minha convivência com eles. Eu fiquei na verdade, eu mesmo, eu fiquei até oito anos na aldeia. Aí depois disso eu saí com os oito anos da aldeia mais oito jovens da aldeia pra estudar aqui numa cidade do interior que chama Ribeirão Preto. E era um projeto também do vovô, porque o vovô... Pensava não, ele tinha uma visão das coisas, o futuro, que depois que ele tinha feito contato com o não índio e o povo dele não ia ter mais espaço, além disso, também em termos de espaço, em termos de território ia diminuir. Que ele pensou? Ele falou assim: “Eu fiz o contato agora, pra garantir a sobrevivência do meu povo e o espaço eu não sei o que vai acontecer após o contato. O que eu estou fazendo é o contato pra assegurar, eu tenho que mandar outro jovem dos meus netos fora da aldeia pra aprender a ler, escrever, depois voltar pra aldeia pra fazer essa transição de evitar conflito, uma série de coisas”. Aí na época tinha muitos fazendo perto lá, outros amigos aqui de São Paulo numa cidade do interior, aí ele conheceu, por isso que chamo Paulo Cipassé, na fazenda, ele chamava Paulo Barbosa, e aí fizeram muitos amigos da aldeia do vovô, o vovô falou pra ele, alguém traduziu pra esse Paulo Barbosa, aí ele entendeu, simpatizou com a ideia, falou: “Eu topo essa ideia, se é isso mesmo”. Aí ele veio, conversou com os amigos dele, falou da ideia, os amigos dele também aderiram a ideia aí cada um se comprometeu a adotar os meninos. E aí viemos, fomos adotados, tinha direito a gente a ir todas as férias pra ter a nossa educação dentro da cultura xavante, tinha a ter acompanhamento também dos nossos pais, os nossos pais vinham pra Ribeirão Preto. Então todos esses meninos que saíram e voltaram ou são chefes, caciques, tal e por isso que a gente tem esse trabalho na terra de Pimentel Barbosa. Com essa visão, com essa missão que o vovô teve inclusive tem um documento que fala isso, é uma estratégia xavante. Se você tiver a oportunidade, se você procurar no Google, tem isso, fala sobre isso. Então com esse negócio do apoio ao contato, então pensou isso e hoje a gente que está fazendo esse trabalho, uma forma de continuidade da visão dele dentro do que ele sempre pensou.

P/1 – Quem que foram essas pessoas que adotaram vocês, Cipassé? Eu não entendi direito. Eu sei que eram amigos do seu avô, mas quem que eram essas pessoas em Ribeirão?

R – Eram os amigos. Eram os amigos do Paulo Barbosa. O Paulo Barbosa tinha os amigos que ele tinha na época na cidade do interior, chama Ribeirão Preto.

P/1 – E quem é o Paulo Barbosa?

R – Paulo Barbosa foi um fazendeiro que era vizinho, ficava na terra indígena.

P/1 – E eram amigos fazendeiros também?

R – Não. Amigo do vovô da aldeia lá. E ele saiu de lá e veio pra Ribeirão Preto conversar com os amigos, colocar a ideia do projeto, aí todo mundo aderiu essa ideia. Aí eles adotaram, cada família.

P/1 – Deixa só eu voltar um pouco, eu vou querer perguntar pra você dessa saída, queria saber sobre a origem do teu nome assim, quem que deu o seu nome, se tem algum significado específico Cipassé.

R – Não. Na verdade o meu nome é o seguinte, na verdade era o nome do vovô, entendeu? É do vovô e aí ele teve esse nome, ele teve até seus 18 anos, aí depois dos 18 anos a pessoa dentro da cultura a gente tem uma fase de passagem de dentro da cultura, uma forma assim de saber toda transmissão do conhecimento pra você conhecer um pouco a cultura do povo xavante. Então a gente começa entrando numa casa, chama Casa de Solteiro, chama Wapté, aí você entra na casa de solteiro e fica cinco anos isolado da família, da aldeia, e quem é responsável pela sua educação são os padrinhos, que são responsáveis pela educação, da transmissão do conhecimento da cultura xavante. Então dentro dos cinco anos os padrinhos saem com eles pro cerrado ensinando como fazer arco e flecha, como é que caça, como que faz caça, como que pesca, é tudo. Então durante cinco anos você recebe o conhecimento na parte teórica. Depois de cinco anos, saindo do Wapté pra se tornar ´ritai´wa já é adulto, passando uma fase de adolescente pra adulto, pra gente furar a orelha aqui, aí você tem que fazer todos os rituais, você tem que passar todos os rituais durante uns seis meses. Uma forma também é a pessoa, esse jovem, pra se fortalecer espiritualmente, físico, tudo mais. Então dentro disso aí que a gente mostra também o nosso conhecimento, a nossa habilidade, nossa resistência física e tudo mais. Então durante esse tempo todo o vovô tinha esse nome, Cipassé, até se tornar adulto. Depois que ele furou a orelha aí ele trocou o nome, começou a chamar o nome dele Celidasé, entendeu? Depois ele chegou nuns quase 40 anos, 40 até 50, aí ele trocou de nome, ficou até ele morrer, ele chama Ahopowê. Então esse nome eu recebi, é uma forma assim de... Ele que deu e falou pro meu pai pra não trocar o nome porque o Xavante tem um costume de mudar o nome, a medida que você vai crescendo com sua sabedoria e de idade também. Então ele falou pro meu pai pra não trocar que é o nome que ele tava dando pra mim. Então eu não troquei. O significado do meu nome é assim o pássaro que semeia, as ideias, essas coisas aí, coisas boas. Então é assim.

P/1 – Bonito o significado. E conta um pouco pra gente assim, Cipassé, como é que eram as atividades quando você era criança, antes de sair da aldeia pra estudar. Queria saber assim como é que era o cotidiano dos seus pais, as atividades mesmo que eles faziam pra garantir a alimentação, tudo isso. Como é que era o dia a dia assim na aldeia?


R – É porque na verdade toda criança... Eu sempre falo assim, inclusive eu estava falando com uns alunos aí, eu sempre coloco assim, todas as crianças indígenas ou que moram na fazenda ou lugar assim, vamos dizer, que tem contato com a natureza, essas pessoas têm 100% da sua infância, que é diferente das pessoas que moram aqui na cidade. Então eu tive 100% da minha infância, brincava, pescava, caçava, andava, ia pro rio, pro córrego aprender a nadar. E depois a gente vai crescendo vendo os adultos fazendo as festas e ao mesmo tempo a gente vai vendo como o mundo xavante, o mundo que a gente faz parte funciona, a gente começa a conhecer como que é o cotidiano assim da vida comunitária numa aldeia. Aí você começa a participar das festas, já começa a entrar no mundo do seu ritual e do seu povo, você já começa a entrar no Wapté que eu falei pra você, você já começa a entrar de aprender o que é a cultura, o que é o ensinamento, essa coisa, e aí você vai cada vez crescendo. E fora disso, antes de entrar em tudo isso aí no Wapté a gente também acompanha como é que é o carinho de qualquer casal tem relação com seus filhos, desde um casal de um indígena, isso é qualquer parte da etnia. Quando um casal tem filho é uma alegria não só pra um casal, é uma alegria pra todo mundo, é uma alegria pra comunidade, pra aldeia toda, pro casal. É uma forma que essa criança, seja menina ou menino, que essa criança está vindo pra dar alegria pra aldeia e também pra aumentar a população, seja menino ou menina. É uma alegria pra todo mundo. Então quando nasce uma criança aí toda a aldeia fica alegre aí vai lá, dá parabéns pro casal, ajuda a crescer também, ajuda a criar também. Aí a criança começa a engatilhar aí, ela tem contato com família, tem contato com outras pessoas, primos, outros parentes, né? Então a partir daí ele já começa a se socializar, nós já começamos a criar essa convivência e quando ele começa a andar, se em um ano, um ano e meio, e aí ele começa a também se não só socializar físico, mas socializar também visual assim. Começa a conhecer a aldeia, o espaço que ele vai viver, entrar em contato com os meninos, com as meninas, começa a conhecer a brincadeira das meninas, dos meninos e aí começa já conhecendo o mundo que ele vai fazer parte futuramente. Então o casal a maioria eles se preocupam assim primeiro a dar o conforto no sentido carinho, o amor e o segundo é garantir realmente alimento. Então como o povo xavante é caçador, pescador e coletor também, então tanto meu pai e todos os xavantes são grandes caçadores, eles iam caçar, tem uma caçada coletiva, tem uma caçada individual, tem uma caçada cerimonial que o pessoal faz, pescaria é a mesma coisa e também os homens numa época coletam também os frutos do cerrado tipo o pequi, o baru, buriti, alguns que vocês conhecem. E as mulheres também têm esse papel de também coletar os frutos do cerrado e também a fazer roça. Então os dois têm esse papel dividido que preocupa de criar seus filhos com carinho e tudo mais, com amor, e ao mesmo tempo ele tá preocupado a dar uma condição de alimento, essa coisa toda. Não só ele, também fica a responsabilidade da comunidade dentro dessa vida de coletividade. Então é assim.

P/1 – E assim, utensílios, vestimentas, quem que produzia esses artefatos?

R – Então, dentro disso aí também tem um papel definido. Todos os artesanatos assim, a maioria que os homens usam pro seu uso mesmo do dia a dia, pra caçar, pra pescar, pra essas festas tem o artesanato dos homens, que os homens fazem. E tem as mulheres que também fazem esse artesanato pro uso delas, pras festas delas. Então tem artesanatos que os homens fazem, tem os artesanatos que as mulheres fazem também, então também é dividido. Inclusive também roça também são divididas, as coletas que eu estava falando são divididas. Então os homens também caçam, pescam e coletam e as mulheres também coletam.

P/1 – E o artesanato das mulheres seria o que, por exemplo?

R – É de fazer uma cesta pra carregar a criança, uma esteira, então os homens também fazem esteira, e outros artesanatos. Agora os homens fazem a borduna pro uso deles, arco e flecha, que mais entra na área dos homens, e outros artesanatos.

P/1 – Cipassé, você falou que você brincava, que você teve uma infância 100%. Do que você brincava?

R – Eu brincava assim, a gente ia pro rio, eu corria atrás do outro, imitava a onça, a caçar o outro, pescava também, a gente caçava passarinho, arco e flecha, brincava lá imitando os adultos. É assim, brincadeiras de criança, mas também ao mesmo tempo imitando os adultos. Essas são as brincadeiras que a gente fazia.

P/1 – E quando você saiu de casa com oito anos eu queria saber como é que foi pra você essa experiência.

R – Isso aí foi uma quebra muito grande, muito grande mesmo, eu sofria, minha mãe sofreu, a comunidade sofreu e as famílias que deixaram esses oito jovens xavantes foi muito difícil pra eles. Mas como era uma missão, também o meu avô conversou muito com os filhos dele, com a sobrinhada deles, que essa nossa ida não era uma ida assim, era uma ida que futuramente vai segurar isso realmente que está aí. Que é um sacrifício é, era uma missão que deveria realmente sacrificar. E aí foi muito ruim pra minha mãe, pra nossa família, pra nós também nessa idade de oito anos ainda é uma criança. Eu tive até oito anos, depois disso eu tive uma quebra, uma quebra em que sentido? Aí comecei a sentir falta da aldeia, que ia começar a sentir falta da aldeia, dos primos, dos irmãos, pai e mãe, da família, a aldeia toda. E aí eu tava indo, eu ia pra um mundo desconhecido, totalmente desconhecido, eu ia ficar numa família que eu nem conhecia, também era uma pessoa desconhecida, então eu diria assim, foi um choque cultural em todo o sentido, de comida, o mundo, tudo, né? Mas meu pai conversou muito comigo, o vovô, as pessoas também que nos receberam foram bem escolhidas, eles adotaram e trataram como se fosse filho, eles sabiam por que eles estavam adotando, sabiam a missão, o projeto. As pessoas que nos adotaram abraçaram a ideia então eles fizeram tudo, as famílias que nos receberam. Hoje a gente se considera como segunda família. Então aí teve muita quebra, eu sofri muito, aí a gente matava saudade quando a gente ia nas férias escolares. Então nós chegávamos lá também a gente entrava no ensinamento assim do xavante intensivo, pra não perder a linha, pra não perder o conhecimento que a gente ia aqui, quando a gente retornava nas férias a gente também fazia essa atividade. Mas foi muito difícil, não foi fácil, não.

P/1 – Como é que foi a preparação assim, Cipassé? O que você lembra assim, qual foi a preparação pra sair da sua aldeia? Como é que você foi até Ribeirão Preto?

R – Mas na verdade eu lembro assim, na verdade oito anos você não sabe de nada porque você está uma criança ainda, você está brincando de repente você sai numa aldeia não sabe por que, entendeu? Uma coisa que eu... Eu lembro isso, sempre falo, que o meu pai me chamou, o vovô explicou: “Você está indo pra cidade longe daqui, você está indo é pro bem do povo daqui futuramente daqui 20, 30 anos. Eu sei que você vai sofrer, mas é obrigado, a sua mãe e o seu pai eu já conversei com eles. Já entende o que eu estou falando pra você, você está indo você não pode chorar, você tem que entender”. Falou muita coisa, eu recebi muita recomendação, muita orientação, muito conselho, né? Então eu saí assim chorando porque é um corte total, uma ruptura, você está cortando não só a sua família, a sua aldeia, tudo e indo pra outro mundo, outro mundo desconhecido, outra cultura, aí você começa tudo a adaptar de novo e tentar. Então foi muito difícil, mas graças a Deus que a gente conseguiu chegar, voltamos, estamos aí fazendo um trabalho, mas que sacrificou dois lados foi, pra nós, pra nossa família.

P/1 – Como é que vocês foram até Ribeirão?

R – Eu fui assim, eu fui o último a sair inclusive, eu e o meu primo, porque eu sou um dos caçulas, os outros já eram grandes aí meu avô estava esperando eu crescer até completar oito anos. Perto da aldeia tinha uma fazenda, o vovô não sabia falar português, mas todo mundo o conhecia, foi lá no gerente, falou assim: “Eu quero ir amanhã”. Essas fazendas aí o gerente parece que é de Ribeirão Preto ou de Goiânia, não sei. Só sei que o vovô foi lá, conversou com o gerente e tal, ele sabia que dia que o dono ia chegar lá, pediu lá pro gerente, o gerente falou com um rádio lá, antigamente tinha esses rádios amadores, aí falou: “Ok. Estou indo amanhã, tal, dou carona pra eles em Goiânia”. Aí no outro dia cedo acordamos, fomos a pé na fazenda, a hora que a gente tinha chegado era quase meio dia, aí comeram lá, comemos, depois do almoço saímos de lá, viemos até Goiânia. Em Goiânia meu pai nos trouxe até Ribeirão Preto, entendeu? Então é isso que eu lembro.

P/1 – De carro vocês foram?

R – Não. Saímos de lá de avião. Chegamos em Goiânia, de Goiânia viemos de ônibus. Essa é a imagem que eu me lembro de como que eu saí.

P/1 – Você falava português já, Cipassé?

R – Nada. Nada. Falava só xavante.

P/1 – Não falava nada de português?

R – Nada.

P/1 – E quais são as primeiras lembranças assim da chegada em Ribeirão Preto, do contato com a família, da língua?

R – Não. O cara que ajudou a articular tudo isso ele sabia falar xavante, ele fez reunião com toda a família, explicou o projeto, as ideias, aí ele fez tipo um dicionário básico, tipo arroz, água, mamãe é não sei o que. Ele fez um dicionário básico e a partir daí as pessoas onde eu fiquei, a minha mãe, falava essas coisas básicas. Eu me comunicava assim, por gesto e tal. Aí fui aprendendo a falar com os meninos da rua também, vizinho, tal, desenho, o pessoal passava aí eu fui aprendendo.

P/1 – Como é que era a família que te recebeu em Ribeirão Preto?

R – A preocupação deles é também assim, é um choque você receber, não é da família, com cultura diferente, o que ele come e tal. Mas eu achei interessante, todos eles, inclusive a Estratégia Xavante fala isso, se vocês puderem ver, então uma coisa que eles se preocupavam assim como cuidar isso, eles, pra não ter o choque, pra não criar problema também, grilo na cabeça e tal. Mas todos eles a preocupação é isso, é adotar como se você fosse filho mesmo. E aí cada um se adaptou a cada um, fez o que devia fazer.

P/1 – Tinha outras crianças na casa?

R – Tinha. Tinha muita. Cada um tinha dois, três.

P/1 – Mas vocês foram morar em casas separadas?

R – Separada, mas todo fim de semana a gente se encontrava. Tudo era bem coordenado assim, as pessoas foram bem selecionadas.

P/1 – E onde você foi estudar? Onde você foi estudar? Como é que era a escola?

R – Então, primeiro fui alfabetizado em Ribeirão Preto, entendeu?

P/1 – Numa escola normal?

R – Era escola normal. Era um choque, eu ficava com medo, vergonha, então era muita gente em cima. É meio complicado.

P/1 – É muito novo, né?

R – É muito novo. É a mesma coisa de você ir pros Estados Unidos, Tereza, né? De repente está lá, não sabe falar inglês e tal, você fica meio perdido. Você ir pra um mundo desconhecido, numa cultura diferente, uma língua, é totalmente diferente. É um choque cultural mesmo. Mas foi bom.

P/1 – Tem alguma história que tenha te marcado nesse período quando você foi...

R – Tem. Eu sempre falo inclusive nos trajetos falo assim, tinha uma menina, depois que eu conheci a molecada da rua, todo mundo, jogavam bete, não sei o que lá, e tinha uma menina lá, o nome dela eu acho que é Tereza, tá? E essa Tereza gostava de vir brincar no meio dos meninos e eu era fortão, entendeu? E os meninos já a conheciam, que enfrentava os meninos, brigava mesmo e na cultura da gente, a gente não bate nas meninas. Aí a Tereza não sei o que deu nela, queria brigar, aí deu desentendimento com ela, aí me bateu, bateu, eu fiquei na minha. Aí os meninos: “Ué, você não bateu?”. Minha mãe de criação lá falou: “Cipassé apanhou da menina.” “Uai, bater na menina...” “Você tem que bater nela, essa menina é assim, assado.” “Então está bom. Na próxima eu bato nela”. Aí eu não sei o que deu na segunda vez, aí eu bati. Então isso que me marcou aí, Tereza?

P/1 – Revidou.

R – Então é assim, isso que me marcou, o resto foi mais legal, isso é que eu sempre guardei, brigar com uma menina.

P/1 – Quando tempo você ficou morando com essa família, Cipassé?

R – Ah, foi 76 até 79.

P/1 – Três anos então. Aí depois você foi embora por quê?

R – Aí voltei pra aldeia, fiquei uns dois anos, três anos. Depois tinha uma bolsa na Funai, aí consegui a bolsa na Funai, comecei a estudar em Cuiabá no colégio interno em 80, aí eu voltei 81, pra baixo fiquei dois anos, 82. Depois transferi a bolsa lá pra Goiânia, 83. Ficou assim em Goiânia aí depois voltei pra aldeia.

P/1 – E eram colégios internos? Em Goiânia era colégio interno?

R – Não. Era colégio interno não. Em Cuiabá colégio interno.

P/1 – E como é que foi essa experiência em Cuiabá, essa mudança?

R – Em Cuiabá é o seguinte, todo colégio interno é meio complicado também porque tem as meninas, tem a casa dos meninos. Então colégio interno é mais pras pessoas, os alunos terem mais responsabilidade. Então foi isso aí, foi um grupo de indígenas, eram 17 indígenas xavantes misturados com bororo. Foi muito bom, foi muito bom porque lá que eu aprendi a lavar roupa, cozinhar, a gente aprende tudo, igual no Exército, né? Então foi uma experiência boa o colégio interno, muito boa. Mexia com a horta, essas coisas aí. Muito bom.

P/1 – Aí você tava com quantos anos?

R – Eu já tava com acho que 12, 13 anos, uma coisa assim. 13, 12, 14 anos, uma coisa assim.

P/1 – E depois você saiu e foi pra Goiânia?

R – Aí de lá eu fui pra Barra, fiquei dois anos, em 83 eu fui pra Goiânia.

P/1 – Como é que eram essas mudanças? Quem que decidia pra onde você ia, qual colégio?

R – Na verdade aí já comecei assim, já estava um pouco adolescente, entendeu? Aí eu que comecei a querer transferir pra Goiânia porque eu queria estudar em Goiânia. Aí eu fui pra Goiânia, de lá fui conhecer um professor que era o professor da Universidade Católica de Goiás, também eu conhecia um estudante que era de psicologia, fazia o curso de Psicologia, uma amiga também, então nessa época aí tinha um projeto que eles queriam fazer, chamava Aldeia Juvenil, que é um projeto da Universidade Católica de Goiás. Qual era o objetivo da Aldeia Juvenil? Era você criar um projeto... Quem estava fazendo era o pessoal do curso da Psicologia e aí a universidade ia dar espaço, eles tinham muito espaço na época, pra fazer uma aldeia juvenil pra recuperar os menores abandonados, os meninos de rua. Eles pegavam uns meninos de Febem, mais perigosos que todos, e nessa época o juiz do menor, o doutor Jarbas parece na época, ele entendeu o projeto, ele aderiu a ideia. Então ele mandou uns 15, os menores abandonados mais barra pesada da Febem. Aí os meninos foram morar lá e a gente foi convidado pra ser instrutor, não é mexer com os meninos, pra construir a casa do xavante, as ocas do xavante e quem está lidando eram os psicólogos, os professores, os estudantes de psicologia, da educação, assistente social e tal. E aí nós fizemos a oca lá e os meninos a gente os ajudava, explicava, fazer assim e tal. A ideia do projeto era no sentido assim de pegar toda a filosofia xavante, como eles viviam em coletividade, tinham tudo, se esse método do xavante indígena, xavante, você poderia usar esse método pra tentar recuperar os meninos de rua. Mas no início foi muito bom, depois tiveram várias mudanças, várias alterações no projeto. Hoje existe Aldeia Juvenil em Goiânia, mas com toda a mudança, a estrutura não é mais a ideia inicial, hoje tem casa de alvenaria, hoje a Aldeia Juvenil é muito reconhecida nacionalmente, luta pelos direitos dos meninos de rua. Meninos e meninas de rua parece, né? E ela foi transformada como núcleo de pesquisa pros estudantes de psicologia, pro assistente social, até pro pessoal da pedagogia.

P/1 – Você tinha contato com os jovens da Aldeia Juvenil?

R – Nós fomos como instrutor de construir a oca, com isso nós tivemos contato com os meninos.

P/1 – E teve alguém assim que tenha ficado marcado pra você? Algum jovem assim.

R – A maioria eu tive marcado comigo porque nessa época eu jogava bola muito e fazia caratê. Hoje eu faço caratê, eu estou na faixa marrom, eu ia fazer a faixa preta, mas não tirei porque é muita coisa, ano que vem se der eu pego. Então eu jogava muita bola na época e os meninos que foram lá todo mundo jogava bola, aí eu falei pros meninos, os instrutores lá, os psicólogos: “Eu acho que pra não ficar só trabalhando tem que formar um time, a gente trabalha com esses meninos, eles trabalham e tudo mais”. E os meninos gostaram. Aí formamos um time lá da aldeia pra competir no campeonato do bairro lá. E aí formamos um time, chamava o time Aldeia Juvenil e aí nós ficamos uma vez campeão nesse torneio. Aí os meninos começaram a também se familiarizarem nos bairros lá, o pessoal começou a conhecer a aldeia também, nisso os moradores do bairro ficaram com medo, né? Que era outro Febem, não sei o que, estavam indo os meninos mais perigosos do Estado de Goiás, não sei o que. Aí começamos a fazer conscientização no bairro, o pessoal começou a entender, o pessoal convidar sábado, domingo, fim de semana pra conhecer o projeto, os moradores, pra não criar esse medo. Então a única coisa que eu tenho essa lembrança é que nós formamos um time e os meninos ficaram mais legais também entre eles, entre os professores, entre os moradores. Então é isso que eu guardo de boa lembrança.

P/1 – Você jogava futebol desde pequeno?

R – É.

P/1 – Você lembra quando que você começou a gostar de futebol?

R – Acho que era oito anos.

P/1 – Quando você saiu da aldeia?

R – É. Pode ser.

P/1 – Na aldeia tinha futebol? Você jogava futebol?

R – Não muito. Antigamente não era como hoje. Tinha um pouco.

P/1 – Mas em Ribeirão Preto sim?

R – É. Ribeirão Preto sim. Jogava bola.

P/1 – E você torce pra algum time?

R – Torço. Eu torço pro time do Goiás e o Flamengo. O Flamengo eu falo assim, quando o Zico jogava, quando era o time mesmo, o Flamengo. Hoje está meio difícil.

P/1 – Eu queria saber assim quais são as suas primeiras lembranças da escola. O que você se lembra da escola?

R – Da escola é o seguinte, igual eu falei, eu tive 100% infância, eu saí com os oito anos, tive várias rupturas, estava indo pra outro mundo pra ter outra educação. Tem uma coisa que eu escolho de lembrança assim, quando fui a primeira vez pra escola e tem esse choque dos alunos, dos professores, de muita gente te olhar porque é diferente, não sei o que e tal. Então isso marcou assim como um choque cultural, entendeu? Até as pessoas acostumarem, a diretora falar com os professores, falarem com seus alunos que tem uma pessoa diferente, e a medida que foi falando isso foi o pessoal acostumando, falando. Então isso. E a primeira experiência também é a primeira vez assim de você pegar lápis pra fazer um movimento de coordenação motora, você começar a escrever, começar a ler. Na verdade assim a fase de alfabetização. Graças a Deus tive uma grande professora, até esqueci, uma grande alfabetizadora. Essa gostava, essa tinha paciência. Então graças a Deus eu tive uma grande e boa alfabetizadora. Aí eu comecei a ler, aprender a ler, aprender a escrever, então assim, mas que eu tive dificuldade eu tive.

P/1 – Você já tinha documento na época que você saiu da...

R – Não. Não tinha nada.

P/1 – Quando você fez seus documentos e quando o Paulo entrou no seu nome?

R – Aí a Funai providenciou tudo, né? Mandou fazer certidão, aí nós trouxemos já a certidão tudo pra já pensar em matricular, tirar todos os documentos.

P/1 – E foi quando fez a certidão que acrescentou o Paulo no seu nome?

R – É. Acrescentou Paulo. Paulo Cipassé Xavante.

P/1 – Quando fez seus documentos, foi isso?

R – É. Documento.

P/1 – E aí, Cipassé, quando você começou a ficar um pouco mais velho que mudou várias vezes de escola, tal, além de estudar que outras coisas você fazia assim além da escola?

R – Aí tem que ver assim, eu comecei, igual eu falei pra você, de Ribeirão eu voltei pra aldeia, da aldeia eu fui pra Cuiabá fiquei um ano, de Cuiabá eu fiquei dois anos na Barra, da Barra fui transferir a bolsa pra Goiânia. De Goiânia que começa a entrar no movimento indígena, entendeu?

P/1 – Como é que foi essa aproximação?

R – Eu já tinha mais ou menos já uns 17, 18 anos. Eu me envolvi porque eu já tinha essa tendência, porque povoou, tudo mais, eu saí para estudar, estar entrando isso. O primeiro contato que eu tive sobre o movimento indígena com a folha que o Cimi fazia, chama Porantim, Jornal Porantim, inclusive eu tinha ganhado a assinatura de uma enfermeira, uma amiga.

P/1 – O que é isso? Desculpa, eu não entendi.

R – Jornal Porantim que o Cimi fazia, inclusive até hoje tem esse jornal, informativo, folhetim. Aí comecei a ler, comecei a entender, comecei a entrar no movimento indígena, ler, entender e nessa época eu já estava fazendo o ensino fundamental, já estava na sexta, quinta, sexta série e aí comecei já a entrar pessoalmente no movimento indígena, entendeu? Entrar com algum contato com alguma liderança que aqui eu entrei em contato com o Airton Krenak porque ele estava aqui, o Raoni. Aí comecei a participar dos encontros que as lideranças faziam na cidade de Goiânia, Brasília, Rio, São Paulo. Então eu comecei já a entrar no movimento indígena, entendeu? Já comecei a conhecer algumas lideranças. Então aí já comecei a entrar no movimento mesmo e a partir daí, conhecendo algumas lideranças, entrando no movimento indígena, aí já comecei realmente a entrar assim pra valer no movimento indígena. Aí já comecei a participar, a organizar as reuniões no Brasil, já comecei viajar fora, representar o movimento indígena, representar o povo indígena. Então já viajei pro Japão, pros Estados Unidos, pra Alemanha, pra essas conferências internacionais, entendeu? E a partir daí começamos já também a conversar com o governo aqui fora, com o pessoal do Banco Mundial, com o pessoal do FMI. Porque na época os anos 80, até hoje, tinha um projeto que o Banco Mundial bancava muito na Amazônia, principalmente as usinas, até hoje, antes era a Balbina. E aí tinham outros projetos que o pessoal de fora, principalmente o Banco Mundial e o FMI apoiavam, negócio de mineração. Então a gente sempre ia nessa reunião, o FMI fazia nesses lugares e tinha uma reunião das ONGs, Organizações Não Governamentais, promovia isso paralelo. Então a gente ia falar por que não pode fazer esses projetos malucos. Então hoje graças ao movimento indígena também que tem muito, eu falo assim, que tem muita contribuição pro Brasil também. Quando a gente falava assim que era importante preservar não era só pra bem-estar da comunidade, do povo indígena, era bem-estar do povo brasileiro com o Brasil. Então hoje a gente vê isso agora, tantas usinas, tantos projetos tipo Belo Monte, tipo esse negócio que tem aí e na época a gente falava muito isso, esse negócio aí não vai ter 50, cem anos, a gente dava 40, 50 anos. Então que a gente previa as coisas que estão acontecendo agora. Então durante o que eu fiquei em Goiânia eu participei muito. Aí depois disso já comecei a fazer os projetos pra aldeia, chama assim Projeto Jaburu, é um projeto de sobrevivência do povo xavante pra não perder de caçar, também o nosso território ainda era... Era não, é ainda rico em fauna e flora, em torno hoje tem muitas fazendas que mexem com lavoura de soja, pecuária e tal, então era uma preocupação como lidar, como cuidar o nosso território pra continuar, o xavante continuar ser o caçador, comendo carne e caça e pescando. E o Rio das Mortes faz o limite com as nossas reservas que cai Tocantins, que cai um Araguaia, que cai Rio Amazonas. E também tem projeto usina, tem a hidrovia que nós impedimos, mas os caras estão querendo reativar de novo. Então com esse projeto aí a gente também tentou mostrar pro governo nível estadual, federal e municipal, tentou influenciar com esse projeto a política pública, entendeu? Então hoje, durante esse tempo todo foi fazendo esse trabalho com outras demais lideranças. Então hoje tem muito projeto que as lideranças estão fazendo por esse pioneirismo que a gente fez.

P/1 – Cipassé, nessa época em Goiânia você estava ligado a alguma ONG?

R – Então, é isso aí, eu fazia parte do movimento indígena, da UNI, entendeu? Quando eu resolvi fazer o projeto na aldeia aí nós criamos a nossa associação, chama Associação Pimentel Barbosa, que foi a primeira associação dos xavantes, foi criada antes da Constituição, antes de 88. Depois que nós garantimos que a organização indígena nível tradicional e reconhecido, também não nível tradicional que é UNI tem reconhecido, mas nosso já tava registrado. Depois disso tiveram várias criações a organização indígena na época.

P/1 – E dessas viagens que você falou que fez explicando um pouco sobre a cultura indígena...

R – E meio ambiente também.

P/1 – E meio ambiente. Teve alguma situação assim mais marcante, uma viagem que você lembre mais?

R – Uai, eu vou falar aqui, você não fala, só pra você, eu falo pros amigos assim. Você quer saber? São coisas que eu guardo, sim, com muito carinho, o movimento indígena contribuiu muito também na derrubada do muro de Berlim, entendeu? Foi na época que o parlamento alemão era composto pelos partidos verdes. Na época o meio ambiente, nos anos 80, estava no auge. Todo o parlamento alemão tinha muitos deputados, tudo era verde, tudo era o partido eleito e o chanceler alemão, Hemult Kohl parece, o nome do chanceler alemão, ele era simpatizante do partido verde, ambiental. O que o partido verde fez? Na época o Kohl já tinha feito, o FMI já tinha feito, aí nós fomos nessa época, o professor Lutzenberg e outros demais intelectuais

no Brasil foram convidados para uma reunião paralela que as ONGs da Alemanha estava fazendo. Aí o movimento indígena foi convidado, os demais movimentos sociais tipo o pessoal de seringueira, na época era o Chico Mendes, Chico Mendes na época estava ameaçado de morte, ele não foi, quem foi, foi o vice dele, o Raimundo. O pessoal dos sem terra, do MST também foi, o pessoal do Pará. Então na verdade nos fomos em três movimentos sociais, indígenas, os seringueiros e os sem terra, entendeu? Fomos nessa reunião, FMI, paralela, aí nós encontramos os demais também ambientalistas, um deles o professor Lutzenberg e aí a partir daí começamos a conversar com os deputados, o partido eleito, e dentro desse assunto também nós conversamos com outras organizações da Alemanha e na época eles estavam também querendo mexer o negócio do muro. Nós aproveitamos também a situação que era importante, na época também o yanomâmi estava lutando pela demarcação dele, yanomâmi. Aí foi juntando a esse movimento, a essa ideia e a partir daí nós falamos também que o muro naquela época não era necessidade existir. Se é uma Alemanha que a guerra tinha acabada, apesar de entre aspas, mas tinha Guerra Fria mais silenciosa, e o muro já tinha quase 40 anos, dividir o muro assim onde criou uma Alemanha Oriental, Alemanha Ocidental não tinha necessidade. Então o povo alemão deveria também encarar esse problema deles. A partir daí também nós desencadeamos esse pensamento pro povo alemão, a partir daí eles começaram a se organizar dentro da Alemanha. Começaram a se organizar e foi em 88, e o muro caiu em 89. Quando nós voltamos, quer dizer, quando 88 acabou e nós víamos a notícia foi a maior alegria a nossa contribuição, entendeu? É isso que eu guardo com o maior carinho. Então o movimento indígena contribuiu também a mudança história, resgate de um povo que ficou 40 anos dividido. Então é isso que eu guardo com o maior carinho dentro dessa minha andança.

P/1 – Cipassé, nesse tempo todo assim depois que você deixou a família em Ribeirão, como é que você fazia com as questões de sobrevivência assim, alimentação, vestimenta? Tinha uma espécie de bolsa, em questão de dinheiro mesmo de sobrevivência. Como é que você fazia pra sobreviver quando você não estava na aldeia?

R – Você fala em Ribeirão?

P/1 – Em Ribeirão e depois também em Goiânia, em Cuiabá.

R – Ah, não. Em Goiânia eu mexia com projeto aí tinha um salário, tipo um salário mesmo. Você faz o projeto, você acerta aqui, né? Então é mais ou menos isso. Com a viagem aí eu comecei a conhecer gente, conhecer organização forte tipo WWF, Ford, esse povo que está aí. Então é assim, então a gente já conhecia.

P/1 – E em Goiânia foi o primeiro trabalho assim remunerado que você teve, que ganhou dinheiro?

R – Não, remunerado foi no Aldeia Juvenil. Primeiro trabalho remunerado como instrutor de fazer oca num projeto que chamava Aldeia Juvenil, um projeto da Universidade Católica de Goiás. Aí segunda foi nesses projetos.

P/1 – E aí você lembra no Aldeia Juvenil como é que você gastou os primeiros salários que você ganhou? Você comprou alguma coisa que você queria?

R – Não. Mais é negócio de roupa mesmo, né? Roupa mesmo.

P/1 – O primeiro salário assim você lembra como você gastou?

R – É roupa, cinema. Tudo era novo, né? Livros, cinema, livro, eu gosto de ler.

P/1 – Você lembra a primeira vez que você foi ao cinema?

R – Lembro.

P/1 – Como é que foi? O que você foi assistir? Qual que era o cinema?

R – O primeiro cinema que eu vi mesmo que me influenciou, por isso que eu faço caratê, que foi na Barra, foi o filme do Bruce Lee, filme do Shaolin. Isso que me influenciou a fazer caratê hoje.

P/1 – Como é que foi a experiência assim?

R – Foi bom demais. Queria ser Bruce Lee. Depois entendi o que o cara era, o cara era um grande mestre, o negócio dele não era dar porrada, o cara era zen. Então é isso.

P/1 – Quantos anos você tinha, Cipassé?

R – Ah, tinha acho que uns 13, 14 anos.

P/1 – Foi a primeira vez que você foi ao cinema. Aí eu queria saber assim nessas voltas na aldeia, porque o tempo todo você saía, mas retornava na aldeia, né?

R – É. Eu fazia isso.

P/1 – Como é que era a experiência assim com a cultura xavante? De ter essa experiência de sair, ter contato com outra cultura, branca, e a relação com a sua cultura, com os rituais xavantes.

R – Tereza, na verdade eu vejo assim, juntando tudo isso aí na verdade eu entendo dois mundos, né? Foram 46 anos, entendo perfeitamente a cultura, entendo perfeitamente a cultura não índia. Então na verdade eu transito as duas culturas, no meu e fora, e que faz esse trabalho. Então na verdade o pensamento do vovô, a visão dele futurista acho que deu certo e queria fazer isso que estamos fazendo.

P/1 – E dos rituais xavantes assim teve alguma experiência que tenha sido mais forte pra você na sua formação?

R – Tem.

P/1 – E você poderia contar pra gente?

R – Essa que a Rosa te falou eu tenho. Passando o wai´a porque o outro demora muito pros meninos, foi o Darini, a parte espiritual que a gente sofre muito, não pode beber água, o calor. Nesse dia eu sofri.

P/1 – Como é que é o Darini? Qual que é momento?

R – Darini você tem que ficar sem beber água o dia inteiro, não pode nem comer, é uma dieta nossa. Então os guardas ficam olhando você, não pode beber, não pode nada. Esse dia eu sofri.

P/1 – É um dia inteiro sem comer?

R – É. Um mês todo. Tem que ficar de dieta assim, isso aí foi marcante.

P/1 – Um mês?

R – É. Direto. À noite a gente descansa, você acorda cedo começando a fazer o ritual direto, direto. Só descansa à noite, mas acorda cedo, os guardas nos acordam cedo pra fazer o ritual. Então é isso que marcou.

P/1 – E o que é o ritual Darini assim?

R – Na verdade assim, no Darini é uma transmissão de conhecimento parte espiritual, então são os iniciantes e tem os que estão deixando o maracá, na verdade até 2017, 20, eu e o Caimi vamos deixar o maracá. Significa, deixando o maracá você vai fazer só a parte de conselho. Não vai fazer parte mais não, não, só o conselho, dando conselho e tal. 2018, 2020 estamos deixando. E quando acontece Darini tipo 16, 18 anos, cada ano até esperam os meninos crescerem, então quando eu entrei eu estava entrando como iniciante, que nessa hora que a gente sofre, tem outra categoria também que é o usuário, também sofre, quem está pegando o maracá nem tanto, porque está pegando. Então são três categorias quando acontece isso, vai trocando. Então o objetivo dela é pra você fortalecer o seu espírito, ao mesmo tempo você entender como que funciona no mundo espiritual de começar a interpretar o sonho. Porque o povo xavante na verdade é o dono do sonho, povo do sonho, e ao mesmo tempo ele interpreta o sonho. Nessa parte do Darini a gente trabalha isso, recebemos esse conhecimento, porque o sonho, ritual, tudo, está ligado nos animais, por isso que o povo xavante é caçador também, entendeu? Vou falar pra Rosa presentear vocês o Darini pra vocês verem, muito bonito, interessante. Então é assim.

P/1 – Você passa pelo Darini mais de uma vez na vida?

R – Não. Só uma vez.

P/1 – Só uma vez?

R – Só uma vez.

P/1 – Quantos anos você tinha?

R – Acho que eu tinha acho que 17, 16, 17 anos. Só uma vez.

P/1 – E como é que é essa ligação com o sonho, Cipassé? Vocês têm... Qual que é a ligação do povo xavante com o sonho?

R – Dentro disso aí cada pessoa te ensina. Tem um cara que é o dono das ervas, você recebe todo o conhecimento, tem uma pessoa que tem negócio de fazer a leitura da natureza, da chuva, tudo, tudo, tudo. E tem um cara pro sonho também. Então nós recebemos todo o ensinamento dentro desse ritual. Tem as coisas que aí não pode falar, as mulheres não podem saber, é segredo. Se eu contar tudo não vai ter segredo, né? Então é isso. É um banho espiritual.

P/1 – E aí depois que você termina... Quando você começa a participar dos movimentos você volta a viver na aldeia?

R – Pois é, então, pois eu já falei que eu transito nos mundos, então voltando a isso eu a minha volta começo assim a ajudar a aldeia, em que sentido? Reivindicar ter a boa escola, saúde, criar organização, fazer os projetos, fazer parceria igual a Nossa Tribo e outras organizações que a gente tem parceria, com as universidades. Na verdade você pega todo o seu conhecimento, começa a trabalhar em parceria, entendeu? Inclusive também dá palestra, falar não só cultura do meio ambiente, outras coisas igual a gente está aqui. E começa também criando novas lideranças, tipo o Caimi que é uma nova geração, aí vem outra nova geração, então é assim.

P/1 – Quantas pessoas são na sua aldeia?

R – Na terra indígena tem nove aldeias. Na terra indígena dos nove tem quase dois mil. Da minha aldeia Wederã tem cem pessoas, fala os demais das aldeias, mas somando as nove aldeias dá dois mil xavantes que moram na terra de Pimentel lá. Somando das quase terras indígenas xavantes vai dar 17 mil xavantes, só no Estado do Mato Grosso.

P/1 – E qual que é a função que você ocupa na sua aldeia, Cipassé?

R – Na verdade eu era cacique, recebi o convite, essa nova estrutura que a Funai pensou em implantar, recebi o convite, aceitei quatro anos, onde que eu já estou pensando voltar pra aldeia, estou vivendo quatro anos, acho que eu estou perdendo tempo, a comunidade perdendo tempo. Eu recebi, aceitei esse convite por questão política no sentido assim de que pensei que ia ajudar, o pessoal me convidou por causa de ter um currículo muito bom, trabalhei numa organização, tenho experiência e tudo mais. Na verdade quatro anos só fiquei...

P/1 – O que é essa função na Funai?

R – Eu sou o chefe.

P/1 – Na Funai?

R – Sou assim. Quatro anos, então... Então quatro anos eu vejo aldeia toda assim, o movimento que eu vejo aqui no Brasil e está muito difícil. Então a gente que tem experiência tem que voltar pra gente trabalhar com a comunidade, com as lideranças, com os jovens, tanto que eu to fazendo isso.

P/1 – E como é que você se torna cacique, Cipassé? Como é que é isso?

R – Porque na verdade minha família já é tradicional, a linha é sagrada, antiga e tal. Como nossa família é grande ela é hereditária, entendeu? Então assim, na aldeia são todos família.

P/1 – Então seu pai foi cacique também?

R – Meu pai foi cacique. A família é grande. Então assim, todas as pessoas que saíram dos nove, dos oito, tudo é cacique. O que não é fora do parente também é grande.

P/1 – É o filho mais velho que assume o lugar do pai?

R – Tem o mais velho, às vezes se não é o mais velho pode ser o sobrinho mais próximo primeiro grau. Tem que ter qualidade também pra ser cacique, né? Tem umas qualidades.

P/1 – Que é o que, por exemplo?

R – Ser bom orador, ser diplomático, ser generoso, ter espírito de liderança, saber ouvir, tudo isso. Então é isso. Então são essas qualidades.

P/1 – E quem que toma essa decisão?

R – São conselhos da família mesmo, mais velho, tio, pai, tudo. Eles olham tudo essas qualidades.

P/1 – E você falou pra mim lá fora que você é professor, né? Quando você se tornou professor?

R – Sou. Porque eu tenho curso de magistério. Além de ter terminado o curso de gestão ambiental tenho o curso de magistério, minha formação. Eu fiz curso de gestão ambiental porque eu trabalhei 23 anos numa organização. 23 anos viajando aqui no Brasil ou fora.

P/1 – Qual organização?

R – Na minha organização, Associação Xavante Pimentel Barbosa. Hoje tem uma nova organização, chama Associação Aliança dos Povos do Roncador. Então durante 23 anos é uma coisa que eu sei muito bem, então é por isso que eu fiz gestão ambiental pra lidar com esses projetos que estão aí meio malucos.

P/1 – E a sua atuação como professor é na aldeia mesmo?

R – É porque eu já fui como professor, já lecionei, já fui diretor da minha aldeia dois anos, dei aula também dois anos.

P/1 – E aí você lecionava tudo? Todas as...

R – É. Eu lecionava português, geografia e ciências sociais na área de saúde. Aí tem outro professor que dá aula de matemática. Como diretor trabalhei mais na parte administrativa, daí na minha gestão a gente conseguiu, graças a Deus, ter uma estrutura boa na escola. Então assim, então eu fui como diretor e como professor.

P/1 – Você me disse também que você é casado, né? Queria que você contasse como é que você conheceu a sua esposa.

R – É uma história longa, também nesse trajeto fala isso, eu vou resumir. Na verdade é o seguinte, o xavante mais o karajá foram inimigos muito tempo. O xavante lutou com várias etnias, com caiapó, com karajá, com javaé, com bororo, quando ele foi descendo até ele chegar no Mato Grosso. E a Severiá na época ela estudava, uma índia karajá que foi criada pelo não índio e na época ela fazia Letras e também na época ela estava entrando no movimento indígena. Então na verdade a gente se conheceu no movimento indígena, no encontro. Eu tinha na época 19 anos, ela tinha 25 anos, tinha cinco, seis anos mais velha que eu, e aí nos conhecemos, namoramos, casamos. Temos uma filha, a Clara.

P/1 – Como é que foi o casamento de vocês?

R – Fizemos dois lugares, um casamento civil e religioso porque a família de criação dela, mãe de criação teve educação de freira e o marido dela os dois são católicos, e aí eu falei assim: “O problema não é nem casar, se for assim nós vamos casar isso, vamos casar na aldeia também tradicional”. Aí nós fizemos, então foi documentado tanto na cidade, tanto na aldeia, aí eles foram também acompanhar lá.

P/1 – E como é que é o casamento na aldeia?

R – Na aldeia é o seguinte, na aldeia pra pessoa casar ele tem que sair da aldeia pra ir pro mato, caçar, talvez leva uma semana, duas semanas dependendo da caçada, aí traz a caça, faz uma cesta grande, coloca as carnes nessa cesta grande, aí mede uma distância tipo 50 metros... Não. 50 metros não. 30. 30 ou 40 metros. Aí coloca e a pessoa ainda tem que dar conta de levar essa cesta grande na casa da noiva. Encerrou a parte da parte do homem, a tarde o padrinho do casamento vai lá na casa da moça, pinta a moça toda de vermelho, aí sai, coloca uma esteira em frente da casa dela, a moça sai, senta, ajoelha, aí vem do outro clã uma pessoa pra tirar o enfeite dela. É um casamento simples que dura mais ou menos uns cinco, uns dez minutos. Aí duas pessoas já estão casadas. Então nós fizemos isso, todo o ritual.

P/1 – E aí vocês foram morar onde?

R – Morar na aldeia. Aí já pensamos em mudar pra aldeia, fui pra aldeia.

P/1 – E aí é uma casa só de vocês assim?

R – É. Na casa de vocês na oca.

P/1 – E aí como é que foi, você falou que tem uma filha, Clara, é isso?

R – É Clara.

P/1 – E a gravidez da Clara? Quando é que veio? Como é que vocês ficaram sabendo da notícia?

R – Na verdade é o seguinte, eu já falei pra Severiá assim: “A gente tem que morar na aldeia”. Aí a mãe dela sempre sonhou que ela queria que casasse com índio mesmo, servia qualquer etnia. Na parte da Severiá o povo dela não gostou porque era inimigo, não sei o que, alguns, né? Tudo bem. Casamos, aí mudamos pra aldeia, fizemos a oca lá, tal, e aí o pessoal teve muita cobrança assim para ter filho, a gente priorizou muito o trabalho, a gente teve uma depois de oito anos, a Clara. A gente viajou muito nessa época também, fora aqui, aí depois resolvemos ter a Clara. Aí quando a Clara também veio nós paramos, diminuímos de viajar. Aí ficamos cuidando mais dela.

P/1 – Você acompanhou o parto da Clara, Cipassé? Você acompanhou o parto? É um hábito acompanhar o parto?

R – Ela tentou fazer na aldeia, aí dá problema, resolveu fazer no hospital, mesmo assim deu muito difícil o parto, aí o médico queria fazer a cesárea: “Não, vamos tentar na última”. E aí conseguimos fazer o parto normal, aí os caras queriam cortar. Porque a cesárea também os médicos querem mais ganhar, tem isso que os caras fazem, como a gente vê muito, conhece. “Vamos até o último, caso contrário já estamos no hospital, a gente fica por aqui”. Aí graças a Deus teve o parto normal.

P/1 – Você acompanhou tudo?

R – Acompanhei.

P/1 – E aí como é que foi a sensação de ver...

R – Foi muito bom, depois de oito anos, muito bom. E a Clara também cresceu viajando também e tal. Uma menina inteligente ela.

P/1 – Com quantos anos ela tá agora?

R – 17 anos.

P/1 – Tá moça já.

R – Tá moça. E ela quer fazer cinema. Ela mexe com vídeo.

P/1 – Aí ela mora com vocês ainda na aldeia?

R – Mora. Morou muito tempo, foi alfabetizada, a mãe dela a alfabetizou, então assim viveu lá. Ela fala duas línguas, português e xavante, inglês, porque a mãe dela fez letras, ela fala inglês. Por causa da mulher ela falou assim: “Quero fazer no Canadá”.

P/1 – Conta um pouco pra gente então quais são as questões principais do povo xavante hoje. Como é que são as condições na sua aldeia? Qual que é o seu trabalho hoje? O que você tá reivindicando ou buscando?

R – Na verdade é assim, Tereza, igual eu falei, hoje mesmo eu estou na Funai, entendeu? Na Funai deu quatro anos, já vi, então agora eu estou vendo a necessidade de voltar pra aldeia. Voltar. Voltar em que sentido? Voltar pra gente se organizar como povo, como aldeia, como organização em termos de associação e os projetos, entendeu? A minha saída da aldeia vamos dizer assim enfraqueceu não só minha aldeia, mas como todo o território como liderança assim de outras lideranças de outras aldeias. Então primeiro eu pretendo voltar nesse sentido e os nossos problemas dos xavantes na época antes era aquele problema lá do Marãiwatséde lá do Damião. Então graças a Deus o ano passado a Justiça já resolveu, tiraram isso.

P/1 – Conta um pouco aqui pra gente o que é pra gente deixar registrado.

R – Na verdade assim, o xavante na época da ditadura que é outro grupo, igual eu falei pra você, o xavante já conhecia, ele já era da floresta, foi descendo e tal, a gente atravessou o Mato Grosso, não somos do cerrado, nós somos da floresta, e nós tentamos... Tentamos não. Nós conseguimos nos adaptar no cerrado então na época da ditadura nos anos 60 um grupo do xavante foi retirado desse lugar, chama Marãiwatséde. Marãiwatséde significa em português assim matas fechadas ou mata ruim. Marãiwatséde. E tinha um grupo de xavante, 200, 300 xavantes moravam lá. Na época da ditadura o governo cedeu, não sei como fez, a igreja comprou lá na verdade, a igreja mesmo assim, o vaticano e tal, uma área muito grande. Na época o SPI, não era Funai, SPI, era feito toda a papelada para tirar os xavantes de lá, todos eles, pra ir pra outra missão. Aí na época tinha doença catapora, não sei o que, e morreram muitos xavantes. Aí conseguiram tirar com a FAB, ajuda do governo também, e aí o pessoal da igreja se apropriou desse lugar. Ficou muito tempo até o início dos anos 80, no finalzinho, nos anos 90 vamos dizer assim, antes, época de 92, a igreja conseguiu vender para uma empresa italiana, chama um negócio, não sei o nome da empresa lá. A empresa comprou lá e a igreja lavou a mão, livrou-se e passou o problema pra empresa italiana. Aí a empresa italiana não podia fugir e tal e viu, o que ela fez? Ela doou não sei quantos hectares pro xavante reconhecendo isso e também assim, doou, deixou assim pro governo resolver, também lavou as mãos. Aí ficou o pepino pro governo. E sabendo ali o pessoal da região, o pessoal sem terra, os fazendeiros, os caras que grilam viram essa notícia e começaram a grilar, começaram a vender os títulos falsos pros caras, falando pros caras morarem lá e tem uns que invadiram. Aí montaram as fazendas, criaram uma vila lá, não sei o nome da vila lá, e o lugar foi ocupado. O xavante, nossa aldeia nós... Eles andaram vários lugares na terra indígena, esse grupo de xavante, o sonho deles é voltar lá. Aí a última vez nós os recebemos, demos um espaço pra eles ficarem e com uma área perto, nossa aldeia mais longe de todas, chegamos mais perto, aí como era perto eles iam todas as férias em julho, ia lá à aldeia, rezar, fazer tudo. Aí os caras começaram: “Os caras vão voltar, não sei o que”. Aí os caras, os caras políticos da região do Mato Grosso tentaram fazer tudo no cartório, tentaram comprar o juiz e tal. Aí alguns funcionários da Funai que eram simpatizantes, que trabalham lá começaram: “Tá na hora realmente de retomar”. Aí um grupo de antropólogo, os caras que são agrimensores criaram um grupo e foram lá, apesar de medo, mas mesmo assim foram com o xavante lá. Aí andaram, viram o estilo da aldeia antiga, o cemitério os caras já tinham arado, mas mesmo assim tiraram foto e a partir daí começou o processo de criar a reserva pra eles lá. Fizeram o laudo antropológico, tudo, mato, tudo, aí deram entrada. Aí começou a briga judicial entre os fazendeiros, os posseiros. A Funai começou a brigar na Justiça também reconhecendo e o pessoal tinha muita imagem, tinha muito documento na época desse perito, tinha tudo, juntou tudo isso e comprovou. Mesmo assim os caras contestando que não era. No final aí teve a ECO-92 o pessoal conseguiu pressionar, esse Rio+20 foi mais um motivo, aí montaram um grupo xavante, foram lá, Rio+20, o próprio cacique foi lá conversar com o governo, conversar com os demais lá e a partir daí começou o processo de devolver. Então é isso que foi uma coisa assim do xavante pra dizer que o xavante agora cada um está na sua origem. Quando o vovô fez contar ele falou assim: “Todo mundo agora já sabe, fez contar, cada um tem que garantir o seu espaço, entendeu? Se vocês quiserem fundar”. E foi nessa época que o pessoal voltou a origem deles e a partir daí também ele pensou: “Futuramente eu tenho que mandar meus netos, eu não sei qual o futuro após o contato”. E foram duas coisas que ele falou pro povo dele e outro mandar seus netos. Então hoje que eu vejo que uma das batalhas que nós conseguimos, graças a Deus, é esse retorno desses xavantes lá pra terra deles.

P/1 – Queria conversar um pouco contigo sobre o projeto com a Nossa Tribo. Como é que você conheceu a Rosa, o pessoal da Nossa Tribo? O que foi esse projeto? Como é que vocês montaram? Qual que era a proposta? Conta um pouco pra gente.

R – A Nossa Tribo é o seguinte, igual eu falei pra você, a gente já tem um trabalho de parcerias com outras organizações, até fora eu já falei, tipo WWF. Porque a gente tinha um projeto dos manejos dos queixadas, até hoje, porque a WWF trabalha com animais silvestres, de conservação também, com Ford também que mexe com capacitação de liderança, organização, a mesma coisa também. E com as organizações também aqui tipo Opan e outras demais organizações aí e as universidades. Então a gente tinha um trabalho de parceria. A Rosa a gente já a conhecia como fotógrafa na época da UNI, entendeu? Na época da UNI, do Núcleo de Cultura Indígena. Conheci a Rosa na época em que nós fizemos um encontro em Altamira, contra a usina Belo Monte, mudaram o nome, era Kararaô quando mudaram pra Belo Monte, e foi nessa época que a Rosa começou a entrar, conhecer o movimento indígena, conhecer o povo indígena e começar a querer se especializar na foto indígena, quando eu a conheci. Foi em 88 parece o encontro que teve lá. E a partir daí ela começou fazendo as fotos dela. Como a gente já conhecia, aí muita gente a convidou pra ela fazer umas fotos, registrar as festas da aldeia. Então ela foi convidada, uma vez tinha uma cerimônia muito longa, tinha furação de orelha, essa coisa toda e ela foi, registrou tudo, no início até o fim, por isso tem um acervo muito bom pros xavantes, esse que está aí, chama Raiz do Povo Xavante. E a partir daí ela criou a organização e aí ela falou pra nós, eu, pro Caimi, pra Severiá, se a gente poderia fazer a parte de diretoria. Na boa, a gente faz parte da diretoria como fundadora, tal, e vamos. Então dentro da organização a gente está aí como fundador também, como conselheiro e tal. E ela começou a fazer os projetos com outras etnias. Em relação do projeto que ela queria apresentar pro Criança Esperança, ela falou: “Cipassé, eu estou pensando o que você acha a gente trabalhar com as crianças a parte de alimentação, cuidados.” “Vamos. Na boa”. E na época a gente trabalhava também nesse Projeto Jaburu com animais silvestres, com os produtos do cerrado, entendeu? E aí eu falei: “Aqui no Wederã a gente tem uma região muito rica, tem muito fruto de cerrado, pequi, buriti, tudo. Vamos, por que não?”. Então tá. Aí ela foi lá, conversou com a comunidade, a comunidade se interessou, a comunidade concordou, além disso, também na área de saúde, o cuidado com as crianças, essa coisa toda. E aí a comunidade falou que tinha o projeto que eles queriam, tal, anotou os conteúdos. Chegou aqui, fez o projeto, ela mandou pra nós, lemos, aprovamos e aí mandou lá pro Criança Esperança aí foi aprovada. Ela pegou os profissionais, nós falamos: “Você pega os profissionais realmente que entendem, que gostam, porque não adianta você pegar qualquer profissional”. Então você tem que pegar um profissional que entende, qualquer área, seja área como enfermeira, como bióloga, como antropóloga, como médica, essas coisas pra você montar a equipe pra realmente o projeto ter êxito, ter sucesso. E ela já conhecia todo mundo e ela montou uma equipe muito boa. Ela pegou uma equipe aqui, um de Goiânia, lá meu, eu tinha indicado um cara tipo engenheiro florestal, um cara muito bom. E aí a gente tinha a nossa equipe, então aí nós fizemos uma parceria, a aldeia, nossa organização que chama Aliança dos Povos do Roncador e a Nossa Tribo. Então eu ficava na parte organizacional da aldeia, as atividades, as ações, e ela ficava com a direção da Nossa Tribo como lidar com a equipe daqui. Então por isso que facilitou isso. Então com esse projeto nós produzíamos o vídeo e cartilha, o objetivo é isso, distribuir pro xavante e também usar isso nas escolas. E também o pessoal que trabalha na saúde mesmo trabalhar na prevenção nas reuniões comunitárias. Então hoje a gente usa muito isso e foi muito bom e a gente quer reativar de novo, dar continuidade e colocar isso também pra outras aldeias.

P/1 – E qual que você acha que foi a importância e as mudanças que o projeto trouxe pra aldeia?

R – Mas mudanças é o seguinte, porque pra você fazer um trabalho dessa área tem que fazer muito encontro, um monte de conscientização. Porque não adianta você falar uma vez e não ter continuidade. Apesar de nós produzirmos dois materiais que é visual que é o vídeo, que é a cartilha, mesmo assim também o próprio nosso que foi feito a gente já tinha um trabalho, a gente continuou fazendo um trabalho, entendeu? E a gente quer fazer de novo, reativar isso, continuidade, e a gente quer colocar isso também nas outras aldeias. Igual eu falei pra você, onde que a gente pode que é até Pimentel Barbosa ainda era muito rica na parte de fauna, tem muitas frutas, tem muito bicho, essas coisas, e flora também, tem muito cerrado, tem muita fruta. Então a gente quer mostrar que também não só trabalhar com a comunidade, também envolver a escola pra produzir o material também, ensinar pras crianças a importância das árvores, da fruta, dos bichinhos, tudo, mudar um pouco.

P/1 – E durante o projeto você percebeu assim alguma mudança na alimentação ou na saúde? Teve durante o projeto?

R – Teve. A mudança que aconteceu que as mulheres são um pouco tímidas, as mulheres tiveram muito assim que aprender como cuidar das crianças em relação a alimentação, principalmente não muito a alimentação, mas principalmente como cuidar das crianças. Principalmente negócio de gripe, gripe lá quando dá, dá um surto, toda a comunidade fica gripada. O que a gente frisou muito nessa área porque tinha muita morte de criança, gripe, é uma coisa tão assim, torna-se pneumonia, torna-se uma coisa assim. Então a gente, a cartilha a gente fez com esse objetivo, como evitar isso. Então como ajudar, como criou essa coisa que ajudou muito. E o segundo é a alimentação.

P/1 – E diminuíram as mortes?

R – Diminuíram. Muito bom. Por isso que a gente quer reativar. E envolver a escola também e a escola fazer o papel dela como um espaço, como um papel dela de conscientização, trabalhar com os alunos e com a comunidade também. Então é assim, foi muito bom.

P/1 – Teve alguma história que tenha te marcado durante o projeto com o Nossa Tribo? Um episódio, uma história assim.

R – Não. Uma coisa que eu vi assim, que principalmente na área de saúde que a gente viu, que eu gosto de conversar quando a gente faz o projeto qualquer área assim, o que eu vi assim é muito carente, é a saúde e tal, a saúde assim em toda parte está ruim, por quê? Todos os profissionais se formam, principalmente os médicos e enfermeiro padrão, a maioria está em lugar errado, não sei se eles mesmos ou não sei se eles são mal distribuídos. Se você olhar no mapa do Brasil assim, não tem um médico que você pode falar até no lugar, tudo muito está concentrado assim na cidade grande. Precisa, mas nem tanto, o que precisa muito são lugares de distância, no indígena, pro indígena, você entendeu? Então o que eu conversei, o que marcou assim conversando com profissionais, os profissionais falavam: “Eu tenho vontade sim. Às vezes não sei o que, às vezes o medo”. Às vezes ele acha melhor ficar lá, o cara quer conseguir a especialização, aprofundar mais o estudo dele, pós-graduação eu não sei em que área, mestrado, doutorado, mas alguns às vezes nem pensam isso, o importante é fazer. Tem outros que gostam mesmo, vão mesmo. Então na área de saúde que eu vi principalmente os médicos, as enfermeiras, que hoje em dia não tem assim de querer um lugar de distância, as pessoas querem ficar mais perto, essa coisa toda, entendeu? Não é porque não tem médico, porque esses profissionais não querem ir pra lugar distante, está tudo concentrado aí, e aí a demanda é muita e a concorrência entre eles fica muito, não sabe lidar com isso. Agora se o médico fosse bem distribuído assim os lugares distantes que precisam, aí realmente os médicos seriam bem distribuídos, mas tudo está concentrado um só, tem um lugar, que é no centro da cidade. Os médicos não querem ir no lugar que deveriam ir. Então com isso que eu aprendi também foi conversando com os profissionais assim. E quando eu vejo notícia, não, a maioria os médicos querem também ficar mais perto, mais conforto, não sei o que. Não sei se paga melhor, não sei, mas também pra incentivar o governo deveria incentivar melhor ainda também, pra esses lugares distantes. Então é assim, é isso que eu aprendi.

P/1 – Eu vou encaminhar pro final agora, Cipassé, então faltam três perguntas finais só. Antes de eu fazer queria saber se tem alguma coisa que eu não perguntei e que você gostaria de falar. Alguma coisa que você queria deixar registrado e eu não perguntei.

R – Não. A única coisa que eu queria pergunta pra você nesse áudio assim, além disso, você poderia perguntar assim o que a gente tinha visto na saúde, o que a gente via em relação de a gente ser tradicional assim, essa coisa que a gente viu ou tá perdendo, como que é. Eu queria que você perguntasse.

P/1 – É. Como é que foi esse contato então da medicina de vocês com a medicina...

R – Tradicional.

P/1 – Tradicional. É. Como é que foi esse contato? Como é que os xavantes tratavam da doença e como é que tratam hoje?

R – Pois é. A única coisa que eu vou falar pros médicos assim é o seguinte, a pessoa pra ficar doente o ambiente tem que ser sadio, eu falar pra eles assim, eu gosto de conversar sempre. Então só chega nesse ponto quando o ambiente está tudo doente, falar pra eles assim. Por exemplo, se é território, você tem caça e tem fartura, a pessoa não fica doente, entendeu? A aldeia também não fica doente. Agora, se a pessoa não tem a fartura, essa coisa, o corpo começa a ficar doente. Então também se o conhecimento já foi esquecido aí não tem jeito de você tratar. Às vezes também a doença era mais espiritual, falando pra ele, mais espiritual, você tem que entrar no mundo do seu mundo xavante e isso também ajuda. Agora você vai entrar aí, isso aí o corpo, o espírito fica doente e aí não tem jeito de você curar. Aí você tem que realmente tomar esses remédios aí. Então eu sempre falava isso pra ele. O que eu aprendi é isso, sempre falo isso, dentro desse projeto que ajudou muito também, não podemos depender muito de remédio não indígena, a gente tem que valorizar também o nosso conhecimento, o nosso remédio, o nosso habitat, porque isso acontece porque a gente também deixa acontecer isso. E isso é uma das coisas que discutimos muito, que a gente mexeu e a gente recuperou isso também. Então hoje a gente não usa muito remédio, a gente só vai quando precisa, então é uma forma de resgate e valorização da medicina tradicional, isso que ajudou muito também nesse projeto aí.

P/1 – Você consegue dar alguns exemplos pra gente assim de como vocês tratam algumas doenças sem precisar dos remédios...

R – Na verdade assim, vamos supor, às vezes, dar um exemplo aqui, tipo gripe mesmo. A gripe ela realmente é vírus e tal, a pessoa vai e traz e tal, e se você evitar assim a pessoa está doente, fica isolada tratando, tal, negócio de remédio da aldeia, agora essa preocupação também. Agora se você não preocupar isso, começar a andar aí, aí você contamina, entendeu? Então assim não precisa usar remédio, você usa quando precisa, então essas coisas, esses detalhes pequenos de cuidar mesmo, cuidar de você, cuidar da comunidade.

P/1 – E às vezes vocês usam, no conhecimento de vocês existe a utilização de outras coisas naturais, remédios naturais e vocês fazem uso disso hoje em dia ainda?

R – Tem.

P/1 – Por exemplo, assim...

R – Vamos supor assim, a gente usa assim quando a gente está com dor de cabeça, aí tem outro remédio, erva, você faz o chá, toma. Então é assim, entendeu?

P/1 – Então vocês utilizam ainda hoje.

R – Utiliza. E o projeto também resgatou essa parte, a valorização do conhecimento. Porque ele era duas coisas, era alimentação e a saúde. Alimentação ajudou muito na comida do cerrado, porque a gente já fazia a coleta do cerrado.

P/1 – Eu vou encerrar então, fazer as três perguntas finais, a primeira eu queria que você falasse pra gente assim o que você acha que são as necessidades do povo xavante hoje assim. Que mudança, você falou que você quer sair da Funai e voltar pra sua aldeia, quais são as mudanças que você acha importante, as coisas que são importantes...

R – Na verdade assim, Tereza, uma mudança mais importante assim, o meu retorno a minha aldeia é um desafio nosso, nós como pessoa já madura, já vivida, é trabalhar com jovens. Isso aí é mais o desafio. Eu acho que vai ser o desafio pra todo mundo, pra toda a sociedade, qualquer povo. Porque hoje em dia os nossos jovens também são iguais aos jovens de vocês aqui, entendeu? Tem contato, já lida com o mundo de fora, o mundo está aí, droga, bebida, uma série de coisa, de cultura diferente. Então se a gente não trabalhar bem com os nossos jovens que são o futuro, segura a tradição, costume e tudo mais, então se a gente não trabalhar com os nossos jovens seria muito difícil você continuar com o povo xavante. Então o que eu vejo, o meu retorno que eu penso em voltar logo, é trabalhar com jovens, mostrar pra eles que a gente pra viver feliz com o povo xavante é entre o nosso mundo, não é o mundo externo. O mundo externo é um mundo desconhecido pra ele e muito perigoso. Então ele tem que conhecer o espaço dele, ele tem que entender, ele tem que valorizar a cultura dele, o mundo dele. Lá que é o mundo dele. Você pode até conhecer, mas querer se apropriar, deixar o seu mundo, seu costume, seus hábitos, tudo mais, é meio complicado. Então hoje o desafio nosso que eu penso é com os nossos jovens.

P/1 – Tá certo. Quais são seus sonhos hoje?

R – Uai, o meu sonho é que esses jovens continuem mantendo a tradição igual o vovô pensou. Então é assim, transitando os dois mundos.

P/1 – E como é que foi contar a sua história, Cipassé? O que você achou de dar a entrevista aqui hoje?

R – Achei bom porque é uma forma da gente reviver, tanta coisa que a gente já fez, uma forma de entrar um pouco nessa história, uma forma também de resgatar um pouco, a gente faz tanta coisa e até esquece. Uma forma também de levantar um pouquinho, vamos dizer assim, autoestima, levantar um pouco assim, to nesse caminho, fiz tanta coisa e tal, você entendeu? Então é uma forma de resgate mesmo de você mesmo, de dentro que está pra dizer assim que a vida continua, o sonho continua e só acaba mesmo só quando realmente você deixa a Terra. Enquanto você vive você tem a missão aqui, a vida, o sonho e a luta continuam. Então é isso. Por isso que eu gostei.

P/1 – Tá certo. Muito obrigada então. A gente termina aqui.


FINAL DA ENTREVISTA