Museu da Pessoa

Gerar energia é gerar História

autoria: Museu da Pessoa personagem: Gildo Magalhães dos Santos Filho

Histórias Que Iluminam
Depoimento de Gildo Magalhães dos Santos Filho
Entrevistada por Lucas Torigoe
São Paulo, 20/04/2016
Realização Museu da Pessoa
HQI_HV06_Gildo Magalhães dos Santos Filho
Transcrito por Karina Medici Barrella
MW Transcrições


P/1 – Eu acho que eu vou perguntar mesmo quando veio a energia elétrica pro Brasil.

R – Bom, você também tinha falado na ideia de perguntar sobre a pesquisa.

P/1 – Sim. Que vocês estão desenvolvendo agora, né? Acho que vamos começar falando da questão histórica mesmo, a contextualização, pode ser?

R – Eu ia falar que eu tenho duas pesquisas anteriores que são: uma deu aquele livro “Força e Luz” e tem uma outra pesquisa que eu fiz nos Estados Unidos que é sobre a origem da teoria e da ciência do eletromagnetismo, que sem isso não teria tido também os equipamentos que depois vieram pra eletrificação. Então não sei, o que você prefere?

P/1 – Vamos então começar um pouco, resumidamente, a teoria da energia elétrica. Como começou, quem começou a pensar isso, como era esse caldo que começou.

R – Tá bom.

P/1 – Pode ser? Fique à vontade.

R – Pode. Bem, a eletricidade existe na natureza, um fenômeno natural, mas o estudo sobre ela que começou há muito tempo. Os gregos, por exemplo, tinham algumas noções, a eletricidade era vista como uma coisa totalmente separada do magnetismo, que também é antigo, pedras que tinham propriedades magnéticas eram conhecidas desde a antiguidade, a bússola dos chineses, tudo isso já usava. Mas se acreditava que eram domínios completamente diferentes: uma coisa é a eletricidade, outra é magnetismo. No início do século XIX, porém, algumas pessoas pensavam muito na unidade da natureza, que tudo estava unido. E entre essas pessoas houve dois cientistas muito importantes que levaram à frente experiências fundamentais. O primeiro é o dinamarquês Ørsted, que em 1817 fez a famosa experiência da passagem da corrente elétrica por um fio: o que acontecia com uma bússola colocada perto do fio? Ele viu que mexia a agulha toda vez que tinha corrente. Então ele falou: “Bom, tem uma ligação entre eletricidade e magnetismo”. E alguns anos depois o Faraday, em 1831, fez uma experiência inversa: ele pegou um imã e mexeu o imã dentro de um campo elétrico, na verdade não um campo elétrico mas sim condutores sem eletricidade, desligados, mas condutores elétricos. E ele viu que mexendo o imã aparecia a corrente. E a partir daí se uniu a eletricidade com o magnetismo, formando o eletromagnetismo. Isto foi a base pra se fazer depois dois fenômenos, esses que foram descritos servem para fazer o motor, você pegar corrente elétrica pra movimentar uma coisa, e o gerador, que é você mexer o imã e gerar corrente elétrica. Então daí vem um imenso desenvolvimento, a eletricidade, ninguém fala muito em eletromagnetismo, mas isso deu origem à grande indústria do século XIX que foi a indústria elétrica. Isto veio para o Brasil ainda no tempo do Dom Pedro II e mais tarde aperfeiçoado foi a origem das nossas usinas elétricas.

P/1 – Quem começou a utilizar a eletricidade de uma forma industrial, que começou a fazer as máquinas desse porte? Como foi isso?

R – Bem, uma pessoa sempre lembrada é o Siemens, que aperfeiçoou o dínamo. O dínamo também é algo que você mexe e o movimento vai gerar corrente elétrica. E a Siemens cresceu muito com aplicações de Telecomunicações, o telégrafo, depois cabos submarinos, etc, então eles tinham muito interesse em todas as aplicações da eletricidade. E na Alemanha em especial os bancos participaram desse desenvolvimento bancando os industriais, as pesquisas e se tornando quase que sócios das empresas elétricas. Esse foi, digamos, o grande impulso na Europa, ao mesmo tempo que nos Estados Unidos você tinha pessoas como Edison fazendo coisas semelhantes e também transformando ideias e invenções em grandes empresas que logo se expandiram e viraram multinacionais. A Siemens chega no Brasil primeiro com telefones, ainda também durante o império, mas ela já é uma potência na produção de geradores e motores. E logo então ela se instala aqui no Brasil, a mesma coisa a General Electric que era a empresa ligada ao Thomas Edison.

P/1 – Já no segundo império.

R – Já no finzinho do segundo Império, com a República isso vai desenvolver mais ainda porque a República vê

início da industrialização mais, digamos, não pesada, mas mais intensa que ocorreu no Brasil, mais especificamente ainda em São Paulo. Então em São Paulo uma série de indústrias que já existiam e que funcionavam na base da roda d’água ou da máquina a vapor viram a oportunidade de substituir essa força motriz, água ou vapor, diretamente por eletricidade.

P/1 – Isso é uma coisa muito interessante e ainda pouco estudada, mas foi uma transformação natural, você acoplar já teares, prensas, serras, enfim, uma série de máquinas que funcionavam com roda d’água e usar a mesma estrutura só que em vez da roda d’água um gerador motor e isto foi uma transição que possibilitou o desenvolvimento maior ainda dessas indústrias que estavam começando ainda na segunda metade do século. Quando chega o século XX elas se expandem graças, aqui em São Paulo, à riqueza do café. Então o café atrai imigrantes, o café faz as ferrovias andarem para o Oeste e junto com a marcha para o Oeste vai a luz elétrica, vai a tração elétrica na forma de bondes, muitas cidades do interior do estado vão querer ter o transporte do bonde elétrico e a força motriz para motores, oficinas, fábricas inteiras que vão também representando uma conquista para o Oeste do estado. É basicamente, inclusive, esta a experiência que nós estamos tendo agora com a história da eletrificação no projeto da Fapesp que é a história da energia elétrica em São Paulo.

P/1 – Então como é que começou esse projeto, como é que foi o interesse?

R – Bem, o projeto, como eu tinha feito um trabalho de pós-doutorado com pesquisas na biblioteca da Escola Politécnica e da Escola de Engenharia Mackenzie, eu fui verificar o que as revistas dos alunos contavam sobre essa história da eletrificação. E essas revistas existem praticamente desde a fundação das escolas que são bem antigas, tanto a Politécnica quanto o Mackenzie. Eram revistas que aceitavam não só trabalhos dos alunos, mas trabalho dos professores também. E publicavam muitos, hoje a gente até poderia chamar de papers, que eram escritos às vezes pra divulgação entre os alunos da matéria de eletricidade, mas às vezes também trabalhos que os professores faziam ligados às usinas hidroelétricas. Então, por exemplo, a usina de Itupararanga, que fica lá perto de Sorocaba, foi uma usina muito estudada pelos professores da Escola Politécnica que usavam aquela usina que era grande, muito grande pra época, como um exemplos para os alunos, pra fazer exercício, depois pra visitar a usina e assim por diante. Então a gente olhando esses trabalhos que eram publicados no início do século XX tem uma ideia boa de qual era a discussão sobre a energia elétrica no Estado de São Paulo. E com base em algumas informações que eram inéditas na época pude perceber que nós tínhamos já muito interesse e pessoas trabalhando, e às vezes até inventando dispositivos que tinham bastante importância como, por exemplo, eu vi que tinha um tenente da Marinha que inventou uma bateria pra submarino de longa duração e patenteou essa bateria. E há muitas outras aplicações da eletricidade, por exemplo, pra fornos elétricos, tudo isso no início do século XX. Então isso despertou interesse porque por um lado nós estávamos acompanhando com algum atraso, mas não mais tão atrasados com relação aos países mais adiantados nesse assunto e também me perguntando quais eram os problemas que eles enfrentavam. E enfrentavam muitos. Às vezes como todo equipamento vinha importado, vinha um texto falando da dificuldade que eles tinham pra fazer manutenção. Muitas dessas usinas eram instaladas em fazendas, elas geravam energia para máquinas das fazendas, máquinas de beneficiamento de café, serrarias, coisas desse tipo, e quando sobrava energia usava pra iluminação não só da fazenda, mas às vezes estendia poste e ia até o município mais perto. E o que acontecia? Precisava manter a usina funcionando e não tinha gente capaz disso, não tinha peças de reposição. Enfim, todas essas informações me deram uma certa ideia do que era a história da eletricidade no Brasil nessa época. E quando tivemos uma parceria com a Fundação Energia e Saneamento que está indicada até aqui, ó, Fundação Energia e Saneamento do Estado de São Paulo, tivemos a ideia de fazer um projeto e pedir financiamento para a Fapesp. O projeto foi concebido de uma maneira já, digamos, grandiosa, não daria tempo pra gente fazer tudo o que a gente queria, nós já sabíamos disso, então nós fizemos um primeiro projeto que pegou a história das usinas hidrelétricas desde a fase da estatização, que foi quando foi criada a CESP e depois as outras empresas que existiam foram também transformadas em estatais, que eram a Light e a Amforp, a Amforp virou a CPFL, com sede em Campinas e a Light virou Eletropaulo.

P/1 – Que ano mais ou menos foi isso?

R – Isso tudo foi entre as décadas de 1960 e 70. Foi um processo que já ocorreu portanto na ditadura militar. E essas empresas todas trabalharam juntas, CESP, CPFL e Eletropaulo. Então na primeira fase do meu projeto de pesquisa nós começamos nessa época, mais ou menos por volta de 1960 e viemos até os dias de hoje. Então o que é que tinha nessa fase? As grandes usinas. As usinas do rio Tietê até as três grandes de Jupiá, Ilha Solteira e Porto Primavera, mais as grandes usinas ao longo do rio Paranapanema, mais algumas usinas como a de Paraibuna, as que estão na bacia do rio Pardo não tão grandes, mas enfim, são usinas maiores do ponto de vista da potência delas. E fizemos todo esse trabalho envolvendo também a história da parte da transmissão, as linhas de transmissão. E no caso da Eletropaulo, como a Eletropaulo tem poucas usinas, o que ela tem mais é a distribuição local, nós pegamos as subestações. Então umas cento e poucas subestações da Eletropaulo que estão na Grande São Paulo, no município propriamente dito, no ABC, então nessa redondeza, e fomos fazer um inventário do que é que ainda existia das mais antigas até algumas que eram bem recentes, a Eletropaulo ainda instalou coisas por volta do ano 2000. E foi muito interessante, mas não dava tempo pra fazer mais do que isso. E a nossa proposta era vim desde o início, que é praticamente com o início da República, dos anos 1890. Então com o sucesso do primeiro projeto nós conseguimos justificar um novo projeto, maior, de mais longa duração, que pegou exatamente de 1890 até 1960. É uma fase em que surgem as usinas, elas são pequenas e são muito espalhadas. E algumas delas foram vendidas, revendidas, algumas foram absorvidas por empresas grandes, como a própria CPFL, outras ficaram em alguns grupos como são as usinas feitas pela Votorantim pra garantir energia elétrica pra fabricação de alumínio; no Estado de São Paulo são várias usinas, mas todas elas têm essa finalidade, mas nem sempre tiveram essa finalidade. Quer dizer, quando a Votorantim vai adquirir uma série de usinas, ela vai pegar usinas que serviriam inicialmente pra fábrica têxtil, pra outras finalidades, e depois vai transformar tudo em fornecimento do que interessa pra ela, que é a fabricação de alumínio. E ainda há uma série de outras usinas muito pequenininhas que continuaram isoladas e funcionando, mas quando elas foram incorporadas depois num sistema maior, graças a criação de entidades como o sistema interligado de eletricidade que nós temos no Brasil, muito pelo qual você vai estar gerando energia no interior de São Paulo e essa energia vai parar lá em Mato Grosso, em qualquer lugar do Brasil, graças aos sistemas estarem interligados. Então isso mudou muito o caráter. É também uma coisa interessante do ponto de vista histórico que nós vamos em usinas em que havia uma ligação muito forte, até diria sentimental, com a cidadezinha onde elas estavam. O pessoal fazia festa nessas usinas, quem trabalhava na usina, morava lá, acabava casando com alguém da cidade, então formavam famílias. Todas essas atividades foram depois perdendo o sentido, só que a usina ficou lá. E ela está na memória da cidade, ainda naquela fase anterior. E hoje ela faz parte desse sistema integrado e nós vamos atrás exatamente dessa memória que está ou nas pessoas, ou está às vezes registrada. E é uma atividade muito importante que nós conseguimos é descobrir onde tem a documentação, se for o caso de documentação. Às vezes a documentação pra nós se restringe a alguma fotografia antiga, algum conjunto de fotografias. Às vezes nem isto, às vezes nós conseguimos desenhos técnicos de cem anos atrás que estão ou conservados na própria usina e às vezes ninguém sabe disso, ou às vezes em outros lugares. Então nós falamos sobre documentação em bibliotecas municipais, na casa do fazendeiro que tinha a usina antigamente, ou, às vezes, em arquivos mais organizados, como o da própria Fundação Energia e Saneamento.

P/1 – Como que foi evoluindo a questão da iluminação pública? Tanto na cidade como no estado? Você falou que no começo não era bem pra isso que serviam as usinas, mas quando começou?

R – Bem, é que uma coisa logo puxa a outra. Para, digamos, a população em geral, o que eles veem primeiro é a luz elétrica, talvez em segundo lugar, o bonde elétrico. Mas a iluminação no início era muito cara. Era tão caro que as usinas eram donas das lâmpadas, não se vendia, as pessoas não teriam dinheiro pra comprar a lâmpada. Claro, tinha as da iluminação pública, que essas ficavam na rua, daí era a prefeitura que bacana, mas se um pessoa queria ter uma lâmpada elétrica em casa, às vezes tinha que, é como pagar um aluguel dessa lâmpada. Só que uma coisa também chama a atenção do vizinho, aí o vizinho quer ter, então aumenta o consumo e o preço abaixa. Isto vai ocorrer basicamente a partir da década de 1910 pra 1920, a iluminação elétrica é um padrão que todos querem imitar, ter em casa. E ele vai estar ligado também com a possibilidade de você ter os eletrodomésticos. Os eletrodomésticos já existem nessa época vão incluir coisas como liquidificador, ferro elétrico entre os mais baratos, claro que ainda há os mais caros como a geladeira elétrica e mais tarde o rádio, e mais tarde ainda televisão, o aspirador de pó, enfim, outra aplicações que vão fazendo com que ela se dissemine cada vez mais, a energia elétrica a passa a ser um bem do qual as pessoas não vão abrir mão. E hoje em dia então, com os equipamentos eletrônicos que só funcionam na base da eletricidade, então a gente percebe bem essa transformação total do modo de vida da sociedade no qual o acendimento da lâmpada é só o indicativo de que ali tem eletricidade, que pode servir pra muitas outras coisas.

P/1 – Então realmente ocorre uma revolução nos modos com a vinda da energia elétrica.

R – Certamente, uma revolução nos costumes. O fato das ruas passarem a ter iluminação pública é sempre vendido como uma ideia de segurança, agora as ruas ficam mais imunes aos assaltantes que se escondiam no escuro e as famílias começam a passear de noite nas avenidas e praças. E vai aparecer o lazer coletivo que funciona com a eletricidade que é o cinema. O fato de você ir pro cinema à noite já é também um símbolo para as pessoas desse novo modo de vida.

P/1 – Cinema, rádio.

R – Cinema, o rádio. O rádio inicialmente também, uma coisa cara, as pessoas se reúnem pra ouvir, todos os vizinhos vêm ouvir o rádio, como depois vai acontecer com a televisão. Até que depois tudo vai se espalhando e o preço vai caindo e cada um pode ter o seu.

PAUSA

P/1 – Eu vou fazer uma pergunta também que eu sei que você também estuda isso. Na questão das Artes, a questão da eletricidade talvez tenha mudado um pouco a representação do mundo, das máquinas. Tem a ver também?

R – Tem, tem. Há muitos estudos mostrando o que no início era só uma alegoria, se chamava “Fada da Eletricidade”. A Fada da Eletricidade era sempre uma mulher muito bonita, às vezes era uma mulher nua muito bonita com uma varinha de condão e na ponta uma luz elétrica (risos). E isso foi em si objeto de arte, quer dizer, muitos cartazes foram feitos, muitos quadros foram feitos com a fada eletricidade. E na grande exposição que teve em Paris no Palácio da Descoberta em 1934, que foi sobre a eletricidade, isso era evidente, foi feito um quadro imenso, imenso, que está hoje lá em Paris, mostrando a história da eletricidade desde o tempo dos gregos até aquela época. Isto foi um aspecto, mas há muitos outros em que o uso, principalmente de cartazes de propaganda política e que chamavam artistas pra fazerem esses cartazes foram comuns em dois polos bem distintos: na União Soviética a partir da palavra de ordem do Lenin de que eletricidade é igual Comunismo e, do outro lado, com o Franklin Roosevelt nos Estados Unidos quando pra sair da Grande Depressão foi feito uma empresa muito grande que foi o TVA. O TVA era para eletrificar o vale do Tennessee, era uma série de usinas hidrelétricas e isto foi algo essencial pra tirar o país da depressão. E tudo isso vai aparecendo primeiro, como eu falei, em cartazes gráficos, mas depois também principalmente em pinturas. Então a eletricidade, as torres de transmissão e depois o cotidiano, já aparecem várias telas que você tem um casal, tem uma lâmpada elétrica iluminando a cena. Então assim, indiretamente o rádio aparece, ou a televisão, como integrantes das obras de arte.

P/1 – Agora voltando pra São Paulo, Brasil, qual seria a primeira hidrelétrica feita em São Paulo? Não sei se detectaram.

R – Sim. Tradicionalmente se atribui a primeira hidrelétrica a São Carlos e também entra na disputa com São Carlos a cidade de Rio Claro. Tem disputa porque às vezes essas usinas foram inauguradas e depois elas pararam de funcionar, depois elas tiveram que ser remontadas, mas é por aí. E aqui em São Paulo já há uma primeira grande usina, mas grande mesmo, que é a que hoje chama Edgard de Sousa, mas na época chamava Parnaíba, que é aqui perto da saída da Castelo Branco, que hoje não gera mais energia, é só uma estação elevatória, mas na época foi considerada uma das grandes hidrelétricas do mundo, isso em 1903, 1904, que ela está sendo inaugurada. E logo em seguida a Light vai represar a represa de Guarapiranga, em 1905 é feita a represa e isto vai servir pro planos da Light de expansão pelos quais ela vai inverter o curso do rio Pinheiros, então em vez do rio Pinheiros ir pro rio Tietê, a água vai formar a Billings, que vai ser, essa sim, considerada a maior usina do MUNDO, na década de 1920. Então, quer dizer, nós começamos, como eu falei, não muito atrasados e de repente estávamos até entre os maiores do mundo. Claro que depois tudo isso foi ultrapassado e nós depois mantivemos ainda uma liderança a partir dos anos 60 quando são feitas essas grandes represas do rio Paraná e do rio Tietê. Com uma diferença que pra nós aqui, na história da técnica, é muito importante, é que essas grandes usinas, Paraná e Tietê, são feitas agora pela engenharia nacional, o que antes não ocorria, os projetos eram importados, às vezes um projeto da parte civil da barragem era brasileiro, mas o projeto como um todo, as máquinas, a concepção, vinha de fora. E a partir da década de 60 isto é brasileiro.

P/1 – E qual a relação entre a demanda e a produção de energia? Como é que está isso no Brasil?

R – Nós somos um dos países, infelizmente, mais atrasados em consumo de energia elétrica. Nós estamos atrás na América do Sul, inclusive. A Argentina, o Chile consomem mais energia elétrica do que o Brasil por habitante, que é onde dá pra gente fazer comparação. E temos um índice muito baixo, mundialmente falando. Você poderia falar: “Não é suficiente?”. É suficiente se você mantiver o país do jeito que está. Mas se você quiser impulsionar o crescimento econômico, aí a nossa demanda ultrapassaria em muito a oferta de energia elétrica. Basta ver aqui em São Paulo dois problemas cruciais que são o transporte e a poluição das águas. Os dois problemas têm soluções muito conhecidas: pelo transporte é fazer metrô, trens, bondes, enfim, todos transportes que são elétricos. Se nós hoje fôssemos fazer as 20 e tantas linhas que São Paulo precisa, no mínimo, de onde viria a energia para os trens? Então você fala: “Ah bom, felizmente não temos todas as linhas”. É claro que esse felizmente é na verdade infelizmente não temos todas as linhas, temos o transporte individual e os congestionamentos enormes porque não tem transporte de massa. E transporte é elétrico. E o outro grande problema: a poluição da águas. Os rios Tietê, Pinheiros, Tamanduateí, enfim, todos os córregos e rios da cidade de São Paulo são esgotos. E o único jeito é tratar. Só que o tratamento é sempre elétrico. E tem uma parte que é química, uma parte que é mecânica, mas a parte que é essencial, é elétrica. Então pra você despoluir água você vai consumir muuuita energia elétrica. Então, é outra vez a questão, nós não fazemos mas se quiséssemos fazer, da onde viria a energia elétrica?

P/1 – E agora é uma questão nacional, você falou também, né?

R – Quer dizer, na verdade isso que eu falei pra São Paulo vale para todas as grandes cidades do país. São Paulo é o exemplo máximo, não só porque a gente vive aqui mas porque de fato é o maior problema que tem em quantidade. Mas isso repete. Nesse nosso projeto nós vimos usinas que pararam de funcionar porque as máquinas não podiam mais receber aquela água suja que recebiam. Isso é uma coisa muito deprimente, triste. Você faz uma instalação e a usina é desligada porque a poluição é tão grande que se você deixasse estragaria as máquinas.

P/1 – Uma hidrelétrica você diz.

R – Uma hidrelétrica. Cidades, isso aconteceu em Americana, uma cidade de porte médio, mas acontece muito no Brasil, a qualidade das águas é muito ruim e pra você equacionar agora do jeito que está só usando tecnologia. E essa tecnologia é elétrica. Então a sua pergunta é muito importante, se o nosso consumo é proporcional à demanda. É porque a nossa demanda, infelizmente, é baixa. É porque a gente não está atacando esses problemas, senão a demanda teria picos e isso seria também um grande problema dado que a energia elétrica se tornou muito cara no Brasil. Nós também somos um país campeão no preço de energia. Campeão pra mais.

P/1 – E uma coisa que a gente tem perguntado pra todo mundo nesse projeto é: Quais são as perspectivas que você teria no impasse que a gente tem pro futuro dessas questões de matrizes energéticas? Como que está isso hoje, como que o senhor vê que a gente vai resolver ou não vai? Como é isso?

R – Bem, uma proposta de solução que já foi colocada em marcha é você apelar para as energias chamadas alternativas. Energia eólica, energia solar, em alguns casos poderia até se pensar em energia das marés marítimas. Mas a verdade é que todos esses, em conjunto, representam uma pequena parte da matriz energética. A nossa matriz energética ainda é, três quartos dela pelo menos, hidroeletricidade. E nós temos ainda um potencial hídrico ligado aos rios que poderia ser aproveitado ou aproveitado melhor. Mas evidentemente isso vai ter um limite, então, para o futuro como você perguntou, só utilizando formas que são intensivas em energia que nós conseguiríamos manter o ritmo E melhorar esses tipos de problemas como nós estávamos falando. E atualmente o único outro candidato é a energia nuclear. As pessoas têm medo de falar de energia nuclear, mas por outro lado isso é um assunto que virou tabu mas tem uma série de vantagens, considerando que o Brasil tem uma grande reserva de minerais radioativos e sabe fazer energia nuclear, inclusive dominou o ciclo do enriquecimento do urânio. Não pra fazer bomba atômica, mas pra atingir aquele índice crítico que permite a geração elétrica. Isso é uma façanha da ciência brasileira, não é nada fácil e nós fizemos. Então, por que não aproveitar? E hoje em dia há muita tecnologia pra tornar a usina cada vez mais segura. As pessoas falam: “Ah, mas tem Fukushima”. Sim, se você construir uma usina em zona de tsunami é diferente de você construí-la em lugares mais seguros. E o que é que é seguro? Nada é 100% seguro, você tem que tentar o 100% pra atingir 99,9% que é aceitável. Agora 100% de segurança não existe em forma nenhuma de energia. É só você ver os acidentes que têm tido na construção das usinas eólicas. Morre gente. Então não existe energia 100% segura, o que não impede, como eu falei, da gente fazer ao máximo possível a segurança. E também mais para o futuro ainda se espera uma energia isenta de radioatividade, que é a energia de fusão. A fusão nuclear não tem rejeitos radioativos, ela seria totalmente segura deste ponto de vista e ela depende de pesquisa. Então assim, é só pra dizer, o futuro tem com certeza muitos problemas, mas parece que está ao nosso alcance ainda resolver esses problemas pra enfrentar essas dificuldades futuras. Não posso ser pessimista, embora acho que a gente tem que fazer sempre uma historicização de todos esses problemas pra ter uma perspectiva mais balanceada.

P/1 – E hoje você vê como essa situação? Você já falou bastante do panorama que a gente tem como opções hoje. Mas como você vê, por exemplo, essa questão da energia de fusão? Você acha que a gente está chegando num ponto que vai conseguir formular a teoria pra isso? Pelo que você já viu casos anteriores de descobertas, você acha que dá pra fazer um paralelo?

R – Eu acho que sim. Eu acho que nós estamos hoje com a energia de fusão talvez como se estava no fim do século XIX, início do século XX, quando alguns indícios da tremenda energia do átomo apareceram na forma de radioatividade como o raio-x. Todos sabemos que o raio-x é uma coisa destrutiva, mas ele logo foi utilizado pra coisas muito do bem, como são as radiografias e isso foi dando os indícios para depois você chegar à energia nuclear propriamente dita, que logo foi utilizada pra duas coisas completamente diferentes que foram a bomba atômica e a fabricação de energia elétrica. E eu acho que com a fusão é esse o caminho. Nós nem estamos tão longe assim dessa possibilidade, mas precisaria que os governos, as empresas passassem todos a investir na procura de materiais. Basicamente a gente já tem a teoria, mas transformar isto em coisa prática demanda uma série de pesquisas ainda. E isso dá uma chance mesmo pra países que não têm tantos recursos. Nós mesmos aqui na USP temos um pessoal, pequeno grupo, que faz pesquisa de energia de fusão. Na Unicamp também tem. Então tudo isso precisaria ser amplificado pra gente poder chegar nesse futuro.

P/1 – Como última pergunta que eu tenho reservada pro senhor, me explica um pouco esse lema: “Gerar energia é gerar história”. O que significa isso?

R – Nós fizemos esse projeto que demos o nome de Eletromemória porque percebemos que exatamente a geração de energia elétrica acompanhou o Estado de São Paulo nessa marcha para o Oeste. E toda essa história da expansão do café e da urbanização, quer dizer, nós fomos conquistando territórios que eram até desconhecidos do ponto de vista cartográfico. Então tudo isso que vai ter impulso a partir dos 1890, 1900 significou levar atrás a energia elétrica. As fazendas de café, as ferrovias, a imigração, os italianos, japoneses, todos que vieram primeiro pra trabalhar nas fazendas de café, mas depois se transformaram em classe média e pequenos agricultores, etc. Tudo isso fez com que o Estado de São Paulo tivesse uma importância econômica ímpar comparado com outros estados da federação, quer dizer, São Paulo logo passou a ser o concentrador de riquezas nacional, a ponto de mais ou menos 50% da riqueza estar concentrada em São Paulo. E a energia elétrica acompanhou essas porcentagens. Portanto, ao fazer a história da geração elétrica nós também temos que fazer a ligação de tudo isto com esses movimentos econômicos e sociais que formam a história do estado. Basicamente é essa a ideia.

P/1 – Tá certo, então. Obrigado, professor.

R – Nada. Deu pra?

P/1 – Deu, deu pra fechar certinho.