Museu da Pessoa

Enquanto eu estiver vivo, a tradição da viola-de-cocho vai existir

autoria: Museu da Pessoa personagem: Sebastião de Souza Brandão

Projeto: Mercado Livre - Biomas que transformam
Entrevista de Sebastião de Souza Brandão
Entrevistado por Grazielle Pellicel
Local: São Paulo (SP) / Ladário (MS)
Data: 13/06/2022
Realização: Museu da Pessoa
Código da entrevista: PCSH_HV1212
Transcrita por Monica Alves
Revisada por Grazielle Pellicel

P/1 - Oi seu Sebastião, tudo bem com o senhor?
R - Tudo bem! E com a senhora, tá bem?
P/1 - Tudo ótimo! Para começar, eu gostaria que você dissesse seu nome, data e o local de nascimento, por favor?
R - Legal! Meu nome completo é Sebastião de Souza Brandão. Minha idade, eu sou de 1944, quer dizer, agora em janeiro é o aniversário, dia 21. E a minha idade é essa, 78, já vai para 79. Essa é a minha idade. Agora, de casado, já tem 49.

P/1 - E onde que o senhor nasceu?
R - Eu nasci no Pantanal. Era lá no mato, no Pantanal mesmo, uns quatrocentos quilômetros, mais ou menos, longe de Corumbá. Mas sou registrado e criado aqui em Corumbá, Ladário. Mas eu conheço quase toda a nossa região, entre Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. Eu moro aqui em Ladário já vai para uns trinta e poucos anos, que eu moro aqui, quer dizer, que eu estou morando. E eu me aposentei em 2009.

P/1 - Seu pais te contaram como foi o dia do seu nascimento?
R - Olha, meus pais viveram bastante tempo no local [em] que eu nasci, a região lá chamada Castelo, [que] fica uns trezentos e poucos quilômetro daqui, ou mais. E na margem do Ribeirinha, Rio Paraguai. Ainda tenho parente lá. Da época, a maioria já se foi. Os parente, primo, sobrinho, que ainda mora lá, por ali… Mas a gente está sempre… Tem uma escola rural ali próxima que chama Jatobazinho, tem parente meu que trabalha com eles ali, e sempre, de vez em quando… Eu já fui lá. Já passei quarenta anos sem ir lá. Agora a pandemia me fez esconder uns dias lá, mas é a minha região, é essa ali. Agora, para criar o meu ciclo da infância: o meu pai era tipo cigano, ele gostava de mudar de um lugar para o outro, aí eu fui acompanhando ele quando estava dentro da família, até [que] num certo ponto entrou na região aqui mesmo, do município, um rio que agora morreu, que secou, chamado Rio Taquari. A senhora já deve ter ouvido falar. Ali que teve uma primeira escolinha rural, que eu era menino e estudei um tempo ali, minha primeira escola que eu fui. Daí o meu pai mudou para outra região, quase na divisa de Mato Grosso com Mato Grosso do Sul, [na] chamada margem do Rio Piquiri, [e] lá eu também estudei um tempinho numa escolinha rural, com professores que os fazendeiros pegavam e levavam lá. Não era uma escola, era na casa da fazenda mesmo. Daí cresci um pouco e virei peão de fazenda. Então, todo esse ciclo de volta por aí, vim tornar [a] parar no mesmo local onde eu nasci; meu pai voltou, parou ali, na região do Castelo. O ponto onde era dele, [se] chamava Chico Leite. Era o nome do lugarzinho lá, agora já mudou tudo isso. E ali eu já saí por minha própria conta, solteiro, e fui trabalhar. Eu posso contar tudo isso aí, né?

P/1 - Pode!
R - Essa aí é a parte da infância, aí pode ser que a gente vai contar [mais] detalhado.

P/1 - O senhor falou que nasceu no meio do mato: como assim no meio do mato?
R - Lá não era povoado, não tinha, assim, patrimônio, não tinha médico, não tinha nada lá. Eu nasci ali, era aquela época… Até cheguei a alcançar os irmãos que nasceram lá… Falavam parteira, que cuidava das mulheres gestantes, quando ia ganhar o neném. Mas graças a Deus não teve problema nenhum, nem comigo e nem com os meus irmãos que eu vi nascer lá na região.

P/1 - O senhor pode falar um pouquinho sobre a sua mãe, a família dela?
R - Olha, eu conheci muito pouco os antepassados dela. Só conheci um pouco da parte do meu avô, que era o pai dela e da mãe dela, da minha mãe. Eles não tinham quase parentes na região, porque eles eram imigrantes italianos. Mas a minha mãe já nasceu no Brasil, num lugar que chama, parece que [se] chama Atibaia, pro lado de São Paulo, Rio. Nem sei onde que fica isso. Por aí que ela nasceu. Já veio criança para a região do Mato Grosso, que a capital era Cuiabá; aí de Cuiabá, eles já passaram quase direto, entre três irmãos. Eu não conheci antes do meu avô, só sei dos três irmãos; não sei se ele tinha irmã ou não, isso eu não sei. Mas a minha mãe tinha dois irmãos e três irmãs, [e] não resta mais nenhum deles, todos já se foram - até inclusive a minha mãe também - da parte de mãe. Agora pode a senhora fazer a pergunta.

P/1 - Qual é o nome da sua mãe?
R - Minha mãe se chamava Cirene, um nome bem diferente. Cirene Gonçalves da Rosa, esse era o nome dela.

P/1 - E o seu pai, a família dele, o que o senhor lembra?
R - O meu pai, eu nunca soube de outra região dele. Eu sei que ele veio do norte, ele falava do norte, mas eu não sei se era Ceará, Bahia, de qual lugar. Eles vieram tudo… O meu avô veio num tempo que tinha revolução, aquelas coisas. No Brasil tinha a história… Como se diz? Eu não sei essa história, mas eles falavam que era a história de um cangaceiro. E ele veio saindo fora dos cangaceiros, era rapaz novo, então fugiu de lá e veio para Mato Grosso, ficou em Cuiabá e foi servir o exército. Depois de ser cangaceiro, ele virou outro cangaceiro. Aí ele [se] criou na região de Cuiabá, que ele ficou. Daí ele desceu em Cuiabá… Ele [se] chamava Caetano de Souza Brandão. Eu tenho todos os sobrenomes dele. Caetano de Souza Brandão, que ele era, e o meu nome é Sebastião de Souza Brandão. Então, quase não mudaram da geração de filhos e netos, não mudaram os nomes dele, só o dele. Ele morreu, eu estava com dezessete anos. Já faz tempo, né? Ele morreu no mês, parece, ia fazer 114 anos, a idade dele; bem velhinho que ele morreu. Só que ele ainda mexia, ele andava, não usava óculos, ele conversava. Já com deficiência para andar, mas andava muito bem. É uma história bem longuinha a dele.

P/1 - E o senhor sabe como seus pais se conheceram? Eles chegaram a contar?
R - Ele sempre contava, [e é] por causa disso que eu sempre conto bastante história. O pessoal daqui fala assim: especulador. Fazer pergunta para um, querer saber o que ele fez na vida. Eu encontrava, eu queria saber de tudo. Então ficou gravado muitas coisas na memória. O meu pai é um dos quatro filhos, o quarto filho. Aí tem mais criança do que ele, uma irmã e um irmão. Ah, fora isso, esse último irmão caçula ainda é vivo, tá com 99 anos, o caçula dele. (risos) Esse mora aqui na cidade de Ladário ainda, mas tá bem velhinho mesmo, bem filhotinho de passarinho. (risos)

P/1 - As pessoas da família do seu pai costumam viver muito?
R - Olha, eu acho que vive até na base de noventa anos, 95, por aí, é uma média que eles viveram. Teve irmã dele, irmão… A maioria dos irmãos alcançaram a base de - como que se diz? - 85 a noventa anos. Meu pai morreu com 89. Eu tô na idade, vou chegando por ali. Então… E os outros tudo nessa base: 78, oitenta, noventa. O outro…. Teve dois irmãos que morreram com 93; quer dizer, sempre nessas idades aí.

P/1 - O senhor sabe qual é o segredo deles para ter vivido tanto tempo?
R - Eu queria até descobrir. Mas segundo os meus colegas e senhores professores, que eu converso muito com professores aqui, diretores e alguns pesquisadores, [que eles] sempre vêm - sempre não -, tá direto vindo fazer pesquisa, pergunta, essas coisas, sobre o artesanato, e aí eu brinco muito, gosto muito de brincar, então eu digo para eles [que] o que faz a vida prolongar é a pessoa ser… Primeira coisa, ser honesto com os amigos, e ser alegre, brincar uma brincadeira sem ofensa e gostar da brincadeira sem ofensa também da outra pessoa. Viver sempre despreocupado com a vida ruim dos outros, sempre com aquela parte boa. Ter amigo que é sempre compatível com a gente mesmo, com a pessoa. Eu gosto de ser alegre, eu gosto de brincar, eu gosto de me divertir e gosto de quem se diverte junto comigo, é uma alegria pra mim. Cuidar um pouco também da vida, porque o que judia muito da pessoa não é o trabalho, o trabalho ajuda a viver, é cuidar a si, vamos se dizer. Eu trabalhei só em serviço pesado, nunca trabalhei em serviço leve. Para ter uma ideia: peguei serviço de fazenda, lá é só serviço bruto; vim para a ferrovia, vinte anos quase, faltou cinco anos para completar vinte. Pode-se dizer vinte anos, cinco dias para completar vinte anos. Meus filhos bendizer acabaram de criar, criaram, já começaram [a] sair fora do meu berço, já antes de eu sair de lá. E até hoje eu gosto de brincar… Então, o que foi que eu fiz? Aposentei [e] pra mim não ficar parado e nem pegar um outro serviço para fora, ficar longe da família, por amor a família, eu já sabia trabalhar com esse artesanato: aí eu passei a fazer esse artesanato dentro de casa. Então eu tenho comunicação com o Iphan, as fundações de cultura. Essas coisas que eu faço, dou oficina disso aí em museus aqui da região. E aí eu encontro esse povo, professores, que vê tudo alegre, aquela pessoa vê tudo contente, parece que a vida é um dos remédios complicadinhos. Mas é bom para a gente viver, pelo menos até no meu… Porque o meu avô gostava muito de brincar, e os filhos dele, todos eram brincalhões. Evitar briga com a justiça, essas coisas, é o que eu peço sempre: “Ó, não briga com a justiça”. A justiça é boa, mas é uma 'doença' bem brava, judia da memória da pessoa também.

P/1 - A sua família gostava de se reunir, de fazer festas?
R - Gostava sim! Eu não faço a festa, mas tinha um tio, uma tia, que vinha do lado da minha mãe, que fazia festa do São João. [Tem um andor] que está aqui atrás de mim, de São João. Tem um que fazia a Festa do Divino [Espírito Santo] e outro [que] fazia do São Sebastião também, irmãos do meu pai. E a festa deles tinha irmandade, além deles serem irmãos, ainda tinha uma irmandade nas festas, brincava. O instrumento que eles brincavam com ele, que eles tocavam, era essa viola de cocho. Dos parentes mesmo, da irmandade do meu pai, não tinha nenhum tocador de violão, desses instrumentos. Já [os] sobrinhos seguiram bem longe, e já aprenderam [a] tocar. Eu não aprendi [a] tocar. Eu tenho viola caipira aqui e tô treinando, quero ver se eu vou aprender tocar ele antes da velinha apagar.

P/1 - O seu pai, ele era artesão também? Ou ele trabalhava com outra coisa?
R - Olha, meu pai trabalhava mais em fazenda, mas ele era… O artesanato que ele fazia, eram as canoinhas, que aqui tem os índios, que são os índios Guatós… Eles falam que é dos índios Guatós. Então eles criaram junto com esse povo: ele aprendeu a fazer a canoinha, fazer outras coisas de madeira e essa viola, a viola. Mas ele não mexia, assim, com artesanato para vender, ele fazia isso para algum colega, irmão, tio, ou parente, ou companheiro, amigo; pedia para fazer, ele ia fazer. Mas no mais, ele mexia com pequenas agriculturas e trabalhava nas fazendas como peão de fazenda, luta de campo, essas coisas. Mas ele gostava muito de lavoura, que era o trabalho dele.

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- “Canoinha” é tipo uma canoa?
R - Aham!

P/1 - E o senhor tem irmãos?
R - Irmãos, tenho! Eu tenho mais dois irmãos. Um deles mora em Campo Grande, ele sabe fazer vários artesanatos, mas não está mexendo com isso. Ele foi ferroviário também, [se] aposentou pela ferrovia também. Trabalhou 25 anos na ferrovia. Ele era condutor de auto de linha, [que] era um trenzinho que carregava trabalhador na extensão da ferrovia. E ele aposentou com isso aí. Ele serviu o exército e foi trabalhar pelo exército [por] dois anos, na transamazônica, pra lá também. Agora ele tá aposentado em Campo Grande, tá lá, tá tranquilo lá.

E o outro irmão e caçula, é o caçula, também mora aqui na cidade de Corumbá, também já está aposentado. É que começou a trabalhar cedo, né? Naquele tempo, começou a trabalhar cedo, carteirinha assinada, de menor e tal, e aí foi e aposentou agora, não faz [nem] dias que [se] aposentou. Tem os filhos dele, tem filho que é militar. Eu também tenho filho militar, o meu único filho é militar.

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- E como é a convivência com os seus irmãos, vocês se dão bem?
R - Nós nunca tivemos nenhuma briguinha. Tivemos aquela briga de irmão quando é pequeno, aquela briguinha de irmão, mas é ali, só discussão, não é briga. Todos nós somos… Hoje, só para a senhora ter uma ideia, na hora que eu liguei aqui, antes das oito horas eu já tinha falado com três irmãos - um irmão e duas irmãs. Já tinham ligado pra mim cedo, mandaram mensagem. A gente conversa quase todos os dias no celular, porque agora ficou curto com esse negócio de telefone. Então, graças a Deus, nós somos unidos.

P/1 - E tem algum familiar, tirando os seus pais, os seus irmãos, que o senhor gosta muito?
R - Meu Deus do céu, eu adorei todos os meus tios! Eu tenho um tio, que é o caçula de meu pai, mora aqui em Ladário. Tô indo lá direto visitar ele, porque ele já não sai mais, mas tenho amor [por ele e vou visitá-lo]. Mas o tio que eu mais queria bem, já faz tempo que faleceu, [se] chamava Antônio Irineu de Souza Brandão, faz muito tempo. Porque a minha tia, que era esposa dele, faleceu [cedo] - eu não alcancei, não conheci [ela] -, então os filhos dele eram pequenos. Eu morava com o meu avô. Aí o meu pai casou e ficou com os filhos dele. Quando eu me entendi por gente, já tinha os filhos dele, desse meu tio. Para mim, eu achava que eles eram meus irmãos mesmo, porque eles eram primos que o meu pai criou. E dessa turma aí, já não sobra mais nenhum, faleceram tudo.

P/1 - E os seus familiares gostavam de te contar histórias?
R - Meus familiares, meus parentes, todos eles contavam umas histórinhas. E eu gostava muito, gosto de quem conta história, eu adoro. Então, se eles contaram história da própria história deles mesmo, aí eu guardava no meu computador aqui direto. Aí eu gosto muito de contar história; quando tem alguma pessoa que quer saber, que quer que eu conte alguma história sobre a gente mesmo, nós mesmos, aí eu conto. Ficam tudo contente de eu contar. Eu tenho os meus netos que estão estudando, tem neta que está fazendo pesquisa [e] às vezes cai na pesquisa dela a minha própria história. (risos) Aí eles vem conversar comigo, os netos: “Ó, vô, hoje caiu num trabalho lá na escola a história do senhor. Sua viola, sua história, tá lá no trabalho que nós fizemos”. Então eu fico todo feliz que estão lembrando de mim do lado aí.

P/1 - Que legal! Tem alguma história que o senhor lembra? Que o senhor queira contar para a gente, que eles contavam?
R - Olha, o meu avô, não sei se ele durou muito tempo, ou se ele gostava, ou se ele contava para desabafar, era sempre um pouco do tempo do revoltoso, que ele contava muito essa história. O pai do meu pai, contava muito. Foi um tempo… Não sei se era bom ou não, porque eu não vivi aquele tempo, mas ele achava muito ruim as pessoas que muitas vezes, como diz o ditado, ajudava numa parte e massacrava na outra. Ele viveu… Por isso que ele fugiu da região do cangaço para vir embora para cá, pra não continuar nisso, porque a história dizia, que se o cara fugisse, eles pegavam, ou matavam, ou faziam qualquer coisa com eles. Assim que ele dizia. E quando ele chegou aqui, que ele serviu, foi trabalhar num combate a esse povo. Acho que era “captura” que [se] chamava isso aí. Então, ele contava isso aí, de correr de cangaceiro. Foi da turma de cangaceiro, não que ele fosse o cangaceiro. Pegavam a pessoa: "Ou vai, ou então morre", uma coisa assim. E que era forçado a trabalhar para eles. E aí ele veio para a captura, trabalhou aqui na região. Daqui, eu acredito que quando terminou aquela, aquele negócio de escravo, pela história que ele contava, eu acredito que aqui nessa região nossa, longe até da justiça, terminou por último, por aqui. Que até, inclusive, eu conheci algum lugar, fazenda que teve escravo. Eu não sei se o Iphan tomou esse lugar ou não, mas ainda tinha isso. Ele contava muito essas histórias aí. Era [tanta] história, que até fica difícil da gente contar, porque eu não tenho uma certeza de tudo que ele falava, então fica mais difícil. Mas ele contava muito dessas histórias. E a minha mãe, ela contava história de como ela chegou aqui na região, quando veio para cá, que eles vieram, passaram pela peregrinação de vir com… As histórias da vinda aqui da região, de Atibaia, de onde ela nasceu, para Mato Grosso. Veio para Cuiabá, mas ela nem conheceu direito Cuiabá; chegou, aí eles já conseguiram descer o Ribeirinho, que é o Rio Cuiabá, para sair no rio Paraguai. Chegou num lugar que [se] chama Laranjeirinha, aí eles ficaram ali até os velhos falecerem. Criaram cavalo, tudinho. E eram duas irmãs e dois irmãos, eu conheci eles.

P/1 - O senhor lembra da casa da sua infância? Consegue descrever como ela era?
R - Olha, a casa da minha infância era, aqui falava uma “erochão”, é casa de palha, de guacuri e feito… As paredes dela eram aquelas grades. Eles falavam casa barreado, feito de barro, para fechar assim. Ali era a casa, ali tinha uns pés de árvores grandes [e] em frente era [de cara] com o Rio Paraguai. Pros fundos, campo e para a frente, o rio. Então, uma distância de uns trinta metros longe da barranca do rio, era a casa. Ali eles criavam, criação de terreiro, com porco, galinha, cabrito, essas coisas, eles criavam ali. Tinha alguma meia dúzia de vacas para tomar leite. Mas aí eles tinham a rocinha deles, lá do outro lado do riozinho, que o gado não ia. Porque, naquele tempo, não tinha cerca, não tinha nada nessa região, então era uma região que ainda estava desbravando. No Castelo, ali próximo, o Ezidio ainda atacava, ali do outro lado. E a casinha era aquele ranchinho, aquele ranchinho de palha lá. Hoje, não [se] vê mais quase ranchinho de palha. Onde eu morei, que eu nasci, chamava Chico Leite, lá é uma pousada para turistas hoje, já nem sei mais o nome [que eles] puseram agora lá. Eu estive lá há uns quatro meses atrás, eu fui para lá [e] quase não reconheci o lugar mais, está tudo estranho, tudo diferente. A natureza mudou muito também

o local, teve uns fogos bravos que andou queimando muito a mata lá para aquela região, ficou tudo diferente. Mas o rio é o mesmo.

P/1 - E o senhor brincava bastante no rio?
R - Olha, a brincadeira mais nossa era no rio. Nós andávamos lá só de canoa, a estrada era de canoa, tinha pouca estrada que andava a cavalo para ir em algum lugar, mas era bem pouco. Agora… Ali, onde eu nasci, no lugar que eu me criei, no ranchinho lá. E quase todas as casas, os moradores…, eram do mesmo jeito: um ranchinho de palha. E a vivência era quase a mesma: era pescar no rio, plantar uma rocinha ali, colher. Naquele tempo, a única coisa que os meus pais compravam, era só tecido para fazer roupa e o café; o resto, tudo era feito em casa: era o arroz, o feijão, o milho, a mandioca, a farinha, o polvilho, o açúcar. Tudo era caseiro, feito em casa. Tudo caseiro, tudo feito, assim, artesanal. E minha mãe tecia, fazia crochê, aquelas coisas de fio, fazia rede com tecido de algodão. Ela mesmo colhia lá na roça e fazia o tecido, os fios e fazia o tecido para fazer a rede.

P/1 - Tem alguma comida daquela época que a sua mãe fazia e o senhor lembra até hoje com carinho?
R - Até hoje eu lembro de minha mãe fazer uma galinha caipira com arroz. (risos) Não me esqueço. [É] a coisa mais simples, mas que eu não esqueço, não esqueço disso aí. Galinha com arroz era minha comida preferida, e aquelas carnes de porco, torresmo, fazia o torresmo de toucinho para comer com mandioca cozida, batata doce, aquelas coisas. Então, eu acredito que esse tipo de comida é uma comida mais sadia, porque, graças a Deus, até hoje eu tenho, me sinto bem confortável e muito bem alimentado com esse tipo de comida. E a carne, a carne de gado é a minha preferida, até hoje, ela, assada… Minha filhas, genro, neto, vêm sempre, aniversário de um, assa uma carnezinha aí e a mandioca. E aí eles estão conversando, eu estou lá do lado, a comida que eles já sabem que serve pra mim é a carne assada e a mandioca, só. Tendo isso aí, eu já não faço mais questão de nada. É uma coisa que desde de moleque a gente faz assim, come assim. Eu gosto!

P/1 - Vocês fazem bastante churrasco?
R - Difícil. Não é bastante, mas às vezes um vai lá, meus filhos, graças a Deus, minha filha mora aqui do meu lado, neto, são tudo assim, tudo quase… Mesmo [no] final de semana: “Hoje tem aniversário de fulano, vamos fazer um bolinho pequeninho, vamos reunir lá na casa do vô”. Vem pra casa, [se] reunir aqui. Meu barraco aqui é tipo um sítio, tem galinha, tudo ali nos fundos. É um terreno bom de tamanho, feito uma área lá para trás, e aí eles vêm e nos reunimos todinhos. [A] família daqui, os que estão aqui, porque tem filha que está longe, filho. Tem um filho que é militar, está lá em Sergipe e a outra filha está em Tocantins, lá em Palmas. Mas os que estão aqui, [se] reúne quase todo final de mês. Ontem mesmo tiveram aqui, tudo reunido aí, comendo uma carninha. Eu comprei um peixe para comer, para nós, aí já fizeram uma peixada, aquela coisa, tudo ali, tudo junto. E sempre reunido assim; graças a Deus, eu tenho meus filhos. Mas… Saí porque é preciso sair, mas sempre tudo… Os filhos que moram longe, quase todo dia estão ligando pra gente.

P/1 - Quando criança, o senhor tinha um sonho de ser alguma coisa quando crescesse?
R - Olha, eu queria ser músico, mas não consegui chegar lá, então eu faço… Como a história do Cururu, eu queria ser motorista e operador de máquina pesada, o que mais eu gostava de fazer, e não conseguia, porque trabalhava na fazenda e não tinha. Mas quando foi chegando um certo tempo, eu trabalhei em empresa de terraplanagem, já entrei lá, peguei máquina, documentei tudinho, trabalhei muito com máquina, máquinas pesadas, carregadeira de oito, de sete, de monte (escripe?), vulcan, essas máquinas pesadas mesmo. Trabalhei bastante [com isso]. E o meu sonho eram essas duas partes: ou ser um cantor, ou trabalhar com máquina e viajar. Esse era o meu sonho. Eu não quis casamento nenhum antes dos trinta anos, fui casar com a idade de Cristo, 33 anos, mas, graças a Deus, os filhos estão todos criados e já tenho até neto, bisneto, graças a Deus.

P/1 - E quem, ou o que fez o senhor ter vontade de virar músico?
R - Por causa do meu pai que gostava de cantar. E eu tinha um tio, uns colegas que tocavam. Eu chamava de tio, porque naquela época o respeito era muito grande. E o meu avô criou ele, esse se chamava Ciriaco, ele tocava quase todos os tipos de instrumentos, menos de sopro, mas de corda, acordeom, sanfona, violões de todo tipo, banjo, violino, cavaquinho, harpa, tudo ele tocava. Então eu gostava de ver, mas eu gostava mais era de ouvir. Eu tinha meu sonho de aprender tocar alguma coisa. Infelizmente, eu só fui aprender [a] tocar porque eu sei fazer a viola de cocho, essa aí eu sei tocar e fazer. Faço, corto lá no mato, a árvore. Quando o meio ambiente me libera, eu vou lá e corto. Mas, na maioria, é o próprio meio ambiente que quando vai cortar, traz pra mim o material. Então o meu sonho era esse aí, ser operador e viajar para conhecer o estado, pelo menos o estado. E, graças a Deus, eu cumpri… Só não aprendi [a] tocar os violões, essa coisa que eu não aprendi, mas o resto aprendi [a] fazer tudo. Eu fui maquinista de barco - chamava maquinista -, subia o rio Paraguai, [de] Cuiabá a Corumbá, Corumbá, depois Cáceres. Essa região tudo aí, viajei [por] bastante tempo. Aí ficou que eu conheci… O meu sonho [foi] realizado: eu conheço Mato Grosso pelo rio, pela estrada boiadeira e pelas BRs (rodovias federais) também. Então deu para conhecer um bocado.

P/1 - O senhor chegou a ir para a escola?
R - Meus estudos foram [por] muito pouco [tempo], eu estudei por correspondência (risos) um pouco mais. Quando eu era ferroviário ainda.

40:28 - Como é que é estudar por correspondência?
R - Era… Ô, meu Deus do Céu, esqueci o nome da entidade. Já faz tempo. Esqueci o nome lá. Estudava a apostila todinha, era para entregar no final de semana. As apostilas chegavam para mim no sábado, na sexta-feira, eu tinha que mandar as apostilas para receber o resultado. Essa apostila estava indo, já estava chegando a outra na segunda-feira, e aí por diante. E quando eu estudava, eu estava estudando, alguma coisa, me classificaram como supervisor de via permanente, [então] eu tinha que fazer todas as relações dos materiais que tinham, os pontos dos trabalhadores. Eu era supervisor. Tinha quatro trabalhadores que trabalhavam junto comigo, entre eu, eram cinco, então eu tinha que fazer relação de todos os materiais. E aí, estudar… Instituto Universal Brasileiro, [lembrei]! Então, eu não morava na cidade, morava para fora, na beira dos trilhos. Essas casas que tem na beira do trilho, eram casas boas, confortáveis e tudo, mas só que estavam lá fora da cidade, então tudo dependia dos trens. Eu mandava as apostilas de lá na sexta-feira, no trem de passageiro que vinha para a cidade, [que] era Corumbá, e quando era na segunda-feira, eu ia num posto de estação próximo para pegar minha apostila, para continuar escrevendo, estudando. E várias vezes, o expediente da ferrovia iniciava, eram seis horas da manhã, por várias vezes já saia com a refeição do dia pronta, já saia de casa com ele pronto. A minha esposa levantava quatro horas para fazer o meu café da manhã e o almoço, para levar para o trecho. Muitas vezes eu estava terminando de fazer os deveres da apostila, ela saía para fazer a comida: “Uai, para onde você vai?”, “Fazer o almoço”. Passava a noite, bem dizer. Por várias vezes, acontecia isso comigo. Mas graças a Deus deu para fazer alguma coisinha, eu cheguei até a supervisor especial na rede ferroviária. Quando saí de lá, já era chefe de quinhentos e poucos quilômetros de linha, dentro do Pantanal, com 450 funcionários, que eles divididos, cada um tinha os seus postozinhos para ficar. Então foi por ali que eu estudei um pouquinho. Aí outro que me deu uma luzinha, foi depois que eu aposentei, [que] teve um projeto do “Revelando os Brasis”, e aqui na região centro-oeste, foram 1700 e poucas pessoas, eu acho que era mais ou menos isso aí. E, felizmente, a minha historinha que foi aprovada, só ela. Aí eu ganhei o curso para fazer a história audiovisual, história de cinema, aí que eu dei mais uma desenvolvida. Foi muito bom aquele projeto pra mim, e que hoje eu tenho todo conhecimento de histórico de artesanato, essas coisas, através… Fui estudar mais por causa disso. Tá aí no YouTube, não sei se a senhora já viu, a história, um curta metragem, documentário, ele aparece no YouTube: “O trem fantasma e a viola de cocho”. A trilha sonora dela é da viola de cocho. Por isso aí que eu fiz alguma coisinha para estudar.

P/1 - O senhor fez um curso de história do cinema, é isso?
R - Fiz! Pelo “Revelando os Brasis”.

P/1 - E o que o senhor aprendeu?
R - É que, muitas coisas sobre artístico, para escrever, muitas coisas de história, aprendi até lá, tirei uns quantos dias lá no IMA (Instituto Marlin Azul)… Lá no (Instituto Ana Rosa?), lá dentro do IMA, e isso aí me ajudou muito. Porque quem estuda pouco, não pega um serviço, vamos supor, de escritório, ele passa muito tempo, chega a ir perdendo, esquecendo, ainda mais pela idade, vai esquecendo alguma coisa. E isso me fez relembrar muita coisa, muitas coisas. E a ferrovia mesmo, por si, ensinava muito a matemática, parte matemática, porque lá a pessoa até dormindo está fazendo a matemática. Se eu dormir tantas horas e tantos minutos, andei tantas horas e tantos minutos, eu trabalhei tantas horas com certas peças, tantos minutos com outra. E matemática rola direto lá. E aí tem que escrever nomes de materiais do pessoal, aquelas coisas. Então, o português, eu sou mais engolido no português, eu acho que tem bastante gente que também é, enche a barriga de letra quando está escrevendo. (risos)

P/1 - Com quantos anos o senhor começou a ser ferroviário?
R - Trinta e cinco.
P/1 - E foi aí que o senhor quis começar a estudar?
R - Aí que eu fui estudar melhor, saber alguma coisa.
P/1 - E por que você resolveu estudar com essa idade?
R - É que o pessoal, a própria ferrovia, ela tinha o funcionário que tinha muito empenho, eles achavam que mereciam, então eles mandavam fazer curso. Eu morava aqui mesmo no Mato Grosso, aqui no Pantanal, que a ferrovia atravessa aí e mandava para Lins. Ia lá para Lins, em São Paulo, Bauru, Araçatuba, fazer cursinho. E através desses cursinhos, entravam várias coisas para a pessoa aprender, sobre as histórias de ferrovia, essas coisas. E foi muito pouco, meu estudo não é muita coisa não, mas pra mim valeu a pena, porque eu já estou quase no caminho, quase na reta final. E ainda escrevia alguma coisa. Eu tenho meu histórico, depois eu vou acabar mostrando para a senhora, daqui dessa sala mesmo, do meu trabalho, na Alemanha. Tô com um exemplar de um livro que me mandaram da Alemanha; tá bem aqui, depois vou mostrar para a senhora.

P/1 - Quando o senhor era mais jovem, o que você gostava de fazer na cidade? Tinha alguma diversão?
R - Olha, eu gostava muito de brincar na cidade. Na minha época, da infância, existiam muitas festinhas de aniversário, para um lugar, para outro, nas casas familiares. Eu gostava muito disso aí, porque tinha muitos colegas que eram do meu tempo. Eu trabalhava embarcado, quando eu chegava no porto, já saia com eles, ia nas festinhas, ia em algum clube dançar. Isso era o que eu gostava muito de diversão. Porque quando a gente saía para fora com o barco, não via diversão nenhuma, só via o quê? Sertão e animais, bicho, muito difícil de encontrar um… Primeira coisa, que esse tipo de navegação era cargueiro, então não tinha parada: saiu dali, tinha que parar [só] lá no destino. Aí eu pulava dentro do porão da máquina, muitas vezes nem via por onde passou. E quando chegava na cidade, encontrava com os colegas, o primo. Eu nunca fui de bastante colega não, era um companheiro ou dois no máximo só, porque [com] muitos dá problema para sair. E, graças a Deus, até nessa idade que eu estou, nunca dei trabalho para a justiça. Fui na delegacia para tirar o meu RG e tenho muitos colegas que são policiais, advogados, por aí tudo, mas só amizade mesmo. Nunca deram trabalho pra mim, nunca. Graças a Deus, meu nome está limpinho nessa parte…

P/1 - Esse foi o seu primeiro emprego?
R - O da ferrovia?
P/1 - Não, do cargueiro.
R - Foi!
P/1 - O senhor tinha quantos anos?
R - Só que naquele tempo, nem carteira, ninguém desse pessoal tinha, não tinha. Não ficou esse histórico pra ninguém aí. Pra mim, pelo menos, não ficou. Não tinha carteira assinada. Aí que foi, que estava começando a aparecer um tipo de carteira que se chamava… Inpc? Iapetc (Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Estivadores e Transportes de Cargas), que era o sistema que tava criando, (Epi?), Iapetecs. Aí quando eu tirei a minha primeira carteira, eu tirei mesmo já foi carteira de trabalho, [no] Ministério do Trabalho, só. Então, eu usei duas carteiras só, mas aí duas carteiras só foi assim para cada ano, anual. Foi dois empregos, aliás, dois empregos de carteira assinada. Aí completou meu tempo de aposentadoria. Foi a Camargo Corrêa e uma outra empresa de terraplanagem aqui. Como é que chama? É um porto seco que tem aqui, que trabalhei nele, mas trabalhei com serviço de ferrovia lá. E a rede ferroviária, [fiquei] na rede ferroviária por vinte anos, a Camargo Corrêa foi mais cinco. Aí tem essa empresa de terraplanagem, [que] foi mais dez. Ah, não! Tem mais uma: (Quattrone?). Já faz muitos anos essa empresa, a (Quattrone?); foi acho que só três anos. E aí do porto seco que eu tirei sete anos direto, nela lá. Aí chegou uma época que tinha muita salubridade, essas coisas ali, veio a aposentadoria. Aposentei com 62 anos. Eu dei uma machucada lá [na] empresa, encostei por uns noventa dias, aí eu falei: "Vai me dar muito prejuízo", porque eu trabalhei na rede ferroviária quase vinte anos, nunca teve uma licença médica, nem um dia cortado. Tinha muita hora extra, isso sim. Tinha muita, muita, mas nunca teve nada, nenhum telegrama, nem justificar, nada, nunca teve isso [de] justificar meu ponto. Graças a Deus, até gripe corria de mim lá, não sei porque. (risos)

P/1 - O senhor é casado, né? Como é que o senhor conheceu sua esposa?
R - Eu conheci ela na fazenda. Eu trabalhava na fazenda e o pai dela era criador… Hoje, pelo o número que ele tinha, ele constaria [como] fazendeiro, mas, naquela época, aqui no Pantanal, quem tinha dois, três mil cabeças de gado, era criador, um criadorzinho. Não era fazendeiro ainda. E eu trabalhava numa fazenda bem próxima. E aí a gente se conheceu, já bem maduro, eu e ela, ela mais nova do que eu [por] um ano, e aí a gente namorou um tempinho e casamos. [Foi] em 73 que casei.

P/1 - Vocês fizeram festa de casamento?
R - Fiz, fiz!
P/1 - Como é que foi?
R - A festa foi na cidade, na casa deles na cidade. Bastante churrasco, chopp e amigo. Bastante amigo, tanto do lado dele, dos fazendeiros, que eram colegas deles todos, e os peões do meu tempo. Eu peão e ela fazendeira. (risos) Mas nós tivemos muito prejuízo… Porque nos casamos em 73, janeiro, e no outro janeiro, de 74, veio o primeiro filho, que hoje ele é capitão do exército lá em Sergipe. Já está também quase saindo, já está aposentando. Então, eles tinham a fazenda dele, tinha bastante gados, eles. Aí, em 74, aqui no Pantanal, foi uma surpresa: muitos fazendeiros que tinham cinco, dez, quinze mil reis, ficaram quase sem nada. Ele mesmo, [meu sogro], perdeu quase tudo, só salvou [a] casa e a família. E eu também, o que eu tinha na época, nós ficamos todo mundo… Foi 74. Aí passei 75… Em 77, eu entrei na ferrovia. Tinha o primeiro filho e uma filha já com um ano e pouco, um ano e dois meses, e duas meninas gêmeas de três meses. Nós entramos na estrada, entrei na estrada com eles. Quando eu saí de lá, minha filha que é depois do filho, já tinha casado, mora bem do meu lado aqui, que é mãe do menino que estava aqui agora, do Bruno. Ela tem uma filha, que já me deu uma bisneta, mora aqui do meu lado. Toda hora… Eu sou daquele que acabei ficando meio dependente dos filhos e dos filhos dela. Eu dependo deles para essas partes técnicas, dessas coisas, mexer com celular, esses negócios. E eles vão correr, vão atrás de médico para a minha esposa, pra mim, eles que mexem com isso aí. Tem uma outra que era gêmea, ela é… Tá na escola, na área de educação, ela tá na região de zona rural. Nunca ela tinha ido para lá, agora tá conhecendo a região rural. Teve que ir lá para o Pantanal, numa escola rural.

P/1 - E o seu primeiro filho, como é que foi para o senhor ser pai pela primeira vez?
R - Eu tinha muito sonho de ter um filho e quatro filhas, esse era o meu sonho. E, felizmente, veio o meu filho. Nesse tempo, nós tínhamos ‘levado’ os maiores prejuízos, foi muito sofrimento. O filho é o compromisso maior que a gente tem, eu acho [que] é um compromisso muito grande. E nós dois ficamos, eu e a minha esposa, dependendo de trabalhar para os outros para manter. Então, eu falei: "Não, eu não quero que você trabalhe, eu só quero que você cuide do meu filho, que eu vou trabalhar", e foi por aí que eu entrei na ferrovia, na rede ferroviária. Graças a Deus, o meu serviço era pesado, mas consegui criar os filhos todinhos ali, [por causa do meu trabalho] na ferrovia. O meu filho, o meu sonho era ver ele formado, no exército. Agora ele [se] formou [em] advocacia lá no exército, ele tem a carteira da OAB. E quis dar baixa. Não sei se ele trabalha nessa parte lá no exército, mas agora ele já está para [se] aposentar. Nunca trabalhou em outro serviço sem ser militar. Ele foi para [a] escola militar, que era a escola aprendiz de marinheiro. Ele começou na marinha; da marinha, ele passou para o exército; agora ele é major. Ele toma conta, está como comandante lá em Sergipe. Ele tá em Aracaju. Ainda ontem ele ligou para cá. Quase todo dia ele liga pra casa, pra saber [da gente].

P/1 - Vocês são muito próximos então?
R - Ah, os meus filhos pra mim é tudo na minha vida, até hoje, tem filho que se não vem aqui de manhã me ver, eu vou lá na casa dele, eu vou ver como é que tá. As vezes tem uma que está aqui do lado, que é mãe do Bruno, ela está dando aula, ela da aula na própria casa dela mesmo, ela e a filha dela, então uma hora dessa ela está lá. Eu levanto de manhã vou lá

ver como é que eles estão. Às vezes eu vou tomar café lá, ela vem tomar café aqui em casa, de manhã cedo. Agora com esse frio ta bem ruim de sair, mas eu já fui lá na casa dela.

P/1 - Senhor Sebastião, como que o senhor começou a construir viola de cocho?
R - Olha, a viola de cocho, eu já fui… Pra dizer a verdade, eu já conhecia ela, porque o meu pai já, meu pai, minha família toda já tinha essa tradição, essa fortuna. Então, eu costumo dizer para turma, que para conhecer… O meu pai fazia, os meus irmãos, que eu já lembro, dormiam cantando esse cururu. Quando fui me entendendo por gente, eu já via a violinha dele ali. As festas de São João, ele ia na casa dos parentes ali perto e nos levava na festa lá, era só isso aí. E ele mesmo, quando era bem pequeno, quase não fazia, que ele saía muito para fora, para as fazendas, ele não ficava, [porque] onde nós morávamos, ficava longe de ele trabalhava, então nós… A minha mãe não deixava porque ali tinha as criações miúda, de terreiro, essas coisas. Eu tenho [um] tio que [se] chamava João Vitor de Arruda, ele fazia viola, e [também] a festa do São João. Então ele fazia a viola para quase, para muitos cantadores ali que pediam para ele fazer viola. Chegava lá: “Eu quero que o senhor faça uma viola pra mim, para esse ano no São João”, ou festa do Divino, São Pedro, Santo Antônio, tudo eles queriam. “A minha, que o senhor fez ano passado, dei de presente para um colega lá e tal”, aí ele fazia. E nós morávamos bem pertinho um do outro, bem próximo. Os meus primos, nós ‘ia’ brincar, ‘queria’ cantar aquele - como diz o ditado - “o exemplo sai de papai e mamãe”, né? Ali de casa, os filhos veem pai e mãe fazendo, eles querem fazer aquelas coisas, remendar ali, como diz o ditado. E aí quando ele estava fazendo a viola dele, eu tava olhando ele fazer. Então eu pegava, eu e o filho dele, que é o meu primo, nós ‘cortava’ uma madeirinha lá e ia fazer pequena, [uma] mini viola. Mas a viola mesmo que eu fui fazer já pra mim, eu tava com dezesseis anos mais ou menos, essa aí eu já fiz para tocar. Nós morávamos num lugar, num rio que [se] chama Rio São Lourenço, que é esse rio que vai para Cuiabá, para a capital do Mato Grosso. Então nós morávamos nessa margem ali, e ali tinha bastante índio, daqueles índios Guató e eles tocavam, faziam essa viola, fazia uma para um, uma para outro. Não fazia em quantidade, fazia mesmo para eles. E eu encontrei com um deles, dos índios que eram conhecidos [da gente], tava fazendo a viola para eles cantarem lá na aldeia deles. A aldeia deles ainda não era assim, estrada, não tinha estrada e nem passava navio, barco por ali, só mesmo quem saía para ir ali. Eles ainda estavam morando dentro do Pantanal, mas naqueles lugares de aterro, que eles falam “capão de mato”. Aquela coisa aterrada, ali eles ficavam.

Não tinha um lugar muito certo. Então eles estavam fazendo a viola e sobrou um tronco, eu falei: vou fazer uma viola dessa daqui, de uma madeira chamada saram, que só existe dentro do Pantanal mesmo, nunca vi para, [em] outra parte. Não sei se lá para o lado da Amazônia, se tem, mas aqui é só nessa região mesmo que tem o saram. Então são dois tipos de saram: tem um que chamam [de] “saram de galho”, ele é só muito galho, mas tem um outro saram que já é uma árvore mais alta. Até os Ribeirinhos aí, por causa da tradição, chamam ele de “saram de viola”, desse que era a madeira que fazia [a viola]. Então eles estavam fazendo, eu peguei o facão e comecei a fazer. Aquele tempo não tinha motosserra, nada, era feito no facãozinho, machado, facão, passava uma plaina, mas nós não ‘tinha’ plaina lá no mato, alisava ele com machado e com facão, e cavava. Às vezes, fazia até [uma] forma dos, [com os] próprios facões velhos, [com] ferramentas velhas, fazia lá, para fazer o formão para cavar, porque ela é uma… Ela tem o nome de viola de cocho, porque ela foi tipo um cocho mesmo. Aí tampou ele, pôs um tampo, uma madeira só por tampo. Ela é cavada, aí depois coloca o tampo, faz um formato. Naquele tempo, era um formato bem diferente de agora. Agora já está ficando mais, foi chegando numa posição que ficou uma viola bem até bonita. Então, a minha primeira viola que eu fiz para aprender [a] cantar com alguém, que já cantava alguma coisa, foi a partir dos dezesseis anos. Mas conhecer ela, já desde [o] berço [eu] conhecia.

P/1 - O Ministério do Meio Ambiente precisa dar permissão para cortar árvores? Como que é isso?


R - É! Por exemplo, eu preciso, eu sempre… Aqui, eu já tô desde 2009 fazendo viola de quantidade, encomenda, essas coisas. Então já to entrosado com o Meio Ambiente, entre o Meio Ambiente, Ministério da Cultura, com a Fundação de Cultura daqui e a Secretária de Obras da cidade, tanto de Corumbá, como de Ladário. Então eles todos sabem que eu faço. Muitas vezes… Muitas vezes não, quase direto… Tem essa árvore que eu estou utilizando agora, que nós estamos fazendo, que já é tradicional mesmo, ela [se] chama - aqui na nossa região - timboúva, em alguns lugares chamam ela de “barriguda”, [e em] outros de “orelha de velho”. Tem vários lugares aí, os nomes. Eu estou lutando para lembrar o nome que falam aí em São Paulo, que eu já dei uma oficina de viola em São Bernardo do Campo, já dei uma oficina aí de viola e era com a timboúva. Aí eu fui falar o nome da timboúva, me deram um nome lá que eles falavam lá, essa madeira, mas eu já esqueci até, que muitas vezes nem anoto, porque é muita entrevista quando eu saio, tem bastantes pessoas que vem [me] entrevistar e, às vezes, eu não tenho uma pessoa para fazer uma anotação ali para mim. Então, o corte, se eu, por exemplo, vou cortar aqui uma madeira, eu tenho que ir lá na Secretaria de Meio Ambiente pedir uma autorização para eles, mas essa autorização já tem que sair do proprietário da terra onde está a árvore. Eles: “Ah, eu vou cortar [a árvore], senhor não quer fazer viola dela?”. Não, mas aí você tem que pedir autorização para eles cortarem, para eu cortar, ou eles mesmo vim cortarem, mas já tem uma… Se vai doar ou vender a madeira para eu fazer viola. Então já vai a autorização dele lá, aí vai lá na autorização: “Essa madeira [que] vai ser cortada, a madeira que pode aproveitar, vai lá pro artesão fazer a viola de cocho”, que ele já sabe que aqui, normalmente, agora, tá só eu fazendo. Aí vai uma bióloga lá para comprovar se a madeira está no lugar que precisa de cortar, para descrever o motivo por causa do corte, motivo que vai dá para cortar. Aí a bióloga vai, tira as fotos, tudinho, registra, leva lá e manda para o Ministério do Meio Ambiente pra autorização. Aí ele dura… Tem vezes que é rápido. Agora, com esse negócio de celular, essas coisas aí, é rápido. Pela internet, né? Então é mais rápido: [em] três, quatro, cinco dias, já tem autorização para ele cortar. Às vezes ele consegue com o pessoal do meio ambiente mesmo, que tem uma equipe na cidade que faz esse serviço, vai lá e corta. E, às vezes, a Secretaria de Obras traz para mim aqui, porque para cortar lá longe, fora da região urbana, que está aqui bem próximo, tem que tirar outra nota, [autorização] para o transporte, para trazer para casa, que é o pior. Se não tiver isso aí, é o que pega, dá um problema danado. Então eles tem que tirar o… O meio ambiente mesmo, vai dar a licença para o corte e para o transporte do lugar, do lugar onde ele foi cortado [até] para onde é o destino final, já vem com o documento todo pronto ali. Mas, no caso, que é a limpeza urbana, que tem que tirar, às vezes tem lugar aqui, cidadezinha que está expandindo, tem muitas vezes, na maioria, como agora mesmo, tem uma árvore que ficou no meio da rua e vai ser preciso cortar, já cortou uma, ficou uma, [e] essa que cortaram, já está aqui no meu quintal, a madeira. O próprio secretário de meio ambiente, com o secretário de obras já me conhece, cortou; só me ligou: “Sebastião, tem uma madeira assim, você vai querer?”, “Eu quero, pode trazer”. Aí eles cortam aquela parte que serve para viola, já me trazem e deixam aqui na minha casa, a própria secretaria. Quer dizer, tem toda essa parte, mas se não tiver, tem que pagar o transporte, até a condução que vai vim, o caminhão, o trator, tem que saber, tem que tirar até o número da placa dele para mostrar. É [uma] coisa meio cabulosa. Eu tenho a motosserrinha que eu trabalho, que é pequena, é registrada, a cada três meses eu tenho que pagar a licença. E todo final de ano, agora, em dois em dois anos, que reforma a licença. Mas mesmo assim, [a] cada noventa dias tem que pagar a licença.

P/1 - E o senhor vende viola também?
R - Vendo! Tem viola minha [que vai] para muitos lugares aí. Até nem sei para onde o povo põe essas violas, porque depois… Alguns que mandam foto: “Tá aqui, tá assim, assim”, porque já tem muita viola, bastante viola.

P/1 - Até online o senhor vende?
R - Vendo, vendo! Às vezes, quando tem uma pessoa, amigo, uma pessoa que contribui [com] alguma coisa, eu faço uma e dou de presente, mas, na maioria, é encomenda. Muitas lojas querem que eu mande para eles venderem, mas não dá, não dá tempo, não sobra, não sobra para mandar. Agora mesmo, falei no início, eu mandei uma para Teresópolis… Jundiaí que eu quero falar, mandei para Jundiaí. Mandei uma para Jundiaí, e aqui para outra parte no próprio estado, aqui na capital mesmo, Campo Grande, quase todo mês vai uma, duas. E tem turista que vem de fora, vem para passear no Pantanal e quer levar uma lembrança: vem aqui, compra e leva. Na minha oficina, tem uma madeira ali e eu faço ela o ano inteiro, o ano inteirinho. Quando chega nessa época, agora, o pessoal quer… Pra mim é bom que me dá um pouquinho mais, me ajuda na aposentadoria. E fazer os andores para os festeiros. aí faço os andores, eles me pagam um cachezinho lá no valor do andor e ainda vou cantar lá para eles. Ainda me paga um cachê para cantar, pra ir lá. E eu sou ruim de voz; agora fiquei sozinho, meu único colega de cantar, que tinha o último, faleceu com essa doença do Covid. Agora estou treinando os meus netos, esse ano eu já vou cantar na festa de São João com um deles aí, para cantar. Mas, no normal, é um número de seis, oito pessoas, pode cantar até vinte pessoas numa roda só. É igual aquelas rodas de violeiro, que tem de viola caipira. É bacana, quando todos sabem, é uma coisa muito bonita, muito alegre, muito divertida. Então, esse ano, tô só eu com os meus netos mesmo.

P/1 - E tem algum lugar que o senhor vendeu bem longe, algum outro país?
R - Olha, tem viola minha que eu tenho certeza… Teve viola aqui que um artista aí, daí, acho que é da Globo, ele é português, ele e aquela Paula Arósio, que é bailarina. Como que a gente fala, hã? Ô meu Deus do céu! Ele veio aqui uma vez e comprou, comprou viola e assistiu eu fazer uma do começo ao fim, eles puseram aqui para filmar, para fazer uma. E ele levou essa que eu fiz, ela levou uma… Ela é modelo, né? Essa Paula Arósio, ela é modelo.
P/1 - A Ana Paula Arósio? Atriz?
R - É! Justamente! Ela teve aqui na minha casa, uma época de uma chuvarada, tinha que fazer dentro de casa, por causa da chuva. Aí ela levou uma e o português, eu me esqueci o nome dele, levou essa que eu fiz ali. Não, ele levou duas, uma levou, mandou para Portugal e a outra, eu não sei, ficou com ele por aí, acho que ele já foi… Não vejo mais ele na Globo, eu acho que ele foi… Não sei se ele foi embora, ou não. Eu sei que para Portugal direto, eu já mandei quatro violas pra lá, para Portugal. E tem na Alemanha, uma alemã que veio fazer pesquisa no Pantanal pelo Instituto Acaia e ela fez aqui comigo umas aulas aqui, acho que de uns oito, dez dias, aprendeu um pouco da confecção da viola, aprendeu [a] manejar ela na mão, tocar um pouquinho. E ela levou daqui três violas. Depois que ela levou três violas, eu já mandei mais duas. Eu mandei um passo a passo do começo de como fazer, o modo de fazer para ela. Acho que lugar lá chama cidade de (Ana?). Então lá eles escreveram, ela escreveu esse livro [e] mandou um exemplar pra mim, esse livro aqui - abre aqui na página pra mim -, meu neto vai abrir aqui pra eu mostrar a ilustração. Então já tem… Lá parece que é no mês de junho, julho, tem um negócio de um encontro por lá, e aí eles apresentam no museu o meu histórico também. Esse aqui é de lá, esse livro, também. Então, aqui tem… E tem mais outros livros, tem jornal, tem para a Argentina. No Paraguai, tem mais quantas violas que eu fiz. Só para ter uma ideia, uns dois meses antes de dar aquela trancada com o negócio da doença (Covid), dessa doença brava aí, dessa pandemia, eu fiz uma oficina lá no Ceará, naquele grupo “Maiores Encontros do Mundo”, que teve, “Maiores Artistas do Mundo”. Então, eu fui lá participar, lá no Limoeiro do Norte, mandaram me buscar. De Brasília, me mandou pra lá [e] eu fui lá para apresentar. Naquela época, estava completando dois mil exemplares. É bastante, né?
P/1 - Sim, bastante!

P/1 - E o senhor acha que fazendo a viola de madeira controlada pelo Ministério do Meio Ambiente, tá ajudando de alguma forma com a conservação?
R - Pra mim, a conservação… Porque tem o negócio de biologia aí. Até esse menino meu, o meu neto está fazendo, pelo (Ibrapa?) (Instituto Brasileiro de Perícia Ambiental). Eles fizeram as pesquisas e fizeram umas perguntas pra mim sobre a timboúva, que faz a viola, né, para confirmar alguma coisa, se eu tinha certeza da madeira que eu estava utilizando para a viola: “Essa madeira, com quantos anos que ela vai dar a viola?”, aquela coisa tudinho, e deu tudo certo aqui. Ela, [a] confecção da viola, já foi registrada, registrada [como] patrimônio nacional. A viola, inclusive, quando vieram fazer a pesquisa aqui no Pantanal, tanto lá no Mato Grosso, como aqui, eles acataram uma história minha, sobre… Nós ‘tava’ fazendo… Eles estavam fazendo a pesquisa e mandaram me chamar aqui na faculdade para fazer uma entrevista para comparar [o que eu disse sobre a timboúva], a minha história… O que eu disse aqui, com o que disseram lá no Mato Grosso, porque ela é uma cultura do Pantanal, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. Então, a fabricação da viola, eu disse quando tavam fazendo para tombamento, para registro da viola de cocho, que foi registrado primeiro: “Vocês estão pondo, eu acho que estão pondo os carros na frente dos bois”. Porque registrou a viola, mas e o modo de fazer? Ficou para onde? Eu acho que o registro dela deveria ter o modo de fazer a viola, que aí o modo de fazer a viola já vai contar a história dela do começo até a finalização lá da viola para a música. Então, aí eles começaram a escrever isso daqui, foram para Mato Grosso também, isso ajudou, pelo Iphan, aí entrou acho que a Unesco. Aí quando foi o ano passado, foi o registro do banho de São João em Corumbá e Ladário. Também já completou um ano, fizemos o aniversário dele aqui [em] um ano. Então agora está o modo de fazer a viola e já tinha o registro da viola, e ficou completo, né? Aí fica mais fácil, porque pelo menos a pessoa quer saber, pega o modo de fazer viola, vai ter um histórico. Deve ter lá de como fazer a viola, o modo, vai aparecer o Sebastião lá fazendo viola decerto num vídeo, porque, sempre, quando eles querem fazer um vídeo sobre o modo de fazer viola, eles vêm aqui, porque eu tenho minha oficinazinha ali e ali eu fico fazendo a viola, direto ali. Ali começa do começo ao fim dela. Porque todas as violas que eu faço, eu começo lá os troncos, vai iniciando por lá, daí vai terminando o pranchão, vai fazendo passo a passo. Quando eu termino ela, lá mesmo, [já] ponho as cordas e afino ela lá, e ainda toco algum versinho para improvisar. Já sai prontinho dali. E agora, ela é… A viola é feita de um pau só, uma madeira só, só já vem, [falta a parte de] entrar o tampo, que é no meio, espelho, aquela coisinha lá na frente, uma pecinha em cima para tampar. Aí já entra as cordas tudinho. Mas ela é uma madeira só.

P/1 - E o senhor já ensinou outras pessoas a fazer essa arte também?
R - Já! Tem muitos que não seguem. Você, da oficina… Todo festival que tem [a] oficina de viola de cocho e do ganzá, que é… O ganzá é acompanhado, acompanha a viola de cocho. É esse tipo aqui, ó! Esse aqui é o ganzá! Ela acompanha a viola de cocho. Então este ano, agora, nesse festival, a minha oficina foi para fazer esse daqui com trinta alunos. Os alunos todos são professores, professores, pesquisadores, que é. Os dois netos meus deram oficina de mini viola, de violinha pequena, que eles deram a oficina na escola Dom Bosco. Eles já aprenderam comigo, que aprendem aqui direto. E tem muitos alunos, tem deles que aprendeu fazer, mas saiu daqui, foi para outra parte. Aqui mesmo tá aqui para fazer mesmo, porque a maioria desses que aprenderam, uns são professores, outros são alunos que já estão na faculdade, daí eles de certo estão esperando mais tempo para poder fazer as violas, porque tem que trabalhar para poder aprender, para a escola, para os estudos, ái e pouco tempo para fazer. Mas agora para cantar mesmo, a cultura da cantoria do cururu, que é acompanhando com a viola, aqui está tendo pouco, aqui na minha região tem pouco, deve ter uns vinte, mais ou menos. Mas já tão ficando… Tem alguns deles com 22, 23 anos, mas a maioria já tem mais de cinquenta anos. Então agora, já tá com dois anos que eu estou fazendo as oficinas, palestras primeiro, mostrando, desde creche, da creche pra cá. Tem muitas crianças que ficaram com muita vontade de aprender e tem [algumas] delas que já aprende mesmo. A dança com viola de cocho, que chama siriri, tem bastante já, já tem bastante, deve ter uns cento e poucos aqui na cidade de Corumbá, Corumbá e Ladário, deve ter uns 110, 115, por aí, que dança siriri. Tocar e mais pouco. Agora, eles estão mais influindo em aprender a tocar a viola para o siriri do que para o cururu, porque é mais influente, né? Aí entram os adolescentes da mesma idade, aí eles vão brincar, já vão formando, um vai atrás do outro, convida e vai gostando, tão gostando da brincadeira. Ontem eu tava aqui ensaiando siriri, eu, dois netos e uma neta. E uma professora de música acompanhando, aqui em casa. Nós vamos apresentar no mês de junho, por aí, julho. Quer dizer, lá pro final de julho, nós vamos apresentar. Mas essa escola, dessa professora, tem trinta componentes que dançam o siriri.

P/1 - Como é que é a dança e a música que vocês tocam?
R - Olha, a música do cururu é de um jeito e parceiro, é por par, a do cururu. Às vezes eu canto sozinho, mas eu faço aqui… Eles chamam de cururu. De repente, quando eu to sozinho, que às vezes não tem companheiro, como agora eu fiquei sozinho, alguns que eu canto junto com ele, já tem a dupla dele lá, mas com esse negócio da pandemia, esparramou muito. O que a pandemia não levou, afastou, foi para a zona rural com medo. Eles já são da região mesmo, foram para essa região com o medo da doença aqui. Então agora que está começando a voltar novamente, vamos ver se nos encontramos nesse São João. Eu já estou com o compromisso de cantar, brincar no São João aqui de Ladário e de Corumbá. Eu faço aqui uma parte, que chama levantar o mastro com a bandeira. Você viu ali naquele andaime tem um mastrozinho assim, ele vai, levanta aquilo ali, os cantadores ficam de roda, fazem roda. Eu tenho que fazer isso num horário aqui em Ladário, na hora que eu terminar essa levantação de mastro, já tem uma condução me esperando para levar para Corumbá, [que] lá é muito grande. Aí lá, que eu encontro com o cururueiro dali de Corumbá, que tem parente meu lá, na maioria são meus parentes que tão lá. Aí nós encontramos e nós formamos o cururu até dar o banho no São João, levantar o mastro, aquela coisa lá, até terminar. Aí nós já deixamos para o siriri, a turma do siriri até o horário que é permitido. Lá, às vezes, amanhece o siriri. Lá tem uma oficina de dança, que deve ter, acho que é cinquenta damas e cinquenta cavalheiros para dançar. O siriri é parceiro, eles formam duas fileiras de frente com a outra, cantam a música, [batem] palmas [com] duas mãos. Eu tô aqui já ensaiando com o meu neto o siriri novo, os versos mais novos, que é pra eu cantar com eles lá. E lá tem os mais velhos que vão cantar os versos antigos, porque a gente está cantando quase só os versos bem antigos, tradicionais, aí quem vem para assistir esses são pessoas, turistas. Turista que vem de fora. Aí vem alemão, vem italiano, vem japonês, vem americano, vem gente do país mesmo, vem de toda a parte. Inclusive, da cidade da senhora vem também. (risos) De São Paulo, de Belo Horizonte, vem pessoal do Ceará. Tem muita gente, tem muitas pessoas que vem para o São João aqui. Porque Corumbá, pelo menos, o carnaval e o São João, são duas festas que trazem muita gente de fora. É bem grande mesmo.

P/1 - Como é que são as festas?
R - Como [é] que são feitas as festas?
P/1 - Como é que é? Tem muita gente?
R - Até os que fazem, que cantam, que brincam, são poucos. Vem muitas pessoas para assistir. Quase todas elas saem das igrejas católicas. Eles levantam o mastro, fazem a festa, a comemoração do dia de São João é do dia do batismo de São João, então é aproveitado pela história da bíblia. Essa comemoração aí, dessa cultura, comemora o batismo de São João junto com o aviso do nascimento dele, do São João. Tem toda uma história acompanhada pela bíblia, a história dele. Então, tem cantadores de cururu que quase muitos ficam com medo de brincar comigo, por exemplo, [porque] eles puxam a história da bíblia, do Santo ali e muitos deles não têm toda a história para cantar. E eu já sou mais ou menos, ganhei um nome aqui de mestre, então eu vou, quero ensinar agora os meus netos [a] cantar, puxando a história dela. Que ali naquele andor que se olha para trás (tinha um andor de São João atrás dele), nesse ali, já tem o começo, o batismo de São João, Jesus, ali, lá do Rio Jordão, e por ali começam as cantorias. Vai falando nas cantorias dos versos, vai falando todas essas passagens que está contando da comemoração. E tem algumas que cantam, que eles falam [que é] “toada”. Quatro, cinco versos cada toada tem, mas não sabem ainda… Muitos deles nem sabem o que eles estão comemorando, (risos) mas vão brincar. Então, essa tradição, eu não sei quem começou ela aqui, eu não posso falar, que eu não era… Nem [meu] pai, talvez, não era nascido ainda. Mas aqui quem realizou mais essa história foram os padres Jesuítas, quando estava desbravando a região, que era muito conflito entre os índios, que não acaba [conflito de] índio com branco. Mas eles alearam bastante, índio com branco, foi com esse tipo de festa. E onde entrou essa violinha aí. Como diz o ditado, na história, que quando… Para dizer a verdade, segundo [o] acompanhamento de muitos antigos, quando o Brasil foi descoberto, já tinha essa brincadeira por aqui, com os índios, que a mais velha deles [são] de São Sebastião, com os índios. Começou daquela história do índio com São Sebastião, que era um bordado lá que era muito da religião, da confiança de Cristo e que ele foi flechado por índio. Então quando foi entendido por gente, eles faziam uma - como que se diz? - uma oração pedindo, porque pecaram… Aquele índio flechou uma pessoa que era muito próximo de Jesus, ele era um soldado, mas ele era bem próximo de Jesus. E por ali começou essa comemoração. Tanto que a família que era mais velha, quando chegou aqui na região pegaram os índios bem selvagens ainda, eles já faziam uma comemoração desse dia 20 de janeiro e do São João, eles já faziam na aldeia. Agora, como esses índios selvagens sabiam disso? Aí que a gente não sabe o fundamento disso aí.

P/1 - Seu Sebastião, quais são as coisas mais importantes para você hoje?
R - Olha, para quem já está ficando na idade que eu estou, a coisa mais importante pra mim é estar junto com a minha esposa, com a minha velhinha, meus filhos, que [são] todo o tesouro que eu tenho, neto. Agorinha foi uma bisneta para casa do pai, daqui pra lá, nesse intervalo foi ali para [me] despedir dela, ela foi pra lá. Mas, no sábado, ela já está aí. E as minhas filhas, meus filhos, o meu filho já faz tempo, faz uns quatro, cinco anos que eu não vejo ele, mas todo dia a gente está conversando. E tem uma filha que mora em Tocantins também. Então, a coisa mais importante pra mim são meus filhos e eu cuidar dessa tradição para não perder ela, que essa cultura não pode morrer. Enquanto eu estiver vivo, ela vai estar aqui, pelo menos comigo. E uma que está incluindo nessa importância, disso aí, que quanto mais eu vou passando com essa cultura, mais amigos de gente boa eu vou fazendo. Isso, pra mim, é tudo! A senhora está aí, eu estou aqui, mas pra mim é um grande prazer, pra mim isso aí é tudo, [porque] tô contando minha história. Onde já estive, já sofri bastante. Quando era moleque não tinha escola quase, pouca educação, a pessoa ainda trabalhava… O filho do empregado da fazenda trabalha até… Enquanto ele fosse solteiro, trabalhava lá e não ganhava nada, era, bem dizer, troco de uma camisinha velha, uma comida e pronto. Não tinha… Se a gente fosse, por exemplo, reclamar, não tinha para quem reclamar, a justiça ainda não dava apoio. Mas teve um determinado tempo que a justiça deu apoio pra gente trabalhar e ganhar, pegar o seu dinheirinho honesto, porque sempre o trabalhar é melhor de tudo, trabalhar para ganhar o seu pão. Porque quem quer ganha fácil, tirado, não adianta nada. É igual uma peneira, pois lá em cima já caiu por lá e já ficou sem ele também. Muitos que trabalham ilegalmente adquirem bastante coisa, mas para perder o que ele trabalhou ilegalmente [por] vários anos, ele perde num, [em] cinco minutos, ele perde tudo. Então não adianta trabalhar ilegal, porque ele ganha bastante, mas tá arriscado perder tudo a qualquer momento. E quem trabalha legal, ele perde, mas ele tem sempre um seguro. E eu quero ser uma pessoa até o final da vida, liberado, sair de cabeça erguida. Correr só de ladrão, porque quem não é ladrão não vai me atacar. Porque o ladrão vai querer assaltar alguma coisinha, o pouco que tem. Só isso que eu tenho medo, o resto pra mim é uma felicidade. Brincar, brincar, ser feliz, tocar os meus instrumentos. Encontrar com o colega, encontrar com um parente, fazer um amigo que vem de fora, chega aí, vem me procurar, já vem falando o meu nome. Aqui é assim, às vezes eu saio na rua com filha, ou sobrinho, ou então minha esposa mesmo, vou passando num lugar, a pessoa: “Ó, seu Tião, como é que vai? Tudo bem?”, “Tudo bem! E você tá bom?”. Aí a mulher pergunta: “Quem que é esse?”, “Eu não sei!”. Eu não sei quem que é. (risos) Então tem isso, pra mim é uma vida boa.

P/1 - Entendi. Seu Sebastião, qual o seu maior sonho hoje?
R - Hoje, o meu sonho, eu acho que está chegando agora aí: deixar meu nome numa história, para depois que eu for, a pessoa pegar um livro e falar: “Pô, esse cara existiu, olha a história dele aqui!”. Até lá no estrangeiro, na Alemanha, tem história minha, contada. E pode procurar nas fundações de cultura, o meu nome está ali, no Iphan, meu nome está lá, no Brasil inteiro. Um dia eu disse para um primo meu, que nós ‘brincava’ junto: “Cara, vamos largar mão disso. Vou trabalhar agora, não vou tocar [mais] violão”. Eu falei: “Ah não, eu não vou largar da minha viola!”. Se eu (aprender?) ele, tudo bem, senão, também não vou ficar sentido não. Mas você sabe o que falta para todos nós? É divulgar o nosso trabalho. Se você não divulgar, ninguém vai saber. Agora tá tão fácil, que você pega um celular, manda uma mensagem para uma pessoa. Você faz uma viola, manda para um colega, põe no Facebook, no YouTube, no Google, vai embora, o povo vai sabendo. Eu tenho já [a] minha história lá no Canal Futura, lá já tem palavras minhas. Tem pessoas que vêm de outros países, que já chegaram aqui e já ligaram pra mim através de endereço lá do Canal Futura, pelas apresentadores de lá, do Canal Futura.

P/1 - E o que você acha que vai ser o seu legado para as próximas gerações?
R - Olha, as próximas gerações vão ficar… Porque nós perdemos muitas histórias… Em parte dos livros de história, principalmente história do Brasil, quase não está aparecendo, muitas coisas dela, na história do Brasil, na escola, tem muitas coisas que estão ficando de lado. Tem muitas coisas que ficou [para trás] na história, que tá perdido e que muitos jovens agora estão fazendo faculdade, doutorado, tão procurando…. São culturas, coisas antigas para fazer os seus trabalhos. Então eu fiquei muito feliz, eu tenho aqui… Agorinha, tava [com] dois netos, tava o Bruno e teve o outro que saiu, foi buscar a irmã dele na escola, que é o João Victor, e tem uma outra, que é a neta, irmã do Bruno, ela também tá estudando e ela [faz um] negócio de luta marcial, essas coisas. Ela também vem de vez em quando: “Vô, tenho pesquisa, vou fazer com o senhor, da história [do senhor]”. Que dizer, lá na faculdade… Agora, está com uns três meses, mais ou menos, esqueci a data aqui agora, eu [vou] fazer uma oficina lá em Campo Grande, no museu do estado, todas as pessoas que foram participar da oficina, são professores. E eles fizeram, terminaram uma viola de cocho, quem terminou ficou com aquele exemplar que terminou, ficou para ele como prêmio dele. Então, quando terminava, ele fazia umas entrevistas e falava: “Seu Sebastião, caiu essa história da viola de cocho e o seu nome apareceu lá no ENEM (2016)”. Falei: “Caramba, será?”, “É verdade, caiu no ENEM. E agora, [no] negócio de recuperação dos professores - não sei como que fala lá -, também caiu a história da viola de cocho e nela aparece seu nome”. Falei: “Será gente?”. Já está na história, né? Então, esse que era o meu sonho, é isso aí. Eu queria deixar a história para alguém contar a minha história também. Já tem de alguns, do meu pai, mas nunca foi publicado, assim, no público, para as áreas de estudos. Porque já teve várias perguntas, inclusive, o diretor do Canal Futura, da Cultura, falou: “Isso daqui vai ficar registrado aqui, essa sua história”. Porque perguntou, a pergunta deles era o que eu achava da cultura, o que [é] que eu achava da cultura, não só da viola, mas das culturas de qualquer finalidade. Eu falei: “Olha, eu, pra mim, eu penso assim: quem não ama a cultura, principalmente do seu país, do seu estado, do seu país, ele não tem princípio, porque não sabe nem de onde veio. E a cultura conta a história de onde você veio”. Por isso que eu disse para a senhora lá no começo, que eu nasci, para que região que eu fui, com a história que eu já aprendi com os antigos, quer dizer, que vem vindo, o princípio da minha vida foi por ali, já com essa cultura.

P/1 - Senhor Sebastião, por fim, o que o senhor achou de contar um pouco da sua história? Como é que foi a experiência?
R - Da história da…
P/1 - Essa entrevista aqui, como é que foi para o senhor?
R - Ah, dessa história aqui! Pra mim, eu estou achando assim: “Será que vai ficar uma história para um acervo, um museu, para ficar lá para as pessoas futuras olharem e verem essas histórias aí e falar assim: ‘Caramba, que esse cara fez? Igual a história, o caso da vida do fulano de tal’”. Vai ficar uma coisa na história para os meninos jovens e os que vierem da cultura minha aqui, para ler essas coisas, para saber. Para mim, isso aí é um exemplar muito especial, porque se juntar isso aí, vai contar um pouquinho da minha história de vida e da região do nosso estado, que é do nosso país também. Porque eu falei aí nessa entrevista, contei a minha história de onde eu nasci, por onde eu fui rodando quando na infância, já falei um pouco depois de adulto e, agora, depois de velho, aposentado. Quer dizer que fez quase uma história inteira da vida. Embora, se eu for contar minha história todinha em detalhes, não é para um dia de entrevista não. É muita coisa!

P/1 - A gente agradece muito a sua entrevista, em meu nome e no nome do Museu da Pessoa. Muito obrigada!
R - De nada! Lá no YouTube e no Google tem o filme do Revelando Brasil, o nome dele é “O Trem Fantasma e a Viola de Cocho”, nessa história de uma lenda que tinha, que me contaram, que eu cheguei de presencial lá, quando eu trabalhei. Eu, minha esposa e muitos outros presenciaram uma lenda. E a trilha sonora dela é a viola de cocho, com a viola de cocho. E conta [a] minha, um pouco da minha história lá dentro. Tem até um versinho que eu fiz meio cantado que tá nele, que a história de meus tempos que eu morei, trabalhei, lá. Hoje, aquele ranchinho ainda existe, mas o trem que fazia aquele trançado por lá, acabou, não tem mais. Então, pra mim, a idade foi chegando, os meus filhos estão criados. Eu já estou ficando velho, e aqui tá pra mim só uma lembrança do passado. Ela vai contar isso aí meio cantado lá no documentário.