Museu da Pessoa

Eu sou filha da mata e nada vai me acontecer

autoria: Museu da Pessoa personagem: Raimunda Rodrigues Teixeira

P/1 – Dona Raimunda, bom dia.
R – Bom dia.
P/1 – Muito obrigado. Queria agradecê-la por deixar-nos entrar na sua casa para essa conversa. Para começar, eu queria que a senhora falasse o seu nome completo, o local e a data do seu nascimento.
R – O meu nome completo é Raimunda Rodrigues Teixeira, sou bisneta do nosso antigo Cacique que já morreu, o Zé Isabel Alves dos Reis, conhecido por Perna de Pau. Sou do dia 24 de novembro de 1944, vou fazer 70 anos. Eu também quero agradecê-los. São bem-vindo na nossa comunidade.
P/1 – A senhora falou do seu avô mas, primeiro, vamos falar dos seus pais. Quem foram eles?
R – Meu pai era Francisco Alves dos Reis e morreu há cinco anos. Ele era neto do Cacique Perna-de-pau. A minha mãe, Julieta Pereira da Silva, não era índia. Ela era do pessoal de um lugar que chamava Aracati, que eu não sei nem onde fica. Deus levou a minha mãe e ela nunca nos levou para conhecer a família da parte dela. Da parte do meu pai eu sei que é o povo Tapeba, os índios. Mas da parte da minha mãe, que não era índia, eu nunca conheci ninguém da família dela. Vai fazer 40 anos que Deus levou ela. Ela morreu muito jovem.
P/1 – A senhora tem irmãos?
R – Minha mãe teve 15 filhos, mas morreram vários. Ficamos só eu e um irmão que mora aqui nesta casa. Ele tem 62 anos.
P/1 – Como é o nome dele?
R – Francisco.
P/1 – A senhora falou que a sua mãe não era índia.
R – Não.
P/1 – Seu pai era Tapeba.
R – Meu pai era índio.
P/1 – A senhora escutou histórias de como é que eles se conheceram?
R – O que eu ouvi o meu pai dizer era que ele morou em Caucaia - não sei se ela trabalhava na casa de alguém. Naquela época, o pessoal saía procurando trabalho e não sei por qual motivo ela veio esbarrar aqui em Caucaia. Sou filha natural de Caucaia. Nasci e me criei aqui. Ele sempre dizia que a tinha visto numa casa de uma amiga e, então, começaram a se paquerar. Ela a levou para dentro da aldeia. Não queriam aceita-la porque ela não era índia. Naquela época, não aceitavam se não fosse índio com índio. Como ela era uma pessoa boa e seguia a cultura indígena - ela dançava o Toré com eles, comia o que eles comiam e não tinha besteira -, foi aceita dentro da aldeia. Eles se juntaram e ela teve 15 filhos. Desses 15, uns morreram de sarampo e de outras doenças que eu não sei dizer. Ficaram somente dois. Foi nessa época que ela morreu. Ele separou-se dela e ajuntou-se com outra que também não era índia. Então, quando ela morreu já estava separada dele, mas estava sempre ali em casa, porque ele não nos abandonava. Deus a levou e ele ficou. E a mulher que ele estava também morreu. Ele arranjou outra que também não era índia. Nenhuma de suas mulheres eram índias. A sua última companheira está viva. Ela é irmã do marido da minha filha, que também não é índio. Depois de tanto tempo que ele morreu ela ainda está aqui no nosso meio, ninguém nunca a abandonou porque ela fazia de tudo por ele, que morreu em sua companhia. Ela tratou da doença dele, junto conosco. Sempre respeitamos a presença dela no nosso meio.
P/1 – Quais são as primeiras lembranças da sua casa? Como era esse lugar?
R – Eu nasci e me criei na comunidade do Trilho, Capuã, que fica para cá da aldeia onde mora o (Cacique) Dourado. La só era mata, aqueles paus brancos, todo tipo de pau, com aquelas ocas dentro da mata. Era uma aldeia com as ocas redondas de palha, só com uma portinha para entrar e sair. Não existia a rede naquela época. Eles faziam uma esteira da palha da bananeira. Tiravam aquela coisa da bananeira e faziam uma esteira. Estendiam para que todos os índios dormissem. Roupa não existia, eram só os penachos. Eu me criei nessa cultura, nessa tradição. Os meus filhos não, mas eu me criei nessa tradição de dentro da própria aldeia, com aqueles penachos. Quando eu ia pescar, o Cacique Perna de Pau, que era o meu bisavô - o nome dele era Zé Isabel Alves dos Reis, mas como ele fez uma fogueira no São João e colocou uma bomba dentro duma lata e, quando a bomba explodiu, a lata estourou o joelho dele. Ele mesmo colocou remédio e se cuidou. Fez uma perna de pau e andava por todos os canto com essa perna. Por causa dessa perna ele ficou como Cacique Perna de Pau. Ele levava adultos e crianças para pescar. Iam todos juntos pescar e caçar com aqueles embornais nas costa. As índias dentro de uma rede, com uma tipoia atrás. Ele levava nas costas. Passávamos o dia na mata caçando, pescando, tirando as raízes de pau e pegando passarinhos para vender. Aqueles bichos verdes, os camaleões - ele vendia novinho para uns viveiros. Passávamos o dia da mata e, quando era noite, de cinco para seis horas, retornávamos às aldeias, às ocas, para colocar aquelas caças no fogo para comer. A comida eles faziam um buraco fundo no chão e colocava as lenhas dentro. Ele pegava uma lata, colocava no fogo cheia d’água e trabalhávamos com aqueles alguidares grandes de barro. Ele colocava a farinha. Tínhamos um roçado em que plantávamos mandioca. Ele tirava a mandioca, relava, fazia farinha no caco e torrava. Ele colocava dentro do alguidar, fazia aquele pirão escaldado com aquela água sem sal. Ele não colocava sal nem na farinha. Fazia o pirão e quando acabava, pegava aquelas caças salgadas e as colocava na brasa para assar. Partia para aquela fileira de índios e cada qual pegava um tibuguinho de barro com a colherzinha de pau - porque não tinha colher nessa época. E comíamos. Depois que acabava, bebíamos água, estirava a esteirinha e íamos dormir. Quando não, ia dançar o Toré a noite toda, com as maracas ao pé duma fogueira. Eu sinto muita falta dessa época, porque eu acho que não vai voltar mais. Fui criada numa cultura tão bela, tão maravilhosa, tão pura, com tanta honestidade e com todos respeitando uns aos outros. O índio, que anda só com seus penachos: respeito. Hoje em dia, se alguma índia ou qualquer pessoa, mesmo que não seja índio, pois tem muita gente com más intenções, que não respeitam. Toda a vida, os povos indígenas tiveram esse respeito pelo seu próprio povo. Depois de tudo, ele nos contava as história dos antepassados que já tinham ido. Tínhamos que aprender. Ele dizia: “O que eu posso ensinar pra vocês é a história: não sei ler, não sei escrever, mas a história eu vou ensinar, vocês têm que aprender. Algum dia eu não estarei mais no meio de vocês, que vão contar o quê para as pessoas que vierem fazer uma pergunta? Vocês têm que colocar na cabeça, na memória e prestar atenção no que eu digo a vocês”. Eu prestava atenção e escutava muito bem tudo aquilo. Se ele estivesse aqui, ninguém passava no meio, porque ele não aceitava. Bastava só espiar com o rabo de olho e já estávamos voltando, porque não era permitido passar na frente, tinha que voltar. Fui criada nessa cultura. Lembro-me das cumbuquinhas de barro. Fazíamos tudo nas cumbuquinhas de barro. Trabalhávamos juntos no artesanato, na pesca, na caça e em tudo que se ia fazer era desse jeito. Quando ele saía de manhã, ia na frente e todos os índios tinham que pisar no rastro dele. Ele tinha uma experiência tão grande que, quando voltava, olhava se o rastro estava correto, assim como ele tinha saído. Se tivesse um rastro fora daquela trilha ele dizia que tinha entrado gente branca ali dentro: “Entrou gente branca aqui dentro. E vou caçar quem entrou.” Tínhamos que ir o tempo todo naquela trilha. Na volta, ele olhava se tinha algum rastro diferente ou se tinha entrado alguém na aldeia. Ele era muito experiente, muito sábio das coisas que ele fazia. E quando ele terminava aquilo, íamos dançar o Toré. Depois, íamos todos dormir. Às quatro horas já estávamos todos levantados. Ele colocava todo mundo pra ir para a beira da lagoa tomar banho. Ele ficava fazendo aqueles pães de milho com a minha bisavó. Ele era marido de duas irmãs. A Teresa Teixeira de Matos era a mulher verdadeira e a Paulina Teixeira de Matos, que era a irmã dela, era a sua segunda mulher. Quando uma estava de resguardo, a outra era quem cuidava. Quando acabava o resguardo, a outra tinha o nenê e ia cuidar do resguardo da outra, Moravam todos juntos, dentro de uma casa - as irmãs com o mesmo marido. E eram todas unidas. Ele teve vários filhos com as duas mulheres. Dos filho dele só existe um vivo, que é o Geraldão, que mora perto da Vila Nova. Ele já está bem velho ele, não está nem andando, quase paralisado dentro de uma rede. Depois disso, ele dizia: “Pronto, tomaram banho, agora todo mundo pode tomar o café com pão de milho”, sempre naquelas quenguinhas de coco, que eram as tigelinhas em que todos tomavam o café. Ele enchia uma cabaça d’água, colocava nas costas, cada qual com uma enxadinha bem pequenininha para ir trabalhar com ele. Todos tinham que ir junto. Quando da limpeza do roçado todinho, ele entrava dentro da mata para caçar. Na volta trazia o que comer. A nossa vida era desse jeito, dentro dessa aldeia, na Comunidade do Trilho, lá dentro da mata. Hoje em dia eu moro aqui. Saí da comunidade do Trilho. Casei-me com 17 anos. O casamento era feito pelo cacique e o pajé dentro da aldeia. Só que quando eu me casei não foi feito mais pelo meu bisavô, porque quando ele morreu eu tinha dez anos de idade. Fui casada pelo cacique e um outro pajé que ficou no lugar dele, que também Deus já o levou. Quando eu me casei eu não tinha nenhum canto para morar, pois estávamos sendo expulsos da terra. Os antigos estavam morrendo e apareceram os fazendeiros dizendo que eram os donos, trazendo os arames para cercar a nossa terra e expulsar a nossa gente. Ficamos na beira do trilho de ferro, onde passa o trem, com as nossas ocas abandonadas dentro da mata, porque não podíamos entrar. Aí, eu disse: “O que eu faço é ir para a beira do rio”. Cheguemos aqui e colocamos o nome de rio Ceará, porque ele se chamava rio do Picu. Quando eu vim morar aqui, eu trouxe três filhos: a minha filha mais velha, que já tem 50 anos; o meu filho mais velho dos homens, que tem 44 anos. Esse que estava aqui se pintando tinha três meses quando eu vim para cá. Ele já fez 40 anos. Quando eu cheguei aqui, a ‘negada’ dizia: “Essa mulher parece que é doida. Tem uma mulher doida colada dentro do mangue com um bocado de menino e um homem”. Entraram de lá pra cá olhando, assombrados, com medo, porque nunca tinham me visto. Depois que cheguemos, limpamos um canto na beira do rio, debaixo do manguezal e eu coloquei um pedaço de lona e de papelão para colocar os meninos para dormir em cima. “Como é que a senhora vai dormir com esses menino aqui?”. Eu disse: “Minha senhora, eu sou índia, eu sou filha da natureza, sou filha da mata. Vou dormir aqui com os meus filhos e nada vai me acontecer”. E ela: “Mas tem muita cobra, caranguejo”, e eu dizia: “Nada vai me acontecer. Deus vai me proteger e eu vou dormir aqui com os meus filhos. Amanhã eu ganho um pano, tiro uns paus e faço uma cabana e me soco debaixo”. Aí dormi. Pela manhã, pegamos a foice, fomos tirar pau do mangue e fizemos uma cabana, onde coloquei os meus filhos debaixo. Na continuação, arrumei palha para ir arrodeando ela. Os outros parentes também vieram e começaram a fazer também: “Raimunda foi para a beira do rio, eu vou também”. E veio um bocado de gente para a beira do rio. Todos os índios Tapeba que moram aqui vieram de lá. O restante dos meus filhos eu tive aqui e acabei de criar esse daí, que veio com dois meses, porque nós fomos expulsos e obrigados a sair da mata, da terra de onde vivíamos, onde eu nasci e me criei, numa cultura, numa tradição junto ao meu povo. Hoje em dia eu tenho esse trauma dentro de mim: ser obrigada a sair de onde eu nasci. Lembro-me de como foi que eu saí expulsa, de lá para cá, ainda bem jovenzinha. Hoje, já estou com 70 anos, mas eu nunca me esqueci disso. Quando vim morar aqui, a família do Zé Geraldo Arruda me disse que eram os donos dessa fazenda. Mas os verdadeiros donos são os índios, só não temos a posse da terra. Quando eu fui tirar olho de palha com as minhas duas filhas para fazer artesanato, as saias e os cocares, ele colocou o revólver na minha cabeça para eu sair de dentro da mata. Eu disse a ele que podia me matar, mas eu não saía porque eu não estava roubando. Eu ia tirar palha para dar de comer aos meus filhos. Era para eu trabalhar, fazer um dinheiro para dar de comer aos meus filho. “Eu não vim roubar”. E ele continuou mandando-me correr. Eu entrei e ele continuou olhando, com o revólver na mão, até eu tirar os olhos. Ele disse que eu não entraria mais, mas eu disse: “Amanhã eu venho de novo. Todo dia eu venho buscar. Por que eu não viria amanhã? Sumiu alguma coisa sua? O senhor disse que é o dono. Sumiu? Está tudo aí?” “Está”. Eu disse: “Pois então, meu amigo, eu vou tirar olho de palha.” Eu tiro olho de palha numa manta em quatro ou cinco, da carnaubeira. Ao tirar, nasce outro. Depois, ele me deixou tirar o olho de palha. Depois, apareceram com um carro aqui na frente para fazer teste de sangue para saber se éramos índios ou não. Eu disse: “Como é que você vai saber se nós somos índios ou não? Quem sabe que nós somos índio, somos nós. Nós é que asseguramos o que nós somos. Se eu sou uma coisa eu tenho eu dizer o que eu sou. Se eu não sou, jamais vou dizer que sou. E se eu sou índia - porque eu sou índia - ninguém vai tirar isso de mim. Não será outro político que vai me tirar isso. Só eu e Deus sabemos, os encantados. Eu sou da mata, sou da natureza. Ninguém vai tirar, ninguém vai me transformar em outra pessoa que eu não sou. Eu sou e vou morrer assim: índia”.

Ele disse que eu era muito ignorante, muito bruta. Eu disse: “Não, o senhor que é bruto e ignorante, que diz ter tanto estudo, é um advogado, é um doutor. Como é que o senhor chega numa aldeia indígena com toda essa ignorância? Achei ignorante...” Eu disse a ele que ninguém iria tirar o que nós somos, porque somos índios, filhos da terra e da natureza. Os verdadeiros donos do Brasil eram os índios. Eu disse: “Quem sabe o senhor também não é um deles, porque o meu bisavô, quando era vivo, dizia que os povos indígenas tinha se casado com alemães, com portugueses. O nosso país é cheio de povos indígenas. Quem sabe, no passado, o seu tataravô ou a sua bisavó não era índia? Por que o senhor não procura saber a sua origem, a sua cultura e dos seus antepassados? O senhor veio discriminar os povos indígenas? Quem sabe o senhor não é um deles, um índio. O senhor é branco, mas tem índio branco, tem índio louro.” Às vezes, junta-se índio com não índio. E aí, aquela família, aquela tradição, aquela nação vai se misturando, vai indo em frente. O índio verdadeiro, que o pessoal chama de puro, que é filho de índio com índio, não tem mais. Todos somos povos indígenas, somos cearenses, somos brasileiros. Temos de ter respeito um pelo outro. Eu não sei ler, mas os meus pais me deram educação para eu saber falar e respeitar as pessoas do jeito que cada um é. Se hoje você não tem o que comer, mas eu tenho, eu tenho que lhe ajudar; amanhã, eu não tenho, e você tem. Você vai me ajudar. Assim é o modo de se viver, meu amigo. Não é expulsando da mata enquanto tira um olho de palha”. Ele parou e deixou. Mas ele atrasou a demarcação das terras. O maior problema dos índios Tapeba é a demarcação de terra. Há 32 anos que nós lutamos por essa demarcação. Até hoje essa terra é impedida de ser demarcada. A Dilma assinou, em Brasília, a demarcação da terra. Publicaram no Diário Oficial, mas não podem demarcar a terra porque um ministro tem que baixar uma portaria e enviar uma decisão para a Dilma poder baixar essa portaria. Essa decisão está difícil de sair. Todo político que tem terra dentro de áreas indígena vai lá, contesta, para que essa terra não seja demarcada. Tem 41 pessoas que contestaram essa demarcação lá em Brasília. Eu espero que, mesmo que eu não alcance, mas que um dia ela seja demarcada para os meus netos que tão aqui, os meus bisneto, o meu povo que está espalhado por aí. São 7.000 índios espalhados dentro do município de Caucaia e que precisam desta terra para trabalhar, para plantar e preservar a sua cultura, as suas ocas, assim como era antigamente. Mas é difícil.

A minha história foi essa: dentro da mata, com o meu pai e com a minha mãe, com meus irmãos e com o resto do meu povo trabalhando. Hoje eu sinto uma grande tristeza porque esse rio, que era tão limpo, da onde eu tirava a minha sobrevivência, eu não tiro mais, porque ele não presta, está poluído. Eles vão às seis hora da manhã para a Barra do Ceará pegar caranguejo. Chegam às sete hora da noite, de pés, com a garrafinha d’água, pedacinho de rapadura pra comer. Temos que seguir em frente. Não é porque o rio está poluído que vamos cruzar os braços e morrer de fome. Temos que batalhar e ir atrás. Eu tenho uma tristeza por não ter criado os meus filhos na cultura e na tradição em que eu fui criada - dentro da mata com os meus penachos, sempre junto com aquele povo. Já tem gente branca que mora no nosso meio. Eu não tenho nada contra, porque todos somos gente, somos todos irmãos. Sou contra os meus filhos não terem sido criados na cultura e na tradição em que eu me criei. Eles têm a cultura, têm toda a tradição, mas é diferente da minha, que fui criada no outro modo, com meus penachos, dentro da mata. Hoje, eles são criados debaixo dessas casas de telha e de tijolos. Eu tenho muita saudade da minha época de criança, dentro da mata com o meu povo, pescando e fazendo as minhas coisa. Eu sinto muito essa tristeza dentro de mim. Espero que eu ainda alcance a terra demarcada, para eu voltar ao passado, para dentro do mato. Mas eu acho muito difícil por conta dessa perseguição. Deus é muito bom e Ele vai ajudar para que isso aconteça.
P/1 – Bom, você fez um apanhado geral da história.
R – Isso.
P/1 – E foi muito bom, muito interessante.
R – Eu gosto de falar tudo de uma só vez.
P/1 – Muito interessante.
R – Tem gente que para e pensa. Eu não. Eu conto logo a minha ladainha, do jeito que é para ser.
P/1 – Eu anotei algumas coisas aqui para lhe perguntar e para conversarmos um pouquinho mais.
R – Pode perguntar.
P/1 – Chamou-me a atenção quando a senhora falou do seu avô, que era cacique. Aquela questão do rastro, em que ele fazia todo mundo segui-lo e, depois, ele voltava olhando. A senhora se lembra de alguma situação em que ele olhou e que tinha um rastro fora e que gerou alguma situação?
R – Lembro-me que, certa vez, quando voltávamos - era umas quatro horas da tarde e ele vinha da mata com os embornais de caça e as índias com os meninos nas redes das costas. Ele ia à frente para olhar. No meio da trilha ele mandou que todos parassem. Chamou os índios para que vissem o que ele iria mostrar. Ele disse que tinha gente branca, mas nós dissemos que não. Ele perguntou se nós queríamos saber mais do que ele, e que somente ele tinha prestado atenção. Aí, ele disse: “Está aqui: esse rastro não é do meu povo e veio de lá e encostou aqui. Não é do meu povo”. Ele voltou muito zangado, porque tinha entrado gente. Ele voltou pra aldeia e viu que estava tudo bem. Procurou saber o que tinha e foi seguindo o rastro até onde ele tinha entrado, já na beira da linha. Tinha sido um homem que andava atrás dum cavalo que tinha sumido. E ele foi lá no homem e perguntou. O homem disse que não era para fazer mal. Que não era nada demais e que tinha ido só caçar a besta dele que tinha entrado lá dentro da aldeia dos índio. Aí, ele disse: “Meu amigo, quando for entrar me peça permissão pra poder entrar, porque senão você não entra”.

Ele disse para ele pedir permissão, e que não podia entrar se o meu avô não desse a permissão. Ele era bem correto nas coisas e dizia na cara.
P/1 – A senhora estava falando da questão da roupa de quando era pequena. Eu queria que falasse dos penachos que a senhora usava e até quando usou esses penachos.
R – Eu usei até a década de 1960, quando eu tinha uns 15 para 16 anos.
P/1 – Do que eram feitos esse penachos?
R – Fazíamos das penas dos pássaros - socó-boi, piririguá, quém-quém. Emendava pena por pena e fazia os penachinhos curtinhos na frente. Os índios usavam palha da bananeira. Eles pegavam a palha da bananeira e amarrava, virava. Dava um aqui na frente, outro atrás, e pronto. Estavam todos vestidos. Lembro-me disso tudo, porque eu mesmo me cansei de ajudar a fazer os meus penachos para eu vestir.
P/1 – E tinha um penacho para uma ocasião especial? Como é que era isso? A senhora lembra de ter algum que gostava mais, uma cor, uma pena? Tinha diferenças nessas roupas, nessas vestimentas?
R – Tinha sim. Aqueles pássaros que tem penas vermelhas eram os mais preferidos porque diziam que afastava a inveja e o mau olhado. Falavam sempre dessa inveja. Tem gente que não acredita, mas existe porque eu me criei ouvindo falar sobre a inveja e o mau-olhado. Eu nunca me esqueci disso. Eu sempre uso coisas vermelhas por causa da inveja, tanto que quando os meninos vão fazer colar, sempre colocam uma pena vermelha dependurada.
P/1 – E quando é que a senhora deixou de usar pena?
R – Foi na década de 1960, quando começaram a derrubar a mata, dizendo que era dono. Aí, acabaram os pássaros. Para não perder o nosso costume, comecemos a fazer as saias da palha, como essa daqui, que é de ticum – tirávamos a palha da carnaubeira, a bucha e colocávamos para secar. Fazíamos outras coisa com a bucha mas, depois, passamos a fazer a saia, o cocar e as pinturas de bucha – pois não tem mais as pena. Agora, é com isso aqui. Foi difícil de se acostumar, mas nos acostumamos, porque era da mesma cultura, da mesma tradição. Como é que íamos fazer?
P/1 – Estou vendo a senhora vestindo um vestido verde, muito bonito por sinal.
R – E você acredita como eu vesti esse tipo de vestido: apareceu uma mulher e um homem com umas roupas para vestir os índios. Todo mundo tinha que andar vestido. Quando eu ia pescar nas agueira, nos buracos, eu deixava a roupa e vinha nua, porque eu não tinha costume. Foi um tormento para eu me acostumar com a roupa.
P/1 – A senhora lembra a primeira vez que utilizou uma roupa?
R – Foi em 1960 que me deram. Eu fui pescar e, quando voltei, estava essa mulher com essas roupas.
P/1 – A senhora lembra como era essa roupa?
R – Era um vestido muito comprido, lá embaixo - não sei se era crente, pois hoje em dia eu vejo os crentes vestindo essas roupa. A minha mãe dizia assim: “Eles não têm o costume de usar vestido. Nem eu que não sou índia eu não uso, pois já me acostumei com eles. A senhora quer nos vestir?”. Os índios tem calção para vestir. Foi um tormento. Ninguém queria aquelas roupas, mas tinha que vestir porque quem andava nu era doido. Começaram a chamar de doido. Eu disse: “Doido? Aqui eu nunca vi um doido na minha vida. Que doido é esse?”. Ninguém ouvia falar em doido. A minha mãe disse: “É o jeito que nos vestimos. A única solução era andar desse jeito, porque senão, nem podia ir à Caucaia”. Nessa época, Caucaia não era Caucaia. Era Soure, Mata Queimada. O primeiro nome da Caucaia era Mata Queimada e, depois, passou a ser Soure. Agora é Caucaia, a origem dos Tapeba.
P/1 – Como foi a sensação de usar um vestido pela primeira vez?
R – Eu só peguei e soltei, porque eu achava que aquilo não tinha nenhuma importância. E não tinha mesmo, pois para nós, índios, os nossos penachos é que tinham importância. A minha mãe começou a dizer que tínhamos que nos vestir, porque se fôssemos para Caucaia a polícia iria nos prender, dizer que somos doidos. Eu perguntava a ela sobre o que era doido. O que era um doido? Eu nunca tinha visto um doido na minha vida. Ela dizia que era gente que andava correndo atrás para nos bater. “Quer dizer que, se eu me vestir esses doidos não vêm me bater?”. E ela dizia: “É”. Ela nos embelezava para poder se vestir, porque não tínhamos o costume. Até que enfim, eu me acostumei. Quando eu ia pescar, ia embora nua e deixava a roupa lá. Depois, ela mandava buscar para eu me vestir. Foi difícil eu me acostumar com essas roupinhas velhas. Eu cortava porque era comprida; eu deixava curtinha por causa dos penachos, que eram bem curtinhos. Eu deixava curtinho. O pessoal dizia que não era daquele jeito. Eu dizia: “E de que jeito que eu tenho que andar? Agora, tudo é do jeito de vocês? Vocês têm um jeito, eu tenho outro”. Eu me acostumei, mas achava meio esquisito andar com aquelas roupas. Era uma coisa que eu não tinha o costume. As pessoas queriam que, de repente, eu mudasse. Foi difícil, mas eu me acostumei com essas roupas.
P/1 – A senhora disse que saía para caçar junto ao seu avô. O seu pai também participava dessas caçadas?
R – Também. Íamos todos juntos quando eu era pequena: o meu pai, a minha mãe e os meus irmãos.
P/1 – Como era a vida dentro de casa?
R – Dentro de casa as tarefa era maiores, porque um fazia um colar, o outro raspava a mandioca, os outros ralavam a mandioca para fazermos a farinha. Isso tudo era feito dentro de casa. Fazíamos no forno. Um ia relando, outro lavando aquela mandioca, para tirar a manipuíra e deixar assentar para tirar a goma. Os outros ia colocando a lenha naqueles cacos para torrar aquela farinha para comer. A luta era maior, mas era uma luta bonita, uma luta de união, todo mundo trabalhando e fazendo uma mesma coisa; todo mundo conversando, achando graça, naquela alegria. Era uma luta dentro de casa, mais do que na mata, porque na mata eu andava caçando, mas cada qual tinha uma tarefa para fazer ali dentro daquela oca.
P/1 – Nas brincadeiras e nas tarefas do dia a dia, tinha uma divisão entre meninas e meninos? Como era isso?
R – Não. Todo mundo brincava junto. Cada um pegava uma corda bombeando para o outro pular; tinha aquelas brincadeiras de pedra. Pegávamos caroço de mucunã para jogar pedra. Minha mãe nos ensinava e o meu pai cansava de brincar conosco, porque não tinha brincadeira, não tinha escola, não tinha nada. Ele via aquela rama de crianças e dizia: “Vem todo mundo jogar pedra”, e todo mundo ia pular corda, fazendo aquelas roda. Era uma vida muito boa.
P/1 – A senhora poderia descrever como era uma dessas brincadeiras ou como era o pular corda?
R – Pegava uma corda em que cada um segurava numa ponta da corda. Ficávamos bombeando no chão e o índio vinha correndo para dentro da corda e ficava pulando, colocando no chão. Não tinha corda, era uma rama de salsa bem comprida. A rama da salsa bombeando e ele dentro pulando. Às vezes, entrava de dois numa roda correndo, um passando pelo outro. Pegávamos cinco pedras e jogávamos para cima para pegar com a mão as pedras que estavam no chão. Jogava uma para cima e pegava a que estava no chão e aparava. Essas eram as brincadeiras das crianças indígenas.
P/1 – A senhora lembra de alguma cantoria da época, de alguma festa?
R – Somente das músicas que temos ainda hoje. Nas nossas festas tinha a dança do Toré. Fazíamos festa a noite todinha. Todo mundo dançando ao redor da fogueira de São João. Sempre fizemos essas festas. As músicas que ele cantou aqui, não nos esquecemos, sempre a levamos no pensamento, na memória. Passamos isso para eles. Hoje, eles estão passando para os filhos dele, que já tem três netos. Então, daqui alguns dias, ele já estará passando essas músicas para os seus netos. E, assim, a tradição nunca se acaba. A cultura vai sempre indo para frente.
P/1 – E aí a senhora foi crescendo, foi ficando mais mocinha. Como foi se casar e ir morar com um homem? Quem foi essa pessoa? Enfim, você pode nos contar sobre isso?
R – Essa pessoa foi, infelizmente, o cacique Alberto, era o meu marido. Era! Passei 25 anos casada com ele. Meu casamento foi dentro da aldeia, feito pelo cacique e o pajé. O cacique

era o Vitor Tapeba, que era o pai dele. Aí em frente tem o posto Vitor Tapeba. Foi uma cerimônia ao pé da fogueira, para unir o casal. Em 1972 eu comecei a ter os meus filhos. Precisava registrar os filhos porque eles não eram cidadãos, não eram brasileiros, por não serem registrados. Ninguém registrava naquela época. Para isso, tive que casar no padre, um tal de casamento civil que, para mim, foi uma coisa terrível. Eu não tinha esse costume. Eu disse: “Casar? Padre? Eu já sou casada”. Mas diziam: “Você foi casada dentro de uma aldeia. Isso não serve.” “Por que não serve?” “Porque não.” “E aqui, com esse padre, serve?”. Casei no civil para poder registrar os meus filhos, para eles poderem ser gente, serem brasileiros, serem cidadãos e não sei o quê. Eram bichos, eram brutos, era não sei o quê. Eu disse: “Ah! Minha Nossa Senhora do Céu! Tudo isso! Será que eu ainda vou ver mais coisa daqui para frente?” E, de fato, foi aumentando as coisas que eu nunca tinha visto. Tive de batizar o menino. O cacique e o pajé batizavam as crianças dentro de um rio ou de uma lagoa. Faziam três mergulhos, rezavam a Salve Rainha e a Ave Maria e oferecia. Pronto: já estava batizado. Aí, levava para uma pia, para batizar os índios. Que coisa ruim!
P/1 – Eu fiquei curioso para saber como foi o seu casamento?
R – O casamento feito com o cacique e o pajé? Ele colocava um prato com um bocado de erva, de raiz-de-pau e colocava fogo para sair aquela fumaça. Ele ia cantando essas mesmas música do Toré. Ele fazia aquela reza - ele tinha a Salve Rainha, a Ave-Maria. Depois da reza deles, já estava casado. E para entrar numa casa... Nessa época, ele não era cacique. Veja, como foi ruim pra se acostumar: eu não tinha costume com essas coisas. A minha mãe nos ensinava essas coisas, de como era pra ser, mas quando se é muito jovem, principalmente naquela época, porque, hoje em dia, não, as crianças já sabem de tudo do mundo. Na minha época ninguém sabia de nada. Foi um tormento para eu me acostumar. Eu era toda esquisita, toda acanhada. Eu tinha medo dele. Era aquela coisa medonha. Eu conversava com a minha mãe e ela dizia: “Filha, é assim e assim. A vida de um casal é desse jeito. Você vai fazer comida para ele, vai lavar, vai ser uma esposa dele. Você vai depender dele e ele vai depender de você. Tem que ser assim. Depois, vão aparecer os filhos de vocês”. Depois, eu me acostumei.

Eu vim morar aqui com três filhos. Mas, infelizmente, passei 25 anos casada. Há 29 anos eu sou separada dele, que mora com outra mulher.
P/1 – A senhora falou que felizmente?
R – Infelizmente, porque ele fez uma covardia muito grande, que eu nunca me esqueço.
P/1 – O que foi isso? Você pode contar?
R – A mulher com quem ele me deixou era minha tia, irmã do meu pai. Ela morava comigo. Ele começou a gostar dela. Eu saía para trabalhar, vender artesanato ou mesmo pescar e ele ficava com as crianças. Certo dia, quando cheguei, a minha filha mais velha disse que tinha pegado ela deitada com ele. Eu não acreditava e não ia brigar com alguém sem ver. Não gosto de briga. Eu não acredito numa coisa que eu não vi. Eu disse: “Não. Isso é mentira. Eu nunca vi.” “Pois você vai pegar”. Eu digo: “No dia que eu pegar, minha filha, é outra coisa, Mas se eu não pegar, não vou brigar nem com ela que é minha tia, nem com ele que é o seu pai. No dia em que eu peguei, também não teve briga. Ele tinha saído e, quando chegou, eu disse: “Alberto, está aqui a sua roupinha. Vá morar com a mocinha. A partir de hoje, você vive a sua vida com ela e eu vivo a minha vida com os meus filhos. Não quero homem nenhum. Não é por lhe respeitar, porque você não merece o meu respeito, mas respeitando a mim mesma e aos meus filhos”. E fiz isso. São 29 anos e nunca arrumei um homem na minha vida. E nem quero. Você acredita, isso? Tem muita gente que não acredita, mas eu digo: “Pode acreditar”. Nessa minha munheca aqui ninguém pega, só Deus e mais ninguém. Hoje em dia, ele não está mais com ela, mas com outra. Ele a deixou. Eu disse: “Colhe-se o que se planta. Você plantou, está colhendo agora.”
P/1 – A senhora ficou casada por 25 anos e teve quantos filhos?
R – Tive 12 filhos.
P/1 – Eu queria saber como eram os partos naquela época.
R – Naquela época se tinha o filho em casa, com as índias parteiras. Se estava sofrendo, elas colocavam um banquinho para descansar. Cada parteira tinha um banquinho. Botava lá e assentava a índia lá. Elas faziam aquelas orações na barriga daquela índia que tinha o bebê e colocava a índia para ir para o cantinho dela. O parto era normal. Tudo era feito em casa. Depois, com a Funasa [Fundação Nacional de Saúde], que trabalha com os índios, apareceu o cartão de vacina, o cartão de pré-natal para as índias fazerem o pré-natal, para saber como estava o menino - se estava atravessado ou não. Eu ficava pensando: “Meu Deus, naquela época não tinha menino atravessado. Todo parto era normal. Por que agora não é normal? Por que tem toda essa diferença. Quer dizer que, naquela época era uma coisa e agora é outra?”. Eu falava disso com as enfermeiras. Os meus filhos e netos nasceram em casa. As minhas netas tiveram de fazer o pré-natal e ir para o médico. O filho não nasce normal, tem que fazer a cesárea. Eu disse: “Por que que vocês sabem que não é normal? Por que tem que ser cesárea?” Leva para o médico cortar a barriga da mulher, costurar e vir com o menino no braço. Lá vem a mulher com o parto cesariano. Eu sei que tudo existe. O tempo vai passando e as coisas vão ficando diferente e difícil. Mas eu digo: “Eu não tenho fé em doutor.” Se doutor fosse Deus, mulher e filho de doutor não morria. Eu só acredito em Deus. Meus filhos me dizem: “Minha mãe parece que tem parte com aqueles ateu”. Eu digo: “O que é isso? Não é isso. Eu só tenho fé em Deus, só acredito em Deus e nas coisas da natureza e dos astros. É nisso que eu acredito, mas no doutor: não! Se eu tiver que ficar boa, eu tendo fé em Deus. “Eu vou beber esse copo d’água e com fé em Deus eu vou ficar boa”, e eu fico. Posso estar na mão de mil doutores, mas se não tenho fé em Deus, como é que eu vou ficar boa? Aqui na Terra, tudo depende de Deus. Se não for Deus, nós não vivemos.”


P/1 – Eu queria saber se a senhora consegue lembrar de alguma situação especial, algum parto que foi diferente.
R – Não, os partos eram quase todos normais. Teve uns dois partos diferentes: a índia foi pescar na beira da água, sentiu as dores para ter o bebê, mas a parteira não estava presente. E, nessa hora, quem pegou foi a minha mãe, que também era rezadeira e entendia das coisas. Ela começou a sofrer dentro d’água. Tiramos ela para fora d’água e a minha mãe disse: “A criança já coroou, não dá tempo para chegar em casa para parteira a pegar, o parto vai ser feito aqui”. Ela mandou eu ir buscar uma faca - ela sempre andava com uma faca para pescar -, para cortar o umbigo. Ela cortava com uma tesourinha, mas mandou-me buscar a faca. Eu disse: “Minha mãe, a parteira corta com a tesoura, como é que a senhora vai cortar com a faca?”. Ela disse: “Vá buscar a faca, menina”. Ela pegou a criança na beirada d’água, que já estava nascendo e cortou o umbigo da criança com a faca. Isso foi uma novidade muito grande porque eu nunca tinha visto ser cortado com a faca, era com a tesoura. Ela não tinha um cordãozinho para amarrar, então, puxou um pedaço da bucha, amarrou o umbigo do menino, embolou, colocou o umbigo com açude. A mãe saiu e fomos ajeitar as coisa para ir embora com essa mãe e o bebê no braço. O umbigo cortado com uma faquinha de serra e amarrado com a bucha. Era muito interessante a convivência dos índio, eles tinham muita sabedoria, aliás, eles têm uma sabedoria, porque a inteligência de pegar uma faca e cortar o umbigo de uma criança, que foi pega na beira dum buraco d’água, apesar de ser acostumado a pegar em casa, foi uma coincidência muito grande. A força de Deus que abençoa a mão dessas pessoa.


P/1 – A senhora teve os seus filhos deitada ou acocorada, na posição de pé?
R – Era acocada num banco. As parteiras sempre usavam um banquinho.
P/1 – A senhora lembra o nome de alguma parteira?
R – Sim. Era a comadre Isabel, a mãe Cristina e a mãe Chiquinha. Essas eram as nossas parteiras.
P/1 – Além dos partos, o que mais elas faziam na comunidade?
R – Elas trabalhavam com a medicina, mas tinham essa devoção para serem as parteiras. Eu tive um filho - esse que o carro matou -, e quem cortou o umbigo foi o pai dele, o cacique. Não tinha parteira nessa hora. Foi a uma hora da madrugada. Comecei a sofrer para descansar e ele disse: “E agora? Não tem nenhuma parteira por aqui. Quem vou chamar?”. Eu disse: “Ninguém. Ora, que Deus dá um jeito”. Quando o menino nasceu, ele pegou a tesoura, meteu dentro dum copo com álcool, mediu e cortou. Eu disse: “Mede quatro dedos do umbigo e amarra”. Ele mediu, amarrou e cortou o umbigo. Ele morreu com 12 ano porque o carro matou, mas no parto saiu tudo normal, foi tudo legal.


P/1 – A senhora lembra do primeiro parto? Como era ter um bebê em casa?
R – Foi quando fui ter a minha primeira filha, que tem 50 anos.
P/1 – Como é o nome dela?
R – A Isa mora ali. Comecei com aquelas dores, eu tinha comido muito aratu e senti muita dor. Eu dizia que estava com dor de barriga, por que tinha comido os aratus e que isso tinha feito mal. Pedi a ela fazer um chá de casca de laranja. “Mãe, deixa eu falar contigo: faz um chá de casca de laranja que eu estou com dor de barriga. Foi o aratu.” Ela disse: “Menina, não é aratu, você está meio descansada e vai ter nenê”, e eu disse: “Não vou.” “Você nunca teve, como é que diz que não vai ter neném?”, “Não é nada, mamãe. Foi a comida que fez mal”. Empurrava o dedo na goela para ver se provocava, mas não era. Ela disse: “Alberto, vai chamar a mãe Chiquinha”. Eu não estava entendendo bem. Foi só ela chegar, a menina já nasceu lá em cima do banquinho. Eu tive todos os meus filhos em casa.
P/1 – A senhora chegou a ter medo em algum momento?
R – Não, nunca tive. Hoje, vejo quando as mulheres vão ter os bebês, é sempre um alarme, gritos. Eu nunca fiz esses escândalos.
P/1 – E qual era a sensação depois que o menino saía?
R – Você fica livre, alegre, porque estava vendo aquele bebê ali para colocar nos braços e cuidar. Nem sabia o trabalho que ia dar. Pensava que era coisa fácil. Quando se tem o primeiro filho parece que será tudo fácil, mas não é. Você não sabe o trabalho que dá. Quando se tem um bocado, como eu tive, para cuidar sozinha, só eu e Deus, porque o homem foi embora. Aí, o bicho pegou, meu irmão. Trabalhar para criar uma rama de filho, só Deus. Mas Deus é tão bom que eu criei tudinho.
P/1 – E quais eram os principais trabalhos que a senhora teve?
R – Eu pescava caranguejo, saía de manhã para armar forjo e, de noite, estava pegando camarão para vender e arrumar um dinheiro para comprar o que comer. Quando não, era tirando olho de palha para tirar aquelas buchas para vender por quilo e comprar o comer dos meus filhos. Mas nunca ninguém dormiu com fome. Nunca teve algo como: “Hoje, meu filho vai dormir com fome porque não tem pai para dar de comer”, porque eu sempre me garanti para dar de comer aos meus filhos. Toda a vida eu gostei de seguir. Eu tenho 70 anos e você acredita que eu não sinto dor nas pernas, nem cansaço. Eu subo em qualquer escada e não sinto nada. Subo e desço serra e não sinto nada. Não tenho problema de pressão alta, diabetes, não tenho nada disso. Fui criada dentro do mato com caça, com leite da jumenta preta, só com coisas da própria natureza, dos astros.


P/1 – A senhora falou que é muito difícil criar 12 filhos. Qual era a principal dificuldade para criar tantas crianças? Além do que a senhora falou, de trazer a comida para dentro de casa, quais eram as outras dificuldades que a senhora enfrentou?
R – A comida era difícil, mas as outras dificuldades era lutar para que eles seguissem um caminho bom e na nossa cultura. Começaram a aparecer muitas coisa ruins do branco por aqui. A minha preocupação era: “Eu vou cuidar do meus filhos aqui, mas eu estou com medo que venha influenciá-los com alguma coisa ruim. Essa foi a minha preocupação, porque toda vida eles foram bons meninos, educados, nunca me responderam. Porque eu fui o pai e a mãe para eles. Dei de comer, as roupas e tudo o que eles queriam. Só o estudo que não, mas o resto, dei tudo aos meus filhos. Eles se criaram, arrumaram mulher, todos eles têm família e hoje em dia estão por aí. Agora, vamos ver a preocupação deles com os seus filhos, porque no mundo em que estamos, está cheio de coisa ruim, como as drogas, que era a minha preocupação. Imagine: uma criança deste tamanho! Tem que se preocupar em colocá-lo numa escola, porque hoje em dia tem de tudo o que a pessoa queira fazer para ser uma coisa boa, pra frente. Tem que se preocupar com o futuro, em melhorar a vida, e não piorar.
P/1 – Quando a senhora era pequena, lembra-se da sua mão, do seu pai ou dos seus avós reclamando de alguma coisa que o mundo oferecia de ruim naquela época?
R – Não me lembro porque, na verdade, não tinha. Não tinha bodega. Naquela época, não tinha bar. Tudo o que se comia vinha da natureza. Plantávamos a mandioca, fazíamos o beiju, pegávamos a caça. Essas eram as comidas. Não tinha bodega e nós mesmos fazíamos a farinha, a tapioca, o beiju. Plantava macaxeira a batata para comer. Ninguém falava em nada de ruim. Eu passei a falar de coisa ruim depois que eu saí da aldeia. Quando vim morar aqui, passei uns cinco anos sem ouvir de coisas ruins. De certo tempo pra cá, vão aparecendo mais coisas ruins. Fala-se de morte, que um matou, o outro roubou, o outro fez não sei o quê – coisas que eu nunca tinha ouvido.
P/1 – Quando a senhora saiu da aldeia?
R – Eu saí da aldeia depois da década de 1960.
P/1 – Mas foi porque se separou?
R – Não, foi porque fomos expulsos. Eu me separei quando já tinha um bocado de filhos. Fomos expulsos de lá e viemos morar aqui.
P/1 – Quando foram expulsos a senhora já era casada com o cacique Alberto?
R – Sim. Aí, eu vim morar aqui.
P/1 – E como foi a história dessa expulsão? A senhora pode nos contar alguns detalhes?
R – Fomos expulsos pelo pessoal que dizia que era o dono. Eles chegavam dizendo que eram os donos das terra, com uns arames para passar a cerca, mandando-nos arrancar as ocas, que eram as nossas casinhas, porque diziam que as terras eram deles. Com eçamos a brigar, dizendo que eles não eram os donos, porque a terra era dos nossos pais, dos nossos avós.

Então, era nossa também.
P/1 – A senhora lembra do pessoal que chegou pra tirar a senhora de lá? O que eles usavam?
R – Um era o Antônio Vestude, que dizia que era o dono da Lagoa do Pabuçu, que faz parte da Comunidade do Trilho. E tinuv i ha um homem que se chamava Zé, que eu também não sei o sobrenome. Eles chegaram com um bocado de gente para nos arrancar das nossas casas e passar o arame. Muita gente saiu, outros ficaram e, hoje em dia, ainda estão por lá. Tem um bocado de gente na aldeia. Eles não saíram. A minha mãe e o meu pai tiveram de sair porque o espaço em que eles colocaram a cerca não dava mais para montar as nossas ocas.

Nos lembramos da beirada do rio e, por isso, viemos morar aqui. No início, vieram poucas famílias Tapeba para cá mas, depois, vieram o resto. Hoje tem mais de 300 famílias indígenas que moram aqui e que vieram de lá.
P/1 – E a senhora lembra por que escolheram essa região para morar?
R – Porque pescávamos e caçávamos aqui. Sempre viemos caçar e pescar aqui, dentro dos mangues. Pegávamos todo o tipo de peixe. Como o rio era limpo, dizíamos: “Vamos morar na beira do rio, porque pelo menos pegamos o peixe. Então, vamos pra lá”. As lagoa já estavam cercadas e não tinha mais onde pescar. Só tinha o rio. Por isso, viemos morar aqui. Mas eu nasci e me criei lá. A metade dos meus filhos nasceram aqui.


P/1 – E a senhora se lembra de qual foi a sensação de quando chegou por aqui?
R – Eu não achei nada estranho, porque já passávamos o dia por aqui pescando. Eu já era acostumada com a beira do rio Ceará. Só o nome que era rio do Picu – nós o chamávamos de rio do Picu e, quando eu passei a morar aqui, nós ajuntamos e colocamos o nome dele de rio Ceará. E ficou assim. Teve um pessoal que veio atrás do endereço e nós dissemos: “Aqui é: rio Ceará, BR 222, o quilômetro 7, Caucaia. E ficou assim.
P/1 – Imagino que aqui começou a ter mais contato com as pessoas que não eram índios?
R – Sim.
P/1 – A senhora lembra dos primeiros contatos mais próximos com essas pessoas?
R – Não, porque quando viemos morar aqui, não tinha gente branca, não tinha ninguém na beira do rio. Só tinha uma casinha de uma senhora que morava na frente, que era parteira e índia Tapuia - não era Tapeba. Ela morava na frente, com o velhinho dela. Há pouco tempo, um carro matou o velhinho dela. Depois que viemos morar aqui apareceram pessoas pedindo para fazer uma casinha também. Eram pobre que não tinham onde morar. E não é porque somos índios que poderíamos dizer: “Não. Só os índios vão morar aqui”. Eu moro aqui e, se por uma hipótese, você chegar aqui e dizer: “Dona Raimunda, tem um cantinho aqui, a senhora deixa eu fazer a minha casinha?” “Pode morar, nós somos irmãos, nós somos filhos de Deus”. Porque eu ser índia é que somente eu que sou de Deus? Não, todos nós somos filhos de Deus, somos irmãos. O pessoal trabalhando junto conosco, nos respeitando. Nós também o respeitávamos. Temos essa convivência do índio com o branco.
P/1 – A senhora falou das parteiras e da medicina dos índios. A senhora se lembra de alguma doença que a deixou preocupada, que afetou os meninos? Como é que fizeram para curar?
R – A doença que me deixou muito preocupada foi uma que se chamava de catapora, bexiga braba. Essa foi a que me deixou mais preocupada, porque todos os meus meninos pegaram essa tal de catapora. Por toda a vida eu tive o costume de criar os meus filhos com a medicina que eu aprendi com a minha mãe. Ela trabalhava muito com a medicina. Eu aprendi e comecei a curar os meus filhos. Eu fazia os chás e quanto mais eu dava, mais aquilo piorava - nunca levei um filho meu para o médico. Eu nunca me consultei com um médico, porque eu nunca dei valor a isso. Eu fazia uns remédios e a febre subia, piorava. Eu fiquei preocupada. “Vou parar para pensar no que vou fazer aqui”. Lembrei-me que quando pegávamos catapora, sarampo e a minha mãe era viva, ela ia lá nas fezes do cachorro e fervia, fazia um chá, nos dava para beber e depois abafava. No dia seguinte já estávamos tudo bem. Nesse momento de aflição, com os meus filhos doentes, eu me lembrei da bosta de cachorro: “Vou caçar bosta de cachorro para fazer um chá”. Alguém disse: “Onde você arrumou essa ideia?” “A ideia da minha mãe era essa. Eu já vou lá. Sabe-se lá se não serve?” Peguei a bosta de cachorro, coloquei para ferver. Fiquei preocupada porque a febre aumentava e os meninos dando aquelas convulsões, aquela coisa. Fiz o chá, esfriei imediatamente e nem deixei abafar. Dei para ele tomar e o abafei. Isso foi às três horas da tarde. Às cinco horas da tarde ele me pediu para comer, pois já nem comia, e foi melhorando. Continuei dando o chá, mas sem ele saber do que era esse chá - dizem que não podia saber. E, ele está aí. Eu o curei. Depois, fui curar o resto que estava doente com esse meu remédio. A bosta do cachorro levantou o pessoal. Mas eu me vi preocupada com isso. Foi a única doença com que eu me preocupei.
P/1 – A senhora já teve algum problema de saúde?
R – Não. Eu não me lembro de adoecer, de ter que ficar internada. Até porque, quando eu tenho qualquer coisa, uma dor de barriga ou alguma coisa, eu faço logo um chá e bebo. Se estou com febre, faço chá de eucalipto com limão, coloco um dente de alho, misturo tudo, com uma colher de café dentro. Depois que ferve eu coo. Depois, quando fica frio eu bebo; suo e, no outro dia, estou boa. Sou acostumada com remédios caseiros e por isso eu tenho saúde. Fui criada com caça do mato, com remédios de medicina. Adoeci quando fui tomar uma vacina no posto. Disseram que eu tinha que tomar uma vacina contra a gripe. Deram-me uma em cada braço, que ficou inchado. Senti aqueles calafrios, como se eu fosse morrer. Coisa de médico nos faz adoecer, mas o remédio do mato não. Ele faz é curar.
P/1 – Além dos remédios, tinha alguma outra coisas para curar?
R – A reza.
P/1 – Como assim?
R – Às vezes, a pessoa está com dor nas costas: “Rapaz, estou com uma dor nas costas e nem levei pancada”. Ela vai até um rezador, que pega uma imbira, mede da ponta do dedo até aqui. Coloca aqui. Se passar, está com a espinhela caída. Se não passar, está normal. Quando passa, aquela rezadeira levanta a espinhela e pronto: aquela dor se acaba de repente. Isso levanta a espinhela. Então, tinha o rezador e os remédios caseiros. Hoje em dia, eu ainda tenho isso comigo. Eu rezo nas crianças, levanto a espinhela caída, tenho o meu trabalho com a umbanda, na pajelança. Tudo isso eu tenho. Isso é um dom dado por Deus. Desde os 17 anos que eu tenho esse dom de trabalhar com a umbanda. Eu tenho essa energia com a umbanda, com os encantados. As rezas que eu rezo, em que levanto espinhela caída, ventre caído da criança, quebrante, esse tipo de coisa; curo com remédios de medicina - trabalho com um bocado de coisa na medicina - na reza e na pajelança. Eu sigo em frente naquilo que for possível e bom para a cultura do meu povo .
P/1 – E como é feita a pajelança da cura que a senhora está contando? Como é a questão da umbanda?
R – A pajelança faz os bons pensamentos com os encantados. Eles existem. Fazemos aquele pensamento, aquela corrente, aquela oração. Ele afasta tudo o que estiver de ruim no meio do nosso povo, com aquela fé, aquela força dos encantados. Aquilo se afasta, se retira e pronto. Fica tudo normal.


P/1 – O que seriam os encantados?
R – São os encantos que os pais de santo falam em casa de umbanda, que trabalha com aquilo que o pessoal chama de macumba, mas que para nós, índios, não é macumba, mas é a pajelança. Fazemos uma pajelança com todos os índio, agarrados um na mão do outro, com aquele pensamento forte, com aquela cultura.


P/1 – E onde acontece a pajelança?
R – Às vezes fazemos na lagoa onde mora o Dourado, porque lá nós temos o terreiro sagrado do pau-branco. Não sei se ele os levou pra ver. Tem umas oca lá na beira da lagoa. Lá, onde mora o cacique Dourado, é o canto sagrado para fazermos a pajelança.
P/1 – Quando isso acontece, como é que a senhora faz? Acaba dormindo por lá ou vai e volta?
R – Às vezes eu durmo por lá, às vezes eu volto. Quando arrumamos o transporte, voltamos. Quando não, dormimos por lá. Ficamos todos juntos, fazendo aquela fogueira e a pajelança. Tinha o Dourado, o filho dele que é o Weibe e todo mundo junto. Dormimos e acordamos lá. Tem no tempo da festa do pau-branco em que passamos três dias seguidos comendo e fazendo tudo lá. Nesses três dias fazemos uma passeata - foi a morte do nosso último cacique, quando o Alberto passou a ser o cacique. Ficamos os dias 17, 18, 19 e 20 de outubro nas festa do pau-branco. Todo ano vamos pra lá com a pajelança. É muito bom.
P/1 – A senhora lembra desde quando participa dessa festa da pajelança?
R – Fazem muitos anos. Quando eu comecei na pajelança, nos encantados, eu tinha 17 ano. Mas, para participar mesmo, depois que eu peguei a missão de rezar, de curar, de trabalhar com a medicina e também ser a pajé do povo – quando engajei-me na pajelança dos povos indígenas.
P/1 – E quando é que se dá esse momento em que a senhora se sentiu responsável pela sua comunidade.
R – Eu me senti responsável no dia em que eu passei a ser a pajé do povo. Eu já tinha responsabilidade no trabalho, mas quando a pessoa recebe uma missão para ser pajé a responsabilidade aumenta, pois tem que cuidar da pajelança, da medicina, dos remédios e participar de tudo: orientar, dar um bom conselho. Em tudo ele tem de participar, estar presente. Não pode ser ausente. Essa é uma responsabilidade muito grande que eu sinto e tenho muito orgulho de terem me escolhido como a pajé deles. Tínhamos o nosso page e eles me escolheram. “O nosso pajé não existe mais e ela, a Raimunda, que é curandeira, vai ser a pajé do nosso povo.” Foi uma honra muito grande ser escolhida como pajé.


P/1 – Como ocorre essa escolha?
R – Foi uma reunião muito grande, tipo uma assembleia geral. Temos o nosso momento de escolher o nosso povo e eu fui escolhida como a pajé do povo Tapeba.
P/1 – A senhora lembra da ou do pajé da época em que a senhora era pequena e morava na aldeia?

Quem é que fazia esse papel? O nome da pessoa?
R – Esse papel de pajé era do irmão do Antônio Zabel, que era o cacique. Depois, o pajé foi o Seu Zé Tatu. Depois dele me escolheram para ser pajé.
P/1 – E a senhora lembra do pajé fazendo alguma reza para a senhora quando ainda era uma criança?
R – Não. Eu assistia muito, mas eu nunca tinha doença para curar, porque a minha mãe também era curandeira e quando ela via um doente, já fazia os remédios. Eu assistia quando ele estava fazendo os trabalhos, aquelas curas, naquela pajelança. Eu sempre estava no meio, curiosa. Estava sempre prestando a atenção nessas coisas.
P/1 – Acho que já conversamos o bastante. Vamos encaminhando para o final.
R – Está bem.
P/1 – Acho também que a senhora tem bastante coisa pra fazer. (risos)
R – Tenho sim, mas não está me preocupando. Eu tenho o momento de fazer as minhas coisas.
P/1 – Como é a sua vida hoje em dia? O que a senhora faz? Como é o dia na sua casa? Quais são os seus afazeres?
R – Meus afazeres em casa são: fazer um cocar, uma saia. Eu não moro só, porque este filho está separado da mulher e ele mora comigo e com o meu netinho. Somos os três dentro dessa casa. A minha preocupação é de cuidar deles e do meu netinho e fazer os meus trabalhos. Tem muitas reuniões da comunidade e eu, como pajé, tenho de estar presente. As reuniões são sobre a demarcação da terra, saúde eu tenho que estar presente. Nos momentos de discussão de qualquer coisa eu tenho que estar ali orientando o povo. Buscamos o nosso direito pela demarcação da terra, saúde e educação para os jovens índios que estão aqui. Brigamos por uma escola, por uma merenda escolar e todo esse tipo de coisa. Em casa, a minha obrigação é fazer os meus colares, lavando um paninho quanto tiver sujo, ajeitando por ali... De noite, é só me deitar e dormir. Se tiver que passar três dias fora por causa de uma reunião, ou por conta da pajelança, eu vou. Sinto a obrigação de estar presente nesse tipo de coisa. Não posso falhar nisso. Só se eu estiver doente. Que Deus me livre, mas até agora não.
P/1 – Qual é a terra que vocês lutam pela demarcação?

Que lugar é esse?

Onde fica isso?
R – É aqui, na fazenda do Seu José Geraldo, desse lado em que confrontamos com o Centro Cultural que tem daquele lado, naquela redondeza em que mora o cacique Dourado. Aqui é uma parte do Campo Grande, Capoeira, uma parte do outro lado do Trilho, Sobradinho, que é onde mora o cacique. Tem uma parte que está dentro da demarcação de terras. São essas terras que estamos lutando para ser demarcada. Lá só tem a mata. Tem povos indígenas lá dentro e estamos lutando para voltar a ser como antigamente e fazer as obras de novo.
P/1 – E quem ajuda nessa luta?
R – O Governo Federal, o Governo do Estado e a Funai tem que ajudar. Mas até o Governo do Estado foi contra essa demarcação. Ele mesmo contestou as nossas terras. Ele apoiou no começo. Tivemos uma reunião com ele, que disse que ia fazer a demarcação todinha. A Dilma já tinha assinado e ele ia dar a maior força para o ministro baixar a portaria. Mas, depois que os posseiros mandaram um papel contestando, dizendo que não era para serem demarcadas as terra, o governo também estava no meio. Mas as eleição vem aí, e ele que me aguarde: não vai ganhar um voto nosso, porque eles só estão lá porque os sete mil índios aqui no município de Caucaia votaram nele. Confiamos neles e, do meio para o fim, não fizeram mais nada. Não confiamos mais neles. Não faremos mais nada por eles. Eles não estão fazendo por nós.
P/1 – Entendi. Ouvindo a senhora falar todas essas histórias e a maneira que a senhora se coloca, vejo que a senhora é uma liderança aqui dentro.
R – Exatamente.
P/1 – A senhora prepara alguém para fazer esse papel de liderança?
R – Sim. Preparo os meus filhos, porque daqui alguns dias, quando eu não estiver mais aqui... Esse menino, que estava se pintando aqui, tem essa tradição desde criança. Tudo o que vai fazer ele já amanhece o dia pintado. Ele vai e volta de Caucaia desse jeito. As pessoas ficam olhando: “É um índio”. Ele vai e volta. Anda desse jeito. Um índio desse aí no futuro pode ser até um cacique, pois passa de pai para filho. Tem de prepará-lo para ser um cacique.
P/1 – O que ele vai fazer em Caucaia?
R – Ele vai comprar alguma besteira – compramos as coisas lá em Caucaia. Às vezes, ele é chamado para alguma entrevista nos colégios, para os alunos ouvirem a história da cultura dos índios. E, às vezes, eu vou para uma reunião e ele me segue. Ele tem um grupo de criança que dança o Toré. Ele é muito firme no serviço dele.
P/1 – A senhora falou que vendia artesanatos. E hoje, do que a senhora vive?
R – Hoje eu vivo somente da pesca. O artesanato é esse aqui. Eu faço um cocar, uma saia. Às vezes, é muito difícil, porque eu não sou aposentada. Trabalhei 12 anos de carteira assinada no posto da Funasa, mas não me aposentaram. Disseram que iam me dar um benefício, mas eu não sei o porquê, não me aposentaram. Disseram que eu não tinha tempo de carteira assinada. A Funai só me aposentaria se eu nunca tivesse trabalhado de carteira assinada. Seria somente um benefício. Esse benefício poderia ser cortado, de uma hora para outra. Eu disse: “Não importa se for cortado. Enquanto eu poder me mexer e arrumar alguma coisa para eu comer, eu arrumo”. E me deram esse benefício. Em um mês é 300, às vezes 250 ou 400 reais. E vou seguindo. Eu agradeço a Deus por tudo que faz.
P/1 – A senhora falou que vive da pesca, mas quem é que pesca?
R – Quase todos os meus filhos pescam. Tem o caranguejo para vender aos sábados e domingos. Vendem o Maracanaú nas barraquinhas na beira da pista para arrumarem um dinheiro para comprar um feijão para comer.
P/1 – A senhora trouxe uma informação que eu não tinha: que trabalhou na Funai. Como é que foi isso?
R – Funasa.
P/1 – Na Funasa. Como é que foi isso?
R – Eu trabalhava lá na pesca. Eles montaram um posto e, como eu era a pajé do povo, disseram: “Vamos levar a Raimunda para dentro porque ela sabe da história. Esse povo que vem aí não sabe de nada da cultura indígena. Para trabalhar com os povos indígenas tem que ter uma sabedoria. A pessoa indicada para trabalhar com esse povo é a Raimunda”. Eu era a zeladora mas todo mundo chegava e dizia: “Vai lá para a Raimunda”. Eu deixava o trabalho e ia conversar com o povo. O pessoal escrevia, gravava. Passei 12 anos assim. Todo mundo que vinha eu estava ali para atender, para responder o que eles queriam saber. O passado, a minha história, como agora. Eu sempre estava lá explicando.
P/1 – Você já fez esse exercício de falar do passado outras vezes?
R – Muitas vezes.
P/1 – E como é contar essa história?
R – Tem que contar, porque a pessoa quer saber. Se a pessoa se recusa a contar essa história, essa sabedoria dos nossos antepassados, a pessoa não passar por ignorante. Temos a obrigação de explicar. Se a pessoa está perguntando, temos de ter paciência de explicar a história, para que a pessoa possa saber. Se chega, aqui: “Dona Raimunda, eu quero saber disso.” Não vou com as sete pedras na mão. Eu tenho que saber o que você quer saber. “O que você quer saber? Eu estou aqui para responder o que eu souber, pois o que eu não sei eu não respondo.”
P/1 – Como era o seu trabalho na Funasa? A senhora tinha carteira assinada e tinha que cumprir um certo horário?
R – Era de carteira assinada. Eu entrava às seis horas da manhã e saía às duas horas da tarde.
P/1 – E como foi essa época na sua vida?
R – Eu pescava e tive de deixar a pesca para trabalhar de carteira assinada, como zeladora. Saía seis hora da manhã e chegava as duas hora da tarde. Foram 12 anos. Quando fui me aposentar - eu saí com 63 anos. Disseram que eu tinha que ajeitar a aposentadoria. Quando fui ao INSS [Instituto Nacional do Seguro Social], disseram que eu não me aposentaria. A Funai [Fundação Nacional do Índio] disse que eu não me aposentaria como pescadora ou como agricultora porque eu nunca tinha trabalhado e não estava mais trabalhando na roça e na pesca. No INSS também não me aposentaram porque disseram que eu não tinha 13 anos na minha carteira. Eu só tinha 12. E teria que trabalhar mais dois anos, mas eu disse: “Não vou e ninguém mais vai me obrigar. Vou ficar em casa, vou pescar, vou fazer artesanato. Isso dá para eu me manter”. E voltei pra casa.s
P/1 – E por que a senhora não quis mais trabalhar na Funasa?
R – Entrou uma empresa querendo me mandar e eu não sou de aguentar abuso de ninguém. Eu disse: “Não”. Enquanto estava todo mundo bem, eu estava aguentando. Mas depois, começaram a mandar... Pedi para sair e vim embora.
P/1 – O que a senhora fazia lá mesmo?
R – Era zeladora.
P/1 – Zeladora?
R – Serviços gerais. Eu limpava tudo, lavava a roupa e até a comida eu fazia para aquele povo. Fui embora e fiquei em casa. Quando completei 65 anos eu fui ao INSS, porque me disseram para eu ir lá. Mas disseram que não iam me aposentar e que iam me dar só um benefício. Eu aceitei. Fazer o que, né!? Eu ainda estou vivendo com esse beneficio e agradeço a Deus por isso.
P/1 – Como a senhora imagina a vida daqui alguns anos?
R – Imagino que os meus filhos tenham uma boa compreensão e que levem esse trabalho para frente. Eu não sei o dia de amanhã. Estou hoje aqui, conversando com vocês, e amanhã ou depois vocês chegam aqui e dizem: “Ela não está mais, Deus a levou”. Eu penso no dia de amanhã. Penso o futuro para os meus filhos, netos e para o meu povo em geral. Penso no futuro de todos eles, que é a demarcação de terra. Quero que eles tenham uma boa compreensão, um bom trabalho pela frente e que sejam humildes, pessoas boas, que respeitem os outros. Porque hoje eu posso estar aqui, mas amanhã eu posso não estar. Espero que Deus não me leve agora, mas isso não está no meu querer, mas em Deus. Se ele disser: “Você vai agora”, eu vou ter que ir. Eu penso assim, desse jeito e dessa forma.
P/1 – A senhora fala bastante na demarcação da terra.
R – Isso.
P/1 – Teria alguma coisa a mais para a senhora realizar em vida? Ainda há alguma coisa que a senhora sonhe em realizar?
R – O que eu penso em realizar somente é a demarcação da terra. Que eu ainda seja viva, que eu alcance a demarcação. Isso seria o meu maior sonho e alegria: o povo voltando para as suas ocas, para dentro da sua área de novo, para viver como antigamente. Preservar a cultura, a tradição, mas eu já estou achando isso muito impossível.
P/1 – Por que mesmo?
R – Porque esse pessoal atrapalha e é muito difícil. Pode não ser, mas tudo para Deus é possível. Quem sabe Deus não quebre a força de todo mundo e a terra não seja demarcada? Eu ainda alcanço essa terra demarcada. Isso eu acho que é o meu sonho, a minha alegria: ver essa terra demarcada.
P/1 – Bom, Dona Raimunda, eu acho que é isso. Eu queria agradecer muito a senhora por ter nos deixado entrar e pela senhora contar essa história tão bonita.
R – Exatamente. Você já sabem onde eu moro. Se quiser ver alguma coisa, saber mais, pode vir que eu estou aqui de braços abertos para receber vocês.
P/1 – Muito obrigado. (risos)
R1 – E deem uma força para a nossa demarcação de terra, que é o que estamos precisando.
P/1 – Está certo.