Museu da Pessoa

Dança entre memórias

autoria: Museu da Pessoa personagem: Simone Mattos de Alcântara Pinto

Projeto Museu Aberto
Entrevista de Simone Alcântara Pinto
Entrevistada por Maria Lenine Justo e Laura Olivieri
São Paulo, 15 de maio de 2007
Realização Instituto Museu da Pessoa
Entrevista PC_MA_HV003
Transcrito por Lúcia Nascimento

P1 – Boa tarde, Simone.

R – Boa Tarde.

P1 – Vamos começar com você nos falando primeiro seu nome, o local e data de nascimento.

R – Simone Matos de Alcântara Pinto, nasci em São Paulo em três de outubro de 1958.

P1 – E qual era o nome dos seus pais e dos seus avós?

R – Meu pai, Hélio de Alcântara Pinto. Minha mãe, Zuleida Ataíde de Matos. Meus avós, eu só sei da minha mãe. O pai dela era João de Matos e não conheci os outros. Sei que a mãe do meu pai era Maria de Alcântara Pinto. Os outros eu não sei.

P1 – Nem o primeiro nome?

R – Não. Eu não conheci. Quando eu nasci, eles já tinham morrido e não sei te dizer.

P1 – E qual era ou é a atividade dos seus pais?

R – Meu pai, que já morreu, era historiador, professor de história. Antes ele foi capitão do exército. E foi reformado porque começou a fazer faculdade enquanto estava no exército, e ficou um militar de esquerda. Foi reformado em 64. Depois ele continuou tendo uma atividade mais política, dando aula. Quando ele morreu, era chefe do gabinete do deputado Florestan Fernandes, lá em Brasília. Teve uma série de atividades ligadas ao PT. Minha mãe veio pra São Paulo pra trabalhar,

veio com 16 anos da Paraíba, foi aeromoça por um tempo e depois parou de trabalhar quando teve filho. Voltou depois a trabalhar em escritórios, coisa assim., Hoje ela tem 74 anos, não tem mais uma profissão, fica em casa.

P1 – E dos seus avós, sabe alguma coisa deles?

R – Sei do avô da minha mãe, que foi o único que eu tive contato, embora não lembre muito, porque era muito pequena. Mas sei que ele era joalheiro na Paraíba, em Campina Grande. E sempre me marcou muito de ele ser joalheiro, de ter uma joalheria. E como ele perdeu a esposa muito cedo, criou oito mulheres sozinho e um menino. Os pais do meu pai eu não sei dizer, nem da mãe da minha mãe, que morreu num parto, muito cedo. Eu só sei que a mãe do meu pai era muito rigorosa, muito brava.

P1 – E a origem da sua família, qual era?

R – Bem portuguesa, dos dois lados. Não sei nada desses outros avós. E como meus pais são dos nordeste, os dois, meu pai era cearense e minha mãe paraibano, é muito nordeste na minha vida. Uma origem nordestina. Hoje em dia tenho vários tios que se espalharam pelo nordeste.

P1 – E irmãos, você tem?

R – Tenho um irmão que é filho da minha mãe e do meu pai, que tem 50 anos, o Helinho. E tenho outros irmãos, porque meu pai casou três vezes. A minha mãe, que ele se divorciou, teve um segundo casamento, com um filho de 25 anos, o Felipe e um outro filho do terceiro casamento, não oficial, um filho adotado registrado como filho, com 19. E eu tenho uma filha de 21.

P1 – Vamos falar um pouquinho da sua infância. Você lembra do bairro onde você morava, da sua rua? Como era?

R – Olha, eu nasci, isso me marca muito, eu nasci no hospital da polícia militar aqui de São Paulo, porque meu pai era militar, né? Era capitão do exército, mas o hospital era em comum. E a gente morava na vila militar, em Barueri. Dessa época não lembro nada, só por fotos é que eu sei que tinha um parquinho, etc., etc. Quando a gente veio, porque meu pai, conforme ia sendo transferido, a gente veio pra cá, pra capital. A gente morava na Barra Funda. Está lá o prédio, outro dia eu passei. Era em frente à estação rodoviária. Eu cheguei ali com cinco, seis anos, meu irmão tinha sete, dois a mais. Eu lembro que a gente brincava muito. Foi muito gostosa minha infância, ótimas lembranças. A gente tinha uma vida meio dura, porque meu pai dava aula e era capitão, mas não ganhava bem. E quando foi reformado, foi pior ainda. Mas não foi uma coisa ruim. Era um prédio de três andares, só de escada. Isso marcou muito, lembro bem que quando faltava água era balde de água na mão. Minha mãe já não trabalhava, ficava dentro de casa. Marcou bastante. Era difícil, mas não era um drama. Tinha um quintal nesse apartamento que a gente brincava muito. O vizinho também vinha. E minha mãe, como era nordestina, fazia bichos com caroços de manga, com palitinho, bonequinha de pano. Então, teve uma brincadeira muito presente o tempo todo. Tinha muito futebol dentro do apartamento, meu pai com meu irmão, jogando futebol. Eu gosto muito do futebol. Eu não gosto de jogar, mas isso me marca muito, a questão do movimento. Isso me marca muito, tenho muito boas lembranças do esporte. E eu lembro também que eu vinha a pé do Grupo Escolar – Grupo Escolar Pedro II, com uma grande amiga de infância. A gente parava e deixava ela na casa dela. Ela ia a pé pra casa. Até os oito anos eu fiquei nesse apartamento. Depois compramos uma casa e foi uma festa. Era no Brooklin. Não tinha nada na época, quase, eram sítios. A gente foi pra uma casa que deu pra ter um cachorro. Foi uma maravilha lá. Eu fiquei lá até sair de casa, com 18 anos. A adolescência também foi muito boa. E a infância foi ainda também muito boa, porque a turma da rua era muito boa. A gente teve uma experiência de casa. A turma era muito legal de adultos e crianças, nessa rua. Era uma vilinha. A infância continuou também muito boa aí. Teve muito também da gente ir pra estádio de futebol. A minha mãe costurava bandeiras do Santos. A gente ia sozinhos naquela época, não tinha o menor perigo. Era muito gostoso. A gente brincava muito de boneca, de carrinho. Tinha uma coisa legal de meninos e meninas.

P1 – Essa casa foi quando seu pai já tinha sido reformado?

R – Reformado. Porque ele foi reformado em 64. Eu tenho uma lembrança, tenho fotos que me lembram nitidamente dele chegando no final do dia de quepe e uniforme, aquela coisa bonita, muito correto. Mas ele era uma pessoa muito justiceira, do bem. Jamais ia se dar bem como um militar de direita, jamais. Lembro dele chegando em casa, a gente jogava muito jogo de mesa com ele. Quando a gente foi pra essa casa, ele já estava reformado, foi em 68, já estava há quatro anos reformado. Mas teve aquela seqüela de perseguição. Ele foi a julgamento por causa de ser reformado.

P1 – Você quer contar um pouquinho dessa reforma, isso marcou muito vocês?

R – Quero. Marcou muito. É engraçado: as pessoas dizem que em 64 eram pequenas e lembram como foi o golpe. Eu não tenho lembrança de como foi o dia do golpe. Eu não tenho lembrança do dia, mas quando meu pai foi reformado, foi muito marcante, porque foi como se ele tivesse sido mandado embora do exército. Foi mais difícil depois, porque ele foi reformado, dava aulas também, em paralelo e a gente ficou assim muito assustado, porque veio uma repressão muito forte. E como ele foi acusado de que pertencia ao PC - ele nunca foi do PC – por um outro militar que dedurou, dizendo que ele era do PC, mas ele não era na verdade. Tem uma coisa muito interessante aí. Ele começou a fazer a faculdade quando era militar e começou a fazer na Maria Antônia, naquela época. Ia de farda, porque não dava tempo de trocar a roupa. Os contemporâneos dele são de várias gerações, porque era Fernando Henrique, era Carlos Guilherme Mota. Tinha os mais velhos e os mais novos. Tinha o Florestan Fernandes, tinha o Gabriel Conte. Tinha uma série de intelectuais de esquerda, naquela época todos muito juntos. Então ele foi acusado de que era do PC e nunca foi, pelo contrário. Foi um socialista convicto. Eu lembro que o mais marcante foi isso de ter sido dedurado. Isso na minha cabeça ficou muito forte. Era isso que a gente respirava naquela época. O fato dele não ter mais farda, né, abandonou. E eu lembro de uma imagem, que não me sai da cabeça, era um orgulho de quando era pequena, e num desfile do Sete de Setembro, quando ele ainda era capitão e desfilou em cima do jipe em pé, com continência, aquela pompa. E logo depois foi reformado. Então, tem aquela relação difícil de ódio, mas aquele orgulho do pai herói. E aí, quando ele foi reformado foi mais difícil. A época de 64 eu não lembro. Porque aí ele começou a ser, não foi bem perseguido, mas ele foi a julgamento. Era um inferno, porque era aquela época de repressão e a minha mãe treinava muito a gente. A gente foi pra essa casa e ela orientava: “olha, não pode falar pra ninguém que tem esses livros em casa”, tinha Marx, Trotski. Ficava aquela tensão. Teve uma fase, eu devia ter uns 10 anos por aí, pra você ver por quantos anos isso foi se prolongando. Foi sempre aquela tortura, porque chegava no dia da audiência, esperava horas e eles adiavam. Foram anos assim. Ele não chegou a ser preso, acabou absolvido, porque não tinha provas. Mas esse espaço de tempo foi muito duro, porque a gente escondia o que acontecia dentro de casa, a gente era moleque. Uma outra orientação que tinha era de que a gente não entrasse em fusca. Porque o fusca era o carro da polícia e eles seqüestravam filhos dos chamados subversivos, assim. Então, a gente tinha um treino de não entrar em fusca, porque pode ser da polícia. E era. Era uma coisa que a gente sentia no ar. A gente saía da escola e ficava sempre de olho. E mesmo assim ele continuou dando aula. Era louco, porque era direita e esquerda, praticamente. Ele dava aula no Rio Branco, que até hoje é ali na Higienópolis, que era maioria judia, todos judeus praticamente. Eu estudava lá porque tinha bolsa. Tinha muito amigos, muito legal, o menor preconceito mesmo não sendo judia. Tinha eu e mais quatro que não eram judeus na sala. E era uma escola muito de direita, porque era ligada ao Lions. Pra ter uma idéia, já era anos 70, então meu pai usava aquelas calças psicodélicas, largas e achavam um absurdo, porque era coisa de gente moderna. Eu odiava a escola, fiz muito mal o ginásio inteiro. Pra você ter uma se eu ia com a blusa da educação física em vez da blusa do taileur, de todos os dias, eu não entrava. E meu irmão estudava no Aplicação, que era uma escola estadual, de esquerda, que era fantástica no aspecto educacional. E meu pai dava aula lá também. Então, tinha uma convivência em casa dessa coisa da esquerda, da manifestação e ao mesmo tempo estava ali anos com aquela história do processo. Então a gente era treinada inclusive, no dia que ele ia a julgamento, a gente ia com minha mãe pra casa de alguns amigos deles, que praticamente são meus segundos pais. Eles também estavam indo a julgamento, esse outro, que eu chamo de tio. Então a gente tinha um treino: “pode ser que seu pai vá preso e não volte hoje pra casa, ou não”. E foi anos a fio até ele ser absolvido. Agora, sinto muito orgulho, porque nesses anos, meus pais ajudavam quem ia preso, amigos, aquele bando de gente. As pessoas quando saiam da prisão, a gente ajudava a dar roupa, sair dali. Lembro que minha casa era um lugar onde a gente tinha muito orgulho disso. As pessoas estavam sendo torturadas, geralmente professores, porque meu pai era professor universitário. Então, era um prazer, sabe, fazer isso porque a gente estava ajudando e vocês perdendo tempo com um julgamento que não vai dar em nada e assim era. Foi uma coisa muito difícil e que eu tenho muito orgulho do que a gente conseguiu passar. Meu pai continuou depois foi um dos que era petista, nós fundamos o comitê do Florestan Fernandes, acho que foi um período difícil, mas em casa tinha uma alegria, não tinha uma coisa amarga. Meus pais conseguiram manter a alegria nordestina em casa.

P1 – Demos um salto. Vamos voltar pra suas brincadeiras, suas bonecas.

R – As que eu mais gostava eram as bruxinhas de pano, que minha mãe costurava e a gente fez uma viagem ao nordeste, pra conhecer a família, quando eu tinha oito anos de idade e a gente trouxe de lá. E tinha um fogão de barro que eu fazia comidinha de verdade: arroz. Isso eu adorava. Casinha com essas coisas. E gostava muito de brincar de escolinha, não é à toa. E também, quando eu estava com oito anos, na rua, andar de bicicleta foi o grande lance. E brincar na rua, montar as coisas na rua, fazer limonada e vender pras pessoas. Esconde-esconde também. Essas são as mais marcantes, que eu gostava.

P1 – E o cotidiano na sua cassa, como era?

R – Olha, quando eu era bem pequena, na Barra Funda, no apartamento, o cotidiano era ir pra escola, eu fazia balé e piano, que eu amava, amava. Lembro que minha mãe estava muito em casa, ela já não trabalhava, então tinha muito essa presença da mãe. E o meu cotidiano era ali perto. E meu pai quando chegava do trabalho, ele era muito presente. Era uma rotina muito gostosa, porque ele chegava, sentava, jogava com a gente. Era uma rotina muito gostosa. Meu pai era nervoso, às vezes. Mas ele cantava, tocava violão e meu irmão cantava. Essa era a rotina. Depois, com oito, nove anos era muito ir pro Clube Banespa, que nós ficamos sócios. E tinha o Rivelino, que na época era jogador e morava ali do lado. Ele ficava na rua jogando futebol com a gente. Então era uma rotina de ir pra escola e ir pro clube. Eu ia pra escola de perua, porque o Brooklin era longe. Isso marcou muito porque eu ficava horas na perua com fome. Ia pra escola. Parei o balé. Isso foi muito ruim, mas tive que sair porque era longe. Continuei o piano, sete anos de piano. Era uma rotina de estudo. Eu era muito cdf, muito. Era uma rotina de muito passeio, no domingão mesmo, com meus pais e meu irmão, de ir pra casa dos tios no Capão Redondo pra casa dos tios. A gente brincava, naquela época, anos 70, final dos anos 60, a gente brincava no mato. Era maravilhoso. O Capão Redondo era o máximo, não tinha perigo. Tinha lá dois tios e uns dez primos, quando reunia lá todo mundo, uns 12 primos. Era muito legal. Juntava aquela mesona, comia lanche, brincava no mato. São boas lembranças de todo domingo brincar. Era uma rotina muito firme.

P1 – Você citou a Escola Pedro II. Foi nessa época que você começou a estudar?

R – Não. Eu comecei, engraçado, eu comecei na verdade não sei te dizer porque, mas na verdade quem trouxe eles pra São Paulo foi um dos irmãos do meu pai que era casado com uma irmã dela. Eu tenho primos irmãos. A gente tinha um contato muito grande com eles no dia a dia. Eles moravam em Perdizes do lado do Colégio Batista Brasileiro. Então acho que era uma coisa mais fácil de buscar, então eu fiz o Jardim no Batista Brasileiro. Tenho boas lembranças, lembro que eu brincava. Eu repeti o Jardim e me colocaram no Pedro II , lá na Barra Funda, onde eu fiz até a terceira série, vinha a pé. Tem uma lembrança muito legal da infância na Barra Funda, que era vir a pé da escola. Como ali perto tem uma escola de samba – a Camisa Verde e Branco, as baianas, eu lembro que elas ensaiavam, as casas tinham aquela parte de metal, na verdade um sótão. Então elas ensaiavam pra ficar rodando nesse porão, na verdade. A gente passava e eu via aquelas janelinhas de ferro, todas de rococó, eu achava lindo aquilo. Já tinha uma coisa com a dança a tal. Eu fui pro Rio Branco na quarta série, tinha bolsa, e fiquei até o oitavo do ginásio, no Rio Branco.

P1 – E aí, falando um pouco da dança, como você iniciou na dança?

R – Pois é. Minha mãe me colocou no balé quando eu tinha uns cinco anos de idade, lá na Barra Funda. Era uma escola de Elsa Ione ____ e lá eu fazia piano também. Era de música e dança. Fui parar lá, porque meus pais colocaram. Eu adorava. Mas era muito especial pra mim, eu adorava. Lembro do local, do cheiro da sala, impressionante, da roupa que eu usava, o uniforme e tal. Do piano, eu não gostava muito porque tinha uma coisa de teste, uma coisa de que “vai pro conservatório” e eu não gostava de teste, mas adorava tocar piano. E pra mim foi muito ruim quando a gente mudou de bairro, porque eu ia dançar na televisão, sozinha, não era o grupo. Pra mim, caiu, acabou. A gente foi pro Brooklin e não me puseram no balé mais, porque acho que tinha uma coisa de dinheiro, sei lá. Mas no piano eu continuei. Estudava mas não tinha dinheiro pra comprar piano. Então, eu ia todos os dias na casa da Dona Mirian, a professora de piano. E isso foi me enchendo, porque eu não tinha piano. E eu tocava bem. Mas um dia me falaram que eu ia pro conservatório e eu: “Não, não quero fazer exame”. E larguei o piano. Hoje se me derem uma partitura eu toco, mas meu ouvido é péssimo, porque naquela época não tinha essa coisa moderna de musicalização. Eu gosto muito de música. Em minha casa sempre teve muita música: meu pai ficava no violão, meu irmão também, a gente ouvia música o dia inteiro. Hoje eu sou assim. A dança só voltou na minha vida porque eu com, 15 anos de idade, falei o seguinte: “vou juntar dinheiro e pagar minha dança”, que era o balé. E eu com 15 anos, fui dar aula de inglês pra crianças, em casa, particular, depois passei pra Pink & Blue. E com esse dinheiro, eu comecei a fazer aula, primeiro na ACM que era do lado do Equipe, porque nessa época eu já estava no colegial . A ACM era na Caio Prado e eu ia a pé, ali no centro. Fiz balé com uma professora que era do Municipal, eu adorava. Mas era eu que bancava e ia sozinha, independente e tal. Depois saí de lá e fui pro Royal Balé. Fazia exames, tinha diploma. Era mais perto de casa e dava pra ir a pé. Eu já estava com 16 anos. Fiz acho que uns dois ou três anos, por aí, até sair de casa. Depois meus pais me ajudaram a pagar, viram que não tinha jeito. Era paixão. E daí, nessa escola, eu tinha todos os dias, todos os dias eu fazia dança. Era sagrado pra mim, não faltava. Podia chover, eu ia a pé, sabe? Tinha moderno, tinha neoclássico, tinha um professor que era do Teatro Municipal. Essa escola era uma das reconhecidas pela Royal. Então vinham ingleses pra cá, pra fazer os exames. A gente ficava arduamente treinando. Uma coisa completamente rígida. Eu amava aquilo. Fazia todos os dias. Fiz alguns exames, tenho alguns diplomas, não sei o quê. Fiz ponta, depois parei. Fazia afro, folclore russo, o que aparecia eu fazia. Como era adolescente, tinha tempo. Eu saía do Brooklin e ia pra Pinheiros fazer Tai Chi, coisa de movimento.

Fui atrás de curso. Fui pra Festival de Dança. Eu me inscrevia, eu ia, como tinha família em Salvador, eu ia. Fui pro primeiro festival de Salvador de Dança Afro. Aí eu fui embora. Mas depois parei um tempo, porque não tinha incentivo dos meus pais. Eu fazia, mas numa hora neguei. Foi muito ruim. Depois de alguns anos percebi que jamais poderia ter largado a dança, jamais. Pra mim é a mesma coisa que respirar, e hoje ainda é. Eu neguei até de assistir espetáculos. Eu juntava dinheiro pra ir assistir Nureiev, era uma fortuna, e ainda é. Tudo quanto era espetáculo, assinava revista, sabe? Mas percebi que sem incentivo ia ser muito difícil. E eu parei. Foi muito ruim, fiquei muito mal. Eu cheguei a fazer vestibular e quando eu fui fazer vestibular não existia nesse país faculdade de dança. Só tinha uma na Bahia. Existia, mas era na Bahia. Era completamente contemporânea, maravilhosa, em Salvador. Mas em São Paulo não tinha. Eu fui obrigada a tentar outra opção. Tentei a ECA e não entrei. Fiquei muito mal. Me senti “a burra”. (RISOS) Queria fazer teatro, mas como não entrei e queria trabalhar com criança e dança, pensei: “vou fazer pedagogia”. Entrei na USP na pedagogia, mas entrei muito mal, não queria. Antes, eu entrei em Educação Artística na FIAM, que era particular. Foi a segunda opção. E quando eu entrei, foi muito engraçado, porque meu pai dava aula lá de História, na comunicação. E eu não sabia que tinha Educação Artística lá. Entrei em comunicação. E aí era meu irmão na minha classe, porque ele era repetente e meu pai professor. Eu disse: “não, não vou sobreviver”. Fiquei um ano fazendo dança, eram quatro horas por dia. Entrei no Teatro Galpão, era moderno, clássico, um projeto maravilhoso. Um dos poucos projetos do Estado. Tive uma formação maravilhosa lá, com Sonia Mota, Antonio Carlos Cardoso, fiquei um ano inteiro só fazendo dança. Foi maravilhoso. Só depois que eu prestei vestibular pra Pedagogia. Decidi fazer pedagogia naquela época porque sabia que entraria. Era fácil entrar em pedagogia, hoje não é tanto. Entrei na USP e fiz anos, enrolei um monte. E parei de dançar. “Chega, não tenho incentivo, vou parar”. Parei. Foi um mal muito grande pra mim. E só voltei depois de muitos anos a dançar, depois de casada, voltei. E descobri que não precisava parar de dançar, não ia mais ser profissional, mas fiz a tese de dança, adoro até hoje. A dança é ar pra mim.

P1 – E no tempo de faculdade de pedagogia, como foi?

R – Então, eu não gostava do curso. Tinha professores maravilhosos, porque até hoje mantenho contato, porque eu me tornei uma pedagoga, Heloisa Dantas, Maria Vitória Benevides, uma socióloga. Tive poucos bons professores, porque a USP não era um curso bom. Era uma época de repressão muito grande do movimento estudantil. Então, da faculdade eu não gostava, mas peguei uma época de movimento estudantil muito boa. Eu entrei em 78 e foi uma maravilha. A época do meu colegial, que foi o máximo, e da faculdade, foi um aprendizado de vida. Porque a gente estava numa repressão muito grande no país, no auge da repressão. Em 75, no colegial foi muito marcante. Em 78 quando eu entrei voltaram aquelas manifestações. A gente tinha contato com esses militantes, estudantes e foi muito legal Eu fui uma das fundadoras do CA Paulo Freire. Paulo Freire era exilado e não podia falar o nome dele. O curso era muito controlado. Mas tinha um grupo maravilhoso que até hoje recebo noticias. Fiquei muitos anos, porque eu tranquei, casei, voltei, viajei, porque eu não gostava da pedagogia. Mas o interessante que eu ia atrás da Eca sempre. Ia atrás de quem era de arte. Vivia atrás de coisa de desenho animado, porque era um boom de criatividade naquela época, cinema. Então a gente montou duas três mostras de cinema. Naquela época de greve, a gente produzia muito. Era muito legal. Tinha uma possibilidade de produção e de união muito grande. Então pra mim era duro agüentar o curso, mas foi fantástico. Na minha cabeça era: “eu vou me formar. Tenho que ter um diploma”. Depois voltei a dançar, depois de um tempo. Mas foi uma época muito legal Foi difícil porque era muita repressão. A gente corria da polícia. Eu tinha medo, muito medo. Foi um período que eu nunca me esqueço quando era pequena, a gente tinha um fusca e meu pai era muito herói, rebelde. E a gente passava maus bocados, porque naquela época, eles paravam todo mundo na rua pra ver documentos, aquele inferno que era. E a gente volta e meia ia pra USP, porque ele deu aula lá por um tempo. Então estava ele dirigindo, minha mãe, eu e meu irmão, toda a família. Estava indo à noite, pra buscar um documento, sei lá alguma coisa assim, a gente atravessando a ponte da cidade universitária. E tinha ali na ponte um monte de guardas, o exército na rua, com metralhadora na mão. Esse era o cotidiano. E a gente tinha muito medo de passar na frente porque eles atiravam, era uma coisa muito assim aleatória. Imagine, meu pai tinha barba, e não podia ter barba, porque era coisa de subversivo. Tudo errado, né? Então, imagine, a gente atravessando a ponte e aquele bando de militar com metralhadora e meu pai peitava. E ou você levava um tiro ou ia preso, não tinha essa naquela época. Aquela situação de nervoso que claro ficou em mim. Não posso ver polícia. Hoje eu estou trabalhando com policial. Foi muito interessante. Eu estou tendo que aprender a lidar com isso, porque tenho que ir lá ver a pensão da minha mãe. É diferente o exército. Foi um grande aprendizado e ainda é. Naquela época meu pai peitava e a gente morrendo de medo de ele levar um tiro. Foram várias vezes. Até que minha mãe ficava numa situação assim: “mostra sua identidade de militar”. Porque se tivesse uma guerra, ele era reformado mas voltaria pra ativa. Então, a hora que ele mostrava a identidade era um alívio. Ou ele não mostrava e se safava, porque ele tinha ódio de ter que mostrar aquilo que ele odiava. Essas situações... Então, quando tinha as passeatas, eu ia em todas, porque só me deu mais vontade de ir contra a repressão. Era interessante. Ia em todas as reuniões. Ia pras Ciências Sociais, pra assistir as assembléias, Libelu, naquela época, vários deles. A gente ia pra lá pra assistir e se organizar pras passeatas. Eu lembro perfeitamente do medo que a gente tinha, mas também da coragem, porque naquele tempo era todo mundo jovem. Era fantástico, tinha uma união naquela época. Era muito legal a solidariedade que a gente tinha. A gente se preparava pra se ajudar, em qualquer idade. E a gente buscava... E eu tinha pavor dos cavalos e dos pastores alemães, porque ali você não tinha controle. Uma mordida te estraçalhava. E das patas dos cavalos. Eu tinha muito medo dos bichos, engraçado, mais dos bichos. Porque eles mandavam. Eu lembro muito bem de numa das assembléias na medicina da Doutor Arnaldo, fizeram um corredor polonês, todos com cachorros, muitos. Era só fazer isso e eles atacavam, estraçalhavam alguém. Era isso na verdade. Eu lembro que eu fiquei com muito medo, mas a gente era muito corajoso. Eu lembro a gente ali juntos, milhares, caminhando, com coragem. Vamos em frente. Fomos, e não aconteceu nada, pelo menos naquele momento. Quanto aos cavalos, a gente começou a ficar escolado. A gente levava primeiro amoníaco pra cheirar no lenço, por causa do gás lacrimogêneo, a gente foi descobrindo armas pra se defender. Então cheirava aquele amoníaco pra não cheirar o gás. E também bolinhas de gude no bolso. A gente não ia mais de bolsa, por causa dos documentos. Naquela época era super descoladão já. E levava bolinha de gude, porque descobrimos que com bolinhas de gude, os cavalos escorregavam e não conseguiam ir atrás da gente. Então a gente fugia literalmente dos cavalos. Era uma batalha mesmo. Mas foi uma época de aprendizado fantástico pra mim. Era muito bonita essa união que a gente tinha. E teve uma vez que, essa foi a mais marcante: como eu fiz minha tese sobre escola de bailado que ficava no Viaduto do Chá, tinha uma foto que eu usei, porque eu comparei a escola de balé clássico que fica ali em baixo, e em cima estava acontecendo uma guerra. Porque aquele louco daquele Erasmo Dias, coronel Erasmo Dias, que era quem mandava prender os alunos, mandar fazer uma guerra contra a gente mesmo, um insano, está vivo, mas é um insano. Eu lembro que quando a gente fez uma passeata, porque a gente tinha um esquema de chegar de vários lugares ao mesmo tempo pra despistar pra polícia, o foco era chegar na escadaria do Municipal pra ter os discursos as manifestações. E nesse dia teve uma grande passeata, uma das mais marcantes de 77, a gente estava indo a pé e pegou o Viaduto do Chá pra chegar nas escadarias. Estava cheio o Viaduto do Chá e aquele louco, com aquele cavalaria atrás dele, o exército, a tropa de choque, esperando a gente na escadaria do Municipal. A gente ficou encurralado atrás e na frente, porque ali é uma passagem, né, e nesse momento foi lindo, porque a gente não tinha saída, só se pulasse do viaduto. E sentamos no chão, milhares, e lemos a carta ali de manifestação, de direitos, assembléia constituinte, tudo aquilo. E eu lembro que todo mundo que trabalhava ali, dos bancos, Mappin, começaram a jogar papel. Foi uma coisa de apoio tão linda, de população, né, de outros setores. A gente acabou lendo o documento, eram milhares lendo em voz alta. E não teve dúvida: aquele louco mandar atacar e a gente estava encurralado. Eu juro que não lembro como a gente conseguiu ir pra rua Barão de Itapetininga. Na hora a gente pensa: ou a gente se atira ou não sei o que vai acontecer. Eu tive sorte de estar um pouco pra trás, mas foi uma loucura, um grande medo. Virou uma guerra. Eu lembro que um grupo ainda conseguiu chegar atrás das escadarias do Municipal, mas foi um dos piores enfrentamentos. Eu saí ilesa, mas alguns amigos foram presos. Era sempre assim. Depois a gente se reunia pra ver como faria pra tirar e tal. Mas a época de faculdade foi muito legal. Embora eu não gostasse da pedagogia... (RISOS)

P1 – Mas essa parte de militância...

R – Foi genial. Foi um grande aprendizado. A gente estudava muito. Na militância a gente lia muito. Tinha o contato de todas as várias gerações, tinha várias tendências, né? As esquerdas, tinha a direita e as esquerdas, era isso. Foi bem interessante. Foi o aprendizado político, foi bem interessante. E tinha o amadurecimento aí, porque desde o colegial pra mim foi muito forte, por causa da equipe. Desses amigos presos, torturados, detonados, pai de amigos. Isso pra mim foi uma coisa que fazia a gente crescer e lutar contra. Era lutar contra, porque aquilo era horroroso, era horrível. Foi uma coisa muito feliz que eu passei, embora todos os medos. Tinha o rock and roll era muito bom.

P1 – E a coisa da amizade, tinha turma, como que era?

R – Era uma coisa muito presente na minha vida e até hoje, que é a amizade. Lá na rua, com dez, 12 anos de idade, tinha essa turma da rua, com meu irmão, eram vários meninos e meninas, todos mais ou menos da mesma idade. Eram vários, umas dez, 12 pessoas. E a gente brincava muito junto, ia pro clube junto, ia pras domingueiras junto. Primeiro namorado também nessa fase, mais ou menos. E tinha também a turma de Santos, porque eu passava as férias lá em Santos. Ótima lembrança também essa de Santos. Tinha uma turma lá na praia, era uma maravilha encontrar nas férias. Mais ou menos nessa faixa dos 12 anos. Depois quando eu fui crescendo, eu tinha três amigas maravilhosas no ginásio, que eu vivia na casa delas, mas eram aqui da escola, do Rio Branco. Depois quando eu comecei a ir pro Equipe, foi muito marcante, porque eu peguei o segundo ano de vida do Equipe no colegial, né, porque eles já tinham o cursinho. E foi uma escola muito marcante naquela época, porque ela era uma escola muito aberta, com uma experiência pedagógica bem corajosa. Eu diria que no primeiro ano de vida dessa escola – meu irmão fez o primeiro ano lá e eu ia pra lá do Rio Branco diretamente, ficava lá o dia inteiro – era quase um samba doido, uma loucura aquilo. Era muito interessante, porque quando eu entrei e era o segundo ano de vida do Equipe, eles começaram a pensar que não podia ser toda essa liberdade. Então, eu presenciei uma transformação pedagógica, que hoje como pedagoga eu vejo, que foi interessantíssimo o percurso deles, muito corajosa. Eles não tinham dinheiro, eram intelectuais, muita gente de esquerda, embora tinha gente que

não era de esquerda, mas tinha uma coisa ali de amizade que até hoje a gente encontra pessoas e é impressionante como em vários lugares a gente se encontra os mais íntimos ou não e a gente convive. É interessante isso. Imagina, eu tinha 16 anos de idade! Eu casei com um cara que era de lá. Mas foi depois. Meu irmão era também de lá. Minha cunhada era de lá. O Equipe... Eu tenho amigos até hoje, que convivo no dia a dia, foram de lá. No colegial, o Equipe tinha uma ligação dos professores com os alunos muito grande, um cuidado afetivo muito grande. Não tinha essa repressão daqui de fora. O Equipe era visado porque eram professores de esquerda, uma pedagogia moderna, eram hippies, então tinha um preconceito grande contra a escola. E a gente batalhava que não, que era uma escola moderna e que a gente gostava daquela escola. O Serginho Groisman, que era do cursinho, a gente fazia várias atividades culturais. Ele era um amigão, era incrível o que ele agitava. Ele era muito tímido, inacreditável isso. Mas ele trazia os melhores artistas, tinha um trânsito cultural já muito grande e a gente participava disso. Ele levou Beto Guedes, Gil, os melhores profissionais do teatro, cinema, pra gente ter aula. A escola, e o Serginho nessa parte cultural. Os melhores filmes da época, coisas proibidas... Era um misto de afetividade muito grande que ficou até hoje e a gente encontra pessoas até hoje do Equipe. Tinha uma força muito grande entre a gente e nós tivemos que passar por momentos bem difíceis que os professores, alguns eram de esquerda. Eu lembro que a gente estava tendo aula, uma vez, uma bando de adolescentes, a polícia entrou e levou o professor. Foi embora e ficou meses presos. Então a gente tinha um esquema de solidariedade impressionante.

P1 – Retomando, você estava falando do Equipe, das pessoas que foram presas, solidariedade. Vamos retomar isso.

R – Vamos porque é bem marcante. Essa solidariedade dessa escola, do Equipe, e da época, muito em função da repressão também, mas tinha ao mesmo tempo um contexto muito legal, que eu adoro ter vivido isso, que era dos hippies, do faça o amor, as flores, o rock. Isso acho que foi um privilégio. Acho que foi uma maravilha ter vivido isso. Por quê? Porque tinha essa história do respeito, do paz e amor que ajudava muito você a enfrentar tudo isso. Ao mesmo tempo, os Estados Unidos estavam no Vietnã, então tinha uma repercussão muito grande. E aqui era o auge da repressão. No meu colegial foi o auge. Essa solidariedade vinha da escola, eu acho fantástico isso. Tinham um carinho e um cuidado com a questão humana, não era nem se era de esquerda ou de direita, era uma questão humana. Então, a gente fazia tudo coletivamente, respeitando as diferenças. Tinha obviamente o que a gente chamaria hoje de Patricinhas, que na época a gente falava que eram Cocotas. Mas era uma questão de você respeitar o outro. E essa questão de que os professores eram perseguidos, a gente ficava muito atento. Porque, quando eram presos – e foram vários presos – era um outro tipo de tortura na verdade. Eles foram de fato presos e torturados. Então, a gente com 16 anos sabia detalhes, porque não vinha na imprensa ainda, mas corria, lógico de boca em boca. Tinham personagens como Pasquim, o Henfil, pessoas que... Chico Buarque, pessoas que eram nossos ídolos e ícones e que de alguma forma falavam o que acontecia. Então, quando eles eram presos, a gente imediatamente se articulava, dentro da escola e eu lembro que não era a diretora, era entre a gente, os alunos, a gente articulava uma vaquinha pra ajudar a família desses professores presos. Porque quando era preso, se era o provedor da família, era o caos. E a gente não fazia idéia se voltava vivo. Era bem isso. O grande medo era que seria torturado – e era – e se ia voltar vivo. Então, a gente pensava não era na perda do professor. Era na família dele, nele, se ele vai voltar vivo, se vai ter aquela pessoa de volta. Isso naquela época era fantástico, de você ter as pessoas à sua volta de novo. Salvá-las mas mantê-las bem. Essa solidariedade foi uma coisa que a gente aprendeu de fato e tinha filhos de militantes ali, de fato, que a gente não sabia se iam retornar. Tinha dois grandes amigos: uma amiga minha, minha chara, bailarina profissional, inclusive. Ela era filha de um dos dirigentes do PC e o irmão dela que é mais novo era amigo do meu irmão. Eles ainda hoje são mais amigos, grudados e tal e eu ainda vejo de vez em quando. Pra você ver como essas relações foram importantes no colegial. E eu lembro que eles eram filhos de dirigentes do PC, que muita gente não sabia. Mas a gente sabia, eu e meu irmão, que a qualquer momentos os dois poderiam ser seqüestrados. Ou se eles sumissem, é interessante como a gente era avisado de alguma forma: “se a gente sumir é porque meu pai foi preso ou a gente teve que sumir, fugir”. Então a gente podia perder esses amigos de uma hora pra outra. Isso era uma coisa muito difícil de lidar, mas a gente sabia que podia acontecer e a gente fazia de tudo pra reverter isso. Era no ar. Quando de fato o pai deles foi preso, como ele era dirigente do PC, veio à tona. Tinha todo um esquema pra ser revelado. Ele foi muito torturado, quase morreu de tanto que... E foi pra Globo, porque a esposa dele fez um escarcéu, obviamente, e aí a Globo mostrou ele no pátio da prisão, esquálido, dizendo que não, que o ele estava bem. Eu lembro muito nítido disso. E os filhos dele sumiram, mas a gente sabia que, de alguma forma a gente sempre sabia as coisas, nem me lembro como foi, porque era pra gente não lembrar, que eles estavam bem. A gente sabia que eles estavam escondidos, mas estavam bem. Isso foi muito duro, porque no princípio foi muito difícil já que eles matavam e sumiam de fato com as pessoas. Então, dava muito medo, porque a gente não sabia se ia voltar ou se ia morrer na prisão, como o Vladimir Erzog morreu daquela forma. Isso veio num crescente pra nós, a gente estava no Equipe ainda, estava no segundo ano colegial. E teve a grande missa na Sé. E toda vez que ia pra rua era aquele grande medo, porque a polícia ia estar lá, de prontidão. Teve aquela invasão da PUC, que foi horrível, depois de uns anos. Esse tipo de ação da polícia, daquele desgraçado do Erasmo Dias, faço questão de dizer, desumano, toda vez que tinha uma ação da polícia a gente sabia que podia sumir, ser preso, sumir, etc., etc. Então, tinha os esquemas pra avisar a família, tudo isso. Eu lembro que

a missa do Vladimir Herzog foi um ícone pra nós de coragem de um sentimento. Porque estava Dom Paulo Arns, o mundo lá, porque aquilo foi horrível. E muita gente estava ainda sendo torturada, presa, etc., etc. Interessante, porque eu tive depois, já não estava mais no Equipe, quando o pai dessa minha amiga foi torturado e quase morreu – ficou surdo, perdeu coordenação, depois foi melhorando, mas ficou muito mal – a gente continuou amiga. E quando os presos iam pro Barro Branco, significava pra nós que não iam mais ser torturados. Estavam já totalmente detonados, então iam ser deixados lá. E eu lembro que essa fase foi muito interessante. A gente já tinha saído do Equipe, já estava com 18 anos, por aí, essa minha amiga já estava tendo uma vida mais normal, porque foi abrindo, né, foi tendo abertura no país. E esse pai dela estava preso e a gente ia visitar. Corajosamente, porque não tinha tido ainda a abertura. Mas era engraçado, porque tinha toda essa loucura, essa repressão, esse autoritarismo dos militares e isso dava mais força na gente. Tinha por trás sim, e isso eu acho interessante, sempre falo isso, tinha as festas, o rock, tinha a coisa do hippie, da gente se respeitar, da natureza, tinha isso que apoiava. Tinha todo esse rock, os Beatles e Rolling Stones, Chico Buarque, Caetano, tinha uma força cultural maravilhosa.

P1 – É a época dos festivais.

R – Ah, que maravilha!

P1 – Você chegou a pegar algum festival?

R – Peguei, desde pequena, em 67, com Roberto Carlos, o Vandré, peguei o Sergio Ricardo quebrando o violão. Tudo ao vivo, em branco e preto, mas vi todos. Porque na minha casa, como se respirava música, a gente assistia de camarote. Depois veio o Caetano, toda trajetória dele, a gente acompanhou. Depois vieram os festivais mais modernos, Papo Cabeça, era genial, Valter Franco, né? Me perdi um pouco...

P1 – Você estava falando da visita...

R – Ah é, que a gente ia visitar e isso nos dava uma força. Aí, quando o pai dessa minha amiga, eles pararam de torturar e ele foi para o Barro Branco e a gente podia visitar, já podia dar as caras, porque tinha uma abertura no país. Você não podia ir visitar na prisão sempre, ia na sua casa à noite, etc., etc. Isso porque tinha todos os disfarces e tal. Eu sei que a gente começou a visitar o pai dela de 15 em 15 dias. Ele estava melhorando de saúde..

P1 -

A gente é com seus pais?

R – Não, não. É interessante perguntar isso, porque a gente tinha 18 anos já, eu, essa minha amiga, filha dele e mais uma outra amiga. Mas o meu pai, é engraçado, porque isso foi uma coisa minha com essa família, e do meu irmão. Até hoje a gente foi pra lá. Meus pais não. É engraçado isso. E meu pai não podia também visitar, aparecer tanto, embora tivesse sido absolvido. Mas eram minha essa relação, minha e do meu irmão. Nunca tinha pensado nisso. Isso pra mim foi um aprendizado porque tinha toda coragem, mas tinha humilhação... A gente ia, eles não eram mais torturados, mas eu lembro que tinham quatro celas e um pátio ao ar livre. Uma cosia genial, que eu adoro lembrar é que tinha um papagaio. Eles cozinhavam, não conviviam com policiais, com guardas, ficavam sozinhos. E tinha um papagaio, isso era genial, eles treinaram o papagaio a assobiar a Internacional. Então, quando tinha as revistas dos militares no presídio, o papagaio começava a assobiar a Internacional, tã rã... Gente, era o máximo. (RISOS) Era uma vingança. E eles ficavam irratadíssimos com isso. A gente morria de rir. Tinha uma coisa do humor, uma força de conviver com essa história toda que era fantástica. Eu falei da humilhação, porque a gente entrava no presídio e eu lembro que a gente usava aqueles vestidos meio hippies, casinha de abelha, até o pé, trancinhas, aquelas coisas. E aí a gente levou uma vez um bolo de aniversário, não me lembro se era aniversário do pai dela ou dela, não me lembro. Então a gente entrou com o bolo, eu ela e a outra amiga nossa, e ela levou umas fotos, porque era bailarina do Teatro Municipal, tinha estreado, era belíssima bailarina. E quando a gente entrou, a polícia feminina revistava as mulheres, as meninas. E aí, aquela revista insuportável, mas tudo bem, era o de menos. Mas subia uma raiva, mas tudo bem. Mas esfaquearam o bolo. Porque acharam que devia ter uma arma dentro, um manifesto? Sei lá. Era ridículo. Era humilhante, era tão... Espatifaram o bolo pra ver se tinha alguma coisa dentro. Era assim. Aí vê tudo, vê o que tem o que não tem, etc,. E nós entramos com o bolo esfaqueado. Era uma coisa impressionante. Tudo bem, isso era o de menos. Eu me lembro nitidamente que eram quatro celas e eles se dividiram, entre eles, os presos, e ficavam nove em cada cela bem pequena, nos beliches, um banheiro só, que não tinha privada, era no chão. E tinha a cozinha, onde eles cozinhavam e era o refeitório deles. Eu lembro que eles se dividiram pela tendência política. Então, tinha a cela dos Maoístas, a cela do PC. Até dentro da prisão. Era muito engraçado. Eles tinham sua cela dividida. Todos eram amigos, tinham uma solidariedade absurda. Tinha a última cela que era dos mais “ripongas”, desses assim Topoc, Toc, mão armada e tal. Era incrível que na cela do pai dela tinha um cara que era do PC, tinha um maioísta e tinha um outro cara, todos muito engraçados, simpáticos e tal. Todos homens, não tinha mulheres e tinha uns jovens, isso era impressionante pra mim, porque eu tinha uns 18, eles deviam ter uns 26, 27 anos, e estavam presos desde os 18, 19 anos. Tinham passado pela tortura. Eram aqueles que foram de mão armada, seqüestro a banco, toda aquela fase anterior a nós. Estavam lá há anos e ninguém sabia, ou sabia, mas estavam. ali supertorturados, mas ali ninguém mexia mais. Eu lembro que essa minha amiga namorava com um lá, de 15 em 15 dias. Depois, olha só, quando ele saiu, eles se casaram, o pai dela estava preso ainda. O casamento foi na casa do Cláudio Abramo, que eram amigos. E eles não tiraram a algema do pai dela. Foi um camburão na porta, pra ele poder assistir o casamento e não tiraram a algema nem dentro da casa. Foi ridículo. Eles se casaram e claro que não deu certo. Hoje em dia a gente brinca muito: “imagina se ia dar certo”. Hoje em dia a gente brinca. Depois ainda namorei um deles quando saiu da prisão. Viraram jornalistas, tiveram vida nova quando foram soltos. Então, hoje devem estar lá com 50 e tantos, 60. Mas foi muito legal saber que isso aconteceu. Essa fase da minha vida, a fase mais engraçada, foi um grupo de estudos, porque a gente ia pra estudos. O pai dela dentro da prisão fazia orientação política. Então a gente lia autores russos, de esquerda e tal. E meu pai como historiador, de fora, fazia a parte histórica desse grupo de estudos. Foi muito fascinante de poder

fazer esse bem pra aquelas pessoas que estavam presas, levar notícias de fora. Eles tinham televisão, mas olhavam pra gente, esses rapazes de 26, eles olhavam pra gente: “nossa, essa roupa..” Eles estavam fora do mundo há anos. E eram jovens que nem a gente. Isso foi muito marcante. É muito legal saber que depois foram soltos e tiveram suas vidas. É muito legal saber que a gente pode dar alguma alegria e ajuda nesse momento. Eu fugi um pouco. Mas o cotidiano de turma, era uma turma enorme, era uma delícia. Eram muitas festas, na época do colegial, e da faculdade. Era muita festa, muito rock and roll mesmo. O samba, a gente respeitava porque eram cantores nacionais, mas era muita festa de casas imensas vazias. Era muito comum isso, cada um levava uma coisa. Tinha muita festa porque não era tão caro. A gente podia sair de casa mais fácil. Podia pagar seu aluguel, tinha carteira registrada. Hoje em dia, eu tenho uma filha de 21 anos e é difícil ela sair, porque pra ter seu emprego e sustentar o valor do aluguel é muito mais complicado. Não que a vida fosse fácil, mas tinha outras coisas que você conseguia ser independente. E a gente ia em bando, né. Tinha muita festa. Eu dançava muito, porque sempre adorei dançar. No colegial voltei a dançar, depois que eu parei. Mas na faculdade era festa direto, muito show. Era muito respeitada a carteira de estudante, como deveria ser. Então a gente ia assistir desde altos grupos de jazz que vinham aqui, até os mais novos, tudo de bom a gente ia assistir. A gente sabia tudo de música instrumental, conseguia pagar. Tinha os festivais no Anhembi, violinista eletrônico, Milton Nascimento... Aquele bando de show pelos presos, a favor do..., pelos direitos... Juntava aquela nata que era maravilhoso. Aquela cultura muito próxima, os quadrinhos, muita coisa acontecendo e a gente tinha acesso. Culturalmente e diversão não posso reclamar. E eu gosto de sair, encontrar os amigos. Então tive muita coisa de convivência nessa época, assim cultural.

P1 – Nesse meio tempo você casou. Conta um pouco como foi, como foi o dia do casamento.

R – Ah, eu vou te contar. Eu não casei no papel. A primeira vez que eu me juntei - naquela época era moda, mas não só porque era moda, mas era muito legal, ir contra a instituição do casamento, esse era o barato. E eu não queria casar no papel, não tinha o menor interesse em casar no papel. O primeiro marido que eu tive, tive dois, eu conheci quando entrei na faculdade, com 18 anos, e comecei a trabalhar na Vasp. Foi por isso que eu consegui sair de casa com 18 anos, ir morar com amigos e tal, porque eu tinha carteira registrada. Fiquei uns quatro anos trabalhando na Vasp, na reserva de passagem. Eu conheci o Betão na Vasp, naquela época não tinha computador assim. Ele era do CPD. A gente se juntou, né, as almofadas hippies e fomos morar juntos e ficamos quatro anos juntos, mas não tivemos filhos. Foi muito legal. Naquela época, eu tinha 20 anos e todo final de semana a gente ia acampar, aquela coisa de acampamento de turma, né? Ganhei novos amigos por causa dele também e ganhei muito amigos na Vasp. Porque quando eu entrei, foi uma grande leva de jovens que eles contrataram, universitários. Então tinha muita festa, era a época das danceterias, da Aquarius, festa de dançar até quatro, cinco horas da manhã. Uma delícia! E eu tinha minha casa, meu cachorrinho, meu marido. Era uma delícia, muito legal, muito autônoma.

P1 – E os pais?

R – Olha é assim: quando pra mim, nenhum problema. Teve uma coisa na minha vida que marcou muito que foi meus pais se separarem quando eu tinha 16 anos. E foi uma separação muito dura. Eu admiro que nunca na minha vida eu vi uma discussão dos dois, nunca. Eles foram assim de uma simplicidade absurda. O carinho que tem na minha família é muito grande, o jeito de lidar com isso. E foi difícil de aceitar que aquela família tão feliz fosse separar. Minha mãe sofreu muito e eu fiquei com ela, meu irmão também. Eles foram incríveis, porque perguntaram com quem a gente queria morar, eu e meu irmão, achei de uma coragem incrível. Eu e meu irmão conversamos, tínhamos 16 e 18 anos, e decidimos ficar com ela, porque meu pai dava aula, era professor, tinha muitos amigos e ela tinha menos amigos. Embora os amigos dele fossem os dela. Vivia sempre de gente na minha casa, tocando violão, bossa nova, aquela coisa toda. Daí, ela sofreu muito. E a gente resolveu ficar com ela. Mas a gente já avisou que quando fizéssemos 18 anos a gente ia ter nossa vida. Foi muito engraçada essa conversa. Eu lembro até hoje. Então, estava muito claro que um dia nós teríamos nossa casa e tal. Meu irmão foi pra Europa, morar lá e jogar futebol e eu fiquei por aqui. Então, com 18, meu irmão estava fora e eu peguei minhas coisas: “estou indo embora morar com uns amigos”. Então, essa fase de morar junto, eu fui primeiro morar com três pessoas. Era uma república de amigos e tal. Depois de um ano e meio, quase dois anos é que eu fui morar com o Betão. A gente tinha muita liberdade dos meus pais, dos dois, muita liberdade. Hoje eu fico pensando, como mãe, numa outra época de violência, como eles eram corajosos. Porque tinha essa repressão, esse medo da polícia e da repressão e a gente saía de casa desde os 14, 15 anos, queria

sair, voltar tarde. Mas eles eram presentes. Mesmo quando meu pai se separou da minha mãe, todo dia falava com meu pai. E a gente tinha uma ligação, até ele morrer a gente ficou muito junto. Eu tinha uma identificação com meu pai muito grande. Então, quando eu fui morar com os amigos, meu pai me deu um presente: um liquidificador, pra dar uma força e tal. Com a minha mãe foi mais difícil, mas na hora que eu fui morar junto com alguém, não tinha nenhuma grande surpresa. Eles tinham uma cabeça muito aberta e não foi nenhum problema. Eu não tive filhos. Voltei pra acabar a faculdade, grávida. Não, voltava, trancava. Aí me separei. Fiquei um ano e meio assim namorando só e tal. Daí que eu reencontrei meu segundo marido, pai da minha família. A gente ficou dezesseis anos juntos. Ele era do Equipe, mas a gente não se suportava. Ele era Libelu e os Libelu se achavam, e eu não era de nenhuma tendência assim. Era de esquerda, depois virei petista, mas não participava diretamente. Então ele era muito metido, eu achava. Enfim, a gente se reencontrou depois de anos. Ele se casou com não sei quem. A gente se reencontrou na casa de uma amiga. Ele era produtor de cinema, foi junto com minha amiga, a gente foi dar um passeio e começou a namorar. Foi interessante porque eu achava que “imagina se eu vou namorar esse cara que fala alto, gosta do James Bond...”, sabe assim. E a gente ficou 16 anos juntos. Tivemos uma filha. Nos separamos por um ano e voltamos ainda. Ele é judeu e eu não sou. Foi uma coisa muito difícil, porque sempre tive amigos judeus, mas o cara com quem você namora é diferente, Não era ortodoxo, não tinha nenhum problema em não casar no papel, nada disso, e aí eu ainda voltei grávida, depois de uns dois anos e tanto, voltei grávida da Carolina, pra última disciplina da faculdade. Eu, da faculdade, conheço várias gerações. A última turma era uma surfistada. O momento era outro e eu grávida. Mas como eu adorei ficar grávida, estava dançando, voltei a dançar, jogava vôlei, então tinha assim uma... Estudar pra mim era muito gostoso. Então aí estava grávida, acabei a faculdade, me formei e foi o tempo certo pra ter a Carolina. Tive a Cacá, não tive outro filho, porque a gente se separou. Ela está com 21, hoje.

P1 – Como foi o impacto de ser mãe?

R – Bastante. Primeiro a gente quis ter. Isso é fundamental, porque é muito difícil ter filho, muda a vida. Então, a gente quis muito ter o filho. A gente ficou um tempo junto sem ter filho e acho que foi bárbaro. Namorando e nada de filhos, por enquanto. Mas quando a gente quis ter, engravidei. Eu adorei ficar grávida. É muito gostoso, muito saudável, embora seja chato: dói aqui, dá sono, dá fome, usar meia, usar..., é um inferno, né, nessa parte. Mas eu tinha um orgulho de ter um bebê ali dentro e a gente queira muito, então era muito bem vindo. E eu fazia tudo, não tinha porque não fazer. Tive uma gravidez saudável e sempre controlando pra não engordar, por causa da dança. Foi muito legal ficar grávida. E a gente não quis saber o sexo. Queira surpresa mesmo. Tinha nome pra menino e pra menina. Adorei ter uma menina. Eu acho que na hora do parto, eu tinha tudo pra ser normal, mas foi cesárea. Pra mim isso não tinha o menor problema. Se ela estivesse bem e eu bem, tudo certo. E na hora que nasce, eu nunca vi uma emoção tão grande como essa. É incrível, é incrível. Eu já era pedagoga, mas nessa hora eu queria jogar Piaget pela janela. Porque na hora que vem de três em três horas mamar, você não quer saber. Ele não soube, Piaget... (RISOS) É muito difícil. Mas foi muito bem vinda. Foi difícil, assim, como eu sou uma pessoa que gosto de sair, fazer curso à noite, trabalhar, muitas coisas e tal, o fato de ficar mais preso, pra mim foi mais difícil. Mas a gente fez um esquema, a gente teve uma empregada pra dormir. Foi “vamos assumir essa de ter uma pessoa em casa?” “Vamos”. Pra dormir e pra poder fazer, não ficar pondo a culpa de que por causa de um bebê, você não vai fazer suas coisas. Eu adorava sair com ela pra tomar sol, cansava, tem uma hora que cansa. Eu fiquei cinco meses de licença gravidez, férias, não sei o quê, foi o tempo certo. Aí eu fui trabalhar, deixei num berçário. Super orgulho de andar com uma criança na mão, quanto mais cresce mais lindo é. Com três anos é maravilhoso. Eu sou especialista em educação infantil. Eu sempre gostei de trabalhar com os pequenininhos. Mas o filho é diferente de quatro horas por dia. Não é fácil. Não acho que ser mãe é um paraíso. Não é mesmo. Mas é muito interessante, muito, muito. Foi muito legal. A gente se separou por um ano quando ela tinha cinco anos. Depois voltamos e depois quando nos separamos ela tinha 14, adolescente, menina, não tinha irmão. Isso foi muito difícil, porque ela não tem uma cumplicidade com um irmão. Mas é um pai muito presente. Não posso falar nada disso. Mas ser mãe é muito difícil, sendo separada. Isso acho que é o mais difícil de tudo. Mais difícil do que ser mãe é a mulher que é cobrada, ser bonitinha, estar em forma, trabalhar, ser competente. Quando ele está com febre, você não sabe o que faz, se vai trabalhar ou se perde o emprego. Isso é o mais difícil. É injusto. A sociedade é injusta. Essa coisa do homem de dividir, tem coisas que divide, tem coisa que não. Isso acho que é o mais difícil. Saber, você nunca vai saber, né? Mas é muito legal. Hoje ela está com 21. É tão bacana pra mim, ver... A gente mora eu e ela, e o pai mora no Rio. É muito legal a gente conversar. Ela trabalha, estuda, tem a vida dela. Está pensando em sair de casa, acho bárbaro, tem mais que sair. É a vida dela. É um desafio constante, constante. Muito cansativo quando é pequeno. É difícil mas é muito legal.

P1 – Vamos falar um pouco da tua vida profissional. Você disse que trabalhava na Vasp. Depois não contou mais nada. Como foi?

R – Eu trabalhava na Vasp porque precisava de trabalho. Era seis horas e tinha um plantão de fim de semana.

P2 – Foi teu primeiro emprego?

R – Não. Eu dava aula particular de inglês pra pagar o balé. Foi árduo, mas consegui. Aí passei pra Pink & Blue que era uma rede de escolas pra criança. Fiquei pouquíssimo lá, briguei por causa da pedagogia e saí. Aí fui pra Varig, fiquei lá seis meses no balcão. Hippie como eu era, com 18 anos, cabelo crespo até aqui, tinha que me maquiar, prender o cabelo, de uniforme. Eu detestava aquilo. Mas foi muito legal porque eu fiz uma turma ali. Como você tinha uma folga diferente do mundo, porque você trabalhava domingo, sábado, uma loucura, a gente tinha uma turma e saía pra dançar naquele dia de folga que não era todo mundo que tinha. Eu fiquei seis meses, depois arranjei na Vasp. Fiquei quatro anos lá e dava pra conciliar. O que eu fazia? Ficava seis horas de manhã na Vasp, pegava um ônibus e ia fazer estágio na Escola Viva, que era a Arte e Expressão, como chamava na época e fazia estágio. Não recebia, porque naquela época não se pagava por estágio. E à noite ia pra faculdade, pra USP. Foi um bom tempo assim. Depois eu trabalhei na Escola Viva. Quando eu saí da Vasp, eu acho que já fui direto pra primeira escola que eu dei aula, pra Móbile, uma escola em Moema. Peguei primeiro grau. Antes eu já tinha dado aula pra criança pequena na Arte e Expressão, que virou Escola viva. E daí que eu fui parar na Móbile, primeira, segunda série, minha primeira experiência com ensino fundamental, mas não tinha paixão por alfabetização. Nunca foi paixão. Eram os pequenininhos. Fiquei cinco anos na Móbile, tive a Cacá, a gente mudou pra Pinheiros e eu passei pra Caravelas. Saí da Móbile, foi um grande aprendizado e passei pras escolas do grupo que era uma outra coisa, construtivismo, tudo isso. Sempre paralelo, eu fazia curso de dança, curso de arte, curso de desenho, museu, não sei o quê. Arte pra mim foi sempre presente. Por eu não ter feito faculdade de dança me fez com que eu fosse atrás da arte o tempo inteiro. E foi muito bom, porque eu não consegui trabalhar sem a arte, o que é ótimo. E aí eu fui pra Caravelas, depois fui pra Escola Viva, de novo, porque a gente mudou de bairro. Aí fui pra Escola da Vila, lá foi muito decisivo. A Cacá ia comigo, porque eu tinha bolsa. Primeiro pra Escola Viva e depois pra Escola da Vila. A gente veio morar pro Butantã. E na Vila foi engraçado, porque eu fiquei só um ano dando aula e ela ficou lá estudando até o ginásio completo. Mas foi muito decisivo pra aprender, porque a Escola da Vila era pioneira de trazer

e era lá que se experimentavam as coisas. Eu aprendi muito. Foi difícil, mas muito. Grande parte da minha concepção de educação foi da Escola da Vila e do Instituto Avisa Lá. Daí eu saí da Escola da Vila porque fui trabalhar na Secretaria da Cultura, nas Casas de Cultura. Foi um marco essa época, porque meu pai morreu nessa época e eu estava sem trabalho não me lembro bem porquê. Aí eu fui trabalhar na Secretaria Municipal da Cultura, na época da Erundina. Foi na época da Marilena Chauí. Ali eu descobri, porque entrei pra ser curadora de uma casa de cultura em Santo Amaro. Ali levei um baile: que é entidade? que é lidar com movimento? Eu não sabia nada direito. O que é militante? Eu era petista, meu pai também. Antes, a gente tinha fundado o Comitê do Florestan. Tinha uma convivência muito grande com intelectual, esquerda. A família do Florestan sempre foram amigos, desde pequena, eu convivia. Tinha o Otaviano Junior, sociólogo. Tinha um monte de gente legal ali. Meu pai tinha morrido. Uns três meses depois, eu entrei na Secretaria de Cultura. Então, ali eu descobri como é fascinante trabalhar com periferia, com projeto de terceiro setor – que eu não sabia ainda o que era – o que é entidade, o que é poder público. Como eu nunca tinha trabalhado em escola pública, não tinha vontade, engraçado. Mas adorei trabalhar com a cultura, lógico. Ali eu voltei a fazer dança, estava feliz da vida e era mãe. Fazia dança por prazer, não era mais profissional, lógico. Eu cheguei num lugar, fiquei um ano em Santo Amaro, aprendi muito, apanhei muito. Foi muito difícil, mas gostei. Ganhei amigos ali, pessoas maravilhosas, militantes e não militantes, mas que mexiam com a cultura. Aí eu pensei: “eu adoro isso, adoro”. Depois fui pro gabinete ficar com o Paulo Gianini, que era um cara de esquerda, muito doce, muito legal. Fiquei um ano em Santo Amaro e depois mais um ano e meio até o final da gestão, porque eu já entrei mais no meio, com ele. Lá foi um aprendizado muito grande. Porque a gente estava no gabinete, a Marilena Chauí era uma pessoa que tinha uma aproximação muito grande com os funcionários. A gente fala: “é uma louca e tal”. Mas ela é admirável. Aprendi muito com ela. Ela errou muito na gestão dela. Ela sabe e fala isso. Mas ela é admirável. Ela falava: “nós vamos colocar quatro lonas de circo nessa cidade, aqui, aqui e aqui. Quero isso pra semana que vem, porque ...” Ela conhecia. Ela ia pro Ermelino Matarazo, pra Campo Limpo em pessoa, resolver as coisas. Ela bancava reuniões com as entidades, o que não é fácil. O que é aquilo? Que movimento? E ela não era uma intelectual pedante, muito pelo contrário. E muito inteligente, muito projeto na cabeça, muito acessível. Então ali eu tive uma aula de trabalhar com política publica. E o PT naquela época tinha uma política cultural forte. Era pensada e trabalhada. Tem livro, né? Ele existia, tinha uma política cultural do partido, muito clara. Isso deu muita chance das coisas se realizarem, porque a gente tinha apoio político e teórico. Isso foi muito legal. Saber onde fazer ação cultural. Saber onde não existe teatro o que se pode fazer na rua. Era essa a administração. A gente programava shows na cidade inteira. E não era barato, era um sacrifício. Foi a gestão que mais se comprou livros pras bibliotecas. Eu lembro quando chegavam aquelas caixas, tudo atualizado. Ali aprendi muito. Aprendi o que é parceria. Adorei, adoro trabalhar com parceria, periferia. O que é pessoal e poder público. Conheci o trabalho da Erundina. O que foi essa primeira prefeitura do PT em São Paulo, uma mulher, nordestina, no Brasil. Isso acho que foi muito importante pra mim. Pra saber, pra admirar, pra saber porque não gostava de algumas pessoas. Pra entender politicamente, entender o PT internamente. E aí a eu saí quando o Maluf ganhou, o Suplicy perdeu. Eles tentaram cooptar algumas pessoas. Eu lembro que me ofereceram pra ficar na Casa de Cultura do Butantã. Eu falei: “Não. Aqui não fico”. Eu tinha cargo de confiança, não era concursada. Saí. Fiquei dois anos desempregada. Foi uma época muito difícil, porque meu marido também estava desempregado. Foi uma coisa árdua. Aí fazia bicos, trabalhei até com produção, que eu não gosto. Dei aula de inglês, mas bicos. Foi uma fase muito difícil, bem complicada. Isso me fez pensar assim: “eu gosto de cultura, de projetos interligados, de educação e cultura, arte” Ai me deu vontade de ter alguma coisa minha, meu. Aí que eu fiz a tese, porque meu pai sempre falava, mas eu não queria fazer tese, não tinha intenção de ser acadêmica. Falava, falava e falava, mas eu não tinha vontade. Mas aí pensei: “é um projeto meu. Vou fazer”. Um marco muito grande porque eu fiz e fiz justamente sobre a escola de bailado, dança, que é justamente a escola de balé que tem no Viaduto do Chá, dentro do Viaduto. Existe há 64 anos. Fiz doutorado direto, vou contar o drama. E aí eu escolhi essa escola porque eu queria saber como era a formação de dança em São Paulo. Mas quando eu comecei a pesquisar tantas coisas que tinha em formação de dança, aí que me dei conta da Escola de Bailado, que eu já tinha contato por causa da Secretaria de Cultura. Aí eu fiquei pensando que era a única escola profissional de oito a dezoito anos, que forma professores, bailarinos profissionais, de dança, da prefeitura, de graça. Eu me lembro que eu via filas na porta pros concursos. Sempre tinha filas porque era a única de graça. E a gestão na época da Marilena Chauí, quem ficou de diretor foi o Acássio Valim, que hoje é um grande amigo meu. Um doce de pessoa. Ele entrou pra ser diretor daquela escola e foi bombardeado de todos os jeitos, porque ele não era professor de dança clássica, nunca foi. Ela era de dança criativa. Corajosamente ele entrou, na época. E bancou crítica até dizer chega. Porque desde a formalidade do balé clássico; das mães das bailarinas; de políticos, porque era uma gestão do PT; de professores, funcionários públicos horrorosos que estavam ali encostados – embora tivesse gente legal ali também. E a Marilena como secretária, ela e a Erundina deram carta branca pra ele. E deram um apoio... Ele não era petista. Mas tinha também – ele não era petista – mas tinha um apoio de política pública, quais os focos que se queria naquela época. Então, agente sabia no que trabalhava. Quando eu fui a tese e vi isso, disse: “gente, é óbvio. Por que não fazer dessa escola?” Era uma escola pública que era muito rigorosa. Tem muitas mágoas dos bailarinos. Uma escola rigorosa, muita gente famosa estudou lá. E ao mesmo tempo, ninguém conhece. O contraditório. Então, resolvi fazer como pano de fundo a política pública. Me apaixonei pelo assunto. E na tese foi engraçado, porque eu fui parar na história e vi como Freud explica. (RISOS) E o legal é perceber, ver como isso não incomoda e perceber o seguinte: que contribuições tenho do meu pai e da minha mãe e que ficaram em mim. Por que não aproveitar isso? Eu tentei na pedagogia, na ECA, não, na ECA não pude tentar, na Unicamp não pude viajar porque minha filha já tinha uns dez anos de idade, estava casada, não queria viajar. Enfim, fiz umas três vezes. Aí meu pai tinha um amigo mais novo que ele, Carlos Guilherme Mota. Eu liguei pra ele, chamava de tio, quando pequena. Liguei pra ele e disse: “olha, o que você acha? Na ECA tem gente muito boa, mas eu não queria fazer ligado ao palco, queria formação”. Aí ele falou – eu não tinha essa clareza ainda, mudou o foco – ele falou: “faz o seguinte: vai na história e faz um curso como aluna especial com o Arnaldo Contier. Ele é músico erudito e é historiador”. “Tá bom”. Fui e fiz um curso que era pra pós, com 15 alunos. Tinha jornalista, tinha maestro, saxofonista, tinha eu que era com dança... 15 alunos. Era todo rigoroso. Foi a coisa mais linda, mais incrível que eu fiz em toda minha vida. Ele fez em um semestre... Ele fazia análise, a gente fez seminário e tudo, análise do século XIX pro XX. Então, finalmente, pra entrar na pós, eu pedi uma sugestão pro Carlos Mota e ele sugeriu Arnaldo Contier, que era músico erudito e historiador. Eu fui fazer como aluna especial na história. Eu odiava história. É engraçado. Talvez pra ser rebelde, não fazer o que o pai fazia o a mãe, sei lá. E fui. Foi fantástico. Uma das coisas mais lindas que eu já fiz na minha vida. Aprendi muito. Era um curso de pós, pra 15 pessoas. Foi um super desafio pra mim, super. Tinha feito pedagogia na graduação e voltei depois de muitos anos, não foi em seguida. E tinha uma variedade de pessoas geniais: jornalista, saxofonista, pianista, eu pedagoga, ligada à dança e alguns outros. Ali ele fez uma análise da passagem do século XIX pro XX a partir da música. E esse cara, ele sabe sobre dança. Pra mim foi um presente. Eu fiquei fascinada, porque como ele fez um curso que a gente fez um outro seminário também, pra você ver como é rigoroso. Como é fantástico você criar e não ser aquela coisa linear. Meu pai como historiador, eu lembro que ele falava assim: “você não precisa ver a linha do tempo linearmente - como ele falava. Existem divisores de águas”. Nunca me esqueço disso. E quando eu me dei conta desse curso, disse: “nossa olha que fantástico esse cara está fazendo. História, arte, música e dança”. Então saí dali com muita vontade de fazer a pós com ele, mas não consegui. Foram 32 pessoas pra uma vaga. Foram oito horas esperando pra fazer a entrevista. Foi insano. Eu ficava pensando o que estava fazendo ali. Mas fui pra entrevista e ele me falou coisas do projeto fantástica. Não peguei a vaga dele. Quem pegou foi um cara que ficou super amigo meu, sobre futebol. Então, o Arnaldo tem essa fama de ser rigoroso, mas ele tem uma abertura intelectual que é fantástico. Bom, não passei com Lee. Estava arrasada. Cheguei em casa e falei: “chega, não vou mais fazer essa pós”. O Carlos: “De jeito nenhum. Você tem uma coisa diferente que é dança”. Não tinha. Faculdade era só em 85, na Unicamp. Então, não tinha onde fazer pós. Era muito difícil isso. Ele falou: “é o seguinte: tem um orientando meu que está defendendo logo mais a tese. Você presta de novo o exame e se passar pode apresentar o projeto pra minha vaga”. Eu não estava agüentando mais. Mas fiz de novo. E era língua primeiro. Na História da USP, era língua primeiro. Fiz de novo de inglês e passei. Passei pra pegar a vaga com ele. Fiz tudo direitinho pro mestrado e tal, mas aí me separei e me atrasei pra qualificação. Fui ficando muito aflita. E tem a ver eu parar aqui no Museu da Pessoa, porque como eu escolhi a escola de Bailado, dança, e aqui no Brasil não tinha registro na época, eu fui obrigada a entrevistar as pessoas. Eu não sabia, não gostava, Aprendi alguma coisa na história e fui fazer. Fui fazer as entrevistas, mas a dança tem uma coisa muito triste no passado dela, hoje não é assim, mas no passado os profissionais eram muito ressentidos, porque eram pouco estimulados. Muitos não queriam falar: “olha eu sofri muito, não fui reconhecido”. Estava tudo engavetado: fotos, não se falava. Não queriam contar, tinham muita mágoa. Como eu estava na História, fui orientada a fazer a história da dança em São Paulo. Foi bárbaro, uma pesquisa fantástica. E que eu amava. Quando eu entrei na pós, eu voltei a dar aula. Teve esse período desempregada, fazendo bico, não sei o quê. Quando eu comecei a pós, estava empregada. Estava na Ebegi dando aula pra criança pequena, de novo, que eu adoro, de três anos. Fiquei lá um ano e meio. Ao mesmo tempo era pós, que eu tinha um prazer muito grande em ir pra aula, porque eu adorava estar fazendo aqueles cursos, tinha muita dificuldade, tive que ler muita coisa. Super disciplinada, adorava fazer aquela pesquisa. Ao mesmo tempo estava dando aula na Ebegi e ao mesmo tempo, uma amiga me indicou, foi uma colega da Escola da Vila, pra eu ir trabalhar no ______ , que é o ex Creche Plan, pra fazer projetos na periferia. Foi meu grande reencontro e meu começo de terceiro setor foi ali. Como eram projetos temporários, até hoje eu estou lá, 11 anos no Avisa Lá, como formadora. Eu não queria trabalhar com adultos. Eu comecei a trabalhar com professor leigo, não tinha coisa mais fantástica do que trabalhar com professor leigo e com adulto. Eu adorei aprender a ser formadora. Aprendi no Avisa lá. Tinha uma supervisão: Telma ____, Regina Scarpa, sempre tive incentivo e muita supervisão. Foi um grande aprendizado. Estou até hoje. Tenho projetos de dois anos e tal. Lá eu sou formadora, na zona leste atualmente, mas já fui pra zona sul muitas vezes, em creches, escolas da prefeitura. Hoje em dia tem mais formador formado do que leigos. Mas ainda mexe com leigos. É fantástico. Muito difícil mas fantástico, muito legal. Nessa época, eu fazendo a tese, enlouquece um pouco tudo isso. Eu nem queria pegar a bolsa, porque...

P1 – E mãe...

R – E mãe. Nem me fale. Mãe. Até então estava casada. Ela tinha oito. Eu deixei na Escola da Vila, não levei pra Ebegi nessa época. Acho que estava sabendo que não ia ficar que era outro rumo. Fiz o mais difícil, assisti as aulas, tudo direitinho. Quando me separei ela tinha 14. E foi muito difícil a separação pra mim, foi um sofrimento muito grande. Tentei ficar bem por causa dela, lúcida. Tenho uma imagem assim, não é que eu tenho essa imagem, mas foi muito difícil quando minha mãe se separou. Ela perdeu o rumo e pra mim, naquela época com 16 anos, foi muito difícil. Então, não queria pirar a Carolina por um problema meu. Era o pai dela, então tinha um cuidado muito grande de não falar mal do pai. Sabe? Aquilo que a gente tem quando se separa. Então, foi muito difícil, porque fisicamente eu não dormia, não comia, mas estava lúcida. Fui tratar com homeopatia, terapia, com amigos. Foi bem difícil. E ela como adolescente, como qualquer adolescente vira um louco, eu também fui, foi bem difícil. E a tese foi se atropelando, não tinha condições de continuar. Eu chego um dia pro Carlos e digo: “olha, vou desistir. Não estou agüentando mais. Tenho que dar conta dessa vida”. Ele falou: “não. Você fez um levantamento, tem um material aí que não existe. Não vai largar de jeito nenhum. Vai fazer exame pra doutorado, direto”. Na hora eu disse: “eu não quero isso”. “Você vai fazer”. Eu fiz, exame de língua e aí que me dei conta que tinha só um ano pra acabar tudo. Foi uma loucura. Estava separada, morando com a Carolina. Ainda estava muito difícil. O pai foi morar no Rio e pra ela foi uma coisa muito difícil e delicada, porque ela sempre se deu muito bem com ele, se falam todos os dias. Fiquei muito dividida nessa fase muito difícil Eu estava como consultora, comecei a ser consultora. Saí da Ebegi, com carteira registrada e passei a ter uma vida de consultora. Eu não sabia o que era isso. Mas é muito legal. Você faz projetos diferenciados, uma gama de diversidade de trabalho que eu não conhecia, de dar consultoria em vários lugares. E na Creche Plan eu aprendia muito. Era sempre assim atualizando e tal. A tese fui fazendo. Tive que fazer. Foi uma loucura, mas fiz. A defesa, foi tão interessante, parece que baixou um anjo ali e foi uma delícia. Foi difícil porque tinha duas professoras de dança na mesa e praticamente me orientando, o Carlos me falava isso: “eu não sei nada de dança. Procure alguém..” E a Cássia Navas, que era professora de dança no Brasil, ela me ajudou muito, mas teve nenê prematuro. Então, na minha mesa ia ter quatro historiadores e uma professora de dança, que era a Marília Andrade, filha do Oswald de Andrade. Ela era professora na Unicamp, bailarina. Foi um desafio. “E agora?” Me senti como um peixe fora d´água, porque eu era pedagoga, na história e fazendo sobre dança. E agora? Como vou mostrar que é importante a dança como estudo? E eu trabalhando como consultora. E a defesa foi linda. Eu conversando com o Carlos, falei: “olha, como a Marília é da Unicamp e é convidada, eu quero que ela fale primeiro”. Porque ela ia falar sobre dança, mostrar que era importante. Como eu estava na História, tinha muitas críticas ali dentro também. Não pessoais, mas do trabalho. Era um desafio. Foi uma fala linda da Marília. Ela falou pela dança, do trabalho, foi entrando... Foi tão emocionante, porque ela é uma figura histórica da dança. Foi linda a fala dela. A banca era muito simpática. Eu faço questão de dizer porque está aqui no Museu da Pessoa, a Marilena _____, que foi minha orientadora, maravilhosa; o Carlos, claro. Foi o Francisco Lambert, que foi no lugar da Maria Lígia; foi a Marília de Andrade e foi o Júlio que é maravilhoso. Um cara que é da história e que é especializado em Borges, que fala em arte, que fez uma fala linda. Foi um presente. Não tem a inquisição, foram fantásticos ali. Teve um bom humor ali. O caso é muito informal, né?

P1 – Quando foi?

R – Faz três anos. Em novembro de 2004. Pra mim foi: “nossa, eu consegui”. Quase não consigo. E era uma coisa minha. Ali eu vi como gosto de política pública, como não posso ficar sem a dança, gosto de gafieira, moderna, escolhia. Cada época, fazia uma. Acabei de fazer gafieira agora. Saí na Vai Vai a cinco anos. Isso pra mim foi uma coisa que marcou muito. Eu comecei a...É engraçado, acho que pela defesa da tese, a pesquisa da dança, eu aprendi a trabalhar com o terceiro setor. Eu adorei essa articulação com a parceria. Isso eu gosto muito, discutir o projeto, analisar o projeto. Quando eu estava falando da tese, veio um projeto que acho que foi um presente: o Acássio – a gente ficou amigo. Ele foi praticamente o personagem da minha tese, porque eu peguei a gestão dele pra analisar – ele me indicou na época pra ser da comissão de dança na Vitae. E eu fiquei lá até fechar a Vitae, na dança. Aquilo pra mim foi “agora é a dança, é cultura, é terceiro setor, é projeto”. Sempre em três, na Fundação Vitae tinha acesso projetos do Brasil todo. Com pessoas maravilhosas junto comigo. Foi abrindo esse campo que eu não sabia que gostava tanto, analisar projetos. Na _______, eu apresentei projetos suplente do Barbosa. Conhecei especialista, o Bloch que é um arquiteto maravilhoso. Enfim, essa diversidade cultural, eu acho que é isso. Continuei a trabalhar com consultoria, defendi a tese. Estava no Avisa Lá, só. Depois foram aparecendo outros convites, depois eu fui pra Unesco. Trabalhei na Unesco. Fui indicada por um amigo, mas foi uma seleção. Na Unesco foi difícil aprender as coisas, as documentações. Fui encarregada do Projeto Escola da Família, um projeto enorme de cooperação como eles chamam com uma Organização Internacional. Ali aprendi muita coisa. Foi genial. Difícil, mas foi ótimo. Porque eu aprendi a trabalhar com uma organização internacional. Ela trabalha com jovens, foca pesquisa, violência. Adorei. Na época que eu trabalhei na Secretaria da Educação foi muito difícil. O poder público é muito difícil. Aprendi um monte de coisas. Era dança, era cultura, arte, jovens, violência, Fundeb, uma diversidade. E eu adoro essa diversidade. Continuava com a Vitae, uma vez sim outra não, dando parecer e tinha um grupo de dança, de estudo, desde a pós, que até hoje tenho contato, uma consultoria aqui outra ali. E eu estava querendo sair da Unesco porque o horário era uma loucura. Trabalhava todo final de semana, estava exausta. Muito cansada. E o representante da Unesco no Brasil estava se aposentando. Começou a dar uma certa insegurança se o escritório ia ficar aberto ou não, porque os escritórios ficam abertos ou não em função dos projetos que eles acompanham. Eu aprendi muito naquela gestão, muito. Bem interessante as coisas que eu acompanhei. Eu me reunia muito com os oficiais de projetos de outros estados. Essa experiência de abrir espaços, como eles chamam, é linda. Carlos é da Escola da Família. Foi aí que eu conheci, quando me mandaram pra Recife pra conhecer o primeiro projeto Abrindo Espaços da Unesco, que era o principal e que tinha a ______ como coordenadora. Eu fui pra lá pra conhecer. Lá eles tinham as escolas e tinha quartéis abertos pra comunidade. Eu fiquei emocionadíssima, porque vi que era possível se trabalhar com quartel. Eu pedi pra visitar os quartéis. E tem um capitão da Polícia Militar lá – Sérgio, não me lembro o sobrenome agora – que trabalhava pelos direitos humanos, fazia pedagogia. É uma cosia linda. Eles abriam o quartel pra comunidade, pra dar aula de equitação, cuidar de cavalo, capoeira, dança. Aqueles jovens entrando dentro do quartel. Imagina que eu vi alguma vez isso na vida, desse jeito. A dança, a brincadeira, as crianças, a porta aberta. E aquilo ficou na minha cabeça. A gente tentou, sentou com o pessoal do quartel aqui do Bom Retiro em São Paulo, mas não deu tempo, porque estava mudando o Batalhão, aquela coisa de troca de cargo e não deu tempo. Então, fiquei muito insegura, separada, precisando do emprego. Vai que fecha! Então comecei a ficar já de olho, isso foi em 2005. Até que um dia a Sonia Longo, ela ainda é do Avisa Lá, ela me convidou a vir pro Museu pra coordenar projetos na formação. Eu aceitei e foi interessante, porque aí caiu minha ficha de onde eu vim parar: na história oral. Eu conhecia o Museu, inclusive vim em reunião pela Unesco, pela parceria. Estava vindo pra cá pra isso. Eu já conhecia, porque na primeira reunião da parceria do Avisa Lá, que é o projeto que eu coordeno aqui, eu estava na reunião. Só que eu não fiz nada pela Visalar nesse. Eu sabia quem era a Karen, a Rosali, de vista e tal, mas muito de orelhada, porque eu acompanhava esse projeto no Avisa Lá, sempre fiquei na Avisa Lá. Quando eu vim pra cá, que era na outra casa ainda, eu me senti muito em casa. Foi muito emocionante pra mim. Claro que a gente pensa: “se eu pudesse contava isso pro meu pai” (EMOCIONADA) E aí, eu me senti em casa. O ambiente era outro. Aprendi muita coisa nova. Eu tenho muita vontade de aprender coisas do estúdio, de imagem, movimento. Isso pra mim é muito legal estar perto dos meninos. Mas é pouco, não dá tempo ainda. O projeto que eu vim coordenar aqui é o Memória Local na Escola, que é uma parceria com a Votorantin e o Instituto. Porque a Votorantin é imensa e cada lugar é de um jeito. Adoro viajar, fazer reunião e saber porque a Votorantin é assim, como são as relações. Eles são ótimos parceiros. Pra mim estão sendo muito bons de trabalhar. Na Unesco conheci bons parceiros, lá você começa a perceber o que são bons parceiros. E aprendo muito com eles. Eles têm uma política cultural nova. Apesar de estar aqui desde exatamente primeiro de outubro de 2005, eu tenho estado sempre com esse projeto. E o principal parceiro é o Avisa lá. Então me senti muito em casa. É mais fácil. Porque eu sempre vesti, estou no Museu, estou aqui todo dia. Duas manhãs que eu não estou porque estou no Avisa lá que é lá como formadora. Eu acho que eu estou com a mão na massa como formadora e aqui eu coordeno formadores, embora seja ensino fundamental. Mas é um prazer muito grande trabalhar com história oral, aprender mais sobre história oral, porque eu aprendi muito pouco na época da tese. Fiz tudo errado. Mas que bom saber como é agora. Eu acho genial. Os projetos que tem, são lindos. É muito difícil, somos um instituto, pouca gente. Tem seus problemas? Tem. Mas eu aprendo muita coisa. É muito desafiador. Não é fácil lidar com parceiros do poder público, privado, esse triângulo. E temos um parceiro que é constante que é o Instituto Avisa Lá. Eu tenho que ter muito esse cuidado ético de que aqui eu sou Museu e na hora que eu estou com eles eu sou Museu, embora saiba muito bem o que eles fazem lá. Essa memória eu não tive, mas acho muito bom. Então, eu coordeno como Museu, entendo o que eles falam, me ajuda muito aqui. A Sônia conhece muito bem. E lá as reuniões são menores, menos horas, eu sou Avisa Lá. Esse exercício é muito difícil. Eu fico cansada. Cinco e meia da manhã tem que acordar e ir pra São Miguel, metrô, ônibus e tá-tá. Lá na periferia, que é muito legal. Tudo em loco, né. Mas eu saio de lá, venho pra cá e tenho que mudar um pouquinho, é muito próximo. É muito legal. Hoje eu tive um prazer, acho que é o fechamento, quando eu cheguei aqui, uns meses depois, acho que seis meses depois, a gente teve uma oficina com o Joe Lambert, Histórias Digitais, ele veio dar oficina, e eu por acaso consegui uma vaga, que eu não ia fazer. O que mexeu comigo essa oficina.. Mexer no computador e editar uma imagem... Eu sou muito leiga e quero aprender muito mais sobre isso. Contar uma história a partir de fotos pra alguém, isso pra mim eu pensei; “não é à toa que eu não gostava de samba”, saí na Vai Vai, já tinha saído na Rosas de Ouro e tal, pra mim é o período mais feliz da minha vida quando começa a escolher fantasia, é voltar à infância, se sentir personagem,

aquele povo junto com você, torcendo. É uma música que quatro mil cantam juntos. Aquela bateria do Bexiga tocando ao ar livre é uma coisa que entra em mim. Eu fiz dança afro muito tempo. É dança é música, é comunidade, é outra coisa, não é aquela dança do palco e é livre, qualquer um pode fazer. E essa turma que é preciosa, porque a Débora, amigona minha desde o Ebegi até hoje, nós ficamos amigas. É uma pessoa animada, a concentração é na casa dela, porque é do lado do sambódromo. É assim uma turma de educadores. Cada ano vem o namorado de um, um amigo, vizinho do outro, vai conhecendo gente, muitos homens e mulheres. A gente dá muita risada na hora de escolher fantasia, os equívocos. É lindo. Quando eu fiz essa história digital, eu decidi contar que hoje eu sou a mistura da felicidade e da alegria do nordeste que eu tenho é dos meus pais. Porque essa história do movimento, do esporte - adoro futebol, assistir futebol, paro pra ver um jogo de vôlei – vendo meu pai. Ele jogava futebol, um super esportista e um intelectual ao mesmo tempo. E com minha mãe, na sala me ensinando a dançar rumba e tchá-tchá-tchá, porque ela dançava. Lembro dela com as irmãs, as oito, nos bailes. Pra mim, até hoje a minha família... Eu amo ir pra Salvador. Quando eu não vou, minha prima vem. Eu amo. A gente tem uma empatia assim dos coqueiros, aquele mar, aquelas festas. Não que eu seja apaixonada pelo axé, não é isso. Mas eu saia atrás do trio elétrico, vi Armandinho e Dodô. Tem um histórico na minha vida que quando eu saquei que isso que me fortalece, é dançar. O samba que eu não gostava, comecei a entender o quanto eu sou apaixonada pelo samba. Menos pela

- como é o nome dela? – ele era apaixonado e eu não gosto até hoje. Mas é a dança de rua, que eu posso fazer com qualquer idade. Porque tem isso, eu não danço mais o que eu quero. Tenho um joelho trincado por causa de um acidente, não dá mais pra ser profissional mesmo. Mas tem o que ela pode me dar e quanto tempo e qualidade. É uma felicidade. É divertido, é pra qualquer um. Vou em roda de samba. Admiro ver um pandeirista. Tem essa fascinação. Vejo balé clássico, ainda. Mas parei de brigar com a dança. E vejo que minhas raízes foram fundamentais pra eu ser feliz, que é o que me traz alegria. E pra quem eu queria contar essa história era pra minha filha e eu dedico a ela contar quem eu sou e essa alegria da formação que eu tenho, vem dos meus pais. E eu vim parar no Museu da Pessoa. Olha que engraçado. Pedagoga, sabe assim? É como um trabalho. E minha vida foi muito assim, tem atropelos muito grandes, sofrimentos que foram marcantes. Essa diversidade, é que hoje eu sei que sou assim. Então, por que não curtir? As parcerias... E eu não tenho muito jogo de cintura político, não tenho.(RISOS) Mas acho que ajudou todo esse sofrimento de não fazer faculdade de dança, ajudou nesse crescimento e tal.

P1 – A dança permeou a sua vida toda. Em algum momento você chegou a dançar profissionalmente?

R – Profissionalmente não, mas eu tive um momento em que eu fazia quatro horas por dia. Eu fazia o Teatro Galpão, que era três horas. Hora e meio de clássico e hora e meia de moderno. Pessoas fantásticas, profissionais de importância. O Ismael Ivo, que está na Alemanha, ele ficava na minha frente fazendo aula comigo. Você hoje pessoas que ficaram profissionais, se tornaram profissionais. Tive uam super escola. Tinha a Marilena____lá, o tempo inteiro, tal. Então, eu fazia três horas lá. Era gratuito. Eu nunca tive dinheiro pra fazer escola particular. Nunca fiz estágio, porque não tinha dinheiro, na época. E ao mesmo tempo fazia numa escola que era muito baratinha, perto da minha casa, fazia dança afro, com a Sonia ____, que foi assistente do Júlio Vilan, um grande dançarino. A gente fazia dança afro. O Dinho Nascimento uma vez tocou com a gente, ensaiou com a gente um espetáculo, mas era de escola. Mas era um grupo que ficou um tempo. Ela era profissional, a Sonia, mas profissional eu nunca fui. Infelizmente.

P1 – Infelizmente, porque quem sabe...

R – Quem sabe, né? É verdade.

P1 – Se você pudesse mudar alguma coisa na sua história de vida, você mudaria?

R – Mudar não, mas o que eu gostaria de ter feito que não fiz era ter outro filho, dar um irmão pra Cacá e ter feito faculdade de dança, ser profissional. A dança está sempre, não adianta. (RISOS) Duas coisas que eu gostaria de ter feito, mas a amargura não tenho mais dessa coisa da dança. Ter outro filho, não tive, porqeu as circunstâncias da vida... E a gente conversa muito sobre isso, eu e ela, de ter outro irmão, porque não tivemos. E ela é muito legal porque ela quer ter muitos filhos. Não vê a hora. É engraçadíssimo. Ter quatro filhos, nem três. Dez estava excelente. Ela fala isso. Acho um barato. É isso.

P1 – Tem alguma coisa que a gente não perguntou e que você gostaria de perguntar?

R – Olha eu falei tanto, gostei tanto de fazer a entrevista. Eu queria saber como era ser entrevistada, porque trabalho aqui no Museu. Mas eu gosto de falar sobre minha vida. E agora eu saquei coisas que me deixam muito feliz. Deixou de ser amarga. Minha vida foi sempre muito amarga por não ter feito dança. Vai dançar. Eu gostei muito da entrevista, falei tanto. Acho que está ótimo. Foi um prazer.

P1 – A gente, em nome do Museu da Pessoa, agradece sua entrevista. Obrigada.

R – Obrigada a vocês.

FIM DA TRANSCRIÇÃO