Museu da Pessoa

Ditadura e ilustração

autoria: Museu da Pessoa personagem: Elifas Vicente Andreato

Depoimento de Elifas Andreato
Entrevistado por Rosali Henriques e Gabriel Monteiro
São Paulo, 23/11/2009
Realização: Museu da Pessoa
PC_HV210_Elifas Andreato
Transcrita por Vanuza Ramos
Revisado por Paulo Ricardo Gomides Abe

P/1 – Boa tarde, Elifas.

R – Boa tarde.

P/1 – A gente quer começar o depoimento perguntando o seu nome completo, o local e a data do seu nascimento.

R – O meu nome completo é Elifas Vicente Andreato. Eu nasci no dia 22 de janeiro de 1946 em Rolândia, uma pequena cidade próxima de Londrina, norte do Paraná.

P/1 – Qual o nome dos seus pais?

R – Meu pai se chamava José Vicente Andreato e minha mãe Alzira Gomes Andreato.

P/1 – Elifas, você sabe a origem da sua família?

R – Ah, eu não... Eu nunca me interessei muito por isso, mas uma antiga secretária do Jean Francesco Guarnieri, quando foi Secretário de Cultura do município de São Paulo, ele tinha uma secretária que tinha o Andreoti. Ela estava fazendo um levantamento porque você tem Andreas, Andreoti, Andrete e alguns outros que são de uma mesma raiz que veio do Norte da Itália. Eu fiquei mais interessado em descobrir a origem do meu nome porque meu nome quando eu era menino era uma coisa estranha. Se você considerar que eu morava no mato e me chamava Elifas, quer dizer, até hoje eu tenho problemas com isso. Com secretária: "Está bom, Seu Elias!" Você diz o nome, mas... Aí eu digo: "Olha, se você não disser que é o Elifas ele não vai me atender". "Então tá, estou anotando aqui. Seu Elias a gente te dá retorno." (risos) Então você imagina que foi um problema. Eu descobri que o meu avô materno era espírita, assim como a minha mãe ainda é. Eu fui saber que num livro que meu avô tinha, de ocultistas, uma coisa assim, meio fechada, escondida. Eu fui descobrir depois do falecimento dele - já tem muitos anos - que o meu nome saiu de um ocultista francês do século XIX chamado Elifas Levi. Meu irmão, o que faleceu também e que veio logo depois de mim, e que se chamou Eurípedes por conta de outro ocultista do mesmo livro. Então o nome veio assim! Eu custei para me interessar por essa história até que há uns 15 anos eu fui ao Círculo Esotérico da Comunhão do Pensamento, porque o meu pai, coitado ele era alcoólatra e nos abandonou muito cedo e eu acabei assumindo como filho mais velho toda a responsabilidade de... Comecei a trabalhar muito cedo para ajudar a criar o restante dos irmãos. Mas eu tinha um... A única herança que eu ganhei do meu pai foi um livrinho, que está guardado e eu guardo isso com muito carinho, porque ele já está muito velho, do Ciclo Esotérico do Pensamento - que é um pequeno livro onde você tem um pensamento diário. Durante algum tempo eu fiz esse ritualzinho, eu abria lá no dia e lia lá o pensamento do dia. Depois, claro, desisti disso. É meio como ler horóscopo, enfim, essas bobagens que depois a gente depois vai abandonando. Mas o livrinho eu guardei. Mas me lembrei do Círculo Esotérico da Comunhão do Pensamento e fui lá procurar os livros do Elifas Levi. Comprei alguns livros, que são estranhíssimos, não dá para entender nada: é alquimia misturada com misticismo estranho, enfim. Mas ele era na verdade um alquimista, depois um pensador de um tipo de filosofia que para nós soa muito estranho. É preciso se envolver muito para entender essa história do ocultismo. Eu acabei lendo algumas coisas, descobri que ele também desenhava e isso para mim bastou. Pensei: "Bom, o que me interessava saber, eu acabei sabendo e, portanto, o restante..." Eu tenho ainda os livros dele, de vez em quando eu dou uma espiada, assim, só para ver se... É muito complicado para mim e não é um assunto que me interessa. A gente se... O (cego?) anda ocupado com tantas outras coisas que quem sabe um dia eu descubro um pouco mais sobre o Elifas Levi. Agora, eu queria dizer um negócio para vocês, é importante que fique registrado: que quando eu questionei meu pai sobre o nome, que eu não gostava dele, porque era uma coisa difícil você conviver com o sujeito que nunca sabe como é que você chama. Ele se chamava José, com o apelido Zé Vicente, Zé Vicente, tal. Um dia eu disse: "Pai, por que esse nome tão estranho?" Ele virou e disse pra mim, ele já estava embriagado: "Porque esse você vai ter que fazer, você não vai precisar ser um Zé ninguém como eu". Eu era garoto quando eu ouvi isso. Eu fico pensando: "Deus, será que essa frase acabou fazendo com que aquele sujeito que tinha tudo para dar errado, pobre, vindo do interior, do mato, depois operário com as duras penas trabalhando, ajudando a mãe a criar os filhos..." Eu passei a achar que essa frase do meu pai talvez tenha sido a coisa mais importante que tenha acontecido na minha infância. Porque foi a partir daí, inconscientemente, não é que eu tenha pensado nisso. Eu estou agora, hoje gravando esse depoimento no Museu da Pessoa com muita satisfação porque acho que essa ideia do Museu da Pessoa é uma coisa sensacional, uma maravilha. Tenho uma inveja desgraçada de não ter tido essa ideia! Vou receber amanhã no Rio de Janeiro a ordem do mérito cultural, que é a maior honraria que alguém que faz cultura no Brasil pode receber. Então o reconhecimento agora é oficial! Agora é o governo que reconhece que eu de fato dei uma boa contribuição à cultura do país. Então eu fico pensando: “Eu amanhã vou viver o dia de glória. Mas essa história desse menino que, a duras penas, ficou lutando e trabalhando, sempre dentro do que aparecia. Eu felizmente tinha uma certa habilidade com as mãos, eu pude aprender um pouco de marcenaria, me machuquei quando criança. Mas eu fiz todo tipo de trabalho que um moleque pobre pode fazer: carregar sacola em feira, limpar casa... Porque além de muito pesado pro menino, era vexatório porque na cabeça de um moleque de nove anos, encerar casa, lavar banheiro, essas coisas eram coisas de mulher.

P/2 – Elifas, era Elifas, Eurípedes?

R – Depois enrolou porque veio Cleusa, depois veio Ademir, depois o Eli e por fim o Elias - que é o extraordinário ator que está fazendo um espetáculo sensacional, que é o "Doido", às quintas-feiras no Teatro Eva Hertz. É imperdível!

P/1 – Vamos voltar um pouquinho. Eu perguntei da origem da sua família, mas... Os seus pais são lá de Rolândia também?

R – Não, não! A minha mãe e meu pai são aqui de Ourinhos. Eles migraram, foram pro norte do Paraná quando o norte do Paraná estava abrindo, havia já um grande boom ali na época com o café. A plantação de café ali estava evoluindo muito. O meu avô aí deixou... Os meus avós deixaram, e os meus pais também, deixaram Ourinhos. Eles chegaram a morar em Barra Mansa por um tempo. Eles tentaram alguma coisa lá, mas acabaram mesmo indo pra Rolândia. Depois, mais adiante ainda, por Marilena, ali perto de Cruzeiro do Oeste, onde o meu avô e o meu pai abriram um sítio para plantar café, e meu avô Juca enlouqueceu porque a geada acabou com o cafezal dele e ele perdeu as terras pro Banco do Brasil e morreu louco. Eu nunca me esqueço dessa cena. Ainda menino, porque a gente fazia o trabalho de limpar as covas de café. Não sei vocês sabem, mas o café se planta dentro de uma cova porque enquanto a mudinha está pequena, você cobre com gravetos. Faz uma espécie de estufazinha pro café se desenvolver. E uma grande geada no Paraná matou esse cafezal e o velho Juca enlouqueceu. Ele tentava ressuscitar aquelas... Eu até cheguei a escrever sobre isso, um texto muito bonito sobre essa cena que marcou muito a minha vida. De ver um sonho... Tanto que o semeador, que é o desenho da capa do meu livro, que é um camponês semeando estrelas no chão, é dedicado a ele. Ele semeou sonhos e colheu frustração, tragédia e loucura. Porque pirou, perdeu tudo que tinha.

P/1 – Você tinha quantos anos quando isso aconteceu?

R – Nessa época eu estava com dez anos. Eu ainda estava na roça. A gente fala da roça, mas a roça tinha uma vantagem que depois a cidade grande nos sonegava. Na roça você ainda comia bem, você plantava, você tinha comida de boa qualidade, você tinha uma vaquinha de leite, tinha o pão caseiro, enfim, você tinha... Foi graças a isso que a gente sobreviveu porque depois, já na cidade quando meu pai adoeceu e que a gente voltou para a cidade, a coisa complicou. Porque você precisava ter dinheiro e sem dinheiro você passa fome ou começa a roubar. Essa é um pouco a história de milhares e milhares de crianças brasileiras ainda hoje.

P/1 – Deixa eu perguntar uma coisa. Lá em Rolândia, os seus pais foram pra lá e vocês moravam num sítio ou era próximo da cidade?

R – Eu nasci num sítio próximo de Rolândia, que era o sítio do meu avô materno. Meu avô paterno era proprietário de uma pequena marcenaria na cidade de Rolândia. Então meus pais se conheceram num baile, aquelas coisas assim. O sítio do meu avô era muito próximo, Rolândia era uma cidade pequena. É ainda pequena, eu acho que até encolheu. Com o crescimento das outras em volta, ela encolheu um pouco. Se casaram, mas eu acabei nascendo mesmo nesse sítio porque o meu pai deixou a família que morava ali no Centro de Rolândia e que tinha a marcenaria, a loja de móveis populares, nada... Gente muito simples, sem... Eu até quando vou pra lá e vejo aquela marcenaria que parecia enorme e eu vejo hoje: "Ai, meu Deus! Se eu tivesse dinheiro eu compraria isso aqui para deixar como está e transformar isso num centro cultural". Tento convencer o Governo do Paraná a comprar... Mas agora eu vou ter o museu na cidade, que será inaugurado no dia 28 de janeiro. Quem sabe aí eu consigo convencer a comprar aquilo. Eu passei um tempo da minha vida ali dentro, brincando e achando aquilo tudo muito grande. E não é grande! Só que você tem pó de serra sedimentado de 70 anos, é tudo muito maravilhoso. Então foram morar no sítio e aí começou a nascer filho. Aquela história. Eu até acho que o meu pai pirou de vez, porque meu pai era um sujeito habilidoso. Ele montava a serraria, ele tinha um velho caminhão GMC. Depois eu mando meu livro para vocês verem, tem umas fotinhas minhas lá com dez anos próximo do caminhão. Ele era um sujeito com um talento sim, era um construtor. Ele com aquela catraquinha de caminhão, ele punha a tora em cima, montava a serraria, mas era uma pessoa frágil, frágil emocionalmente. Eu tenho a impressão, eu converso com a minha mãe ainda hoje. A minha mãe ainda tem... Embora tenha 85 anos e a cabeça boa, ela tem um certo ressentimento ainda. Ela não aceita essa argumentação porque ela considera o abandono da família... Eu, durante muito tempo, alimentei isso também. Elias, às vezes a gente tinha conversas horrorosas sobre como foi difícil para nós. Nós não tivemos infância, roubaram o melhor tempo da vida do indivíduo, que é o tempo da infância, o tempo em que você constrói o indivíduo, o caráter. Nós tivemos que ralar muito cedo, eu digo eu que sou o filho mais velho. Mas eu sempre achei que ele não aguentou a história da família numerosa que ele sem pensar direito botou no mundo. Então o cara: "Vou cair fora, vou deixar de lado". O recurso que ele passou a usar era o pior de tudo, era o alcoolismo. Então, a partir daí, eu muito novinho já de volta da roça. Que quando a gente foi morar em Marilena, próximo de Cruzeiro do Oeste - onde meu avô arrumou a pequena fazenda, o sítio onde ele enlouqueceu - meu pai já tinha um caminhão. Com o seu caminhão ele fazia carretos, essas coisas, mas ele ficava pouco lá. Ficava mais distante. Quando a gente voltou para a cidade, ele se cortou fazendo a barba, cortou o lábio e esse negócio evoluiu e não tinha tratamento. Era muito longe essa cidadezinha, então voltamos para Rolândia e também não tinha tratamento para isso. Suspeitava-se que era câncer, mas ele já era alcoólatra. Eu tinha a penosa tarefa de tentar buscá-lo embriagado, às vezes caía na rua e eu não tinha força para levá-lo para casa, então eu dormia junto com ele na rua para as pessoas não roubarem ele. Foi um período muito ruim da minha infância. Depois a gente teve que ir para Londrina por um período curto e disso eu tenho boas lembranças porque tinha um... Nós fomos morar na Vila Brasil em Londrina e que tinha, próximo da gente, um puteiro. E as prostitutas andavam de charrete, todas elegantes, eu achava aquilo uma maravilha. A minha mãe, para a gente ter algum recurso, ela fazia empadinhas e salgadinhos e eu ia vender na zona à noite. As prostitutas obrigavam os coronéis a comprar o tabuleiro todo para eu ir dormir cedo. Eu fiquei com a imagem na prostituta, assim... Eu nunca tive uma relação com uma prostituta, mas toda vez que eu vejo uma eu tenho um carinho especial, por conta dessa história de me protegerem dessa... Ah, de você ficar ali parado vendendo uma coisa que você não vai vender ali a noite inteira. Mas elas obrigavam os coronéis e eles compravam aqueles tabuleiros e eu ia dormir cedo e levava um dinheirinho para casa. Então eu tenho por elas um grande carinho, é a lembrança que eu tenho da... Ainda tinha um fator que pesava ainda mais para uma criança nessa idade, eu estou falando de dez para onze anos, outro emprego que eu tinha além de vender esses salgadinhos que era entregar leite de charrete com dois japoneses de madrugada. Então você imagina, acordava às quatro e meia da manhã, de charrete e na época ainda se punha o leite na porta, naquela garrafa de vidro. Então era muito difícil, um sacrifício danado porque levantava às quatro da manhã, quatro e meia, para entregar o leite; depois ia para zona à noite para vender salgadinho. Se não fossem as prostitutas, eu estava perdido (risos)! Você imagina, eu não dormia. Então por elas eu tenho um carinho enorme.

P/1 – Nesse período que vocês moravam no sítio, qual a sua memória desse sítio, que brincadeiras vocês tinham, você e seus irmãos?

R – Eu tenho três tios mais novos do que eu, você acredita? Minha avó teve 18 filhos, 18! Morreram três. Então eu tenho três tios mais novos do que eu: a Bela, a Guiomar e o Zeca. Olha, a gente tinha pouco tempo para brincar porque muito cedinho todo mundo ia para roça, todo mundo ia pra roça. Quando a gente voltava, a gente escutava o rádio. O rádio era aquele que tinha uma pilhona feita de muitas pilhas, então a gente ouvia o rádio. Jantava-se e depois ia todo mundo pra sala ficar olhando o rádio e ouvíamos as histórias do Jerônimo - O Herói do Sertão. Nos fins de semana ainda havia muita floresta naquela região e eu tinha uns tios mais velhos, a gente procurava mel. Era um barato! E armava serva para animais, serva é você preparar uma armadilha pro bichinho se acostumar a ir lá até o dia que você vai lá e dá uma porrada e mata ele. Isso era uma coisa que se fazia muito. Se tem alguma coisa nisso que justifique, que você se justifique, é que se matava para comer. Também tinha porco, tinha galinha, essas coisas que quando mencionei a história do sítio, o sítio tinha frutas, tinha banana, mamão, horta, galinha, porco. Se aproveitava tudo desses bichos. A brincadeira, eu me lembro que na verdade a gente, nos fins de semana, a brincadeira era jogar futebol. Tinha uma tuia de secar café, que nunca serviu para nada porque o café morreu, mas tinha uma área reservada ali que não era muito... Quando você cresce parece grande. Dava pra gente fazer uns rachas e fazia! A brincadeira era um pouco isso, jogar futebol. As meninas brincavam com aquelas coisas de sempre de corda, de... E o rio onde a gente se esbaldava. Tinha um riozinho onde o grande barato era ficar nadando, tinha cipó sobre o rio, ficávamos pulando em cima dele. E pião! Pião era um negócio que a gente jogava muito, eram as brincadeiras. Mas era o rio e a bola que era o... A grande farra que se fazia: uma vez por mês ia-se à cidade mais próxima, que era Cruzeiro do Oeste, e se fazia a compra do mês. Então ia para a dispensa. Mas era tudo muito controlado porque o dinheiro era pouco e família muito numerosa, a família era grande. Então aquilo que não se tinha plantado era poucas coisas, mas eram coisas fundamentais para a cozinha. E as guloseimas? A gente ficava esperando a hora, rapaz. E o grande barato era quando o avô resolvia nos dar o guaranazinho Caçula e era sempre aos domingos. E sabe o que se fazia? Um preguinho na tampa, para chacoalhar e o bicho espirrar. A gente tomava o guaraná assim. Quando se podia invadir a dispensa, mamar o leite condensado: furava e todo mundo mamava um pouco do leite condensado. São lembranças boas desse tempo tão ruim.

P/1 – Vocês tinham luz no sítio?

R – Não! Lampião. Lampião com querosene. Eu esqueci agora daquela fuligem que sobe do querosene, a gente chamava de picoman. Então onde ficavam os lampiões, o picoman pretejava tudo, sabe? Tem uma história engraçada que a gente tinha que fazer o serviço, a molecada fazia aquele serviço mais leve, mas por ser moleque, às vezes com irresponsabilidade. Então, torrar café naquele torrador de você rodar no fogo, moer o café, o amendoim para fazer a paçoca, aquelas coisas que... Um dia eu estava moendo o amendoim, rapaz, e a porcaria do lampião, caiu um pouco do querosene no amendoim, cara, e eu não tive coragem de contar para ninguém e continuei moendo aquela coisa. A minha avó fez a paçoca que ninguém conseguiu comer e criou-se um mistério danado: o que é que fizeram com a... Eu fiquei quietinho, não contei para ninguém que tinha derrubado querosene no amendoim. Porque se pegava uma vasilhona de amendoim e eu com descuido, de moleque. Ninguém comeu a paçoca e a vó ficou num... Ela era muito também espírita, muito antenada, tudo ela atribuía ao demônio. Foi minha salvação! O demônio foi lá e jogou querosene no amendoim dela e ela foi rezar porque ela era muito rezadeira. A história mais interessante desse período, nós estamos falando da morte de Getúlio. A gente vivia assustado com aquelas coisas porque eles educavam a gente e essa turma era muito violenta, cara! Eles batiam na gente pra caramba, não era brincadeira, não. Esse negócio de vara de marmelo, de porrada, a gente tomava muito. Qualquer coisinha, nego sentava o tapa. Não eram só os velhos, não. Os tios mais novos, os caras eram chegadinhos numa _______. E era mula sem cabeça, saci, tinha aqueles bichos todos à noite. A gente ficava meio... Um dia a gente estava voltando da roça, eu até escrevi um editorialzinho meu e o Pasquale Cipro Neto me mandou o texto. Eu escrevi inclusive na coluna dele na Folha sobre isso. Eu estava votando da roça, chegando perto de casa, estava minha avó na varanda. Ela se vestia de preto, ela gostava de parecer uma dessas beatas que frequentam igreja. Ela era portuguesa. Ela estava consternada e alguém perguntou: "O que houve?" "O Getúlio matou-se." Eu fiquei numa alegria: "Puta que pariu, desse eu me livrei! Porque teve um cara que matou o saci". A decepção foi descobrir que o cara tinha se suicidado, pô, matou-se, eu entendi que matou o saci. Eu pensei: "Ah, essa foi boa!" Eu fiquei frustradíssimo quando me contaram: "Não, o Getúlio, presidente da República, se matou". E o saci continuou o mesmo, assustando a criançada. Mas é isso: a infância foi piorando, claro, na medida que a gente foi vindo em busca de tratamento pro meu pai. A gente saiu de Londrina, voltamos para Rolândia, já éramos em seis filhos. Meu pai veio com os quatro menores para São Paulo para se tratar e eu fiquei com Eurípedes junto com meus avós paternos trabalhando, lustrando móveis, a boneca. Fiquei lá trabalhando porque certamente, até hoje a minha mãe diz que sofreu muito com isso, e eu acredito nela, de ficar sem os dois mais velhos dela. Ao mesmo tempo ficar sozinha aqui com um alcoólatra doente, fazendo colar, fazendo biscate, se virando como podia, morando num cortiço, numa coisa horrorosa que a gente morou algum tempo aqui. Eu fiquei lá, eu fiquei lá perto de um ano quase. Depois vim pra cá. Quando nós chegamos a São Paulo a coisa ficou bem complicada, porque embora eu tentasse trabalhar, eu estava com 13 anos. Cheguei com 13. Eu arrumava uns biscates para fazer, para ganhar um dinheirinho. Ajudava a minha mãe até altas horas da noite a fazer colar, aquelas bijuterias vagabundas. A gente morava num cortiço muito ruim ali na Vila Anastácio, depois da Lapa, era uma coisa horrorosa porque você tinha um quarto onde a gente morava praticamente oito pessoas. Tinha uma cozinha meio comum e um banheiro meio comum. Era uma coisa... A única coisa, a boa lembrança que eu tenho desse tempo era ouvir história das malocas, com Adoniran Barbosa fazendo o Charutinho, programa escrito por Osvaldo Moles, um gênio do rádio brasileiro. A gente, então, se juntava no terreiro ali e toda aquela pequena comunidade se reunia para ouvir histórias das malocas. Foi ali que eu comecei a Sofunge, a fábrica de motores. Ela jogava na beira do rio, do rio não, corregozinho, aqueles blocos de gesso onde fundiam peças. Ali eu comecei a descobrir minha habilidade para fazer algumas esculturinhas, alguns santos. Ganhava algum dinheirinho. Até então eu não tinha estudado, não tinha como estudar.

P/1 – Só um parêntese, lá em Rolândia vocês não frequentavam escola?

R – Não, não tinha. Em Rolândia não deu, Londrina idem porque tinha que trabalhar. A história não mudou muito para esse tipo de gente. Você vê ainda hoje reportagens de garotos com potencial que às vezes abandona a escola porque precisa ajudar a família.



P/1 – Mas ler e escrever você sabia?

R – Não. Eu tinha muita vergonha. Então eu comecei a fazer essas coisas, recolher esses pedaços de gesso com a minha faquinha. Eu comecei a perceber que tinha alguma habilidade para isso. Então às vezes fazia trabalho de escola para ganhar algum troco, às vezes fazia um santinho para alguma coisa. Claro que era meio tosco, eu era um moleque com 13 anos. Muito tempo depois eu voltei a Rolândia porque na minha família não tem ninguém que tenha feito arte, eu fui o primeiro. Meu avô me contou. Eu devia ter uns seis anos. Depois de muitos e muitos anos eu fui buscar: "Por que diabo alguém aparece fazendo esse tipo de coisa na família? Como é que isso acontece?"



P/1 – Sem incentivar...

R – Lembrei de uma imagem de eu subindo numa coisa que para mim era alta e vi no fundo alguém esculpindo um santo. Isso ficou! Eu fui me lembrar disso depois, muito depois de ter feito as minhas pecinhas. Quando eu voltei a Rolândia muitos anos depois, porque a minha relação com os meus avós paternos foi uma relação muito ruim. Porque a minha avó era muito ruim. Ela nos castigava muito, para você ter uma ideia ela me obrigou a fazer a Primeira Comunhão (risos) e me comprou o terno mais ordinário que tinha na cidade para eu fazer a Primeira Comunhão. Aliás, um dia desse eu achei a prova de que eu fiz a Primeira Comunhão! Atrás da igreja tinha um terrenão de barro, aquela terra vermelha. Eu peguei meu paletó e botei numa das pedras que fazia o gol e, claro, fui jogar futebol; arregacei a calça e me roubaram o paletó. Eu apanhei o mês inteiro! Eu ficava lustrando móveis na oficina, na loja, e toda vez que ela lembrava que eu tinha perdido o paletó, ela ia lá atrás e me dava aquele coque de italiano na cabeça, assim, pa, e voltava. Doía pra caramba! Eu tinha um companheiro de trabalho, que era o Miúdo. O Miúdo dizia pra mim: "Pô, Elifas, toda vez que ela se lembra do paletó ela vem te bater, cara?" (risos) Então, essa coisa de ter ficado lá foi um... E eles brigavam muito também entre os irmãos, família complicada, viu?

P/1 – Você estava falando que você lembrou de alguém que tinha feito...

R – Então, eu falei com o meu avô. Quando eu voltei para lá, perguntei a ele: "Escuta, em alguma vez eu tenho uma lembrança disso". Ele falou: "Não, tinha. Aqui tinha um homem que fazia estátuas pro cemitério. Há muito tempo não tem mais, mas tinha, sim. Então essa tua lembrança... Provavelmente você viu isso". E eu me lembro que era com ele, com meu avô Leopoldo. Isso ficou. Eu falei: "Bom, então tudo bem. Quem sabe não foi isso que de repente..."

Porque eu sou um escultor frustrado. Toda vez que eu pego essas grandes exposições para fazer, a primeira coisa que eu penso é encher de esculturas em tamanho natural e tal do Lobato, Ruy Barbosa, Juscelino. Faço minhas esculturas, meus trofeuzinhos de prêmio. Agora mesmo fiz o Prêmio Henri Nestlé, terminei esse fim de semana. Mas é uma... A chegada em São Paulo... Mas tem boas coisas, por exemplo, nesse cortiço... Hoje eu me lembro do cheiro desse homem, o Senhor Sabas. Ele morava no primeiro quarto, era um senhor já de uma certa idade. Certamente o quarto dele não era um quarto limpo e nem ele uma pessoa limpa, até porque nenhum de nós tinha condições de higiene. Aquilo era uma promiscuidade danada! Então sempre que eu passava pela primeira porta, ele era do primeiro quarto, eu sentia aquele cheiro. Até hoje eu me lembro perfeitamente. E da figura dele! Ele era mestre da Escola de Aprendizes de Mecânico da Fiat Lux. Ele me arrumou o primeiro emprego com carteira assinada, fui ser aprendiz de torneiro mecânico. Eu tenho um velho sonho, muita gente me ajudou na vida. Eu entrei na fábrica, eu tinha um emprego, era o sonho da minha mãe eu ser operário. Eu já comecei indo contra, aquelas coisas, assim. Às vezes eu converso com uns amigos que fizeram política clandestina comigo, isso é do gene, vem com o sujeito. Eu comecei a ilustrar um jornalzinho da fábrica feito em mimeógrafo ainda e eu fazia umas charges contra a fábrica. Eu fazia umas sacanagenzinhas (risos). A fábrica inaugurou um refeitório novo, fábrica inglesa. Tinha uma vila operária depois do Rio Tietê, depois dali, na Vila Anastácia, era um sonho! Arborizada, gramado, campo de futebol lindo com um salão de festas, olha um negócio! Eu vivia lá, nossa. Eu tinha uma namoradinha de lá da fábrica, Zélia. Porque eu morava num cortiço ordinário, quer dizer, pô, aquilo para mim era um paraíso. Tinha um campo de futebol oficial, gramado; um lugar pra se jogar ping pong e (paboti?). Paboti eu não jogava, mas tinha. Fora que as ruas todas asfaltadas, as casinhas tipo inglesas, pequeninhas, mas um bairro lindo. Acabaram com tudo, mas na época eu dizia: "Meu Deus!" Então eu fui para a fábrica e estava num verdadeiro paraíso, eu vivia na vila operária. Bom, estou contando isso pelo seguinte: porque eu comecei a desenhar no jornal e aconteceu o seguinte, inauguraram o salão de festas, o refeitório com palco, com uma quase estrutura para espetáculos. Porque o Isaac, o sujeito do escritório, muito divertido, meio palhaço, fazia umas esquetezinhas aos fins de semana. E esse gerente novo começou a procurar o desenhista. Isso os operários achavam que iam me mandar embora. Até que o Seu Luiz, o engenheiro que fazia a interface com a oficina, falou: "Não, o doutor Paulo quer o rapaz para decorar o refeitório, porque aquilo vai virar salão de baile aos sábados à noite cuja caixinha beneficente será revertida para os operários". Bom, descoberto o que o homem queria que eu decorasse o salão de festas, o refeitório que era também teatro e salão de baile e aí, rapaz, eu já estava com 15 anos mais ou menos e eu não sabia ler, eu tinha vergonha. Que era muito complicado para mim, eu não era completamente analfabeto, mas... Eu fui fazer um curso de alfabetização para adultos na Sofuge, que é o único diploma que eu tenho. Bom, ao mesmo tempo que eu aprendi... Tem uma outra figura maravilhosa na minha vida, esse até eu fiz um retrato dele. Estou tentando recuperar essas figuras, de memória porque sem eles eu não teria chegado onde cheguei. O Professor Osório era alcoólatra, ele provavelmente era de ascendência europeia, uma coisa assim. Ele era meio vermelhão e tinha a ponta do nariz meio vermelho, parecia um palhaço. Eu sempre gostei muito de palhaço, então ele foi o mais fácil de fazer. O professor Osório me ensinou a ler e ao contrário, como ele percebeu que eu era um adolescente e os demais alunos eram já adultos, ele resolveu me dar mais atenção. Então o meu aprendizado foi um pouco mais fácil. Ao mesmo tempo eu comecei, sem ter a menos noção de nada, a pintar painéis para decorar os bailes. A oficina preparava aquelas estruturas de sarrafo, eu esticava papel craft com grampeador, dava uma... Tinta óleo de parede, não tinha noção de coisa nenhuma. Eu preparava o fundo branco e fazia lá, eu já inventava meus temas, já inventava meus temas e fui pintando. Só que para aproveitar a estrutura, terminava o baile e na segunda-feira eu jogava fora o que eu tinha pintado e punha outro papel para pintar novas coisas, então disso eu não tenho quase nada. Ao mesmo tempo eu pintava alguns quadrinhos porque aí eu já tinha o status de artista, eu não era mais um operário, embora eu ficasse meio por conta da decoração porque tinha baile todo sábado. Então eu já lendo um pouco melhor, eu recebi de um grande marginal ali da Vila Anastácio... Ah, eu vou dar o apelido dele, o Passarinho. Era um marginal, aliás, eu sempre tive proteção deles. E o Passarinho me deu um livro, um conto do Dostoievski, chama Noites Brancas. Foi o primeiro texto que eu li na minha vida, foi me dado por um marginal. E eu o que é que fiz? Fui lá e pintei Noites Brancas na tentativa de suicídio, aquelas coisas, sabe? As pessoas se chocavam, fundo do palco, neve, aquelas coisas... E fui fazendo, ao mesmo tempo fiz um baile no rio, uma noite no rio. Cruzei todo o salão de varais com roupa pendurada. Fui inventando: nas laterais dos barracos e fui ficando conhecido. As pessoas passaram a ir lá ver um artista, jovem artista. Fiz uma homenagem ao Ary Barroso logo depois que ele morreu. Até que um dia apareceu lá a Marli Medalha, irmã da Marília Medalha, cantora, que era crítica de cultura do Diário da Noite, do extinto jornal "Diário da Noite", que era um jornal de grande circulação. Foi lá, viu as minhas coisas, depois viu os meus quadros e virei menino prodígio. Assim, da noite pro dia descobriram um menino prodígio: 15 anos, o moleque pinta a favela, a miséria, a pobreza, etc. Que eram os meus quadros.

P/1 – Só um parêntese, isso lá no salão da fábrica?

R – Da fábrica. Eu dei muita sorte porque eu não acreditei nessa história. Pensava: "Como é que pode?” E junto disso... Ah, tinha um negócio curioso que no conjunto que tocava no baile, o (Kruner?) era o Vanderlei Cardoso. Um cantor até de sucesso. Não sei o que aconteceu com ele. Mas eu ganhei uma bela matéria no Diário da Noite, lembro que era metade eu e metade Maysa, cara. Eu lá com meu molequinho pobre numa palafita e já com exposição no Teatro de _________, tudo armado ali na Praça das Bandeiras. Eu pensei bem: "Cara, não vou nessa, vou esperar um pouco". E fiquei na fábrica, não quis, não quis. As pessoas reclamaram muito, mas depois a Marli reconheceu. Ela disse: "Não, você demonstrou que você tinha juízo. Porque você ia embarcar na onda de um empresário aloprado. Certamente esse cara ia querer ser teu amante depois". Como foi do Vanderlei. É, porque parece que tem uns malucos que pegam criancinha e dão um trato, arrumam a vida, só que depois você paga um preço alto. Eu não sei se foi essa desconfiança que me, não sei o que foi. Alguma coisa disse: "Olha, não é a hora, espera". A fábrica completou 50 anos no Brasil e os ingleses vieram pra cá. Eu preparei um grande cenário feito de caixas de fósforos gigantes e o Isaac fez uma peça brincando sobre aquilo. Quando os ingleses viram que quem tinha feito aquilo era um moleque de 15 para 16 anos, ficaram... Aconselharam o tal doutor Paulo, que era o gerente, a me indenizar: "Não, indeniza o menino, deixa o menino estudar arte". Como se estivesse o estudo de arte naquela época. Meu pai bebeu aquela grana toda (risos) e eu tive que correr atrás porque eu era o único que tinha emprego, cara. Larguei o emprego para ir estudar arte, o dinheiro acabou rapidinho e eu penei muito. Fiquei em pequenos, fazendo biscates aqui e ali sem ganhar dinheiro. Não tinha dinheiro, eu tinha dinheiro para uma condução. Pegava o Praça Patriarca na Vila Anastácio, descia ali no Largo do Arouche. Fui trabalhar no estúdio do Pingo, onde eu fazia esses desenhos do Varejo ainda numa técnica chamada stretch board, que é nanquim sobre papel com gesso. Foi um período muito ruim, de muita pobreza, muita necessidade. Até que o Zé Cantor, que era um alfaiate do Anastácio, era calouro do Luiz Vieira. O Luiz Vieira era um astro, na época tinham dois grandes programas de televisão no Brasil: Moacir Franco Show e o Show Luiz Vieira. Era o máximo da TV brasileira. E esse Zé Cantor um dia me levou no apartamento do Luiz Vieira, que era na Praça das Bandeiras, em frente ao Tetro do ___________. Eu me lembro até hoje: eu cheguei lá com o Zé Cantor e umas fotinhas dos cenários que eu tinha feito na Fiat Lux. O Zé me apresentou e interrompi ensaio do Fernando Loner e Geraldo Vandré, ensaiando Canção Nordestina. Ele me botou no carro, me levou na Consolação onde era o Teatro Record, onde ele tinha ido. Ele tinha saído do Excelsior e tinha ido pra Record, pegou fogo depois, e me entregou para o Sergio Pinheiro, que era o cenógrafo dele e falou: "Cuida desse menino aí para mim". Pro Luiz Vieira, que era um baita astro, cara! Não tinha que fazer nada daquilo, podia ter me botado fora, falado: "Pô, cara, sai daí com esse moleque". Bom, eu fui. Eu tinha dinheiro pra uma condução, mas eu não tinha dinheiro pra comer. Então eu subia a Consolação a pé e descia para pegar o ônibus lá embaixo na São João. Não almoçava, era um horror. Um dia, depois de um tempo, a televisão não me pagou, eu fui falar com o Luiz Vieira e ele me deu um conselho: "Olha, tem muito cenógrafo e pouca televisão, você é jovem, procura outra coisa". E me deu um dinheiro. Os três meses, assim, grana. A caderneta foi zerada na venda. E eu fui me virar, fui para as pequenas agências. Foram três anos de muito sacrifício, muito sacrifício. Eu não tinha lugar em casa, morava num quarto, não tinha o que fazer.

P/1 – Vocês estavam morando no cortiço ainda?

R – Estávamos. Estamos falando de 60, final de 66. Fui trabalhar numa pequena agência de propaganda chamada Direta Publicidade, no Centro da cidade, ali na Barão de Itapetininga. Fui trabalhar lá e acabei criando um outdoor que chamou a atenção do Atílio Basquera, que era diretor de arte da Editora Abril, que era a grande empresa de comunicação da época, que estava em franco desenvolvimento e ficava ali na João Adolfo. Então ele mandou procurar a pessoa que tinha feito aquele outdoor, o outro prêmio. Eu chego lá, você imagina, o cara: a Editora Abri, pá! E foi a minha loteria porque ele... E foi uma agonia porque, você imagina, fim de 66, sem dinheiro, com dificuldade, chegando o Natal. E Natal pra mim é um terror, até hoje é. Quando eu vejo o Papai Noel em loja, luzinha piscando, eu entro em pânico porque eu tenho lembranças... Tive filho, eu tive que superar isso, mas agora a questão é a relação com o tempo. Que quando você olha o Papai Noel, você percebe que passou um ano, já se foi. Bom, a agonia foi que eu tive que esperar o outro ano para entrar na Abril. Bom, ele tinha um assistente de nome Salvador que eu não me lembro o sobrenome. Eu fui e foi uma agonia porque vai-não vai, espera. Com o seu Atílio, na época que o Luiz Carlos já tinha fugido com a mulher do Atílio Basquera. Estava o clima pesado e eu, coitado, precisando daquilo. Mas aí comece entrando em 67 como estagiário, que foi minha loteria.

P/1 – Elifas, e como é que era o outdoor?

R – O outdoor tinha um texto chamado "espere pela boa". Helio Ribeiro era o grande locutor da época e um dos principais locutores da Rádio Paulista e da Piratininga. E o “espere pela boa“, eu criei um logotipo e em vez do acento do boa que se usava, eu criei o chapéu chapriniano e uma tipografia e grafismo de fundo muito interessante. O Atílio achou aquilo... Falou:

"Pô, cara, que coisa!" Era coisa que vinha da fábrica, coisa da minha cabeça. Era um negócio meio primitivo e ao mesmo tempo colorido, era um negócio diferente. Que as coisas eram todas feitas em branco e preto, era tudo muito pobre, po. Eu fui trabalhar na TV Tupi, o canal 3, eu não me lembro, com Ismael Santos. Os slides ainda eram feitos em cartão. Você abria a câmara nos slides, no cartão, o anúncio era feito assim. É! Mas, enfim, quando eu entrei na Abril, o mundo cresceu porque de cara eu fui trabalhar na Cláudia, com grandes jornalistas, escritores. Eu tinha papel, revista, tinta, eu desenhava sem parar! Até assustava os diretores de arte, eles ficavam com medo porque... Em casa eu não tinha nada e lá eu tinha tudo. Então terminava o serviço da redação, eu era trainee, era estagiário. Depois eu fiz pra manequim, com a (Marilhes?) Rodrigues, que foi uma grande professora minha, generosa pra caramba. Depois eu fui pra Quatro Rodas, ainda com o Dali Dantas chefiando a redação, lá encontrei Claudia (Scatamachi?), que é um doce de mulher, linda de morrer! Mas uma doçura e um canalha chamado Carlos Alberto (Losi?), que era o diretor de arte e que me escondia do jeito que podia porque... Depois fui para a Realidade, com aquele timaço lá, aqueles grandes jornalistas: Narciso Kalil, Sergio de Souza, Paulo Patarra, João Antonio. Então eu me dei conta de que o país estava sob censura e que eu estava completamente alienado; eu estava cuidando da minha vida, cuidando da minha vida. Eu fiz uma carreira rapidíssima na Abril porque eu fiz um esforço, porque eu dormia mal, eu dormia no chão, eu não tinha espaço pra nada; não tinha papel, não tinha tinta, não tinha dinheiro. Na Abril eu ficava até altas horas, enquanto tinha alguém que pudesse me dar uma carona,eu ficava na redação malhando, estudando, vendo revista estrangeira, aprendendo. Foi minha grande escola...

P/1 – _______ Qual era o seu trabalho?

R – Não, eu fazia trabalho de assistente de arte, diagramador. Na época também (Pest up?), que era colar textos. Não tinha... Eu peguei no Estadão, já como ilustrador em 69, já desenhando, peguei ainda linotipo, aquele bicho bufando, passei por todo esse processo aí. Então a editora Abril foi a grande escola. Ao mesmo tempo, foi assim: "Cara, se enxerga. Agora você está trabalhando numa empresa que sofre com as restrições impostas pelo Regime Militar". Eu não sei se pela origem ou se por vocação mesmo, eu comecei a pensar o seguinte: "Eu vou fazer um pouco de... Eu vou ajudar". Comecei a fazer o Jornal Libertação, clandestinamente com Carlos Azevedo e Iolanda Huzak. Fazíamos no meu apartamento, eu era recém casado.

P/1 – Você casou muito novo, então. Com quantos anos você casou?

R – Me casei com 23 anos, mas fui ter filhos bem mais tarde, com 33. Que é o Eduardo, meu filho hoje. Fui fazer isso enquanto eu trabalhava na Abril. Mas era um período muito perigoso e fiz uma carreira rápida...

P/1 – Só um parêntese, de que período nós estamos falando? Década de 60?

R – Nós estamos falando de 68 já, que é o Ato Institucional. O golpe foi em 64. Bom, a gente já militando e ao mesmo tempo trabalhando, eu fui estagiário... Para vocês terem uma ideia, eu entrei em 67 como estagiário e em 69 eu já era chefe de arte de fascículos femininos. Já ganhava um salário bacana, comprei a casinha da minha mãe. Que gozado isso. Porque quando você é moleque, pobre, sem nenhuma chance porque eu nasci com tudo para não dar certo. Eu sou um sobrevivente desses que... A minha história, às vezes eu paro para pensar, e é inacreditável como deu certo porque era tudo contra, tudo e acabou dando certo. Eu estou falando isso porque desde muito cedo, mesmo naquela pobreza, vendo aquela dificuldade que a minha mãe tinha, mas o cuidado que ela tinha com as latas que ela abria para fazer os vasinhos de flores, era tudo sempre limpinho. Eu dizia: "Pô, se um dia essa mulher tiver uma casa, vai ser um brinco". Passei a sonhar com a casa que eu ia dar para minha mãe. Lá longe, molequinho eu dizia assim: "Eu vou dar uma casa para a minha mãe". Bom, quando eu consegui comprar a casa para a minha mãe, que é um modesto sobrado aqui na Água Branca, mas é um brinco a casinha dela, toda enfeitadinha, uma coisa linda. Aos domingos a gente almoça lá. Agora ela mora com uma irmã minha porque ela está precisando de cuidados e minha irmã também precisa morar, enfim, está tudo certo. Mas isso é estranho pelo seguinte: porque eu passei a ser diretor de arte desses fascículos, fiz uma carreira rápida sem sacanear ninguém nunca, foi natural o processo. No mesmo grupo, quando começou-se a fazer o projeto de Veja, Seu Vitor comprou os direitos do (Bob Tit?), que vendeu um milhão de exemplares por semana e sustentou o projeto Veja por um ano. Até importante pra Abril porque ele botou a mulher dele para chefiar a redação e eu fiquei lá e fui adotado pelo Seu Victor. Fui adotado pela família Civita, bom, fazia a galinha de ovos de ouro dele junto com a mulher dele, então eles cuidavam de mim. E foi assim. Fui fazer estágio fora, fui para a Inglaterra, daí ele começou a me preparar para ser... Se eu tivesse na Abril, hoje eu seria bem mais gordo do que o que eu sou, mais rico. Certamente eu estaria como o Thomas Souto Corrêa, sócio da Abril. Mas eu, em 72, eu fui fazer o Jornal Opinião contra o Regime Militar. Fundei o jornal com Raimundo Pereira e Fernando _________. Aí criou-se um impasse; a essa altura eu era diretor de arte da Abril Cultural e ganhava o salário de um carro popular por mês. Saí fora e por uma razão simples: não é porque... Não. Porque eu não sabia ser um algoz, um capataz do Seu Victor. Eu não sabia mandar a pessoa embora. E na primeira vez que chegou lá a notícia de que tinha que cortar 20, mais velhas que eu, eu disse: "Cara, eu não vou fazer isso". Então Pedro Paulo Popovic, que é pai da Silvia Popovic, que era nosso diretor falou: "Elifas, o que é que você quer fazer? Você quer que eu mande? Isso é trabalho teu!" Eu falei: "Não é mais porque eu estou me demitindo, eu vou embora. Eu não vou fazer isso, eu não sei fazer isso, eu não quero fazer". Seu Victor até a minha mãe ele chamou; ele não entendeu como é que um moleque faz uma carreira dessa, começa a ganhar um baita dinheiro e de repente vai fazer um jornal contra o Regime Militar, vai ser preso, vai apanhar... Era um pouco isso o que eu queria fazer, mas era também a absoluta incapacidade de ser um capataz, de ser um... Porque você também, eu comecei a perceber que o meu tempo era ocupado com coisas que não era o que eu queria. Eu tinha que cuidar disso, cuidar daquilo, cuidar de não sei o que e o trabalho da criação de tudo, isso tinha ido pro (finabile?). Eu jovem ainda tinha me tornado um capataz, um burocrata, um sujeito que cumpria ordem. Mas antes disso tem uma história curiosa porque eu era esse já diretor de arte da Abril Cultural quando eu fui fazer a Revista Placar em 70, eu fui deslocado da Cultural para fazer o projeto da Placar. Me desentendi com a equipe e o primeiro número, por exemplo, eu fiz como freelancer. Me demiti assim que aprovaram o primeiro - que eles chamavam de boneco - mas o primeiro zero aprovado, eu saí e fiz de freelancer o primeiro número. O Seu Victor, para não deixar sair, eu estou falando de 70 ainda, eu tinha esquecido disso que foi a outra loteria que eu ganhei. Ele ligou para o Pedro Paulo: "Não deixe o cara fazer nenhuma besteira, leve ele de volta para aí e dá o que ele quer fazer que é aquela história da música popular brasileira, que era o negócio que eu tinha deixado na gaveta”. Eu fui fazer a história da música popular brasileira em 70. Passei a ser o contato com todos os grandes artistas porque eu era xereta, eu ia fundo fazer as pesquisas iconográficas e conheci esses caras todos. Daí para frente eu comecei a fazer capa, show, roteirizar, dirigir. A vida foi à outra vitrine. E em 72, agora voltando, eu tinha terminado a história da música popular brasileira e eu já era uma pessoa conhecida fora da Abril, eu já tinha feito algumas capas de sucesso, já tinha ilustrado alguns livros também com sucesso, tinha feito alguns cartazes de teatro com sucesso. "Agora eu vou cuidar da minha vida! Não vou ficar aqui vigiando gente se está produzindo ou se não está, se tem talento ou não tem, ouvindo menino dizer que faz qualquer coisa para ter o emprego." Sabe? E fui embora, fui fazer o jornal Opinião.

P/2 – Como é que foi essa tua ideia?

R – Foi a primeira experiência feita com fascículo em disco em banca. Isso foi uma ideia que eu compartilhava com um cara da ______ Vitor, Pedro Cruz, e o Tariq de Souza, que é um grande crítico de música. Esse projeto a gente fez assim: "Olha, isso pode dá certo. É um negócio tipo...” Os velhinhos estavam já todos esquecidos, é bom lembrar! Em 70, ninguém mais sabia de Nelson Cavaquinho, de Cartola, Lupicínio, de Assis Valente, de Ataulfo, ninguém sabia. Primeiro porque surgiu uma geração poderosa nos festivais e talentosa. E nós queríamos fazer uma recuperação da música brasileira, mas isso ficou: "Ah, isso é coisa desses moleques". Tem gente que zombava da gente. Só que o Pedro Paulo, o Ary Coelho o Seu Vitor sabiam porque a gente ficou insistindo. Então surgiu a história da Placar e eu briguei com a equipe porque eu não tive apoio deles enquanto eu fazia o meu trabalho. Porque o visual é sempre o que você vê, mas você não lê as porcarias todas que os caras escreviam também. Eles só davam uma espiada no layout e: "Ainda não está"; eu ficava revoltado com essa história. Até que quando eles disseram: "Está legal", eu falei: "Agora dane-se, estou fora, amigão. Vocês vão fazer essa porcaria com outro". E aí que rolou esse papo de Seu Vitor ligar pro Pedro Paulo e falar: "Não deixa o moleque fazer nenhuma loucura e dá esse brinquedo dele, deixa ele fazer a história da música popular brasileira aí". Foi um baita sucesso, cara! E a minha loteria porque aí eu fiz um trabalho de altíssima qualidade para a época. Até hoje é muito moderno aquilo, até hoje! Eu fui conhecer as pessoas porque eu ia junto. Tudo o que eu queria era conversar com qualquer um, com o Pixinguinha, com o Lupicínio, com Gilberto de Carvalho, com Paulinho da Viola. E comecei a militar politicamente, fiz em 72 e também fiz a Semana de Arte Moderna que era uma contra comemoração aos que os militares estavam fazendo com o cinquentenário da semana de Arte Moderna. Já vigiados pela polícia, mas fizemos ali um... Foi a primeira vez que a velha guarda da Portela se apresentou como show, fui eu que inventei essa história. Me tornei conhecido e daí para frente uma porção de atividades paralelas - cenografia, prêmio de cenário para teatro, cenário para música, depois prêmios como melhor projeto gráfico, ganhei 21. Fiquei, virei o capista da música popular brasileira. Nas décadas de 70 e meados de 80 eu era o cara que... E a vida. Voltando à vida, ela melhorou em parte porque quando eu deixei a Abril eu fui fazer a minha carreira. Tem uma coisa bonita que é preciso dizer é que quando eu saí da Abril, Seu Victor não se conformou. Mas dois anos depois, a Veja numa matéria do José Marcio Penido, com quatro páginas, cujo título era "O artista gráfico do Brasil", era eu. O Seu Victor me mandou um bilhete no meu aniversário e todos os anos, dia 22 de janeiro eu recebia uma cartinha dele reconhecendo a minha decisão. Reconheceu que a minha saída da Abril, embora tenha deixado ele bastante magoado, tinha sido a escolha certa.



P/1 – Você estava falando que você criou esse jornalzinho Opinião. De onde veio essa ideia?

R – A ideia era do Raimundo Pereira e do Fernando Gaspariano, que era um empresário brasileiro que se opunha ao regime junto, claro, como todos os intelectuais com os quais eu trabalhei. Era o pessoal do Sebrape, do Fernando Henrique, o Anatol Rosenfel, o Antonio Cândido, Paulo Emílio Sales Gomes, Sergio Buarque de Holanda. Acho que estou esquecendo... O (Verfor?)! Eles faziam o conselho editorial daqueles que chegavam da cadeia, ou do espancamento, que já eram intocáveis. Então a gente tinha lá o jornal sob censura e a gente sofria muito, mas tinha um conselho editorial de notáveis que tirava a gente ou das mãos do Coronel Bandeira no Rio ou da cadeia. Algum tempo depois de fundado o Opinião, a gente fundou aqui a Revista Argumento com essa turma toda de novo, que a censura fechou e proibiu de circular no quarto número. Rompido com Fernando Gaspariano no Rio, nós fundamos aqui o Jornal Movimento, que era um concorrente do Opinião, mas feito com a equipe dissidente do Opinião. Durou pouco tempo, porque era muito censurado, era um tabloide numa época que a censura era muito violenta. Acho que paralelamente eu segui fazendo o que a história me chamou pra desenhar. Eu nunca recusei fazer algo que fosse necessário para registrar o período da vida brasileira, embora tivesse medo. Muitas vezes temi, muitas vezes me senti ameaçado, muitas vezes apanhei, mas... Recentemente eu ouvi do Chico Caruso - que essa turma toda começou comigo no Opinião, eu carreguei essa turma pra lá porque eu precisava de voluntários. Então todo fim de semana a gente saía pra lá, ia fazer o jornal no Rio. E depois aqui, tanto a revista quanto o Movimento. Essa turma começou comigo! Recentemente num encontro no rio, Chico me disse uma coisa muito interessante. Ele falou "Elifas", a gente já tinha tomado umas - mas são nessas horas que você consegue, às vezes, sacar uma boa frase. Ele disse: "Elifas, a gente não é isso tudo que falam, não. A gente fez o que tinha que ser feito, cara. Porque os covardes todos, a história apagou". Eu fiquei com essa frase, acordei depois no dia seguinte e falei: "Poxa, tem razão porque..." Por exemplo, capa do professor Helio Bicudo com aquele coturno militar pisando num prego. Era um negócio agressivo, causava problema. A capa do capitão na guerrilha que eu fiz e tantas outras coisas que eu fiz e que era cutucar a onça com a vara curta mesmo, sabe? Mas era o que eu achava que tinha que ser feito. O cartaz da greve, da famosa greve de 79, que eu fiz o desempregado e que vendeu 25 mil exemplares e que ajudou aquelas famílias desempregadas. Depois, o primeiro movimento a favor do SOS Mulher, quem fez a marca e o cartaz... Então eu tive sempre ligado a esses movimentos. Se tivesse alguma, o teatro, livro, a música ou qualquer instituição... Me lembro de ter feito e ter tido sempre a postura de estar apoiando todas essas coisas que naquele período da vida brasileira lutava por liberdade de expressão e por democracia. Então eu me tornei, assim, rotulado por um artista engajado. Muita gente me criticou por isso, muita gente me acusava de fazer o realismo socialista, uma série de besteiras que a história comprovou que nada disso valeu e como o Chico disse, os covardes a história apagou. Eu estou contente com o que eu fiz, porque eu nunca me recusei a desenhar o que a história me chamou pra desenhar e nem a escrever. Outra coisa que é preciso ficar claro é que desde muito cedo eu aprendi que eu ia viver aqui, que eu teria filhos aqui e já tenho netos e netas, e que eu tinha que cuidar disso. Eu tinha que cuida do futuro, especialmente das crianças, eu queria cuidar do país. Com a pequena parte que me é possível fazer, eu dedico a isso. Dizem que sou um apaixonado pelo Brasil, sou sem vergonha nenhuma. agora, eu não sou esse ufanista doente. Eu sou porque eu acho que isso é o lugar que nós temos que cuidar e a gente precisa construir uma pátria de fato. Nós precisamos construir um futuro melhor. E nós já avançamos muito, cara! Se você considerar o tempo de atividade que eu tenho, de 40 anos, exatos 40 anos, pô, nós avançamos muito! Claro que falta muito. Agora, eu até hoje continuo dentro do possível dando a minha contribuição. Quer dizer, é o que eu quero fazer. Ah, poderia ter ganhado dinheiro, claro que podia. Eu deixei de ganhar dinheiro há muitos anos, então não adianta agora eu querer. Não, agora eu quero ser coerente. Eu não quero mudar nada, eu quero seguir em frente preservando meus princípios, embora isso seja muito penoso porque você se torna refém da própria história. Você muitas vezes tem de dizer: "Eu não faço isso!", porque se fizer jogo no lixo tudo que eu disse e fiz, então não faço. A minha vida tem sido isso. Hoje é uma vida... Claro que a minha disposição continua dentro do possível ou do que o corpo permite uma atividade intensa ainda e criativa. Faço o Almanaque Brasil todos os meses e outras coisas, enfim, com o mesmo entusiasmo que eu fazia o Opinião e a Argumentos e tantas outras coisas que eu fiz: as minhas colaborações com publicações alternativas na década de 70.

P/2 – Elifas, eu queria saber como é o seu processo de criação desde lá do... Se você pudesse contar um pouquinho esse processo de transformar, seja um texto, uma música ou um disco inteiro, no caso, em imagem.

R – Eu tenho... Acho que a melhor qualidade, a melhor coisa que eu tenho como profissional foi ter tido muito cedo a percepção de que eu tinha feito uma escolha e essa escolha implicaria em aceitar as limitações que ela me daria ao longo da minha vida. Porque quando eu decidi ser artista gráfico, e eu não queria ser pintor, eu sabia que eu estaria fazendo o primeiro convite para todas as coisas que as pessoas ou assistiriam ou iam ler ou ouvir. Essa consciência trouxe uma baita de uma responsabilidade. Então eu tinha que fazer um esforço danado porque eu tinha que materializar no papel a imagem simples de coisas complexas. Você pega uma peça de teatro ou mesmo um disco desses grandes criadores e como é que você transforma numa única imagem? Até hoje essa é a minha preocupação. Então o processo de criação lá atrás, desde os bailes, é pela provocação. Eu tenho de ser correto, eu não posso enganar. Você não pode olhar uma capa minha ou um cartaz de teatro e depois assistir uma outra peça. Você tem que assistir a (glote?) de um carteiro viajante. Você precisa ver aquilo no cartaz, assim como você precisa ver na capa do disco ou na capa do livro o assunto do que está ali dentro. Isso é um negócio infernal porque até hoje é assim porque você precisa ver... Eu tive sérios problemas com isso porque eu nunca fiz nada se eu não concordasse; se eu tivesse uma opinião contrária ao texto, disco então nem se fala por que aí eu dizia: "Bicho, eu não curto, não dá, eu não vou conseguir fazer", livro idem. E briguei muito com editores como ilustrador. Porque desenhista sempre foi aquele sujeito talentoso, mas que é burro, que não estuda. Então é hábito do editor falar: "Vem cá que tem um negócio para fazer aqui, a ideia é mais ou menos essa aqui". Até hoje é um pouco assim. Eu dizia: "Não, essa ideia é atua ideia. Me dá o texto aí par eu ler. Eu vou ver o que é que eu acho disso e eu te proponho uma solução". Sempre foi assim e isso é complicado porque te obriga primeiro a assumir um compromisso bastante radical com o que você vai fazer. E toda vez que eu fui, porque as gravadoras não me chamavam, quem me chamavam era os artistas. Num recente documentário que fizeram comigo para inaugurar o Centro de Referência da Música Carioca, entrevistaram o Sergio Cabral e ele disse uma coisa que eu nunca pensei mas que pode ser verdade. Ele falou: "Chega uma hora que todo artista brasileiro, fosse compositor, escritor, diretor de teatro, queria ver como é que o Elifas via o trabalho dele, o que ele estava fazendo". Eu fiquei pensando sem nenhuma presunção: "Pode ser verdade, pode ser verdade". Porque se você pensar que lá na origem dela tem um sujeito que pega o Legião Estrangeira, que é um livro da Clarice Lispector, e põe uma cabeça de boneca de onde nasce um pintinho e você pega o livro, lê os contos e lê o Legião Estrangeira, você diz: "Pô, que ideia". Ao mesmo tempo que você olha aquilo e fala: "Preciso ver esse negócio, o que é que é?” E as outras coisas. Eu me lembro, por exemplo, vou citar uma coisa que está no meu livro que é o cartaz da morte de uma caixeiro viajante, vocês conhecem a história, que a história de falência do sonho americano, é o desastre de todos os sonhos daquele homem. Eu fiz uma figura sentada numas malas e atrás dele tem aquela águia que é o símbolo americano meio fragmentada. O autor é o Arthur Miller, Flávio Rangel que dirigiu o espetáculo, o Paulo Autran mandou o convite com o cartaz pro Arthur Miller. O Arthur Miller respondeu dizendo que não poderia ver e que agradecia o lindo cartaz que ele mandaria moldurar e colocaria na cozinha de sua casa, onde ele ficava mais tempo, para poder admirar. Se você pensar: “Pô, quantas vezes montaram essa peça mundo afora e de repente o autor escolhe esse cartaz”. Então isso é um exemplo de que... Assim como a capa de Nervos de Aço do Paulinho da Viola ou mesmo o Almanaque do Chico, Origens do Martinho. Ah, se você pegar por aí as coisas você vai ver que no fundo de tudo tem uma grande preocupação, e o processo todo de criação passa pela capacidade de resumir toda a obra compilada numa única imagem e essa imagem precisa ser atraente. Ela precisa levar o sujeito a se interessar pelo assunto ou para ouvir o disco, ou para ir, ou teatro, ou para ler o texto, enfim, eu acho que esse é o trabalho que eu faço. Eu sou o fazedor de convites e quanto mais desconhecido é o artista hoje, eu faço muito isso hoje... Eu desisti um pouco dessa história de música popular porque pagam mal e só faço para os amigos. Mas algumas pessoas começando que precisam de uma força, eu sempre procuro fazer uma coisa de grande impacto, que é para atrair, que é para a pessoa se interessar. E tem gente que às vezes me critica: "Ah, Elifas, eles querem é a tua assinatura!". Eu digo: "Pô, mas no dia que eu usar esse artifício eu estou liquidado", quer dizer, vou pra casa e... Está louco! No dia que prevalecer a história que o cara quer minha assinatura eu estou perdido, estou perdido. Jamais aceitarei esse tipo de coisa. Ou eu faço para valer ou não faço.

P/1 – Você estava falando do Jornal Opinião, A Argumento, etc. Nesse período você chegou a ser preso?

R – Nós éramos presos e torturados assim: a gente tomava uns tapas, mas a pior tortura - e esse tal Coronel Bandeira no Rio, do DOI-CODI de lá - porque era assim, a gente ia daqui trabalhar. Todos nós trabalhávamos, saíamos da Abril e às sextas-feiras a gente não dormia. Passava a noite fechando o jornal com censura dentro, refazendo capa. Às vezes, o cara para sacanear: você passava três horas fazendo a capa do Paulo Evaristo Aires, que ia fazer a missa do domingo para o Alexandre Vanuchi, e o censo aprovava o desenho atrás. Quando saía da gráfica - a gente tinha direito a uma cor e o fotolito eu fazia no papel vegetal - e quando ele via o vermelho do cardeal o cara já vinha me batendo. Eu tinha que sair correndo porque o cara já vinha me batendo porque o vermelho não podia. Agora, a pior tortura era a seguinte: eles deixavam rodar o jornal, e eles sabiam que nós não tínhamos dormido na sexta; então quando o jornal começava a rodar sábado à noite, ele nos recolhia pra gente não dormir também no sábado. Tirava água de poço, tentava dormir e o cara te dava uma porrada. Quando descobriram que eu fiz com o Azevedo o Livro Negro da Ditadura Militar, aquela caveira com quepe, eles tentaram me matar. Eles me perseguiram durante muito tempo. Eles só não me mataram na (PIL-11?) porque eu estava fechando uma revista na Abril. Porque um companheiro nosso caiu aqui no DOI-CODI e sob tortura ele nos entregou. Então eles sabia e aquele livro foi um chute no saco deles.

P/1 – Mas você não assinou. Assinava?

R – Não, imagina! Está louco? Uma caveira com quepe! Eles descobriram quem era, mas eles andaram atrás de mim, mas nunca pegaram eu e Azevedo juntos. Porque a ideia era ter que configurar uma manifestação, um complô. Mas eles me seguiram, eles foram na casa da minha mãe, eu tinha um sítio aqui em Piedade e eles ficavam de butuca lá até... mas a gente se encontrava de outras maneiras. Mas aí sim eu corri um sério risco, eles queriam muito me pegar. Mas a história apagou tudo que eles fizeram e nós estamos aí. A nossa geração venceu, eu sou um vencedor! Eu e meus companheiros todos. Foi sofrido, foi complicado, mas quem é que se lembra desses milicos todos, dessa bandidagem? Fui ______ da pior maneira. Fiz o Prêmio Herzog de Jornalismo. Agora, no ano passado fui convidado pela ONU para fazer o Prêmio de Direitos Humanos, fiz o lado vitorioso para se contrapor aquela imagem dele enforcado, ajoelhado. Eu continuo enchendo o saco deles. Volta e meia, se me dão uma chance... Eu digo: "Vocês me tiram, malditos, não é?" Mas a verdade é que o Vlado venceu, nós vencemos.

P/1 – Você conheceu ele pessoalmente? Conheceu ele?

R – O Vlado? Eu trabalhei com ele na Revista Visão, fui ilustrador dele, capista dele. Com que eu não trabalhei dessa turma aí? Eu trabalhei com todo mundo. De vez em quando as pessoas veem umas fotos que eu tenho com algumas pessoas, eu não gosto de mostrar isso, mas eu me orgulho delas. Tem gente que põe na parede. Eu trabalhei com grandes pessoas, com... Estava fazendo a exposição do JK em Brasília e o presidente Fernando Henrique Cardoso na época fez um ato e convidou um grupo seleto de pessoas para o evento. Eu não esqueço, não para me vangloriar, mas porque eu estava ali participando de um evento do qual eu era peça importante porque eu tinha criado a exposição. De repente ele me viu, sabe, foi uma coisa bem interessante. Eu achei o segundo mandato dele um horror, mas não cheguei a dizer para ele. Mas ele me viu, rapaz, ele veio na minha direção e é gozado. Aquele bando de gorilas que seguem e políticos, aqueles lambe-botas. Ele veio na minha direção e falou: "Elifas, ainda ontem eu falei de você, mas que tempo bom aquele". Eu falei: "Pra você que ficava lá no nosso conselho editorial, mas para nós era muito ruim porque a gente ficava lá tirando água de poço pro coronel Bandeira" (risos). Ele falou: "Ah, mas fala a verdade, foi divertido!". Foi, foi um tempo bom. Ele engatou uma conversa, não teve jeito, cara. Ele ficou tão aborrecido quando chegou político e tal, ele falou: "Elifas, fica um tempinho mais". Eu falei: "Não! Eu posso ficar o tempo que quiser, o senhor é que não pode". Mas ele é um sinal de que aquele momento lá foi importante para todos nós. O cara foi presidente da república, eu convivi com ele. Trabalhei com ele, assim como o Lula enquanto sindicalista. Eu várias vezes me encontrei com o Lula e ele sempre falava... O texto do Lula no meu livro é lindo e o do Fernando Henrique também. Porque, à parte essa coisa toda que a gente vive hoje, eles são políticos, mas teve um período em que todos nós estávamos lutando pela mesma causa. Esse tempo marcou de maneira tão profunda cada um de nós. O professor Antônio Cândido me ama, ele disse: "Elifas fez a mais linda revista intelectual do mundo!", que é o Argumento. A gente trabalhava e o professor ficava lá, ele adorava participar das pautas, depois ele via a diagramação e dizia "Elifas, isso é lindo!". Porque tradicionalmente as revistas era aquela coisa daquela maçaroca, cheia de texto e de repente eu fiz uma revista que começava pela capa, que era um negócio bonito, depois diagramada, ilustrada, arejada, ele ama aquilo. O texto dele no meu livro é lindo também por isso. De vez em quando eu falo com ele por telefone. Então eu sou uma pessoa que esteve com essa gente toda num período em que éramos todos parte da chamada Frente Ampla. Esses momentos ficaram! Claro que eu não aprovo muita coisa, mas eu não posso negar que essas pessoas tiveram... Eu estive com elas num período em que todos nós nos dedicamos a melhorar o futuro e buscar uma democracia mais sólida, que nós estamos tentando ainda consolidar. E não é fácil, precisa de tempo.

P/1 – Quando é que o Argumento acabou? E o movimento?

R – O movimento acabou aí no final da década de 70. A Argumento também. Foi o quê? 66 nós fizemos a Argumento e no quarto número já não circulou. E o mais curioso: a Revista Argumento, ela não foi fechada pelo conteúdo porque a edição que foi apreendida e que foi proibida de circular era um artigo do Anatol Rosenfeld sobre futebol brasileiro, que é uma capa minha com uma camisa, com várias camisetas de clubes diferentes. Mas sabe por quê? Por causa do slogan: Contra fatos há argumento. Era uma brincadeira e eu e o Antônio Cândido fomos os únicos que percebemos que essa brincadeira e essa forçação de barra iam provocar os milicos. O resto achava ótimo. O professor Antônio Cândido sabe disso, mas eu dizia: "Olha, gente, por causa desse slogan nós vamos perder essa revista; os caras não vão tolerar essa brincadeira!". E não deu outra, quando a gente foi procurar saber, foi por causa do slogan "contra fatos há argumento", usando o logotipo da revista. Uma brincadeira bobinha. Perder essa revista.



P/1 – E você se envolve em que projetos nesse período?

R – Bom, nesse período? Ah, tudo que tivesse alguma coisa contra os milicos eu estava metido, fazia o possível para estar junto. Mas também fiquei muito envolvido com música. Passei a fazer shows, dirigir, roteirizar, cenografar, além das capas que eu criei, enfim, muita coisa com o teatro também. Ah, minha profissão é, assim, chama-se artista gráfico, mas eu ainda faço e fiz muita cenografia. Depois eu acabei enveredando pelo jornalismo. Editei MPB Compositores para a Editora Globo 97; em 98 editei a história do samba, já como editor, que foi um sucesso também; depois em 99 fundei o Almanaque Brasil.

P/1 – Conta para a gente como foi essa ideia de fundar o Almanaque. Fala um pouco dessa coisa da pátria, de recuperar um pouco isso, de reconstruir, conta pra gente um pouco de onde surgiu essa ideia do Almanaque.

R – Ela veio exatamente disso. Como eu me formei no jornalismo e num período bastante crítico, depois em seguida eu fui fazer a história da música popular brasileira e percebi que a memória brasileira já tinha esquecido uma porção de gente importante. Me formar em jornalismo e começar a perceber que a minha vocação não seria a má notícia e que eu gostaria de recuperar o que havia de bom na história brasileira. Se você volta lá pra 70, como pra cá com a história da música popular brasileira, você vai juntando isso e todo processo depois político de recuperação dos símbolos da pátria, etc, você, inevitavelmente, vai acabar no Almanaque Brasil que é a síntese do que eu entendo como necessidade pra mim hoje, que é buscar na história brasileira os bons fatos, os bons personagens e os bons exemplos. Então o Almanaque é o armazém da memória brasileira, mas ao mesmo tempo ele é o armazém da boa memória brasileira, daqueles homens que fizeram... Porque chega uma hora que você começa refletir sobre o noticiário diário e você diz: "Espera aí, o país não é isso que essas pessoas estão dizendo. Isso tem uma razão de ser. mas eu não quero isso para mim e nem para as pessoas com quem me interessa falar". Eu quero dizer que há fatos, há pessoas e bons exemplos na história brasileira, é isso que me interessa. Porque eu não conheço nada mais eficaz do que um bom exemplo, eu não conheço melhor forma de educar do que pelo bom exemplo. Você pode educar mal com o mal exemplo. Então eu fiz essa opção! Quando eu terminei a coleção da História do Samba, eu tinha juntado uma equipe de pesquisadores e eu não queria perder isso. Tinha juntado um time bom, eu falei: "Não, pô, eu tenho uma equipe boa que interessa pela boa memória do país, vamos...". O Almanaque Brasil já era um projeto antigo que as editoras não queriam. Então eu levei para a Globo, a Globo também não se interessou. Eu mandei pro Comandante Rolin, que era um apaixonado pelo Brasil. Porque eu precisava de um canal de distribuição e o slogan dele era o orgulho de ser brasileiro. Eu falei: "Opa, vou levar lá, (fecho?) com o comandante, boto no avião". E foi isso que aconteceu há dez anos, vai fazer 11 agora em abril de sucesso absoluto. A fidelidade dos leitores com o Almanaque, são 100 mil exemplares por mês, cara, só no avião. Agora também em banca, fizemos umas experiências com assinaturas. E todos os meses nos sentimos honrados com os elogios que recebo pela dedicação. Sobretudo de pessoas que moram fora do Brasil e pegam os voos internacionais e para essas pessoas a história brasileira tem um pouco mais de sabor. Sobretudo quem tem filhos fora. E nós fazemos com um baita cuidado, com um carinho danado. É uma boa ideia que deu certo. Fora isso, as coisas que agora os meninos estão... Porque eu nunca quis ser dono de nada, eu nunca... Eu só preciso de uma coisa, assim, porque eu preciso de uma aposentadoriazinha porque eu não paguei meus negócios em dia, então eu não tenho. Se eu parar de trabalhar eu vou precisar de um cabide, então a empresinha lá tem de funcionar, que a molecada tem que ralar um pouco agora. Eu estou fazendo um pouco os meus projetos que ficaram engavetados por muitos anos. Tenho um grande projeto que é pro Vinícius de Moraes. Porque eu tinha decidido não ter filhos porque a minha infância foi muito pesada e não me via em condições de criar uma criança. Em 74 eu fiz a capa do disco do Vinicius e Toquinho onde tem O filho que eu quero ter, uma canção maravilhosa, que é o pai no berço do filho e depois no leito de morte do pai sonhando com o filho que ele quer. A canção acabou comigo. Eu ouvi a canção e falei: "Vinicius, eu decidi não ter filhos, mas eu ouvi essa música e... Ele vinha ______________: "Se você não tiver os seus filhos a vida ficará incompleta e você jamais compreenderá seu pai, jamais!". Bom, mudei de ideia, claro. Nasceu o Bento um ano e meio depois, depois veio a Laura e a _________. Infelizmente não tive como falar com o meu pai porque ele faleceu antes. Então eu fiquei devendo isso ao Vinícius, dez anos de morte. Eu fui amigo dele, eu convivi com ele, ele era técnico do nosso time, o Namorados da Noite. Bebia um litro e meio de wisk por dia, nadava com a garrafa e o copo; só parava para pegar gelo e fazer xixi. Mas eu quis pagar isso com dez anos de ausência, depois com 20 e agora 30, ano que vem. Eu não tenho mais tempo, eu cheguei à conclusão que ou eu faço no ano que vem ou eu não faço mais. E o projeto é lindo. Eu peguei o poema _____, que é uma espécie de epitáfio gigante onde ele faz um balanço da vida. Cada estrofe, são 13 estrofes, ela resolve-se em si mesma. Então eu estou fazendo uma interpretação de cada estrofe num desenho, de um por um, em tela e depois eu vou com Chico e outros artistas, com Toquinho, estou fazendo uma lista aí. Eu vou fazer uma oficina que vai ser gravada enquanto eu pinto com eles; só que antes eles receberam o poema e já fizeram uma canção pro poema. Então eu termino o quadro... Eu já tenho um que eles não conhecem. Mas eu vou pra lá com o kit de pintura, tudo, e a gente faz uma estripulia. E vamos falar de Vinícius, contar uma estória, etc. Terminou aquilo lá, está ok? Está ok. E a música? Então canta a música que fez com o poema. É uma coisa super simples que não tem a pretensão de ser um show. É um DVD, assim, feito com... E uma exposição e um livro. E esse DVD, é gozado porque eu quero fazer assim como eu estou te falando: eu vou para a casa do Chico, da Rita Lee e a gente faz lá. O que nós vamos fazer? Ah, o poema? Então vamos começar a riscar esse negócio. Vamos pintar com o quê? Não, colagem! Então colagem! E sai alguma coisa. Vou evitar um tamanho muito grande porque assusta um pouco. Tem gente que me cobra desde os dez anos. João Bosco é um que fala: "Elifas, e aquele quadro do Vinicius?” Eu falo: "Calma, uma hora sai". Então, é isso que eu estou querendo fazer agora. Esse projeto para mim é um projeto de reflexão. Vinicius morreu com 65 anos, eu estou com 63. Esta sensação de... Esta consciência de finitude, ao mesmo tempo que ela pode te levar para uma batalha que eu travo diariamente contra o alcoolismo, ela pode te levar a um trabalho produtivo e ao mesmo tempo de alto conhecimento. Eu sinto que é hora de eu repetir todas aquelas palavras do Prêmio ________. Sabe quando... A conclusão a que você chega é a seguinte: eu não conseguiria fazer isso há 20 anos, não faria. Eu faria uma besteira qualquer. Hoje eu sei o que eu faço porque hoje eu sei o significado de cada estrofe daquela. Porque eu estou dizendo as mesmas coisas para mim mesmo todos os dias. É uma coisa louca isso. Vou mandar o poema para vocês, é de doer, viu, cara? Você chegar àquela capacidade de auto-análise e escrevendo daquele jeito. A penúltima estrofe é de lascar porque ele se refere à morte como ela me espreita, como se fosse não sei o que e nem desconfia que é a minha mais nova namorada. Precisa dizer mais alguma coisa? Eu acho que falamos aí o básico. É claro que tem muita que você... Não é nem que eu não queira falar, é que você esquece.

P/1 – Eu só queria perguntar uma coisa. Você disse que não queria ter filhos, mas foi um ato pensado depois, etc. E como é a sensação de ser avô?

R – Oh, isso é maravilhoso. É melhor que ser pai (risos). Eu sofri muito para criar o Bento. O Bento foi danado, Laura nem tanto... Minhas duas alegrias, outra sorte grande. Sabe que tem uma coisa, às vezes as pessoas falam, mas soa como bobagem? Mas a loteria que eu tinha que ganhar na vida eu ganhei, ganhei com eles. Eles são dois seres humanos incríveis, do bem, maravilhosos. O que você pode esperar mais da vida? Dinheiro? Claro que o dinheiro pode encher um pouco o saco se não tem, mas a gente se vira. Eu tenho é essa imensa alegria de ter tido, de ter posto nesse mundo maluco duas pessoas do bem, que estão fazendo as suas vidas com dignidade. E agora estou ganhando netas iguaizinhas.

P/1 – São gêmeas?

R – Gêmeas: Clara e Elis. E o meu netinho postiço, Pedrinho, com um ano e sete meses, que é uma doçura de criança, que me adora. Sou o nono, porque o avô mora em Florianópolis e ele vive mais comigo do que com o avô, que morre de ciúme. O Pedrinho é meu companheirão já. As meninas, com dez meses agora, começando a... Lindas!

P/1 – São filhos do Bento ou da Laura?

R – Do Bento. Laura não quer saber disso por enquanto. Laura está fazendo a carreira dela. Ela é uma ótima artista plástica, também cenógrafa de grande talento, figurinista. Já trabalha com grandes figurões da música: Nóbrega, Tom Zé e o meu irmão Elias, esse figurino do doido é dela, muito bem bolada. Ela como artista plástica também já ganhou alguns prêmios, continua... E é uma doçura de pessoa. Não posso me queixar da... Às vezes o tratamento... A depressão é uma armadilha. Você nem sempre sabe por que é que você acorda triste se tudo está bem. Todos esses anos de terapia, psiquiatras e mesmo antidepressivos nunca resolveram essa questão. Então eu resolvi que vou conviver com isso de maneira natural: se eu acordar triste, eu vou ficar triste. E eu sou uma pessoa bem humorada, não tenho, não sou aquele baixo astral, aquela coisa. Não tenho isso, ao contrário. Mas eu ainda quero... Você vai para análise, você vai em busca de todas essas coisas que você... Esse processo de produção de enzimas e o diabo, você não sabe direito como é que funciona. Os antidepressivos dão efeitos colaterais horrorosos: um te deixa com a vista trêmula, o outro dá tremedeira na mão, enfim, o outro te dá sono. Ah, chega uma hora que você dá alta para o psiquiatra e vai viver. Se você acorda triste, acorda triste e pronto. Tem um exercício ótimo que eu trabalho: se eu estou desenhando ou mesmo escrevendo, cara, eu estou bem pra caramba. Ontem eu entreguei um quadro que eu pintei pro Melograno, pro primeiro aniversário, deu um metro e meio por um. Fiz um (baco?) do Caravaggio adaptado, em vez de uva ele segura romã. Porque melograno é pé de romã em italiano. Pintei lá o quadro, foi inaugurado. Eu fiquei pintando esse quadro lá em casa, fiquei feliz da vida fazendo a escultura do Henri Nestlé. E mesmo que você acorde triste, o trabalho que a gente faz não cansa, é um trabalho que dá prazer. Se todo mundo tivesse a sorte de escolher o que quer fazer na vida já seria uma coisa muito boa. A despeito de toda essa coisa que nós falamos, eu consegui essa coisa também: fazer o que eu gosto de fazer. O Peninha na biografia que fez para mim, ele escreveu meu livro... Porque eu, a despeito de toda essa história maluca, eu acabei sendo professor convidado da ECA. Só não continuei porque o salário era um horror. Tinha que dar 36 horas lá e ganhava R$ 800,00 no mês. Eu falei: "Não! É uma honra ser convidado para ser professor na principal faculdade do país depois de ter sido alfabetizado aos 15 para 16 anos. Mas também ganhar esse salário, não, querido, não dá para viver". Agora eu estou muito preocupado em ensinar, eu quero fazer palestras, mas eu quero, adoraria poder, sabe? Se eu conseguisse um meio de, não completo porque eu não quero deixar de fazer minhas coisas, mas se eu pudesse dar aula, sabe, aula mesmo, eu adoraria. Porque chega uma hora que você sente necessidade de passar para frente, para os jovens. Eu faço umas palestras aí, rapaz, e eu fico impressionado. A última que eu fiz foi para a Ibero-Americana ali na Brigadeiro e eles alugaram o Bibi Ferreira, aquele teatro, estava lotado aquele troço. Eu fiz a minha palestra mostrando as minhas coisas, acabou e eu fui aplaudido de pé. De pé, sabe, como se fosse... Aí eu fiquei pensando naquilo porque hoje é tudo virtual, de repente se tu ver tudo que eu fiz. Porque é tanta coisa, tantas alternativas, tantas técnicas que o cara, a molecada fica doida. A gente faz uma palestra sem a formalidade do educador, você fala a língua deles, você brinca com eles, é um barato. Eu estou me preparando para no próximo ano fazer mais palestra e também ver se eu consigo dar aula. Quero dar aula de design, de...