Museu da Pessoa

Ética e responsabilidade fiscal

autoria: Museu da Pessoa personagem: Ippo Watanabe

Projeto: Centro de Memória do Conselho Regional de Contabilidade de São Paulo
Depoimento de Ippo Watanabe
Entrevistado por Ignez Barretto e Andréa Afonso
Local: São Paulo - SP
Data: 3 de maio de 2001
Realização: Museu da Pessoa
Código da entrevista: CRC_HV008
Transcrito por Marcília Ursini
Revisado por Grazielle Pellicel

P/1 - Ignez Barretto
P/2 - Andréa Afonso
R - Ippo Watanabe

P/1 - Bom, eu vou começar fazendo algumas perguntas básicas do roteiro geral, só para situar, e depois eu vou passar para a parte mais temática, tá?

R - Muito bem.

P/1 - Então, eu gostaria que o senhor falasse o seu nome, local e data de nascimento.

R - O meu nome é Ippo Watanabe, nasci na cidade de Presidente Prudente no dia 8 de junho de 1931. Daqui a alguns dias eu faço 70 anos.

P/1 - O nome do seu pai e da sua mãe?

R - O meu pai chama Shigueru Watanabe, a minha mãe Tsunei Watanabe.

P/1 - A origem da sua família?

R - Os meus ancestrais eram agricultores no Japão.

P/1 - E vieram para o Brasil?

R - Vieram para o Brasil com a imigração, mais ou menos em 1925, 1927, por aí.

P/1 - Certo. E o senhor, então, nasceu em Presidente Prudente...

R - Nasci em Presidente Prudente. O meu pai começou a trabalhar no Vale da Ribeira e ele teve que sair de lá por causa da malária, dava maleita lá. Ele começou a procurar regiões no interior de São Paulo, acabou encontrando lá a cidade de Presidente Prudente. Saiu da lavoura e foi ser comerciante.

P/2 - Ele vendia o quê?

R - Ele era comerciante de secos e molhados, e também cerealista.

P/1 - E o senhor nasceu [e] teve a infância lá, como é que foi a primeira escola?

R - Ah, eu estudei em um colégio particular inicialmente, esse colégio chamava Colégio São Paulo. Não havia escola na época, no interior. A colônia japonesa se reuniu, juntou um dinheiro, comprou o terreno, edificou um prédio lá e contratou uns professores para manter esse Colégio São Paulo. Lá, quando eu estava com uns... Quando completei 8 anos de idade, em 8 de junho, me mandaram para fazer o primeiro ano para completar o quadro da escola. Então eu comecei com a aula começada pela metade.

P/1 - Aí já era uma escola pública?

R - Particular.

P/1 - Não, a segunda escola, também era...?

R - Ah, não. Durante quatro anos eu estudei em colégio particular. Depois, fui fazer uma escola pública, o grupo escolar... Atualmente chama Adolpho Arruda Mello. Fui estudar nesse grupo escolar.

P/1 - E foi lá que o senhor fez. Depois disso, é que o senhor fez a Escola de Comércio?

R - Aí, eu fui estudar, fazer o curso ginasial em um ginásio do Estado, que era recém instalado. Por atuação política também, não havia ginásio na minha terra, só tinha o Colégio São Paulo, que tinha o curso ginasial particular. E foi instalado o ginásio do Estado. Eu fui estudar numa das primeiras... Segunda turma. Fiz o ginásio lá. Aí, se fosse pela vontade dos meus pais, talvez eu estivesse sido encaminhado para estudar Engenharia, e teria vindo para São Paulo para estudar aqui em São Paulo. Mas, por circunstâncias da vida, eu fui trabalhar no comércio, em Contabilidade, e acabei indo fazer o curso de Contabilidade neste Colégio São Paulo, que o mesmo Colégio São Paulo mantinha a Escola Técnica de Comércio São Paulo.

P/1 - Era uma continuação do ginásio?

R - Era.

P/1 - Certo.

R - Isso aí pesou muito na minha formação porque, infelizmente, o curso comercial era mais fraco que o colegial, infelizmente. Só dava formação profissional, mas a parte de formação cultural...

P/2 - Era fraca?

R - É, não era boa.

P/1 - Mas ele era considerado equivalente a um curso de segundo grau?

R - É segundo grau.

P/1 - E a pessoa pode entrar na faculdade com aquele curso?

R - Pode, mas dependia na época do vestibular, né?

P/1 - Sei. Daí o senhor fez vestibular depois?

R - Isso dez anos depois. Fui estudar Direito em uma Faculdade de Direito que foi fundada na minha terra também. Eu tive que me submeter ao vestibular.

P/1 - Era difícil o vestibular naquela época?

R - Não, não era difícil. (risos)

P/1 - Bom, então, logo o senhor já começou trabalhando em Contabilidade...

R - É, aos 13 anos de idade.

P/1 - Aos 13 anos. E o que o senhor fazia, como é que era o trabalho?

R - Comecei trabalhando com faturamento, aqueles serviços auxiliares, inclusive de “office boy”, pagar guias de impostos nas coletorias estadual e federal, ir às repartições públicas etc. À medida que a gente foi avançando, eu fui aprendendo. Fazia, copiava fatura - o famoso copiador de fatura. Mais tarde é que fui aprender a escriturar: comecei escriturando os livros fiscais, mais tarde fiz os livros de Contabilidade também.

P/1 - O senhor fazia isso manualmente? Ou era máquina já?

R - Na época, era manual. Eu só vim trabalhar com sistemas de Contabilidade do tipo Ficha Tríplice, “Front feed” e “Ruf” etc., mais tarde. Agora, as máquinas sofisticadas de Contabilidade que haviam, da Remington e outras marcas, que eu não me lembro agora, estas não haviam no interior, só nas grandes empresas da capital.

P/2 - O senhor se formou nessa escola de comércio com que idade?







R - Só fazendo as contas, né? (risos) 1950, 50 menos 31. 19, né?

P/2 - E continuou no mesmo serviço que o senhor estava?

R - Continuei.

P/1 - Bom, aí o senhor estava trabalhando lá, chegou a fazer a faculdade...?

R - Dez anos depois, de Direito.

P/1 - E qual foi então, a sua trajetória? O senhor começou como...?

R - Eu continuei trabalhando em Contabilidade como autônomo...

P/1 - Até o momento em que o senhor prestou um concurso, não foi isso?

R - Isso, em 1954.

P/1 - E nesse momento, então, o senhor começa a trabalhar para o governo, é isso? Para o governo do Estado?

R - Não, 1954. Não. 1964.

P/1 - 1964.

R - 1964. Trabalhei na Secretaria da Fazenda três anos como fiscal do ICM , antigo imposto de vendas e consignações, durante três anos.

P/1 - Em Presidente Prudente?

R - É. Eu gostaria de lembrar o seguinte: existe um formulariozinho que o fisco trabalha que chama Declaração de Movimento Econômico, que o Fisco é obrigado a trabalhar com aquele impressozinho, com base nos livros fiscais. Na realidade, quem olhar direitinho aquele formulário, é um levantamento de um Balanço.

P/1 - E esse formulário, o senhor trabalhou com ele a vida toda?

R - Não, todos os fiscais de renda do Estado trabalham com esse formulário.

P/1 - Até hoje?

R - Até hoje.

P/1 - E desde que o senhor começou, quando o começou a carreira, usava esse formulário?

R - Se não conhecer Contabilidade, não consegue trabalhar como fiscal do ICM.

P/1 - Certo. Então é um treinamento?

R - É uma vantagem para quem é formado em Contabilidade, trabalhar na fiscalização do ICM.

P/1 - Certo.

P/1 - Depois disso, o senhor foi trabalhar no imposto de renda?

R - É. Aí, em 1967... Eu fiz vários concursos, em alguns eu passei, em alguns eu não passei. E no que eu passei, foi esse de 1968. O concurso era do Ministério da Fazenda, do DASP, se chamava Concurso C-688. Foi o último concurso de agente fiscal do imposto de renda. Depois, no Ministério da Fazenda, houve uma fusão de quatro repartições fiscais. Três tipos de fiscais, de aduaneiros, fiscais do imposto de consumo e fiscais do imposto de renda, e os antigos coletores, foram fundidos todos em uma só carreira.

P/1 - Que é...?

R - É o atualmente denominado auditor fiscal do Tesouro Federal. Mas teve "n" alterações de nome a carreira.

P/1 - E o senhor entrou nesse segmento aí, do imposto de renda, e depois passou a fazer todas as outras coisas também, ou não?

R - Que outras coisas?

P/1 - Não, essas outras.

R - Não, o imposto de renda é uma especialização que exige muito estudo, sabe?

P/1 - Total. Só para isso. (risos)

R - É muito tempo. Exige saber uma porção de coisa e usa 10% do conhecimento. Mas se não souber tudo, não consegue executar os serviços.

P/1 - E essa legislação mudou muito ao longo do tempo?

R - Ela vem mudando em função de problemas de arrecadação e problema de realização de despesa. Nós, infelizmente, vivemos no mundo da... Muitos vivem no mundo da economia invisível. Não se consegue trazer as pessoas físicas e jurídicas que vivem no mundo da economia invisível. Veio da França a expressão: “Economia subterrânea.” Pessoas que não declaram sua renda, não pagam impostos. Aí o governo é obrigado a criar um sistema de tributar, mas de quem já paga.

P/1 - Certo.

R - Aliás, em matéria de tributo, sempre houve a seguinte expressão: “Onde todos pagam, todos pagam menos.” E, infelizmente, no Brasil acontece ao contrário, ao ponto de, para se arrecadar bem, o professor criou essa figura de criar recursos. Para a área de Assistência Social e de Medicina, inventou esse tal de CPMF, que hoje não é destinado só para Assistência Médica e Social. É renda que vai para o erário [conjunto de recursos financeiros públicos], para as outras despesas. E ainda subiu a percentagem. Isso aí é um problema tributário...

P/2 - Que todos sentimos, né?







R – É. Onde se diz: “Onde todos pagam, todos pagam menos. Onde todos não pagam por inteiro, poucos pagam mais.” É isso aí.

P/1 – Bom, eu vou agora entrar nas perguntas mais específicas para o trabalho, vamos pensar, de Centro de Memória.

R – Muito bem.

P/1 – Então quais temas, conceitos, questões, o senhor considera que deveriam ser abordados em um Centro de Memória da Contabilidade?

R – Bom, quando eu entrei aqui hoje, eu estava lembrando de um notável contabilista italiano. Nós estamos em 2001 - é do século passado, mas do começo do século passado, ele já deve ter morrido. Ele se chamava Clitofonte Bernini. Ele utilizava a seguinte expressão: “O contabilista, o contador, o técnico em Contabilidade é um homem de fé pública, o que ele faz e assina é a verdade.” Nem sempre tem sido, né? Eu estou dizendo, o problema básico que existe na profissão é esse aí. Ele tem que ser um homem de fé pública. Toda vez que estoura algum problema aí, em que se envolveu um colega profissional nosso, ele fugiu ao dever da fé pública.

P/1 - Então essa é uma questão fundamental.

R - Essa é uma questão importante. Não é no Brasil, não, é no mundo inteiro.

P/1 - No mundo inteiro. E está por trás do trabalho do contabilista, né?

R - É. Que a gente no Brasil tem a seguinte noção: que a Contabilidade se faz para fins fiscais, quer dizer, para pagar imposto. Não é verdade. A Contabilidade se faz para orientar o empresário, para ele ter uma posição da situação patrimonial dele, para ele se orientar em como administrar a empresa dele. É para dar informações ao seus credores, qual é a situação da empresa aos que emprestam dinheiro, aos bancos que financiam atividades mercantis e industriais. Eles precisam saber qual é a posição da empresa. E através da Contabilidade, através do contabilista, que a informação sai. É por isso que a gente diz: “Ele é um homem de fé pública.” Na medida que o contabilista não produziu um documento idôneo, não vai ter crédito nas instituições financeiras.

P/1 - Mas, assim, quer dizer, isso é uma regra que deveria ser...

R - Aqui no Brasil tem uma instituição que chama Serasa. É uma sociedade civil que foi instituída por um grande banqueiro, vou deixar de citar o nome dele. Começou com um banco e hoje todos os bancos são associados ao Serasa. É um sistema de informações das atividades mercantis e industriais, onde os Balanços são analisados, todo o patrimônio do empresário e das empresas são analisados, para fins de oferecer crédito. Se por um acaso um documento que não for idôneo chegar ao Serasa, as análises financeiras serão feitas e os créditos não serão dados ao empresário. Nesse sentido, é importante a atividade do contabilista, ele tem que produzir um documento idôneo.

P/1 - Ao longo desse trajeto aí... o senhor conhece bastante da história da Contabilidade, né?

R – Um pouquinho.

P/1 - Então, nós estamos tratando do período de 1850, mais ou menos, para cá. Como que o senhor acha que a Contabilidade se inseriu no processo econômico do país e quais foram as alterações em função disso?

R - A Contabilidade, nessa época, era feita apenas para os empresários. Naquele tempo, não sei se você sabe que, por exemplo, se diz que a Contabilidade se fazia para atender ao fisco, para fins tributários. Ora, o imposto de renda foi criado em 1922, anteriormente não existia. Então, antes de 1922 não se produzia nenhum documento contábil ou um Balanço para fins fiscais, produzia-se para o próprio empresário dividir o lucro entre os sócios, para apresentar às pessoas que davam crédito ao empresário.

P/1 - O governo participava pouco, então, dessa história?

R - O governo não, na época não. Só para fins de arrecadação de tributos. Eram outros os tributos. Tinha o famoso imposto de consumo, mas que incidia sobre a produção da mercadoria, não sobre a movimentação econômica. E antigamente existia o famoso imposto de vendas mercantis, que depois passou a ser imposto de vendas mercantis, depois ICM, que incide sobre a mercadoria que é vendida na comercialização. É a renda, já houve tempo que foi a renda da União. A partir de 30 e pouco é renda dos Estados.

P/1 - E com relação a São Paulo, especificamente, o senhor acha que o processo de mudança da agricultura do café, exportação de café, depois industrialização, isso teve alguma influência na maneira de fazer a Contabilidade?

R - A Contabilidade sempre obedeceu aos mesmos princípios, a titulação das contas é que vai modificando. São Paulo viveu e sobreviveu, o Brasil viveu e sobreviveu da cultura do café. Fazia-se a Contabilidade agrícola, do custeio da produção do café.

P/1 - Até quando mais ou menos?

R - Isso até vir a fase da industrialização aí.

P/1 - Sei. Depois mudou?

R - Não, continua. A agricultura [e] a pecuária continua aí. Depois houve desenvolvimento industrial, então o país deixou de ser meramente importador, deixou de haver meramente atividades mercantis, passou a ter atividades industriais. E a Contabilidade foi servir também às atividades industriais.

P/1 - Quais os fatores mais importantes que levaram a transformações ou rupturas na sistematização contábil? O senhor poderia destacar alguns marcos?

R - Não, a Contabilidade que é praticada no Brasil, nós vivemos, nós somos de uma cultura latina, nós recebemos tudo de Portugal via Itália. É o berço da Contabilidade mercantil praticada na Itália. Recebemos isso aí que vinha sendo praticado. Agora, após a Primeira Guerra, pouco antes da Segunda Guerra e depois, então, a Contabilidade brasileira, que era meramente cópia da escola italiana, passou a haver influências da Contabilidade anglo-saxônica, em especial da norte-americana, princípios praticados nos Estados Unidos. Essa influência veio através dos auditores independentes norte-americanos, que vieram servir aos empresários americanos que se instalaram no Brasil. O capitalista, ele manda o capital para qualquer país, mas a confiança não é meramente no contador, no auditor, é nas pessoas, sim, que ele confia, e essas pessoas que produzem os relatórios. Então, no Brasil, a Auditoria começou com os norte-americanos aqui, para servir aos empresários americanos que aqui estavam no Brasil.

P/1 - Na Escola de Comércio, que foi o primeiro lugar onde o senhor aprendeu Contabilidade, era ainda aquela Contabilidade italiana que se ensinava?

R - É, isso. Aqui no Brasil, os dois principais mestres foram Carlos de Carvalho e Francisco D'Auria. Daí tudo nasceu de que eles prelecionavam. Durante muitos anos, nas escolas de comércio no Brasil, se usavam os livros de Carlos de Carvalho - eram quatro ou cinco volumes - e depois os livros do Francisco D'Auria, que ele já foi produzindo com maior especialização. Hoje, os livros de Francisco D'Auria são só livros da história, a coisa foi evoluindo.

P/1 - E como é que o senhor se atualizou durante esse processo aí? Na prática?

R -

A gente, na realidade, na prática, no dia a dia em pequenas empresas, não se exige grandes conhecimentos. Aquilo que a gente aprendeu vai executando, é fácil. Agora, na medida que cresce o porte da empresa, aí há maior detalhamento e exige maiores conhecimentos para segurança do patrimônio que é avaliado e escriturado. Aí exige maior conhecimento, a gente tem que estudar. No meu caso concreto, eu prestei três, quatro ou cinco concursos públicos na minha vida. Para fazer esse concurso público exige uma quantidade de conhecimentos de Economia, conhecimentos de Contabilidade, conhecimentos de Direito, de Direito Tributário. Exige conhecimento de umas três faculdades. E não se exige diploma das três faculdades, a gente tem que estudar. A gente tem que conhecer aquilo que é exigido na prova. Isso aí me forçou, me ampliou o campo...

P/1 - Acabou, através desses concursos, que o senhor tinha que estudar...

R - Isso. Agora, o que me ajudou muito foi o curso jurídico.

P/1 - Curso jurídico?

R - Amplia o universo do conhecimento da gente.

P/1 - Sei. Essa ligação, Contabilidade e Direito, é forte também, né?

R - É. Na realidade, as contas do ativo e do passivo, a classificação das contas, são meras definições, conceitos jurídicos.

P/2 - Como assim?

R - Ah, diz assim: ativo, patrimônio, o que é? É uma propriedade que a empresa tem, o direito de propriedade. Duplicatas à pagar? O que a empresa deve. Então tem credores da empresa. Duplicatas à receber? São devedores da empresa. São situações jurídicas que se definem. É mera classificação jurídica na Contabilidade. A Contabilidade faz uma mera classificação jurídica.

P/1 - Faz uma tabela.

R - É. No Código Civil brasileiro tem um capítulo lá que tem exatamente essa classificação.

P/1 - Então, aí mostra bem a ligação das duas coisas, o Direito e a Contabilidade?

P/2 - O senhor acha que o marco, digamos assim, que fez com que o Brasil começasse a deixar de lado a linha italiana e começar com a linha americana, foi com o processo da industrialização e os empresários de fora começaram a...?

R - Na verdade, o Brasil não vivia em uma economia fechada. A única economia que tinha durante muitos anos é a produção agrícola, que é a do café que exportava. O resto ela importava. Quando começou a industrialização, começou a vir o capital estrangeiro também. O capital, ele impõe a forma de se executar a Contabilidade. A ciência é a mesma, mas ele quer saber quem escriturou, quem auditou as contas? São as pessoas da confiança do dono do capital que vão fazer isso.

P/1 - O senhor teve contato com alguma empresa estrangeira ou auditor estrangeiro em algum momento da sua carreira?

R - Não. A gente tem pessoalmente aí, com alguns. Eu nunca trabalhei em empresa, assim, exatamente porque eu fui do outro lado, eu fui trabalhar no imposto de renda.

P/1 - No governo.

P/2 - O senhor disse que passou no primeiro concurso, depois ficou direto trabalhando com o governo?

R - Não, o primeiro foi o do Estado, depois o Federal. No Federal eu fiquei até aposentar.

P/2 - Em 1968 que o senhor entrou para o ministério?

R - É, em 1968.

P/1 - O senhor tem contato, eu sei que o senhor trabalhou a maior parte da sua vida no seguimento Federal, mas o senhor tem contato com todas as especialidades, vamos dizer, da Contabilidade, ou seja, o auditor, o perito...?

R - Se você ler o meu currículo, eu sempre trabalhei em Contabilidade mercantil.

P/1 - Mercantil?

R - É. Depois eu fiz Contabilidade sindical, de um Sindicato - é só ler no meu currículo aí. Depois eu, durante oito anos, desempenhei um mandato de vereador na minha terra e fui obrigado a trabalhar com Contabilidade pública. E, em função de conhecimentos que a gente já tinha um pouquinho, ajudei um colega meu. Quando da implantação da Lei 4320, que são normas financeiras da Contabilidade pública, houve uma pequena alteração, e um colega meu de um município, ele sentiu uma dificuldade de fechar o Balanço no primeiro ano. Naquele ano eu fui trabalhar com ele, até poder o Balancinho da prefeitura. Então trabalhei com Contabilidade pública também. É nesse sentido que eu trabalhei. Agora, Auditoria eu nunca trabalhei.

P/1 - Mas através do seu trabalho, tem contato com o trabalho do auditor? Quer dizer, não trabalhou especificamente, mas conhece a atuação?

R - Tenho. A gente tem acesso ao produto do trabalho deles.

P/1 - Em que direção caminha, atualmente, a formação do contabilista?

R - Eu não sei em que direção. Sabe, o ensino da Ciência Contábil e da Contabilidade há problemas no Brasil. Há escolas de todos os níveis, assim como há de outras profissões e o curso superior também padece desse problema. Existem muitas instituições renomadas que formam bons profissionais e outras aí, ao fim de algum tempo, o cidadão tem o diploma. Agora, a gente só vai auferir a capacidade de cada profissional no dia a dia.

P/1 - O curso técnico ainda tem importância hoje em dia?

R - Não, o problema é o seguinte: não é todo o Bacharel de Ciências Contábeis que vai conseguir trabalhar... Muitas empresas de pequeno porte não exigem os conhecimentos do Bacharel em Ciências Contábeis. Ele, de preferência, deveria de atuar em empresas de porte, o que a maioria nem sempre consegue também. E a disputa do mercado é muito grande. Atualmente, eu estimo que 55% dos profissionais formados são de segundo grau, são os técnicos. E 45% são os de nível superior, parte dos quais trabalham em Auditoria, outros em Auditoria independente e execução de serviços contábeis.

P/2 - Mas o senhor vê alguma mudança no mundo com a globalização? Alguma outra coisa que o senhor veja que lentamente esteja se encaminhando para uma outra direção - a Contabilidade?

R - Há uma corrente aí, que diz que a Contabilidade está em extinção. Eu não acredito nisso não. Ela não está em extinção, está modificando. A Contabilidade, vai chegar uma hora, que no microcomputador ou no computador está tudo programado de tal maneira que não exige muita atividade intelectual. Alguém vai aprender a classificar as contas, classificar os documentos, e vai digitando. Ao fim de algum tempo, a máquina vai produzir o Balanço. Mas alguém tem que interpretar o produto. Aí, nessa hora, é o profissional que vai ter que trabalhar, se tem alguma falha, se está bem feito.

P/2 - Será que o economista não faria isso?

R - Ah, o economista estuda Contabilidade também, sabe? O economista pode trabalhar em algum segmento da Contabilidade. Mas, legalmente, ele não está habilitado para executar os serviços contábeis, nem de fazer esse tipo de análise contábil. Nesse sentido, ele não está habilitado. Embora ele diga que está e possa, porque ele estudou na faculdade, mas o economista estuda mais é os aspectos quantitativos, dos macroeconômicos e dos microeconômicos, que não tem nada a ver com Contabilidade. Os métodos de trabalho são diferentes. Ele pode estudar a atividade, um conjunto de atividades de uma mesma empresa, e fazer uma análise de um seguimento aí. Mas não é de uma empresa, é de um conjunto. Aí já é diferente a maneira de analisar.

P/1 - Eu li recentemente uma matéria que falava um pouco essa coisa que o senhor está dizendo, que a Contabilidade vai desaparecer de uma certa forma, falando sobre o simples, que não obriga a pessoa a fazer uma Contabilidade específica...

R - Ah, isso aí tem um problema corporativista da classe contábil mas, fora o problema corporativista, existe um problema muito simples, que infelizmente essa legislação do simples cuida somente de aspectos e obrigações tributárias, obrigações fiscais e tributárias. Para fazer isso, que muitos dizem que vai acabar a Contabilidade, é preciso modificar o Código Comercial. O Código Comercial exige que cada empresário, cada empresa faça a sua Contabilidade.

P/1 - E isso não foi modificando?

R - Não pode, por enquanto, por um motivo muito simples: a Contabilidade não é produzida para a empresa, nem para o fisco. É produzida para credores, para devedores, terceiros que precisam examinar a peça. Terceiros não podem ter acesso a toda minúcia de uma empresa, que está reservada pelo sigilo profissional e segredo comercial. Mas o produto, que é o Balanço, cada ano, o conjunto, sinteticamente e genericamente, isso aí tem que ser oferecido ao público, aos credores, a quem empresta, quem vende, quem compra. Tem que saber se eu estou comprando de alguém. Às vezes eu vou antecipar um dinheiro para a empresa, não sei se a empresa está em boa situação. Como é que eu fico sabendo? Mediante exame dos Balanços, a prática da empresa ao longo dos anos. Nesse sentido, enquanto não modificar a legislação comercial, não vai acabar a Contabilidade, a execução dos serviços contábeis. Eu gostaria de fazer um outro comentário. Vai fazer uns 20 anos que tem um projeto na Câmara dos Deputados, que foi conduzido, uma equipe produziu o novo Código Civil, foi redigido sobre a coordenação do professor Miguel Reale, na Faculdade de Direito. Esse código, esse projeto de Código Civil, incorpora o Código Comercial. Vai acabar o Código Comercial, ele vai estar incorporado dentro do texto do Código Civil.

P/1 - Mas fazem 20 anos e a coisa...?

R - Não anda, mas os chamados comercialistas não estão prestando atenção no conteúdo que está tramitando lá, para ver em que medida afeta a vida do comércio.

P/1 - O senhor conhece esse projeto?

R - Eu conheço um pouquinho só, nunca tive tempo de ler muito. A gente está ocupado em atividades aí do CRC, não dá tempo. É um livrinho dessa grossura assim. Mas não é só uma simples leitura, exige meditação a leitura do texto.

P/1 - Mas o senhor acha que vai mudar bastante? A proposta é uma proposta...?

R - Não, o texto, eu estive lendo na parte da Contabilidade, estava lendo para o que era praticado já há uns 20 anos atrás. De lá para cá já mudou muito e ninguém cuidou de atualizar aquilo. Mudou alguma coisa de Contabilidade, no sentido de apresentação, na forma de apresentação. Não é mais em livros, impressos, copiados etc, agora são impressos em computador e depois encadernados. Vai chegar um dia em que não vai precisar nem imprimir e encadernar, dependendo da lei que vai elaborar.

P/1 - Claro.

R - Vai poder guardar um disco gravado e acabou. Aquilo deve ser validado, mas isso aí ninguém cogitou ainda.

P/2 - O simples foi feito através da colaboração de vocês, contadores, que sentiram a necessidade de simplificar, ou não?

R - Não, não. Pode ser que alguém esteja falando que o contabilista tenha colaborado, mas não é não. São pessoas voltadas para atividades mercantis de pequena e média empresas, que estão lutando para a desburocratização. O que é desburocratização? Eliminação de livros fiscais. O objetivo desse simples é isso aí.

P/1 - É só o livro fiscal e não todos os livros?

R - Livros fiscais. Se mexer no Código Comercial, pode ser que chegue a esse ponto, aí extingue. Mas tem que criar um sucedâneo [substituto] para o livro Diário, para a escrituração.

P/1 - Isso ainda é como sempre foi, então?

R - Não vai conseguir, né? Porque a Ciência Contábil trabalha com métodos, um processo relativamente seguro, para chegar a um resultado para que todas as pessoas possam acreditar. Isso aí representa a realidade financeira e econômica da empresa.

P/1 - Então não pode mudar? Bom, o senhor tem alguma atuação mais específica no Sindicato, ou não?

R - Não, no Sindicato não, só no CRC. O Sindicato, de acordo com a legislação trabalhista, tem um objetivo, que é a defesa da categoria, da classe. Os Conselhos têm a função de fiscalização do exercício profissional, está exatamente no pólo oposto: o Sindicato defende o profissional e os Conselhos fiscalizam o exercício profissional. Na medida que o profissional erra, sai do caminho, o Conselho é obrigado a fiscalizar e, conforme o caso, punir.

P/1 - E os senhor atua nessa área, então, de fiscalização?

R - É, na fiscalização do exercício profissional. Vai fazer 20 anos que eu estou metido nisto.

P/1 - E como é que funciona isso?

R - Funciona como funciona a Ordem dos economistas, como o Conselho de Medicina etc. Então, é um corpo de pessoas concursadas que fiscalizam, vão atrás, veem, recebem denúncias.

P/1 - Então, as denúncias são feitas e vocês...?

R - A medida que a denúncia é considerada procedente pela fiscalização, ele lavra um Auto de infração. Aí faz um processo. Junta, cria os mecanismos de produção de prova. Quando conclusos, sobe para um relator examinar. Aí vai para ser julgado.

P/1 - E existe, então, fiscais do CRC que percorrem...?

R - Em todo o Brasil. O CRC de São Paulo é no Estado de São Paulo.

P/1 - Ele percorre as empresas, como é que é?

R - Ele fiscaliza o exercício profissional. Onde estiver o contabilista, ele vai atrás do contabilista.

P/1 - Pode ser um autônomo, pode ser...?

R - Pode ser autônomo, pode ser escritório de Contabilidade, pode ser escritório de Auditoria, pode ser empregado da empresa, ele é fiscalizado.

P/2 - Mas não a nível federal, né?

R - O Conselho é federal, né? Agora, atualmente, eu não sei em quantas regiões está dividido. Se eu não me engano, está com 20 e poucos Conselhos, cada Estado deve ter um atualmente. E aquele Conselho Regional é que fiscaliza no território. Agora, quando a pessoa apenada não se conforma com a penação, acha que não foi justa, ela tem direito a recorrer ao Conselho Federal, que é a última instância. Lá se reexamina tudo que se faz por aqui.

P/1 - O senhor sabe quantas pessoas são filiadas ao CRC hoje?

R - O CRC no Estado de São Paulo deve ter uns 100 mil profissionais atualmente.

P/1 - E é o Estado que tem mais?

R - É o Estado que tem mais. E no Brasil uns 300 mil. Calcula-se que existe agora alguns 400 mil profissionais no Brasil registrados.

P/1 - 400 mil? E quantos são em São Paulo?

R - Aqui em São Paulo deve dar 100, 120 mil. Eu não tenho o último número.

P/1 - Sei, sei.

R - É só perguntar qual é o último registro, é fácil.

P/1 - Na parte de legislação, tem algum marco aí, pelo menos de 1900 para cá?

R - Que tipo de legislação você quer dizer?

P/1 - A legislação, porque o contador, ele faz muita coisa para responder à legislação.

R - O que rege mesmo é o Código Comercial brasileiro.

P/1 - É o Código Comercial.

R - Isso. Fora disso, algumas instituições de direito privado, entidades, associações civis, algumas instituições civis, que praticam atos também, podem praticar, em alguns casos, atos profissionais ou mercantis, se regem pelo Código Civil. Alguns outros pelo Código Comercial. Em ambos os casos, se eu tiver objeto de lucro, mesmo não tendo objeto de lucro, podem ter a sua Contabilidade. Porque, por exemplo, para citar aí, a Santa Casa de Misericórdia de São Paulo é uma instituição de direito privado, é uma sociedade civil, mas ela tem um patrimônio muito grande - alguém tem que cuidar da Contabilidade -, embora não tenha objetivo de lucro. Então se produz uma Contabilidade.

P/1 - E que é regulamentada pelo Código?

R - Pela Ciência Contábil.

P/1 - Sei. E, por exemplo, as empresas de capital aberto, elas têm uma outra...?

R - A empresa de capital aberta tem a legislação que rege o capital aberto, é uma lei especial, é a Lei da Sociedade Anônima (Lei 6404). Tem um projeto de lei no Congresso agora, alterando alguma coisa. E a empresa de capital aberto, quem fiscaliza é a chamada CVM, Comissão de Valores Mobiliários. Aí as atribuições da Comissão de Valores Mobiliários, às vezes, em alguns aspectos, se sobrepõem às dos Conselhos Regionais. Que o Conselho Regional só fiscaliza o exercício da profissão contábil, mas a CVM tem que fiscalizar a execução do serviço contábil, senão não consegue fiscalizar a aplicação do capital.

P/1 - Então ela trabalha paralelo?

R - Trabalha. Mas são objetivos distintos. Ela não fiscaliza o profissional.

P/1 - Sei.

R - Teve um caso alguns anos atrás aí, que a CVM suspendeu, caçou o registro da CVM, e suspendeu do registro profissional alguns auditores independentes. Estão suspensos por cinco anos, o que, a meu ver, é a morte civil deles. Cinco anos, eles nunca mais vão conseguir voltar a executar serviços contábeis de empresas de capital aberto. No caso concreto que eu estou dizendo são auditores independentes.

P/1 - Quem fez isso foi a CVM, não o CRC?

R - CVM, a legislação dá poderes à CVM.

P/1 - Porque era uma empresa de capital aberto.

R - Era empresa de capital aberto. No aspecto de capital aberto, é fiscalizado pela CVM.

P/1 - E daí é uma coisa da empresa e não do profissional?

R - Isso acaba atingindo.

P/1 - Acaba atingindo. É como...?

R - Depende de como o profissional atua. É aquela que eu disse, que contador é um homem de fé pública. Quando ele deixa de ter fé pública, ele perde a confiança e perde o direito de exercer a profissão.

P/1 - A outra coisa que eu acho que é uma coisa, talvez, mais recente, é o Balanço Social, que é um outro tipo de Balanço.

R - O Balanço Social, a gente ouve falar muito, já havia alguns publicados aqui, a atual prefeita de São Paulo [Marta Suplicy], quando era deputada federal, apresentou um projetinho de lei. Até eu tenho o texto, que eu pedi para ela, tornando obrigatória a apresentação do Balanço Social a algumas empresas brasileiras, grandes empresas. Não passou ainda no Congresso, está tramitando lá. Algumas empresas apresentam voluntariamente, mas não existem regras muito fixas não. Isso aí nasceu na França, na Alemanha, em alguns países. Eu estou lendo um livro de edição portuguesa, que um autor português editou já vai fazer uns 20 anos, tudo sobre Balanço Social, como vige na Comunidade Econômica Europeia. Estou na metade do livro. Esse Balanço Social não tem nada a ver com a nossa Contabilidade.

P/1 - Sei.

R - É uma forma de apurar o produto social, os benefícios sociais que uma empresa, um grupo de empresas, alguma atividade dá, e de apresentar formatado isso aí. Na França tem em legislação, na Itália tem, nos Estados Unidos tem. Eu estou lendo um livrinho, uma edição portuguesa.

P/1 - Quem faz o Balanço Social não seria o contador? Quem executaria isso? (risos)

R - No Brasil, ninguém. Ninguém tem essa atribuição, não há lei que obrigue ainda.

P/1 - Não é atribuída a ninguém?

R - Não é atribuída. No fundo, o Código Comercial, quando fala em Balanço da Empresa, diz que a empresa é que é obrigada a apresentar, o empresário é que apresenta. Ele é o dono da Contabilidade. O contabilista é um auxiliar, ele é um preposto, ele, tecnicamente, executa a tarefa em nome do empresário. Então quando tem coisa errada, alguma coisa [que] não deu certo, ele é corresponsável com o empresário, mas o autor intelectual do Balanço, na realidade, é o empresário, aquele que assina juntamente com o contabilista. Se houver fraude, houver alguma coisa parecida, assim, o empresário responde junto com o contabilista. O contabilista, tecnicamente, e o empresário, pelos eventuais danos que possa ter causado. Agora, o Balanço Social é um produto das atividades da empresa, dos benefícios sociais que possa ter dado a alguma comunidade, aos empregados, a algum segmento social aí. E as empresas gostam de apresentar, que ela não tem só fim de lucro, então ela apresenta esse Balanço aí. No Brasil ainda não há regras fixas.

P/2 - Mas está tendo um aumento, né? Eu vejo que tem um aumento, uma preocupação de várias empresas grandes.

R - Ah, todos querem fazer isso. E, inclusive, inúmeros colegas nossos têm a preocupação de querer aprender e apresentar, e o contabilista assinar o Balanço Social. Mas legalmente nada dispõe, nem disciplina essa matéria aí. Eu, pessoalmente, penso que, vamos dizer assim, um benefício social que possa ter dado uma empresa em alguma atividade, porque dá assistências médica, assistência dentária etc. Quem melhor do que um médico, um perito médico, que um perito dentista, para examinar isso, apresentar um resultado sobre o aspecto psicológico aí, da comunidade que vive tudo sob tensão? Alguma atividade que foi desenvolvida, e aquilo deu benefício de bem estar para a comunidade, alguma atividade da empresa, quem melhor do que um sociólogo ou um psicólogo para apresentar esse resultado?

P/2 - Claro, porque não são coisas medidas por números.

R - Isso, são medidas por outras formas. Então não é mero número frio que está nas notas fiscais e faturas, né? Então eu penso que deve ser uma atividade compartilhada. Acho até que o contabilista pode participar, porque ele vai fornecer os números para essas pessoas. Mas não vai ser privativo do contabilista não, embora eu sei que há inúmeros colegas meus que pensam corporativamente para abocanhar essa fatia.

P/2 - Mais essa fatia.

R - Mas no Brasil, ainda não... Se vocês quiserem, eu posso indicar um livrinho escrito em língua portuguesa, em Portugal, Lisboa, que trata desse assunto. Um português lá consolidou tudo que tem na Europa.

P/1 - Ah, interessante. Bom, o senhor citou vários nomes para mim, que achava que eu devia entrevistar, como pessoas que são mais antigas e conhecem bastante da história.

R - E foram figuras proeminentes, foram líderes, militantes profissionais líderes, ou foram professores ou foram teóricos, esses precisam ser ouvidos. É o que eu dizia no começo, eu ou a menor das pessoas para estar depondo em um momento como esse aqui, não sou ninguém para estar falando de serviços profissionais e execução de serviços contábeis. Existem outros valores aí, que precisam ser ouvidos.

P/1 - Além dessas pessoas, que eu já anotei e vou tentar sugerir ao CRC, teria alguma empresa que seja mais antiga, que o senhor julgue que seria interessante a gente estar conhecendo? Porque às vezes a gente precisa um pouco, de concretizar.

R - As empresas nascem e morrem. E as contábeis, a mesma coisa.

P/1 - Não têm duração?

R - Não, duram muitos anos. Acontece o seguinte: quando uma empresa comum aí vai crescendo, quando o patriarca, que é o dono, morre, e os filhos herdam, os filhos podem continuar. Mas, quando chega no neto, às vezes a firma desaparece, a empresa desaparece. Na área da Contabilidade acontece muita coisa parecida, assim, porque a execução da Contabilidade, a Ciência Contábil, depende muito da liderança e do conhecimento técnico. Aquilo não se passa de pai para filho - às vezes passa. O patrimônio lá existe, mas o patrimônio não é nada, que o serviço é executado por cabeças e conhecimento. E se o herdeiro não tiver o mesmo conhecimento, ao fim de algum tempo, a empresa desaparece. Assim, grandes empresas brasileiras de Contabilidade já nasceram e morreram ao fim de algum tempo. O titular morreu e elas acabaram, se transformam. Quando está no auge, a empresa está no auge, está muito bem. É uma empresa, existem pessoas interessadas, adquirem aquele patrimônio para continuar. Aí já passa para a mão de terceiros. Às vezes tem sucesso, às vezes não tem.

P/2 - Aliás, tiveram várias empresas brasileiras que começaram assim, de familiares que, no meio do caminho, começou a degringolar, aí entra já um capital de fora.

R - Exatamente.

P/1 - De Advocacia também acho que tem esta característica um pouco.

R - Todas são assim. Por exemplo, - é ruim citar nome de pessoas, né? - Um grande ortopedista aqui em São Paulo, famoso no Brasil - ele não vive mais - passou para os filhos. A empresa continua aí, mas já não tem mais o renome daquele ortopedista originário.

P/1 - É, acontece isso. Mas tem alguma empresa que ainda tem renome? (risos)

R - Está cheio de empresas, mas eu não...

P/1 - Não quer citar.

R - Não vou citar. E eu não conheço, pessoalmente.

P/1 - A área de empresas.

R - Empresas melhores, eu sei quais são. Mas como desempenham internamente, como cresceram, como são, aí eu não conheço internamente nenhuma.

P/1 - Sei.

P/2 - Ontem eu fui fazer uma entrevista com o senhor Edmundo José dos Santos, ele é o presidente agora do grupo de estudos do Sindicato. E nessa entrevista com o senhor José Serafim Abrantes, ele comenta que a Lei da Responsabilidade Fiscal é uma pergunta que fazem a ele [se] é uma alavanca para a projeção social da classe contábil. Então ele comenta que estão sendo feitos uma série de...

R - O José Serafim Abrantes está trabalhando em torno disso aí. Mas eu, pessoalmente, não gostaria de comentar, que eu tenho uma opinião um pouco diferente dessa matéria, sabe? Envolve aspectos políticos. Além de responsabilidade fiscal, é uma camisa de força que foi imposta aos maus prefeitos, e acaba sendo um castigo para os bons prefeitos. Vou dar só um exemplo aí: a atual prefeita nossa aí está tentando modificar alguma coisa. No passado se gastou em coisas erradas, agora ela está com uma camisa de força, não pode gastar. Vai diminuir a aplicação no setor de assistência sanitária, se eu não me engano. É só ler nos jornais aí. Por quê? Porque ela tem que cumprir outros itens. E eu tenho certeza que ela não está gastando nem o mínimo, não vai gastar, porque ainda está no começo, nem o mínimo imposto pela legislação - Lei de Responsabilidade Fiscal. Eu acho que aqueles percentuais são uma camisa de força. Eu sei que a classe luta, produziu um manual, e aqueles relatórios que vão ser produzidos... Existem modelos de relatórios que o mês passado foi obrigatório, quadrimestralmente. O primeiro mês que era obrigado apresentar era em abril. Em administrações passadas do ano passado ninguém apresentou, mas este foi obrigatório. Eu sei que isso aí é um instrumento que não vai medir resultado, só vai medir que não aplicou além daquele limite, os limites previstos. Quem garante que aquele limite previsto na lei é o máximo que pode aplicar? E, às vezes, a comunidade, a sociedade precisa de mais naquele setor e menos neste, percentualmente. Não existe essa segurança. Isso é do ponto de vista de objetivo da Lei de Responsabilidade Fiscal e de meio de conter, uma camisa de força. Agora eu sei, se pegar o Manual da Lei de Responsabilidade Fiscal produzida pelo CFC, sobre a presidência de José Serafim Abrantes, em todos os impressos, no quadrinho em baixo, tem a assinatura do responsável contador junto com o prefeito. Só que na portaria que a Secretaria do Controle Interno do Ministério da Fazenda produziu, baixou no ano passado, para ser apresentado aqueles relatórios, aqueles relatórios, no entender deles, e segundo eu deduzi, são meros relatórios de execução orçamentária. Relatório de execução orçamentária é a outra faceta dos relatórios contábeis. O contabilista, ao meu ver, não tem nenhuma responsabilidade, obrigação de assinar aquele documento. Quem tem que assinar é o ordenador de despesa e o prefeito. Ou o governador e o ordenador de despesa, não o contabilista. Na portaria não se faz referência à obrigação de um contabilista assinar.

P/2 - Então o senhor acha que ele está entrando em uma área que não...?

R - Não, eu não quero entrar. Eu só falei isso aí, não deveria nem ter falado isso.

P/2 - Não, porque a gente precisa ter uma noção.

P/1 - Não, pelo mesmo a gente entende o que significa.

R - Não deveria ter falado, porque afeta o interesse corporativista da classe. Ela seria mais um documento que ele ia assinar. E sob a responsabilidade técnica e, às vezes, de ter assinado um documento que não possa refletir a realidade. Não sei.

P/1 - Sei. Complicada essa história, esse assunto.

R - Os políticos, o pessoal que vai executar o orçamento, os municipais e os estaduais, estão na luta para arrancar do Governo Federal medida nova. Tem ação já discutindo que essa Lei de Responsabilidade Fiscal fere o princípio federativo. União-União, Estado-Estado, Município-Município. A União não pode impor regras ao Município. Está impondo, [então] está sendo discutida a constitucionalidade sob esse aspecto.

P/2 - Vai longe isso, né?

R - Politicamente, vai demorar a decisão.

P/2 - É porque a gente estava tentando ver de que maneira... Por exemplo, na época da inflação, o senhor acha que o Brasil desenvolveu técnicas novas, de acordo com essa inflação galopante, que nós tivemos em um curto período de tempo? O papel do contabilista, do contador, foi fundamental, ou ele apenas obedeceu a coisas que os economistas impunham do governo para baixo?

R - Na Contabilidade foi baixada, começaram a escrever regras. Hoje existe uma regra: o princípio da Correção Monetária. Então nos Balanços, antigamente, um bem imóvel lá, de 30 anos atrás, foi escriturado como se valesse 1000. 30 anos depois ele continuaria valendo 1000 na Contabilidade. Mas a inflação daria um outro valor real. Então existia o Instituto da Correção Monetária, para recolocar o calor desse bem tal como ele vale, no momento em que está sendo apurado o Balanço. Passou uma legislação aí, do governo Fernando Henrique, dizendo que acabou a inflação. E legalmente não admite que se faça Correção Monetária do Balanço, dos ativos. O que acontece? Se cada ano, 6%, seis, mais seis, mais seis, ao fim de cinco anos, cinco vezes seis, 30. Mais ou menos 30% de inflação, que houve... Aquele patrimônio que valia 100, cinco anos depois deveria estar valendo 130. Continuou valendo 100, escriturado. Então ele não estaria refletindo a realidade. Isso é um problema de doutrina, de aplicação de princípios da Contabilidade, que a profissão contábil está enfrentando. Está quieta, não se manifesta, mas ela está inconformada, a profissão. Porque o poder público não admite que se faça a Correção Monetária. Então, por força de lei, está influindo em cima de um princípio contábil.

P/1 - O senhor leu no jornal de hoje que os advogados conseguiram uma correção da tabela do imposto de renda?

R - É, conseguiram. Outras categorias também conseguiram. A minha categoria, que era de auditor, também havia conseguido uma liminar, mas foi cassada. Outro dia eu tive que fazer a minha declaração de renda e pagar a minha diferença.

P/1 - Sei. Então não vai, isso não vai para frente?

R - Não, a liminar foi cassada. Ainda falta o exame de mérito.

P/1 - Sei.

R - Lá na frente, algum dia ou alguma hora, o Supremo dá a decisão de mérito. Se ganhar, vai ter que devolver para a gente o que pagou a mais.

P/1 - Efeito cascata para todo mundo.

R - Não, aí vai ter que devolver o que pagou a mais. São problemas que a classe dos advogados vão enfrentar agora.

P/2 - Mas existe alguma movimentação dos contadores para tentar mudar isso junto ao governo? De uma hora para outra, diz: “Não existe inflação e acabou.” Quer dizer, a sociedade vive uma outra realidade.

R - Os líderes da Ciência Contábil vivem a realidade. Eles trabalham, mas não estão à frente dessas lutas, desse tipo de luta, né? Então quem teria que estar e está preocupado são os empresários, que viam no seu Balanço um bem que originalmente custou 100, estaria valendo 130 hoje - continuou como se fosse 100. Esses é que teriam que estar, antes do contabilista, na luta.

P/1 - E não acontece?

R - Por enquanto não. Uma hora vai chegar a valores tais, que não vai ser mais possível. No passado, quando ninguém cogitava de Correção Monetária, que sempre houve inflação no Brasil, por influência de auditores norte-americanos, examinando o patrimônio de empresas americanas, não de brasileiros, ao invés de inventar a Correção Monetária do ativo, que são os bens imóveis, maquinários etc., falaram: “Não, o bem vale mais. Ao invés de fazer Correção Monetária, faz a reavaliação do ativo.” E houve legislação que permitia isso aí. E não há nenhuma legislação que proíba fazer a reavaliação do ativo. Aí vai ter um problema: nas Sociedades, tanto anônimas, nas Sociedades em geral, enquanto não for distribuído como lucro o valor ao fazer um aumento de capital, fazer a reavaliação do ativo, então o capital passa a valer mais. Ele não é lucro, porque ele já detinha esse valor desse bem. Enquanto não distribuir aos acionistas em forma de lucro essa diferença, não tem imposto à pagar, mas se distribuir como lucro tem imposto à pagar, imposto de renda. Aí entra uma discussão doutrinária muito grande, que não dá para ficar falando nesse depoimento.

P/1 - Certo.

P/2 - O senhor acha que a Contabilidade brasileira se destaca em alguma coisa ao longo da história recente, digamos, de 1850 até aqui, ou com inflação, existe alguma coisa que se pode dizer: "Isso nasceu daqui, no Brasil." Ou tudo veio dos Estados Unidos, foi adaptado?

R - Não, a Contabilidade é uma ciência, é uma ciência humana. É exata na medida que tem os números que tem que dar certo em uma equação, mas ela é humana, porque algumas cabeças pensam de como valorizar o patrimônio, certas contas, e fixam regras. Essas regras são universais, não é diferente no mundo. Agora, alguns países são mais tolerantes, outros menos tolerantes quanto à aplicação desses métodos.

P/1 - Nós somos mais ou menos tolerantes?

R - Nós estamos bem, viu? Ouço, por exemplo, falar, nunca examinei nenhum Balanço, e nem como é que se examina, em iene, no Japão... Eu ouço falar muito que a Contabilidade no Japão é fraca, como ciência.



P/1 - Sei.

P/2 - E no Brasil também?

R - Não, o Brasil avançou bem, viu? Nas empresas que cuidam do seu patrimônio tem um Balanço bonitinho. Agora, ponderável parcela dos empresários, pequenos empresários, não têm a noção disso aí, aceita o que for dado. Então, depende da consciência, da responsabilidade do profissional da Contabilidade. É onde eu sempre digo: “Contador é homem de fé pública.” O empresário, às vezes, não conhece a coisa e aceita o que o contador apresenta.

P/1- Então o produto da Contabilidade é o Balanço e as demonstrações?

R - Uma vez por ano. É, demonstrações de receita e de despesa.

P/1 - Isso é o Balanço?

R - É, o Balanço é Balanço do ativo e do passivo.

P/1 - Certo.

R - O que existe, os créditos e os débitos, e o capital. Isso aí forma uma equação.

P/1 - E as demonstrações?

R - As demonstrações têm a da receita e a da despesa. A diferença é o lucro que se incorpora ao Balanço.

P/1 - Sei. Então é o geral que é o Balanço.

R - É.

P/1 - São partes do Balanço.

R - É. Existem outras formas, com outros nomes, para demonstrar isso aí. Chama Doar, Demonstração de origem, Aplicação de recursos, todas essas contas têm uma outra forma de apresentação. E modernamente, por influência norte-americana, acha-se que a melhor forma de apresentar o Balanço é o chamado Fluxo de caixa, que é muito falado.

P/2 - É, esse eu conheço mais.

P/1 - Mas o fluxo de caixa é mais um recurso do dia a dia da empresa?

R - É técnico, né? O mortal dos cidadãos não entende aquilo ali.

P/1 - Sei.

R - Então, todo dia a gente abre o jornal, especialmente de janeiro a maio, está cheio de Balanço publicado, a maioria não entende. Para nós mesmo é difícil, só o Balanço não é suficiente. Teria que ter acesso à dinâmica das contas. E só tem acesso à dinâmica das contas quem trabalha lá, em cada empresa. O terceiro só tem acesso àquilo.

P/1 - Sei.

R - Na medida que houver alguma controvérsia, quem for devedor ou credor, de acordo com a legislação comercial, em juízo, amigavelmente, pode ter acesso, porque ou ele é acionista ou é credor. E só tem acesso na parte que lhe diz respeito. O resto ele não pode, é sigilo comercial.

P/2 - Então quando o senhor diz o Balanço, digamos, que a finalidade seria prestar contas à sociedade?

R - À sociedade, a quem é sócio da empresa.

P/2 - Sim.

R - À terceiros. Devedores, credores, ao poder público, que quer saber quanto que tem de imposto à receber, municipal, estadual, federal, se está certa a conta. O INPS [INSS a partir de 1990], para ver se está direitinho, computado o direito que ele tem.

P/2 - Sim, mas não é através dessa folha publicada no jornal que as pessoas tem noção, né?

R - Não, o Fisco pode pedir para ver tudo, que ali ele não vê tudo.

P/2 - Sim, entendi.

P/1 - Bom, acho que é isto. O senhor tem mais alguma coisa que gostaria de falar?

R - Não, o que eu gostaria de falar eu já falei para você fora [da entrevista]. (risos) Eu vou encerrar dizendo: “Não sou aquele o mais indicado para ser ouvido, da classe. Há outros que precisam depor aqui.” Está ok?

P/1 - Está certo.

R - Eu dei um rol aí para vocês.

P/1 - Está certo.

P/2 - Obrigada.

P/1 - Muito obrigada.

[Fim do depoimento]