Museu da Pessoa

Da caixinha de multa ao sucesso de vendas

autoria: Museu da Pessoa personagem: José Augusto Pinto

Projeto Farma Brasil - Johnson & Johnson
Depoimento de José Augusto Pinto
Entrevistado por Luis André do Prado e Cláudia Leonor
na Rua Gerivativa, 207
São Paulo, 25 de setembro de 1995
Realização Museu da Pessoa
Entrevista FR_HV001
Transcrito por Rosália Maria Nunes Henriques
Revisado por Bruna Ghirardello

P/1 - Ok. Senhor José Augusto, vamos começar com a sua identificação, eu vou pedir pro senhor dizer o seu nome completo, local e data de nascimento e, em seguida, a gente começa com os dados da infância.

R - Perfeitamente. O meu nome é José Augusto Pinto, nasci em São Paulo no dia 29 de novembro de 1921.

P/1 - O nome dos seus pais e avós.

R - Meu pai chamava-se Francisco Augusto Pinto e minha mãe Cacilda Brasiliense da Silva.

P/1 - Seus avós...

R - Meu avô materno Benedito Brasiliense e minha avó materna Maria Gertrudes Brasiliense da Silva. Meu avô paterno, José Pinto e minha avó paterna, Maria Augusta Pinto.

P/1 - Certo. O senhor pode descrever um pouco o seu ambiente familiar na infância, onde era a casa que o senhor nasceu, onde o senhor viveu a sua infância, se foi a mesma onde o senhor nasceu também e, enfim, o ambiente de como foi a sua infância.

R - Eu nasci numa rua que alguns anos ou muitos anos mais tarde se tornou célebre, porque nessa rua morou o então presidente Jânio Quadros, na Rua Sinimbu número 6. Então, pelo fato de mais tarde do Jânio, ao se projetar politicamente, residir nessa rua ela acabou se projetando no cenário de São Paulo. Mas fui para o Rio com a idade que não me permite ter lembranças, porque eu fui para o Rio com um ano e meio de idade e fui morar no bairro da Tijuca, no Rio de Janeiro. Me lembro que a primeira rua onde nós moramos foi a Rua Barão de Ubá, posteriormente nos mudamos para o bairro de Aldeia Campista, onde morei numa rua chamada Rua dos Artistas. E nessa época o bairro de Aldeia Campista era um bairro que tinha uma notoriedade devido às batalhas de confete no carnaval. Então eu me lembro muito bem dessas batalhas de confete que hoje no Rio não existem mais, há muito tempo, diga-se de passagem. Eu consigo lembrar-me da minha infância a partir da época que nós morávamos na Rua dos Artistas e que eu tinha aproximadamente quatro anos, eu consigo me lembrar. Eu fui alfabetizado em casa por minha mãe e lembro-me, é um pouco de saudosismo, que eu era muito aplicado nesse período da cartilha. E a minha infância de uma maneira geral foi uma infância muito feliz.

P/1 - O senhor tinha irmãos. Quantos irmãos eram?

R - Eu tinha... Um detalhe muito curioso. Nós éramos cinco e eu tinha quatro irmãos, mas cada um deles só tinha dois porque meus pais eram viúvos e tinham dois filhos do primeiro matrimônio de cada um e eu sou filho único do segundo matrimônio de ambos. Então eu convivia com os meus irmãos da parte de mãe, que moravam conosco, os meus irmãos de parte de pai que já eram bem mais velhos moravam em São Paulo, na companhia da avó.

P/1 - A atividade de seu pai qual era?

R - A atividade de meu pai, ele era representante comercial. Ele representava um laboratório que por sua vez representava um laboratório italiano muito célebre Instituto Soroterápico Milanês. Mas o laboratório para o qual o meu pai trabalhava como representante comercial chamava-se Novoterápica Ítalo-Brasileira. Tinha escritório na Rua Buenos Aires, 139, sobrado, no Rio de Janeiro.

P/1 - O senhor cresceu então com os seus pais e os seus dois irmãos por parte de sua mãe?

R - Exatamente.

P/1 - Que eram... Quais eram os nomes deles? Como o senhor descreveria cada um deles?

R - O meu irmão mais velho, com quem eu convivi, que por sinal era meu padrinho, chamava-se Walfrido Leocádio Freire, e o outro Joaquim Leocádio Freire. Porque Freire era o sobrenome do primeiro marido de minha mãe.

P/1 - Sim. E como era o ambiente? Como foi assim o relacionamento entre os irmãos, como era o seu pai, eles eram rígidos? Educação autoritária... como era?

R - Eu tive uma educação severa, carinhosa, porém severa, nunca me permitiram ser manhoso, coisa que também não se coaduna com o meu temperamento desde criança. Mas era um relacionamento bom, harmonioso e posso lhe dizer que era uma família feliz.

P/1 - Com relação ainda a seus irmãos, brincadeiras, o que é que o senhor se lembra disso?

R - Brincadeiras, às vezes brigas, que fazem parte da infância de cada um quando às vezes os dois querem a mesma coisa, mas havia muita compreensão da parte deles, uma vez que o irmão mais próximo de minha idade havia uma diferença de dez anos. Então isso fazia com que eles já tivessem certa paciência comigo, que eu procurava não abusar dentro do meu conceito. Mas foi um período que eu recordo sempre com muita saudade e, volto a dizer, as coisa agradáveis a gente sempre lembra com saudade. Eu tive muita sorte em ter a família que eu tive.

P/1 - Como é que o senhor... Como foi o período de sua formação, a primeira escola...

R - A primeira escola, também há um detalhe que mais tarde fez com que se tornasse famosa. Chamava-se Externato Santa Rita de Cássia e a diretora e minha professora, eu levei uma vantagem porque já fui para a escola alfabetizado, chamava-se Marta Medeiros Rosa e era mãe de nada mais, nada menos do famoso Noel Rosa.

P/1 - Puxa!

R - Então eu tive a oportunidade de conviver com Noel Rosa ainda quando ele era aluno do Ginásio São Bento, no Rio de Janeiro, mas que já dedilhava um violão com muita propriedade e assisti o nascimento do primeiro samba dele que ficou famoso “Com que Roupa”. Assisti ele compondo esse samba.

P/1 - Puxa que fantástico!

R - E nesse meu curso primário me marcou muito a leitura de um livro que era usado como livro próprio para leitura chamado “Coração”, “Il Cuore”. O autor era Edmundo Damici e era um livro muito lindo porque era um livro que descrevia cenas das famílias italianas que tinham ficado desprovidas de seus chefes temporariamente, no transcorrer da Primeira Grande Guerra, quando a Itália estava em guerra com a Áustria. Então, “O Coração” é um livro que eu até penso que faz falta nos dias de hoje porque era um livro impregnado de ternura. E assim eu fiz o meu curso primário no Externato Santa Rita de Cássia, muitas vezes ouvindo Noel Rosa compor as suas músicas que tiveram tanto sucesso.

P/1 - Fale um pouco desse relacionamento com Noel Rosa, eu acho uma coisa muito interessante, muito especial nessa sua trajetória.

R - Bom. Noel Rosa, para os padrões da época, ele, ginasiano ainda, já fumava, ele tinha um pequeno defeito físico no queixo que depois se tornou conhecido com a divulgação das fotografias dele e era um filósofo na acepção da palavra. Nunca vi Noel aborrecido ou triste, porque eu tenho a impressão que a terapêutica que ele fazia, ou melhor dizendo, a terapia, sempre empunhando o violão, era muito melhor do que qualquer tranquilizante dos tempos modernos. Uma pessoa que tinha uma personalidade marcante e uma pessoa que se fez mais tarde admirado como um dos luminares da música popular brasileira e é cultivado até hoje.

P/1 - O senhor o viu compondo aquela canção, isso aconteceu no colégio?

R - Aconteceu. Compondo “Com que Roupa”.

P/1 - Interessante. E como é que o senhor recorda o ambiente... Fale um pouco da sua mãe também, né? Como é que era a sua mãe, como é que o senhor descreveria a sua mãe e que papel ela teve na sua infância, na sua fase de escolarização.

R - Minha mãe tinha um temperamento que ela não extravasava, talvez com o objetivo de que os filhos não viessem a abusar do grande coração que ela tinha. Então era uma criatura aparentemente austera, mas muito terna, e o meu relacionamento com ela na minha infância era excelente, não podia ser melhor, eu era extremamente agarrado a ela. Com o meu pai, que tinha um temperamento austero também, o meu relacionamento era o melhor possível. Ele nunca me encostou a mão, mas ele sabia me manter muito bem comportado.

P/2 - Seu José Augusto, o pai do senhor era português, né?

R - Era. Papai...

P/2 - O senhor recebeu alguma influência?

R - Não, não recebi porque o meu pai emigrou pro Brasil ele devia ter cerca de cinco anos de idade e não tinha sotaque, não tinha tipo, ele era alourado, e foi um dos maiores brincalhões com piadas de português que eu já conheci. (risos) Ele tinha um vasto repertório de anedotas sobre os nossos amigos e irmãos lusitanos e ele tinha sempre uma maneira de, como é que eu poderia dizer, de brincar com os seus antigos conterrâneos. Mais tarde ele se naturalizou brasileiro e ficou então com essa nacionalidade.

P/1 - O senhor poderia falar um pouco mais das origens, do lado dos seus avós e dos seus pais? O senhor chegou a conhecer os seus avós? Como é que o senhor os descreveria...

R - Eu só cheguei a conhecer as minhas duas avós.

P/1 - As suas duas avós?

R - As minhas duas avós. Minha avó paterna, que era uma pessoa humilde muito trabalhadora, e minha avó materna que era filha de fazendeiros, mas que também não tinha haveres, digamos assim, que sobrevivia dando lições de piano, inclusive eu fui aluno dela. Eu estudei piano durante alguns anos e ela foi a minha professora, se bem que pra eu estudar direito apelava-se na época pra uma coisa chamada vara de marmelo. (risos) Mas eu estudei piano algum tempo, ainda dedilho alguma coisa, mas reconheço que não tinha vocação musical, embora tenha um excelente ouvido.

P/1 - E que é que o senhor sabe mais sobre a origem dela e os familiares da sua mãe, por parte da sua mãe.

R - Minha avó era filha de um fazendeiro que tinha uma fazenda em São Simão, aqui no Interior de São Paulo, perto de Sertãozinho, na época que o café era o fruto de ouro da agricultura brasileira. Ela viveu... nasceu e viveu uma boa parte da sua vida ainda no tempo da escravidão, então ela tinha coisas muito interessantes pra contar sobre a época. Meu avô, com quem ela se casou, naturalmente, era engenheiro mecânico e eles se conheceram na fazenda onde ele foi fazer algum tipo de trabalho da especialização dele e casou-se então com a minha avó. Uma pessoa lutadora, uma pessoa de uma espiritualidade ímpar e que fazia da caridade um lema, muito caridosa.

P/1 - Ambos eram descendentes de portugueses, famílias...

R - Não. Minha avó tinha uma... Seria o que nós poderíamos chamar nos dias de hoje uma quatrocentona. Mas meu avô tinha uma descendência holandesa, porque ele era oriundo do Nordeste e essa descendência veio da época em que Maurício de Nassau andou por lá.

P/1 - O seu avô veio pro... Por parte de pai, veio para o Brasil por que motivo?

R - Ele emigrou em busca de oportunidades, mas não teve muito tempo pra alcançar os seus objetivos porque faleceu alguns anos depois. E o meu pai foi sempre o sustentáculo da família, trabalhou desde adolescente e foi sempre o sustentáculo da família, porque ele tinha, além da mãe, mais três irmãos. Ele trabalhou como tipógrafo, depois se formou em contabilidade e depois então é que ele desenvolveu essa atividade de representante comercial no Rio de Janeiro.

P/1 - Bom, voltando então a sua formação, como é que se desenvolve a sua formação a partir dessa fase do primário, né, que foi aonde a gente parou.

R - Bem. Do primário eu fui para o ginásio no Colégio Pedro II, que na época era um colégio famoso em todo o Brasil porque era tido como estabelecimento-padrão de ensino. Tinha ótimos professores, excelentes mestres. Em português, por exemplo, eu fui aluno de José Oiticica e de Antenor Nascentes, que eram considerados os dois papas da língua portuguesa no Brasil da época. Em matemática eu fui aluno de Cecil Thiré, que hoje tem um neto que trabalha na televisão com o mesmo nome. Eu fui aluno de Euclides Roxo e fui aluno de Júlio César de Mello e Souza, que tinha como hobby escrever contos orientais com o nome de Malba Tahan. E as aulas dele eram um encanto, né, porque ele, como escritor, além de ensinar matemática muito bem, tinha uma didática excepcional, ele sempre entremeava alguma coisa de interessante citando provérbios árabes. Curioso porque sendo eminentemente brasileiro como o nome indica, Mello e Souza, ele conhecia profundamente a cultura oriental, inclusive falava árabe. Então, no Pedro II eu fiz o meu ginásio e na época o que se chamava complementar, que era o que vinha depois do ginásio para me preparar e posteriormente me ingressar no ramo da medicina, que eu cheguei a fazer três anos.

P/1 - Como é que o senhor descreveria a adolescência, essa fase não ligada a formação, mas à sua relação social. Como é que se dava? Era só no ambiente de escola, o senhor tinha muitos amigos...

R - Tinha muitos amigos que frequentavam a minha casa, eu frequentava a casa deles. Havia uma facilidade que possivelmente eu mantenho até hoje, muito grande de comunicação, e como eu fui criado dentro de um ambiente austero, eu sempre soube respeitar as pessoas, particularmente as pessoas mais velhas, então eu era muito bem recebido pelos pais dos meus amigos, avós dos meus amigos, pelo respeito com que eu os tratava, a consideração com que os tratava, e isso facilitou muito a minha convivência com outras pessoas. Não quero dizer que eu tenha passado a minha vida em branco, mas facilitou sobremaneira. Eu digo em branco porque às vezes cria-se com o decorrer dos anos desafetos gratuitos. Mas eu posso dizer que se eu tive ou tenho inimigos eu nunca tomei conhecimento, graças a Deus.

P/1 - E que tipo de atividades os adolescentes do seu tempo desenvolviam, qual era o lazer, que lugares frequentavam...

R - Bem, o meu lazer sempre foi leitura. Eu comecei a ler romances e eu lia avidamente, inclusive autoras eminentemente pra público feminino, como Delly, Elinor Glyn e tudo mais. Mas o primeiro livro que me caiu às mãos era de um escritor italiano chamado Emílio Salgari; eu tinha nove anos, daí por diante eu li e li muito. Comecei a ler jornais. Na Revolução de 1930 eu já sabia o que estava se passando dos dois lados, do lado revolucionário, que era liderado por Getúlio, e do lado governamental, que era Washington Luís, o presidente da República. A primeira lembrança que eu tenho ao passar no Palácio do Catete ainda é anterior a Washington Luís. Na época, eu, pela mão de minha mãe, eu devia ter uns cinco anos, não podia se passar pela calçada do Palácio do Catete porque o então presidente Arthur Bernardes governou a maior parte do seu governo sob estado de sítio e a guarda era formada de fuzileiros navais e que obrigavam os pedestres a passar fora da calçada, do passeio. Eu me lembro de Arthur Bernardes, nessa época. Depois veio Washington Luís, e eu de tanto ler jornais e por incrível que pareça com nove anos eu já tinha uma posição política, eu era anti-Getúlio. (risos)

P/1 - E isso influenciado por seu pai, que teria uma posição mais conservadora, não?

R - Também. Papai também era antigetulista, mas em casa, aliás, todos nós éramos antigetulista. Depois veio a Revolução de 1932, em que nós estivemos a favor de São Paulo; a Revolução Constitucionalista, que nós também nos posicionamos outra vez contra Getúlio, né? O que muita gente não entendia. E a minha adolescência toda, o meu lazer, a ocupação principal foi a leitura, lia muito. E isso me deu uma cultura geral muito grande, graças a Deus, e isso eu falo sem falsa modéstia. Naquela época também há de se reconhecer que não havia televisão, né, e o rádio estava começando. Eu acho a televisão um veículo magnífico pra educar, mas ele atua muito mais deseducando do que educando, esse é um conceito meu, próprio. Então, passeios, bicicleta...

P/1 - Namoros.

R - Namoros, fui muito namorador, diga-se de passagem. Tinha uma rivalidade entre o Pedro II e o Colégio Militar e o fruto dessa rivalidade eram as normalistas do Instituto de Educação. E entre elas eu conheci a hoje atriz Tônia Carrero que foi... Casou-se com o filho do meu professor Cecil Thiré, chamava-se Carlos Arthur Thiré, na época em que era normalista. Já era uma menina linda e hoje é essa atriz consagrada que todo mundo conhece que ela abreviou... ela chama-se Maria Antonieta... Pra Tônia, né? Dava-me muito com o irmão dela, Humberto Porto Carrero, que era o primeiro aluno do Colégio Militar na época dele. Chamava-se Humberto Porto Carrero, estudiosíssimo. E como eu morava muito próximo do Colégio Militar, porque nessa época eu morava na Rua General Canavarro, eu, quando eu saía, no Rio usava-se uniforme, a farda, então quando eu saía fardado de Pedro II eu tinha que ter certo cuidado devido a essa rivalidade, mas era esportiva, era com as meninas, porque senão ainda sobrava pra mim. (risos) Mas eu sempre soube contornar, não é? E nunca tive nenhum atrito, malgrado essa proximidade. Mas a minha adolescência foi um período muito bom, um período em que o Rio de Janeiro era uma cidade tranquila, era capital da República, o Distrito Federal. E uma diversão também que me agradava muito era os cinemas, então eu frequentava cinema quase que duas vezes por semana, naquela época havia vantagem do desconto pra estudante, né? Pagava 50% do preço do ingresso e o cinema também contribuiu para que eu aumentasse um pouquinho a minha cultura. Houve um autor que marcou muito a minha infância e que me deu um conhecimento da história da França fora do comum, chamava-se Michel Zevaco, com “z”, Michel Zevaco. Ele escrevia aqueles romances de capa e espada da Idade Média, né, até... e ia progredindo a romances como Alexandre Dumas também, o “José Bálsamo”, né, “O Colar da Rainha” que são umas séries. Esses romancistas contribuíram muito pra um tipo de cultura que quando eu fui à Europa a primeira vez e desembarquei em Paris eu tive uma emoção muito forte ao passar por aqueles locais que já naquela época eram mencionados como teatro de aventuras, né, de episódios que formam a história da França. É um detalhe que eu me lembrei acidentalmente mas que me deu muita emoção quando eu fui a Paris pela primeira vez.

P/1 - O senhor teve educação religiosa?

R - Não tive educação religiosa. Meus pais nesse ponto eram liberais, não tive religião oficial, eu sou cristão, mas não sou católico, frequento igreja. Eu sou ecumênico, digamos assim, mas na minha infância eu ia à igreja com a minha mãe, eu sabia rezar, fazia as minhas orações com muita contrição e mais tarde eu tornei-me espiritualista. Acredito que nesse ponto eu tenha sofrido a influência de minha avó materna e até hoje sou um espiritualista convicto, mas aceito todas as religiões. O importante é ter fé e procurar fazer o bem, na minha concepção.

P/1 - Bom, o senhor se forma então no Pedro II e como é que a sua carreira vai se desenvolver? O senhor já começou a trabalhar nessa época? Em que época o senhor começou a trabalhar?

R - Em 1941 foi o ano que eu ingressei na universidade. Medicina, eu tinha escolhido medicina, devido a afinidade que eu já tinha com os médicos, em 1941. E aí trabalhava na parte da tarde visitando médicos e na parte da manhã frequentando aulas. Mas acontece que medicina depois de certo, de certa evolução dos anos, exige uma frequência hospitalar muito grande, que é a parte prática da medicina. E eu me vi com certa dificuldade de conciliar trabalho e estudo ao mesmo tempo, por outro lado eu tive o privilégio de ser convocado durante a guerra, mas não fui para a FEB. Eu fui convocado devido justamente a essa parte minha de estar estudando medicina, eu pude prestar serviços numa unidade ambulatorial na antiga Vila Militar no Rio de Janeiro. Mas posteriormente eu cheguei a uma conclusão quando me desvencilhei desse cargo, ou faria duas coisas mal feitas ou eu faria uma coisa bem feita. Aí tranquei a minha matrícula, conservei trancada por algum tempo, e passei a dedicar o meu tempo integral a atividade de propaganda.

P/1 - Qual era a faculdade que o senhor cursava?

R - Da Universidade do Brasil, que hoje não existe mais. É a chamada Praia Vermelha, hoje não existe mais, hoje tem a universidade do Fundão no Rio de Janeiro que seria essa, que a Universidade do Brasil não existe mais.

P/1 - Essa carreira de vendedor como é que começou, como é que o senhor ingressou nela?

R - Ingressei como eu falei. Em 1941 coincidentemente com o meu pai que foi quem primeiro que me orientou sobre isso, mas eu era muito observador e naquela época os visitadores médicos mereciam muita consideração da classe médica, uma coisa que nem sempre acontece nos dias de hoje. E eu me entusiasmei com a medicina e depois de certo tempo também a gente vai avaliando mais maduramente os fatos e chega a uma conclusão: a medicina tem que ser praticada sempre que for possível desinteressadamente, mas ninguém consegue viver ou sobreviver, diz melhor, dentro desse sentido. Até hoje os médicos dedicam uma boa parte à Santa Casa, principalmente, são funções não remuneradas, no Hospital das Clínicas geralmente são remuneradas a não ser os residentes, que são os médicos que depois que terminam o curso fazem três anos de residência. Mas a medicina naquela época, o conceito que se tinha que era um sacerdócio, conceito esse que, às vezes, ainda se escuta alguém falar, mas que na prática deixou de sê-lo.

P/1 - Senhor José, qual era o laboratório que o senhor trabalhava nesse período e como é que era... O senhor disse que era diferente de hoje, como é que acontecia esse trabalho?



R - O que acontecia era o seguinte, por exemplo, alguns laboratórios trabalhavam com assinaturas, o propagandista ao visitar o médico tinha que obter assinatura do médico pra comprovar que tinha visitado. E isso era um segredo de polichinelo porque quando o propagandista era malandro ele deixava com a enfermeira, não visitava e a enfermeira entregava a amostra ou a literatura e o médico assinava. Era um artifício. Eu sempre tive sorte, nunca trabalhei em nenhuma empresa que exigisse isso do propagandista. Mas o relacionamento do médico para com o propagandista e vice-versa era um tratamento muito respeitoso e cordial ao mesmo tempo. Eu convivi com professores eminentes da medicina do Brasil e guardo de todos eles recordações muito agradáveis, inclusive alguns que eram tidos inacessíveis, como nem sempre muito gentis, mas nunca tive oportunidade de ser destratado pelo médico, eu sempre fui um tanto formal. Então sendo formal o respeito é de parte a parte. Mas havia uma receptividade maior da classe médica; explica-se, o número de empresas farmacêuticas e laboratórios eram menores então os médicos não eram assediados como são assediados hoje. Por exemplo, naquela época se visitava um médico uma vez a cada 30 ou 40 dias, hoje há empresas que visitam os médicos de 15 em 15 dias, o mesmo médico, sem contar as visitas que tem nos ambulatórios e hospitais onde esse médico trabalha. Então essa avalanche de visitas cansa, eu diria até mais do que cansa, satura, mas cada empresa tem a sua diretriz e diante desse conceito se respeita. Nos Estados Unidos, por exemplo, a média de visita aproximadamente quando o médico é visitado com muita frequência é de 60 em 60 dias ou de 90 em 90 dias. Mas lá o médico dispensa atenção ao propagandista, eles dão tempo ao propagandista, normalmente até a visita é marcada com antecedência, quer dizer, visita-se hoje e já sai marcada a próxima visita, eles dispensam. Hoje, aqui no Brasil, a média de tempo que um médico dispensa a um propagandista é no máximo de dois minutos. Então é muito difícil fazer um trabalho de profundidade nesse sentido, o que em parte justifica essa avalanche de visitas, é a propaganda em massa, né, que satura, é desagradável.

P/1 - Seu pai representava vários laboratórios?

R - Não, só esse Novoterápica Ítalo-Brasileira que era concessionário desse Instituto Soroterápico Milanês, era especializado em produtos opoterápicos, produtos que são extraídos de glândulas, não é? Opoterápicos.

P/1 - Certo. E o senhor ficou muito tempo trabalhando com ele?

R - Eu fiquei bastante tempo trabalhando com ele, eu fiquei de 1941 até 1946 quando então eu ingressei no Laboratório Espasil, que era um laboratório de origem franco-brasileira.

P/2 - Senhor José Augusto, quando o senhor estava no Novoterápica no que consistia o material de apresentação?

R - Aos médicos?

P/2 - Aos médicos.

R - Bem. No Brasil, o material essencial de apresentação aos médicos ainda continua sendo a amostra grátis, ainda continua sendo. Então tinha amostra grátis que se fazia acompanhar geralmente de um memento onde estavam relacionados os produtos do laboratório e de peças promocionais e naquela época usava-se inclusive um recurso que hoje está completamente desprezado. Como as canetas, não eram esferográficas, usava-se o mata-borrão de propaganda. (risos) Era uma peça promocional porque o médico tinha sempre um mata-borrão sobre a mesa, hoje ninguém mais fala em mata-borrão nem caneta que não seja esferográfica, né?

P/1 - E como era o ambiente de empresas do setor na época, o senhor disse que era bem menos, né? Elas eram de origem multinacional, mais nacionais, como eram? Porque ainda tínhamos muitas farmácias que trabalhavam com manipulação...

R - Exato.

P/1 - Quer dizer, as farmácias ainda não tinham grande quantidade de produtos industrializados. O médico receitava muito ainda o de manipulação, como era esse ambiente?

R - Bem. Naquela época havia duas cadeiras importantíssimas nas escolas médicas: farmacologia, que é a arte de formular, e terapêutica, que nós poderíamos definir como a arte de tratar. Terapêutica foi extinta e farmacologia hoje as noções são mínimas e lhe confesso nem sei se ainda existe. Hoje são pouquíssimos os médicos que sabem formular devido às numerosas especialidades farmacêuticas que atendem a necessidade médica, dificilmente alguém formula hoje. E eu lhe diria sem receio de errar que me perdoe...

[troca da fita 001-A]

P/1 - Então continuando a gente podia retornar aquele ponto...

R - Pois não.

P/1- Que o senhor estava descrevendo a conjuntura de empresas que atuavam no setor, na indústria farmacêutica naquele período.

R - Perfeito.

P/1 - Década de 1940, né?

R - A predominância era de empresas nacionais. Eu citaria entre elas o Instituto Pinheiros, o Laboratório Raul Leite, o Laboratório Paulista de Biologia, poderia acrescentar também o... (pausa). Faz tanto tempo que a gente tem certa dificuldade em lembrar. Esses eram os três mais... O Laboratório Torres, que tinha um produto consagrado, Necroton, que era a fração antitóxica do fígado, compreendeu? E alguns poucos laboratórios suíços, a Sandoz já havia naquela época, havia também a Merck Darmstadt, que hoje é só Química Merck, Merck, chamada Alemã também, que nós temos dois laboratórios com a designação de Merck, um com origem americana que é a Merck Sharp & Dohme e a outra, a europeia, que é a Merck. Havia o Parke-Davis como um dos poucos laboratórios americanos atuando, mas a grande invasão de laboratórios multinacionais deu-se depois da Segunda Guerra, que vieram laboratórios que primeiramente começaram a trabalhar através de representantes, distribuidores e posteriormente se instalaram no Brasil, não é? Mas...

P/1 - Falando assim das farmácias, farmácias eram basicamente de manipulação e elas comercializavam também esses remédios?

R - Comercializam também esses remédios. Naquela época as farmácias quase sempre tinham, podemos dizer que sempre existia um farmacêutico responsável, mas um farmacêutico responsável que geralmente era o dono da farmácia e que dava tempo integral à farmácia e que orientava muito a freguesia, a clientela. Mas naquela época os médicos formulavam com muita frequência e facilidade. Depois vieram surgindo ao poucos certos tipos de medicamentos que faziam com que não houvesse mais necessidade de formulação. Eu mencionei quando eu comentei que nós fomos pioneiros na área de hidratação oral. O Hydrax, e o Hydrax G lançados, respectivamente, no mercado brasileiro em 1955 e 1956. Eles vieram fazer com que um tipo de formulação que era desenvolvida pelos médicos para hidratar, que era o soro de Hinger e o soro de Perneta, que tem esse nome de Perneta devido a um grande pediatra brasileiro, professor Sérgio Beltrão Perneta, que foi quem o desenvolveu. Mas eram, eminentemente, de manipulação nas farmácias, tinham que ser preparados. Já quando nós lançamos o Hydrax, o Hydrax G e depois surgiram outros similares tornou-se desnecessário qualquer tipo de formulação nesse sentido, e assim foram surgindo as especialidades farmacêuticas que faziam com que cada vez a necessidade de formulação fosse mais remota.

P/1 - Na década de 1940, qual que seria o percentual disso, quanto ocupava da farmácia a parte industrial de remédios?

R - Olha, eu tenho a impressão de que farmácias deveriam ter na década de 1940, deveriam ter entre 40 a 50% de manipulação. Vamos dizer 40%, é uma cifra justa. Agora, antes de 1940, isso era muito mais frequente, né?

P/1 - Em 1940, podemos dizer que houve um aumento grande também dessa participação?

R - Houve. Da manipulação?

P/1 - Do remédio industrial. Ele começa já a ocupar mais.

R - Do remédio industrial sim porque, justamente como eu falei, com o término da Primeira Guerra, os grandes laboratórios multinacionais, alguns deles já existiam no Brasil, mas outros vieram pra cá e trouxeram muitas coisas que tornou desnecessária a manipulação.

P/1 - Como é que os médicos recebiam essa mudança de comportamento, de deixar de fazer as fórmulas pra receitar o remédio industrial?

R - Eles viam com muita simpatia porque facilitava sobremaneira a tarefa deles e por outro lado, embora as farmácias merecessem confiança, em grande parte sempre havia dúvidas que eventualmente uma pessoa menos familiarizada com os componentes da fórmula ou menos preparada não colocassem na formulação os ingredientes especificados e nas quantidades também especificadas. Aí é um aspecto qualitativo e outro quantitativo, né? Então eles viam no laboratório, laboratórios que se impunham pelo conceito, uma forma muito prática de atender as necessidades da clientela sem precisar correr eventuais riscos. Existem farmácias que são verdadeiros pilares como é o caso da Veado de Ouro, aqui em São Paulo, né? Até hoje a Veado de Ouro, eu acredito que seja uma líder no que tange a manipulação, mas existem outras farmácias que não vamos mencionar nomes, mesmo porque até eu desconheço, mas que não devem merecer a mesma confiança como a Veado de Ouro, né, que tem uma tradição e um nome a zelar.

P/1 - E o senhor se lembra. Bom, esses laboratórios até a década de 1940 eram de maioria nacionais, portanto eles desenvolviam também os seus produtos aqui no Brasil. Havia pesquisa no setor de desenvolvimento farmacológico no Brasil, esses laboratórios investiam nisso e que tipo de produtos eles estavam atendendo naquele período? Ainda eram muito incipientes...

R - Eles, de uma maneira geral, a empresa brasileira com raras exceções, digamos Pinheiros, um Raul Leite, pode ser até que eu esteja cometendo alguma injustiça não me lembrando, o Paulista de Biologia, eles não investiam muito em pesquisa, eles industrializam fórmulas de consumo. Então, eles simplificavam a tarefa do médico, porque eram laboratórios idôneos, diga-se de passagem, através da industrialização de fórmulas. Invés de fazer uma fórmula a cada vez que o médico quisesse prescrever, não, aquela fórmula já era industrializada, a pesquisa era bastante incipiente.

P/1 - E sobre essas áreas de atendimento médico ainda era muito pouco o que havia de produto industrializado que se ofereciam pra curar...

R - Não. Já havia, na década de 1940, já havia um razoável número de empresas e um apreciável número de produtos que competiam entre si. Por exemplo, naquela época o bismuto era muito usado no combate à sífilis e no combate a anginas de garganta. Uma injeção de bismuto, por exemplo, para uma indicação de angina de garganta, que é extremamente desagradável, tem principalmente um tipo de angina que é angina de Vansan, que é uma angina ulcerosa, o bismuto resolvia em grande parte, se bem que na de Vansan o específico era o arsênico, que também era indicado pra combater a sífilis. E havia um produto até muito consagrado nessa área, o Iodo Bisman, um produto fabricado em Minas Gerais, era um produto consagrado; havia o Desbi, que era um produto feito no Rio de Janeiro, sempre nessa base. Mas, digamos, o arsenal terapêutico com que o médico contava já era apreciável na década de 1940.

P/2 - Bom. O senhor comentou que o senhor fez três anos de medicina, né? O que ajudou, auxiliou o senhor no trabalho dentro da Soroterápica, no diálogo com os médicos?

R - Bem. Esse trabalho me ajudou e muito porque eu, quando levava aos médicos uma novidade e recebia uma objeção, eu tinha conhecimentos que me permitiam contornar qualquer tipo de objeção, compreendeu? Não contestar, porque a contestação é sempre desagradável e cria um clima de choque, mas contornar. Então isso me ajudava muito a compreender a ação farmacológica dos ingredientes, né? E me permitia muitas vezes dialogar com o médico não de igual pra igual mas, pelo menos, demonstrando que eu não era um ignorante no assunto, facilitou muito o meu trabalho. Em todas as empresas que eu trabalhei isso me ajudou sobremaneira.

P/1 - Bom, o senhor entrou em 1951, como supervisor chefe divisão Johnson.

R - Em 1949.

P/1 - 1949? Então, por favor, o senhor faz uma descrição, o senhor trabalhou com o seu pai, né, até 1949.

R - Não. Até 1946. Em 1946 eu fui pro Espasil.

P/1 - Sim, pro Espasil. Depois do Espasil o senhor já vai direto pra Johnson?

R - Vou direto pra Johnson.

P/1 - Como é que se dá a sua entrada na Johnson? Como o senhor fica sabendo da vaga, há uma competição, como é que é?

R - A minha entrada na Johnson quase que eu posso classificar de acidental. O então supervisor no Rio de Janeiro, que se chamava Aguiar, era um baiano, baixinho, extremamente nervoso, ele, um belo dia, decidiu deixar a posição que tinha na Johnson e ele me via trabalhar porque a pessoa muitas vezes está trabalhando e está sendo observada. E ele me via trabalhar e sem eu tomar conhecimento ele apreciava o meu trabalho; isso eu vim a saber mais tarde porque foi ele quem indicou ao senhor José Gimenes Sanches o meu nome para substituí-lo. Ele disse: “Olha, eu tenho uma pessoa.” Obviamente essa indicação não foi aceita em primeira instância, mas quando eu fui ter o primeiro encontro com o senhor Sanches, que foi meu superior imediato durante muitos anos na empresa, depois nós conversarmos durante cinco minutos e ele me perguntou francamente: “O senhor gostaria de tomar conta disso?” Eu disse: “É uma coisa a pensar.” E foi uma coisa que eu não premeditei, aconteceu. E essa pessoa, seu Aguiar, depois deixei, só uma vez eu o encontrei e disse: “Olha, eu quero agradecer a sua indicação porque você foi muito generoso e muito cavalheiro em fazer a indicação do meu nome e eu procurarei fazer o possível para não desapontá-lo.” E realmente foi o que eu sempre procurei fazer. E encontrei uma equipe que necessitava de certo tipo de trabalho, de harmonização, de, vamos dizer, lapidação, mas encontrei boa vontade de toda a equipe e consegui levar a bom termo a tarefa que me impus.

P/1 - Como era a estrutura da Johnson naquele período? Quer dizer, o senhor entrou no Rio de Janeiro, né?

R - É, havia um supervisor no Rio de Janeiro, um supervisor em São Paulo, um supervisor no Rio Grande do Sul que pegava os três Estados do Sul.

P/1 - De vendas?

R - Propaganda e vendas.

P/1 - A produção era só em São Paulo e no Rio? Havia essa divisão de vendas?

R - É, um escritório de vendas na Rua do Ouvidor, 183, 5º andar. E o senhor Sanches... No Norte, por exemplo, não havia supervisor. O senhor Sanches era o supervisor geral, ele fazia visitas periódicas a cada um desses locais para ver o acompanhamento desses serviços, né?

P/1 - Nacional?

R - Nacional. Naquela época o máximo que nós íamos, trabalhando ativamente, o máximo que nós íamos era até Recife, depois é que aos poucos foi se expandindo, foi Fortaleza e chegou até Belém do Pará, chegou a Manaus, mas isso com o decorrer do tempo, né, muitos anos depois.

P/1 - Como era composta a equipe no Rio e qual era a estratégia de trabalho?

R - Eu tinha seis homens que eu orientava e esses seis homens trabalhavam na parte de venda geralmente pela manhã, ou visitando hospitais também concomitantemente com venda e fazendo propaganda médica nos consultórios na parte da tarde. Então eu acompanhava o trabalho deles pelos resultados, porque eu sempre gerenciei por resultados e acompanhava-os também no campo, pra ver se eles estavam trabalhando de acordo com as diretrizes da empresa e com aquilo que eu achava que era a estratégia certa. Porque há um detalhe aí, apenas pra ilustrar, se o médico nos dá, nos concede pouco tempo, não queira falar de muitos produtos, fale de um, mas fale incisivamente, aproveite o tempo porque se dispersar querendo falar de três produtos, nenhum dos três vai conseguir atingir o objetivo desejado. Então, outra coisa também que se tornou um lema dentro da Johnson que eu criei, pondo a modéstia de lado: “O produto certo para o médico certo”. Não adianta falar de um colírio para um ginecologista, é muito bom ele saber que existe um colírio, mas na clínica, o ginecologista não vai receitar colírio. Da mesma maneira não adianta falar com um pediatra de um produto que se destina a adultos. Volto a dizer, é bom que ele conheça que existe um produto pra uma necessidade, às vezes, de um familiar e tudo mais, mas como pediatra o básico são os produtos que ele pode prescrever para a clientela dele, de crianças. Então, esse lema “O produto certo para o médico certo” talvez tenha me surgido, isso mais tarde, até porque eu sempre via, eu procurava adequar os medicamentos a especialidade do médico porque tempo de médico é precioso, o tempo do propagandista também, então vamos falar num produto que desperte o interesse do médico, que o médico tenha chance de prescrever e isso eu incuti. Eu tinha aprendido isso no Laboratório Espasil e incuti na minha equipe na Johnson com muito sucesso, graças a Deus.

P/1 - O senhor poderia descrever pelo menos os principais medicamentos que eram comercializados pela Johnson naquele período?

R - Bem. Eu forneci a Cláudia uma relação, né, havia tais produtos que hoje seriam classificados como genéricos que levavam a marca Johnson, como a Glicose Hipertônica Johnson, Digitali Johnson, Tireoide Johnson, e havia os produtos como Kalyamon, que é uma marca que até hoje existe só que hoje é Kalyamon B12, o Sulfatone, a Garricina, Kalmonerve, que eram medicamentos de marca registrada. Dentro dessa lei, a marca foi regulamentada pelo INPI, né, Instituto Nacional de Propriedade Industrial, que é a mesma instituição que regulamenta patentes. Então uma marca registrada é um direito adquirido e as nossas marcas, de uma maneira geral, as nossas marcas são internacionais. Não esses produtos que eu comecei a trabalhar em 1949, que esses produtos foram, em sua grande maioria, desenvolvidos no Brasil, com exceção de um creme espermicida chamado Jonconol, de uso local; esse creme espermicida, como naquela época era tabu falar em anticoncepcional, era descrito como um produto para higiene íntima feminina e realmente como o PH dele era idêntico ao PH da vagina, ele tinha uma ação iminentemente antisséptica, né? Então ele realmente regulava o PH vaginal, higiene íntima feminina. Agora, os médicos sabiam que ele tinha uma ação espermicida que, naqueles com quem a gente podia abordar o assunto diretamente, e na grande maioria se podia fazer isso, a não ser alguns que por preceitos religiosos não admitiam a anticoncepção, abordava-se o assunto diretamente como sendo um espermicida, ou seja, um anticoncepcional, tinha que colocar antes do relacionamento sexual. A mulher colocava, tinha um aplicador, tinha o relacionamento, e os bichinhos morriam, né? (risos) Os espermatozoides morriam quando entravam em contato com a geleia espermicida que, além disso, ela também tinha um efeito quando era colocado e a mulher tinha o aparelho genital normal. Ao ser colocado, a mulher em decúbito dorsal, ele formava uma barreira sobre o colo do útero, então ele tinha uma pequena ação mecânica, mas a ação espermicida dele era extraordinária.

P/1 - E essa divisão farmacêutica funcionava no mesmo escritório junto com as outras divisões?

R - Não.

P/1- Eram divisões separadas?

R - Separadas. Em São Paulo, na matriz, era um prédio só, mas com as suas instalações dentro do prédio, né, e a fábrica era em São Paulo também. Agora, no Rio de Janeiro tinha a verdadeira filial da Johnson & Johnson que era que tinha uma participação maiúscula no mercado e ficava num local, e nós ficávamos num ponto bem central, que eu mencionei há pouco, a Rua do Ouvidor, que é uma rua que equivale a Rua Direita aqui de São Paulo, numa pequena sala.

P/1 - A empresa ofereceu pro senhor uma estratégia, uma meta de objetivos a atingir nesse período ou o senhor estabeleceu? Que tipo de dificuldades o senhor enfrentou nessa entrada na Johnson?

R - Eu encontrei, eu praticamente não encontrei dificuldades porque da parte dos meus chefes eu mereci confiança e eles me concederam certa autonomia, sem o que muita coisa eu não poderia fazer, e eles me davam metas apenas no que diz respeito ao valor das vendas que eles pretendiam que eu fizesse, o montante das vendas, x de vendas. Eu, felizmente, como eu tinha um espírito de equipe muito bom com os meus homens, nós sempre conseguíamos superar essas metas e isso era muito gratificante.

P/1 - A área que o escritório do Rio cobria era só o Estado do Rio? Qual era?

R - O Distrito Federal, então era a capital federal, a cidade do Rio de Janeiro e depois quando se atravessava a Baía de Guanabara,, já tinha Niterói do outro lado que era o Estado do Rio de Janeiro, né, fazia-se o Estado do Rio de Janeiro, algumas cidades como Campos, como Niterói, como Friburgo, Petrópolis, Teresópolis, faziam-se essas cidades.

P/1 - Bom, senhor José, depois, em 1953, o senhor vem pra São Paulo, é isso?

R - Vim pra São Paulo.

P/1 - Por que da vinda para São Paulo?

R - Porque acontece que na Pfizer eu tinha uma posição muito boa, era bem remunerado, mas eu não tinha autonomia e autonomia eu sempre considerei uma coisa indispensável pra gente conseguir levar a bom termo as suas tarefas. Esse ditado que diz: “Amarra-se o cachorro à vontade do dono” eu nunca aceitei de bom grado porque a gente tem que argumentar, tem que dialogar, tem que ponderar. Eu aprendi uma coisa muito importante na época que eu fui militar que a ponderação cabe sempre. Então tem que se ponderar e eu na Pfizer não tinha a autonomia que eu desejava. E deu-se uma vaga aqui em São Paulo e como eu tinha saído, como eu sempre saí das empresas em que trabalhei deixando a porta aberta, eu fui convidado a vir pra São Paulo. Como a minha família era originária de São Paulo e eu vinha a São Paulo com regular frequência, visitar parentes e tudo mais, eu aceitei como um desafio. E graças a Deus esse desafio deu certo. Já conhecia as pessoas com que iria trabalhar, né, o senhor Sanches, que voltou a ser o meu chefe imediato. Havia um senhor americano que era o gerente da divisão farmacêutica que chamava-se Edward Walker Junior, que era o chefão, o big boss.

P/1 - Da divisão farmacêutica.

R - Da divisão farmacêutica. Então viemos para São Paulo e não podemos nos queixar. A minha senhora me foi muito solidária, ela era carioca, já tinha uma filha carioca, né, a Cristina, e nos adaptamos muito bem em São Paulo a tal ponto que mais tarde ela não queria ouvir falar em probabilidade de voltar pro Rio.

P/1 - Bom, já que o senhor mencionou a sua senhora, vamos pegar aí o momento do seu casamento. Como é que se dá o seu casamento ainda no Rio, né? Como o senhor conheceu a sua esposa?

R - É, eu conheci a minha senhora no Pedro II quando fazíamos o complementar, eu fazia o de Medicina e ela o de Direito. Então nos conhecemos, foi um namoro de adolescentes, por assim dizer, porque eu tinha 18 anos e ela 17. E foi um namoro que redundou em casamento anos mais tarde. Nos dávamos muito bem, tivemos um casal de filhos e ela resolveu não seguir Direito, embora estivesse preparada pra fazer o vestibular de Direito na época, mas naquela época não era frequente, nos idos de 1940, as mulheres seguirem assim carreira universitária, elas tinham que fazer uma opção. Tudo muda na vida, né? Hoje, por exemplo, 50 anos depois, os conceitos e as noções de valores são completamente diferentes, naquela época a mulher era dona de casa, dificilmente ela conciliava, eu até admiro muito aquelas que conseguiram conciliar a tarefa de dona de casa, mãe de família com profissionais. Então ela optou por ser uma dona de casa, compreendeu? Às vezes até ela dizia: “Não sei se me arrependo ou não, porque eu poderia ser independente, ter a minha profissão.” Eu digo: “A decisão foi sua.” Eu nem interferi na decisão, exemplos também de casa, né, da família e tudo mais.

P/1 - Bom, chegando em São Paulo que impressão o senhor teve da estrutura da empresa aqui, que já era, não era mais um escritório, né, o senhor já conhecia mas passou a trabalhar na empresa, na matriz, né? Como era a estrutura, relacionamento do pessoal?

R - Bem, nós tínhamos escritório na Rua Xavier de Toledo, éramos completamente desligados.

P/1 - Não era lá na Avenida do Estado?

R - Era na Avenida do Estado a fábrica e a administração, a minha equipe tinha um escritório na Rua Xavier de Toledo quase esquina da 7 de Abril. E lá eu conheci a minha equipe, vamos admitir, a princípio me receberam assim um tanto friamente porque eu vinha de fora, né, mas depois de um certo tempo de convívio eu me adaptei muito bem, embora eu contei com o apoio de alguns companheiros que mais tarde foram promovidos e tudo mais, né, que eu tive uma felicidade muito grande em toda a minha carreira profissional, eu consegui formar muitos profissionais, seja pra trabalhar na Johnson, seja pra trabalhar fora da Johnson. Eu consegui formar, consegui moldar, compreendeu? E até uma característica muito interessante, o meu relógio anda adiantado sempre cinco minutos e todos eles aprenderam a andar com o relógio adiantado cinco minutos. (risos)

P/1 - Bom. Nós estávamos falando do ambiente da Johnson, né, da Farma, da divisão aqui em São Paulo. O senhor dizia que ela não ficava na Avenida do Estado?

R - O escritório?

P/1 - O escritório.

R - O escritório de São Paulo funcionava na Xavier de Toledo. De lá mesmo eu administrava todos os Estados que estavam incluídos na minha região.

P/1 - E quais eram os Estados? Qual o tamanho da sua equipe?

R - Mato Grosso, bem, aí eu tinha viajantes, né? Mas eu tinha, aí volto a dizer, eu tinha Mato Grosso, eu tinha Goiás, tinha o Triângulo Mineiro, tinha o Norte do Paraná e todo o Estado de São Paulo. Nós deveríamos ter, se não me falha a memória, nessa época nós deveríamos ter pra cobrir todo esse extenso território em torno de uns catorze homens.

P/1 - Catorze homens?

R - É. Os viajantes, por exemplo, tinham itinerários que duravam de 45 a 60 dias, quer dizer, o médico não era visitado com aquela assiduidade que se desejava, de 30 em 30 dias, mas de 45 em 45, ou 60 em 60 dias. Havia uma seleção rigorosa para que se dedicasse o tempo àqueles que tinham possibilidade de dar melhor retorno, né? Mas era uma equipe sempre muito coesa e uma coisa que eu absolutamente não coloco dúvida é que em qualquer tipo de trabalho em que haja espírito de equipe esse fator é preponderante para o sucesso do trabalho e isso se conseguia fazer, um espírito de equipe reconhecidamente conhecido por todos.

P/1 - O senhor pode se lembrar de algum fato, aí já estou incluindo até o período do Rio, interessante nesse período em que o senhor trabalhou diretamente com vendas, quer dizer, alguma coisa especial, algum evento especial que tenha ocorrido no relacionamento do vendedor com o médico ou dentro da equipe?

R - Assim de algo muito especial eu me lembro, por exemplo, de um companheiro que foi, hoje quando se fala em companheiro lembra-se do PT até a gente precisa ter cuidado, mas de um colaborador que trabalhou comigo no Rio e que mais tarde foi promovido a supervisor em Belo Horizonte. Foi o primeiro supervisor em Belo Horizonte, ele hoje é um empresário muito bem sucedido, tem uma firma de distribuição, por sinal até é um dos distribuidores da Johnson em geral, Josino J. Vieira Filho. Esse rapaz trabalhou comigo no Rio e ao término, eu acho que ao término até brincando, o período de uma gestação, nove meses, ele foi promovido pra ser supervisor para os Estados de Minas Gerais e Espírito Santo. Isso foi muito agradável pra mim. Outro detalhe muito gratificante foi esse rapaz, o Josino, veio a São Paulo, trabalhar em São Paulo depois de ter trabalhado em Belo Horizonte e ele teve uma contribuição muito grande no meu retorno a Johnson, porque foi ele quem me perguntou a primeira vez se eu gostaria de reingressar na Johnson pra trabalhar em São Paulo. Então ele teve uma participação atuante nesse meu retorno a Johnson e a minha vinda pra São Paulo. E uma pessoa que eu evoco com muita saudade, com muito carinho, que o substituiu em Belo Horizonte e que trabalhou comigo no Rio, foi preparado por mim, chamado José Martins, que foi pra Minas e depois, quando eu assumi a supervisão geral, eu o trouxe de volta pro Rio, uma pessoa que sempre mereceu, uma pessoa leal, uma pessoa de absoluta e irrestrita confiança e competência, de origem muito humilde, mas que foi um dos melhores colaboradores que a Divisão Farmacêutica teve. Esses dois fatos. E pra mim era muito gratificante cada vez que um homem que trabalhava comigo era promovido dentro da própria empresa ou eventualmente ele até recebia um convite obviamente de melhores condições pra trabalhar fora da empresa, né? Isso eu não tinha outra participação senão ter reconhecido os méritos dessa pessoa pra proporcionar essa oportunidade. Eu tive amigos, companheiros, colaboradores que se fazem hoje merecedores da minha maior admiração e da própria empresa pela contribuição que deram pro progresso da empresa.

P/1 - Nesse momento, quer dizer, o senhor tinha deixado a medicina e abraçado uma carreira que trazia uma série de possibilidades, mas ainda estava um pouco em início a sua carreira. O senhor passou a questionar em algum momento assim a decisão de ter abandonado a medicina pra ficar com a empresa?

R - Não, porque eu fiz uma opção muito segura. Eu quando decidi, eu fiz uma opção que eu disse: “Eu dou pra isso.” E eu, dos meus irmãos, eu fui o único que não fui professor, todos foram professores, e eu tinha uma didática muito boa pra transmitir pros outros, compreendeu? Talvez eu tivesse tido uma boa opção se tivesse sido professor porque eu sempre me comuniquei com muita clareza e com muita segurança, eu não gosto de uma palavra: “talvez”, eu digo “a minha opinião”, “eu penso que”. Porque esse negócio de dizer “talvez”, “eu acho”. “Eu acho”, eu acho ainda pior. Eu penso que o “eu acho” é pior do que o “talvez” porque o achismo é uma coisa muito abrangente, uma coisa assim, na minha opinião, isso eu faço questão de frisar na minha modesta opinião. Então quando eu tomei essa decisão eu disse: “Não, eu vou fazer uma coisa bem feita.” Tinha um exemplo do meu pai e resolvi fazer as coisas e, graças a Deus, fui bem sucedido. Eu, às vezes, uso muito essa expressão “graças a Deus”, mas eu acho que pra quem não é ateu é uma forma de expressar o reconhecimento por tudo aquilo que nós recebemos, né? Um filho sadio, uma situação de vida relativamente confortável sem preocupações, um casamento feliz, uma carreira bem sucedida, tudo isso acho que cabe nessa expressão.

P/1 - Bom. O senhor nesse momento aqui em São Paulo tinha a empresa, a Farma, a Divisão Farmacêutica, chega em meados de 1940, né, ela é criada aqui no Brasil. O senhor tinha uma empresa em torno de uns dez anos, por aí ou menos que isso. Quais eram os desafios...

R - Um setor da empresa.

P/1 - Um setor da empresa, isso. A empresa, quando eu digo, porque hoje ela é uma empresa separada, mas naquela época era uma divisão, né? Mas que desafios se impunham, qual era a situação da empresa no mercado naquele momento?

R - Bem, a empresa era muito conhecida através de esparadrapo, gaze, não é, ataduras e até o próprio Modess, compreendeu? Mais tarde surgiu o Band-Aid que concorreu muito para o conhecimento sobre a Johnson, mas eu tive oportunidades de visitar médicos que me interpelavam: “Mas a Johnson tem medicamentos? Eu só conheço tais e tais produtos” E citava os que eu mencionei, né? Eu digo: “Não, nós temos, nós estamos expandindo a pouco e tudo mais”. Mas o nome Johnson é um nome de muito impacto, de muita força. Então a Johnson trabalhando com habilidade, a Johnson como um todo, ela soube conquistar o mercado brasileiro e hoje é essa potência que todo mundo tem que reconhecer.

P/1 - Os laboratórios internacionais estavam sendo incorporados, foram em 1959 e 1963, né?

R - Em 1959 nós tivemos duas incorporações: a Mcneill e a Cilag. E em 1963, a Janssen Farmacêutica.

P/1 - Que novidades isso trazia para o Brasil? O que representou pro Brasil imediatamente, em termos de produtos?

R - Ah, representou muito. Eu inclusive faria uma citação. Quando eu entrei em 1949, havia um produto que eu já mencionei que não era desenvolvido no Brasil, o Jonconol, era desenvolvido pela Ortho Pharmaceutical Corporation, uma entidade de muito prestígio nos Estados Unidos. E eles lançaram um produto com muito sucesso, o chamado Vagi-Sulfa, que era uma associação de sulfas pra uso vaginal. Nós fomos durante muito tempo, especializados em produtos da Ortho pra uso ginecológico, tanto na parte ginecológica, como até obstétrica, mas lançou-se um produto que hoje é muito conhecido, Rarical, que é um antianêmico, um hematínico, e que nós desenvolvemos duas fórmulas: Rarical com vitaminas, o primeiro Rarical que foi pioneiro deixou de existir e hoje nós temos o Rarical Com Vitaminas em drágeas pra adultos e em suspensão pra crianças. Isso foi por volta de 1956, aproximadamente, o Rarical. O Rarical Com Vitaminas foi 1956 e o Rarical simples por volta de 1955. Mas a Ortho deu essa contribuição e o Rarical trouxe uma força muito grande, primeiro a Vagi-Sulfa depois o Rarical.

P/1 - O Rarical também é um remédio que vem da Ortho?

R - Veio da Ortho, oriundo da Ortho.

P/1 - Eu pensei que ele fosse desenvolvido no Brasil.

R - Não, a fórmula com vitaminas foi adequada no Brasil.

P/1 - Ah, certo.

R - Foi adequada aqui no Brasil, né? E hoje é um dos, vamos dizer, multipolivitamínicos porque ele é uma associação polivitamínica com minerais. A fórmula primitiva do Rarical era citrato de cálcio de ferro, citrato de cálcio ferroso, que tinha uma grande virtude, era cálcio e ferro numa só molécula, então foi um avanço adiantadíssimo.

P/1 - Ele foi um sucesso imediato.

R - Foi um sucesso, né? A Vagi-Sulfa já tinha sido um sucesso também.

P/1 - Só um minuto que vamos ter que fazer uma troca de fita.

[troca da fita 001-B]

R - Vamos voltar.

P/1 - Vamos retornar ao Rarical. Ele foi um sucesso imediato de vendas?

R - Foi um sucesso, absoluto. Depois vieram os concorrentes, mas até hoje ele mantém uma posição de destaque no mercado que lhe diz respeito, né, na área de receituário que lhe diz respeito como mineral polivitamínico, como antianêmico, ele tem dupla ação. É um produto consagrado.

P/1 - Ele veio então no bojo desses produtos que vieram da Ortho, e dos outros laboratórios houve algum outro produto importante nesse momento, Cilag, Janssen...

R - Houve da... A Cilag eu não me lembro assim de nenhum produto, como é que eu poderia dizer, já consagrado que ela veio acrescentar. Ela tinha uma linha de contrastes radiológicos, tinha um anti-otalgico chamado Ciloprin, tinha um antisséptico urinário, Piridasil, era um laboratório de muito conceito por ser um laboratório suíço, um laboratório respeitado. Então eu diria que a linha da Cilag como um todo trouxe uma contribuição apreciável, veio ajudar o conceito da linha já existente dos demais produtos e trouxe essa contribuição. A Janssen trouxe um neuroléptico que teve muita aceitação, o Haloperidol, hoje consagrado com o nome de Haldol, mas um neuroléptico de muito sucesso que eu ouvi de um psiquiatra uma vez uma expressão, que eram ampolas de 1 mm, que ele disse: “Isso aqui vale por uma camisa de força.” Na época em que os hospitais psiquiátricos tinham ainda o costume de usar camisa de força e aqueles tratamentos a base de choques elétricos. Aquilo era desumano tanto de um lado, como de outro. O Haloperidol veio revolucionar o tratamento nos hospitais psiquiátricos, foi uma contribuição muito grande. E trouxe também uma linha da neuroleptoanalgesia com o Droperidol, o Fentanil e o Inoval, que era uma associação de ambos, do Droperidol e do Fentanil. A neuroleptoanalgesia é um tipo de anestesia que, inclusive, é anestesia geral praticamente sem riscos, desde que manipulada por anestesistas competentes, isso é essencial, né? Então, a Janssen, nessa área de neuroleptanalgesia e neuroléticos, depois do Haloperidol, veio o Triperidol, veio um antidistônico que ficou muito famoso chamado Vesalium. Havia também um produto chamado Megabil, um digestivo, atuava na vesícula principalmente. E a Janssen era um laboratório que já tinha projeção na Europa, mas que adquiriu projeção no Brasil, através da qualidade dos seus produtos e os campos que esses produtos cobriam, né? Foi uma aquisição muito feliz no nível da Johnson & Johnson Internacional.

P/1 - Quer dizer, abre novos campos de atuação para a empresa.

R - Novos campos da medicina.

P/1 - Antes disso os campos principais quais seriam? Antes desses laboratórios?

R - Os campos desses laboratórios eram pediatria, ginecologia e obstetrícia, clínica médica e clínica geral.

P/1 - E a aceitação foi imediata, foi feito uma campanha, como é que foi feito o lançamento desse produto assim, a estratégia de venda.

R – Para o lançamento, foi feita uma campanha muito específica, digamos assim, e nós tivemos inclusive a presença do professor Paul Janssen que, em flamengo, eles não dizem Janssen, eles dizem Yansen, né, o jota.

P/1 - O criador do laboratório?

R - O criador do laboratório, que desenvolveu todas essas fórmulas e que nos prestigiou com a presença dele aqui no Brasil, com os médicos de maior prestígio na área de psiquiatria e de anestesiologia. Então isso ajudou muito.

P/1 - Quando foi isso?

R - Em 1963.

P/1 - Logo no lançamento?

R - Logo no lançamento.

P/1 - Bom, o senhor em 1956 era supervisor regional, 1958, supervisor geral de vendas e 1965, gerente de marketing farmacêutico, quer dizer, nesse período todo o senhor esteve bem ligado a produto, né, a venda direta e subindo um pouco mais aí a gerência de marketing...

R - Perfeito.

P/1 - ...que já estava cuidando da estratégia geral do planejamento de vendas. Como é que... O que é que acontece nessa trajetória, nesse período, até a gerência de marketing na empresa e pessoalmente com o senhor em relação à hierarquia...

R - Bem, a empresa cresceu como um todo e o que foi muito gratificante é que a Divisão Farmacêutica, como era designada, cresceu consideravelmente com a incorporação desses novos laboratórios, com o bom trabalho que fizemos aqui no Brasil, nós aumentamos o número de pessoas que trabalhavam no campo, o número de pessoas que trabalhavam internamente, compreendeu? Sempre de um espírito de equipe extremamente apurado e tivemos a felicidade de ter um retorno substancial. Sempre uma perfeita harmonia, o senhor Sanches, que o senhor vai ter oportunidade de entrevistar, sempre demonstrando ser um líder na acepção da palavra e sempre dando exemplo, um homem de um feeling extraordinário, um feeling excepcional, as intuições dele. pelo menos as que eu tomei conhecimento, sempre bem sucedidas e isso ajuda, né, e muito. E no mais sempre trabalhando dentro desse espírito de companheirismo, depois tivemos a vinda de um dirigente americano pra cá.

P/1 - Quando?

R - Em 1970 aproximadamente. E posteriormente eu passei a me reportar diretamente a ele invés de me reportar... porque o senhor Sanches já tinha uma estrutura muito grande, né, o complexo todo da Johnson & Johnson. Então eu passei a me... Ele ficou como vice-presidente, era o senhor William Josef Baxter, e eu passei a me reportar nessa parte, por exemplo, que eu era gerente de marketing eu me reportava a ele. Durante esse período houve um detalhe que eu menciono apenas en passant.

P/1 - Em 1965, como gerente de marketing?

R - Não, em 1965 não.

P/1 - Ele veio em 1970, né?

R - Ele veio em 1970.

P/1 - Gerente de desenvolvimento e expansão.

R - Em 1973, é que eu passei para gerente de desenvolvimento e expansão.

P/1 - Sim.

R - Que era toda a área que estava sob a responsabilidade desse vice-presidente Baxter.

P/1 - Certo. Certo

R - Então eu ocupei esse posto depois de ocupar a gerência de marketing. Mas em 1970, houve a implantação de uma divisão veterinária da Johnson & Johnson.

P/1 - Ah, interessante.

R - Divisão essa que não teve muito sucesso, nós dependíamos basicamente de um produto anti-helmíntico chamado Nilverme, que era o Levamisol, a base desse anti-helmíntico. Esse anti-helmíntico tinha sido lançado com muito sucesso pela Janssen para uso humano com o nome de Ascaridil, mas ele tinha indicação também na área veterinária naturalmente em dosagens adequadas. Na área, ele tinha um outro nome obviamente, que era Nilverme. E eu implantei essa divisão veterinária na Johnson & Johnson e depois tive a ajuda de um veterinário extremamente competente que hoje dirige uma publicação no Rio Grande do Sul, “A Hora Veterinária”, que é o doutor Alci José de Vargas Cheuiche, ele era o gerente da divisão veterinária. Essa divisão veterinária deve ter durado eu penso que uns quatro anos. Depois a Johnson achou que o mercado não estava correspondendo justamente por escassez de produtos. Nós tínhamos uma série de concorrentes nessa área mesmo de anti-helmínticos e tínhamos praticamente dois produtos pra helmintos, um para equinos, chamado Telmin, e outro pra ovinos, chamado Nilverme.

P/1 - Tem algum produto na área farmacêutica que não foi bem recebido, que teve um lançamento frustrado?

R - Houve um produto que não foi bem sucedido porque os médicos brasileiros não souberam usar com critério, era um vasodilatador coronariano, o sal era Lidoflazini, o medicamento chamava-se Clineo e os experimentos clínicos foram magníficos, foram muito bem sucedidos, todos coroados de êxito, mas há entre a classe médica dois sentimentos muito distintos: um é o corporativismo, a classe que tem maior corporativismo, mais intenso corporativismo; é a classe médica e a outra é a ciumeira, a rivalidade. Então como esse produto deixou de ser experimentado por alguns nomes proeminentes da cardiologia brasileira, inclusive professores, eles se ressentiram muito e começaram assim a encarar o produto com certo ceticismo. E paralelamente houve alguns casos também de má aplicação do produto e a Johnson achou por bem retirar o produto do mercado, mas foi um produto revolucionário enquanto durou. Esse foi o único caso que eu me lembro.

P/1 - Bom. Tem um produto também que eu acho que marcou época na Johnson e marcou época porque ele mudou comportamentos que foi a pílula, né, na década de 1960.

R - A pílula, inclusive, a pílula surgiu em 1963, o Novulon.

P/1 - Novulon.

R - Que é da Ortho.

P/1 - Da Ortho. Sempre da linha ginecológica.

R - O Novulon veio da Ortho. Que também...

P/1 - Como é que ocorreu o lançamento, houve problemas de reação, por exemplo, de grupos conservadores, da Igreja?

R - Ah, houve. Ele foi lançado como um ciclo-regulador, para pessoas, por exemplo, que têm dismenorreia, que são essas regras que são dolorosas e que não têm periodicidade desejada. Então o Novulon foi apresentado como um ciclo-regulador. Essa era a fachada, mas na verdade era um anticoncepcional.

P/1 - Naquela época não se podia colocar anticoncepcional.

R - Não se podia colocar isso em evidência porque era proibido terminantemente.

P/1 - Era proibido?

R - Terminantemente.

P/1 - Por lei?

R - Por lei.

P/1 - E quando é que houve uma mudança legal que se passou a vender como pílula, mesmo porque houve um momento que isso foi feito, né?

R - Houve um momento em que foi aberta a verdade, mas isso houve influência de correntes da medicina, progressistas felizmente, houve influência de sociólogos, inclusive havia um no Rio de Janeiro que escrevia muito, me foge o nome dele no momento. Mas era um sociólogo que não é tipo morno como alguns sociólogos que hoje estão em evidência. Era um sociólogo incisivo nos seus pronunciamentos e esse cidadão fez alguns pronunciamentos na época bastante temerários, mas cabíveis. E foi mudando o conceito, hoje já se fala de uma maneira muito livre sobre esse assunto. E como já se fala muito livre, eu patrocinei, na minha primeira oportunidade que eu trabalhei como consultor na Johnson, eu desenvolvi, juntamente com as autoridades sanitárias do Rio Grande do Sul e um médico aqui da Faculdade de Higiene, doutor Walter Belda, eu desenvolvi um programa de educação contra as doenças sexualmente transmissíveis. Então se abordava o uso do preservativo livremente, ninguém falava em camisinha ainda, já se falava preservativo e hoje nós temos aí essa campanha intensa. E Alair Guerra de Macedo que inclusive hoje é responsável por essa área no Ministério da Saúde, naquela época já o era, compreendeu? Ela é irmã do Carlai Guerra de Macedo, ela é irmã, que hoje é o diretor da Organização Pan-americana de Saúde, eles são do Piauí, uma família de gente inteligente e ilustre. Mas as coisas aconteceram assim com o decorrer do tempo, com a evolução dos conceitos, mas sempre enfrentando a resistência eclesiástica, né, que só a Igreja Católica combate, eles têm os métodos que eles aprovam e o resto é inadmissível.

P/1 - Agora do ponto de vista legal o anticoncepcional foi tirado de rescisão, de proibição legal na década de 1960 mesmo?

R - Eu diria que no início da década de 1970.

P/1 - Início dos anos 1970?

R - Ficou algum tempo assim em banho-maria como a gente diz, né? Os conceitos foram se mudando aos poucos.

P/1 - Teria sido o produto de maior impacto de mercado durante a década de 1960, de 1970?

R - O Novulon?

P/1 - O anticoncepcional Novulon.

R - Ele teve uma participação boa, mas não era o líder do mercado.

P/1 - Não era líder?

R - Não era.

P/1 - Qual era o líder de mercado?

R - O líder de mercado era um medicamento que era da Schering alemã, a Schering alemã naquela época era conhecida como Berlimed, mas com franqueza não me lembro o nome.

P/1 - Bom, e dentro da Johnson qual era o produto líder? Da Johnson, melhor dizendo Divisão Farmacêutica, Farma.

R - Em que época?

P/1 - Nos anos 1960. (pausa)

R - Nos anos 1960, inegavelmente nós tivemos o Rarical, o Resprin, o Vesalium, como líder de mercado.

P/1 - O Resprin foi lançado quando?

R - Não posso lhe responder. Você pode até anotar o Ascaridil também era líder de mercado, o Ascaridil veio revolucionar o tratamento das helmintíases porque com um só comprimido, é a dose única, um comprimido eliminava os vermes, viu?

P/1 - Vermífugo?

R - Principalmente o chamado Ascaris lumbricoides, que é o mais comum. (pausa)

R - O Resprin foi lançado em 1967.

P/1 - 67. E foi um produto com grande impacto de mercado, né?

R - Um grande impacto de mercado que assumiu uma liderança substancial no início da década de 1970.

P/1 - No início de 1970 ele passou a ter mais sucesso que antes.

R - É, três anos. Obrigado.

P/1 - É, o Resprin não foi lançado no mercado... Era um remédio ético?

R - Era, de prescrição médica.

P/1 - De prescrição médica.

R - Mas como não tinha faixa vermelha ele era receitado pelos médicos, mas não era

obrigatório de prescrição médica, compreendeu? Porque o que diferencia o medicamento de prescrição médica daquele que é isento de prescrição é a tarja vermelha que foi instituída pelo ministro da Saúde, doutor Paulo de Almeida Machado.

P/1 - Quando?

R - Durante o governo Geisel.

P/1 - Governo Geisel.

R - Ele foi ministro da Saúde, o único ministro da Saúde no governo Geisel.

P/1 - Antes disso não havia diferenciação.

R - Antes disso não havia diferenciação à primeira vista, né? Estava lá: “Venda sob prescrição médica”.

P/1 - Só na bula.

R - Mas mesmo hoje em dia em que existe isso especificado “Venda sob prescrição médica” e uma tarja vermelha enorme, compreendeu? As farmácias não respeitam esse conceito. Com exceção dos medicamentos de tarja preta, que são os tranquilizantes, os neurolépticos, etc., consegue-se comprar nas farmácias o que se quer, inclusive produtos injetáveis, não há a menor restrição. E dependendo da localização algumas farmácias vendem até os de tarja preta que são aqueles cuja receita fica, é uma receita especial que fica retida na farmácia, eles dão um jeitinho, mas isso, felizmente isso é muito raro porque são medicamentos que podem induzir a uma dosagem exagerada, levam ao hábito normalmente e são até às vezes usados como tentativa de suicídio, né?

P/1 - Esse comportamento que a gente hoje considera típico do brasileiro da automedicação e da compra desses remédios que deviam ser prescritos pelos médicos é uma coisa histórica, o senhor sempre constatou que houve isso no Brasil?

R - Sempre houve, sempre houve. O brasileiro tem o hábito de se automedicar, a automedicação responsável que é o conceito que predomina hoje nos países do primeiro mundo e mesmo aqui vizinho na Argentina, no México, que não integram ainda o primeiro mundo, e que hoje é motivo de uma disputa aqui no Brasil porque eles não querem permitir a venda desses medicamentos nas lojas de dispensação tipo supermercado, etc. A automedicação responsável é feita com um tipo de medicamento que não traz consequências, a não ser quando tomados em doses vamos admitir fora do comum, mas na grande maioria das vezes, tomando de acordo com as recomendações que constam do cartucho, da bula, etc., não trazem nenhuma consequência, são medicamentos que combatem os sintomas, então é a automedicação responsável. Aliás, tem uma entidade internacional que coordena isso, e eles defendem o que eles consideram responsable self medication. Agora, a medicação que se faz no Brasil é irresponsável porque tem essa possibilidade da pessoa comprar, sem o menor problema, medicamentos que só podem ser vendidos sob prescrição, os tais que levam a tarja vermelha, compreendeu? E tem uma coisa muito pior que é o que muito balconista de farmácia usa: a “empurroterapia”. O sujeito chega lá e diz: “Estou com uma febre, tal, uma dor de garganta.” “Ah, leva aqui um antibiótico, tal, leva um antitérmico”, compreendeu? Bem, o antitérmico normalmente não é controlado, não está sob prescrição médica, mas o antibiótico está. Então ele já faz um receituário enorme porque ele tem comissão sobre as vendas; ou eles têm certos fornecedores, certos laboratórios que têm um tipo de produto que eles chamam de B.O., eu não sei porque que eles chamam de B.O., mas B.O. é um produto sem credenciais que... Naquela base, que o farmacêutico compra 50 e recebe 50 de graça então tem um lucro adicional extraordinário e que faz com que ele proporcione ao balconista uma comissão de 10%, vamos admitir, eu estou estimando números hipotéticos, pra ele empurrar aquele produto. E dentre esses produtos chamados “empurroterapia” estão inclusive alguns de prescrição médica. Mas o nosso Ministério da Saúde... Olha, eu conheci alguns ministros da Saúde, o único que me impressionou favoravelmente, que fez alguma coisa de concreto, foi esse que eu mencionei o nome, o doutor Paulo de Almeida Machado, no governo Geisel. O resto...

P/1 - Como é que... Qual o perfil da situação da indústria farmacêutica no Brasil durante esse período dos anos 1960? Porque nós falamos muito sobre esse perfil nos anos 1940, quando ainda estava começando a entrada das multinacionais. Entram as multinacionais no Brasil e me parece que muda o quadro, porque também as empresas nacionais são absorvidas, eu não sei exatamente o que acontece com elas.

R - Algumas empresas foram absorvidas, o Torres, por exemplo, foi adquirido pelo Laboratório Silva Araújo Roussel; o Pinheiros foi adquirido pelo Laboratório Sintex. E algumas outras empresas nacionais deixaram de existir, porque não foram absorvidas, mas cerraram as suas portas. Havia um laboratório muito bom no Rio, Maurício Vilella, que foi adquirido pela Beecham. Mas eles não tinham como enfrentar a concorrência e com isso a predominância passou a ser das multinacionais. E com isso levou, no governo Médici, a uma criação de lei de patentes que favorece a cópia. A Johnson, por exemplo, ou a Abbott, ou Pfizer, ou a Sandoz, Roche licenciam um produto no Ministério da Saúde, no Serviço Nacional de Vigilância Sanitária, com uma documentação farta, correta, compreendeu? Substancial, todos os requisitos desejados. O senhor Manoel das Quantas tem um laboratoriozinho minúsculo, lança um produto idêntico, obviamente com outro nome, usando toda aquela documentação que foi usada pelo dono da fórmula para licenciar por similaridade. E isso que é a grande luta no Congresso Nacional porque há os “nacionaleiros” que não querem reconhecer o direito da propriedade intelectual. Se isso existe na música, se isso existe nos livros, o escritor tem a propriedade intelectual daquilo que escreveu, daquilo que criou. Da música. Quem é que vai, por exemplo, refutar o direito autoral de uma música do Caetano Veloso, que é um nome atualíssimo, ou do Roberto Carlos, qualquer coisa. É plágio, essas cópias são plágios. E foi no governo Médici que se criou essa situação que até hoje perdura e que o governo Fernando Henrique vai ter que dar uma solução nisso em curto prazo.

P/1 - Agora, antes da existência dessa legislação havia a possibilidade da cópia também ou não havia simplesmente uma legislação que regulasse essa questão?

R – Não, havia a possibilidade dessa cópia, mas havia uma defesa no que diz respeito ao processo de fabricação. Então era uma situação muito estranha porque quem copiava não tinha que provar de que maneira fazia o processo. O detentor da fórmula é que tinha que fazer sentir com que a fórmula vinha sendo produzida no mesmo processo que se dava com ela, mas sempre houve cópia. A cópia, ao meu modo de ver, é a razão pela qual até hoje ainda sobrevivem muitas indústrias nacionais, à base de cópia.

P/1 - Agora, do ponto de vista do mercado, essa situação nos anos 1960 para a Johnson criou uma competitividade muito grande? Porque a Johnson, a Divisão Farmacêutica já estava desde 1940 no Brasil, quer dizer, a partir daí entram várias empresas fortes. Como é que fica essa situação de busca de mercado pra Johnson nesse período?

R - A Johnson já chegou a ocupar uma honrosa terceira colocação entre os laboratórios de maior venda no Brasil. Mas acontece que quando nós atravessamos...

P/1 - Quando foi?

R - Uma terceira colocação.

P/1 - Quando?

R - Isto nos anos 1970. Logo no início dos anos 1970. Mas depois com o rigoroso controle de preços, porque foi um setor que sempre sofreu um rigoroso controle de parte do governo, com isso desestimulou muito as indústrias. Então as indústrias passaram a ter uma preocupação maior do que a venda, ou melhor, a venda está condicionada a um fator essencial: o lucro. Porque vender muito, fazer volume de venda e não ter um lucro que permita a sobrevivência e que permita principalmente remunerar os seus acionistas, isso é muito importante, é desinteressante. Mas as indústrias hoje se equivalem, se juntarmos Janssen e Cilag, elas têm uma posição muito boa, mas isso o Saliba lhes dará os elementos necessários. Ele está muito melhor atualizado do que eu nessa área.

P/1 - Bom, vamos voltar um pouco à sua trajetória pessoal diante da empresa. A gente parou lá na década de 1960, final de 1960 e 1970. O senhor foi gerente da Farmacêutica, ocupou um cargo no comitê executivo da empresa e em 1972 o senhor vai pra gerência de desenvolvimento e expansão...

R - Divisão de Produtos Profissionais.

P/1 - Divisão de Produtos Profissionais, quer dizer, estava sempre ligado a uma... Não houve nunca uma mudança do senhor para outro segmento da empresa, né? O senhor sempre ficou na área farmacêutica.

R - Não, nos produtos profissionais nós tínhamos produtos hospitalares, produtos odontológicos, compreendeu?

P/1 - Então é a primeira vez que ocorre uma mudança para um setor um pouco diferenciado porque até então o senhor estava sempre com produtos farmacêuticos.

R - Exato, mas numa área em que eu não tinha uma responsabilidade assim direta. Eu dava sugestões, eu fazia contatos, né, nessa área.

P/1 - E como é que se deu essa mudança? O senhor foi convidado? Como que era a evolução do funcionário dentro da empresa?

R - A Divisão Farmacêutica já tinha crescido tanto, a evolução da Divisão Farmacêutica era um fato inegável, tinha crescido demais e, como é que eu poderia dizer, com as minhas atribuições dentro da Abifarma, eu não tinha muito tempo pra me dedicar às minhas atribuições da empresa, aquilo que eu falei, quando eu comecei eu dedicava 20%, quando eu larguei o abacaxi eu tinha 80%. Então as minhas atribuições tiveram que ser... pra poder conciliar as minhas atribuições tinham que exigir uma presença menos permanente porque a minha presença era permanente. Que, aliás, era o slogan aí que acontece naquela xerox que eu lhe dei. E foi feito então uma adequação à minha atuação dentro da empresa, eu perdi substância, diga-se de passagem, pra poder me dedicar a Abifarma, porque eu tinha uma responsabilidade muito grande. Eu tinha uma responsabilidade dentro da empresa e uma responsabilidade perante o setor farmacêutico nacional que abrangia não só firmas nacionais, como multinacionais. E um detalhe curioso do qual eu me envaideço é que no fim eu consegui conquistar a confiança das empresas nacionais, embora funcionário de uma multinacional. A tal ponto que quando lançaram o meu nome pra uma reeleição os lançadores foram empresas nacionais porque eu tinha um princípio: eu, quando entro na porta da Abifarma, que ficava na Avenida Beira Mar, no Rio de Janeiro, eu tiro a camisa da Johnson e visto a camisa da Abifarma. Não se pode querer conciliar as duas coisas: uma coisa é a pessoa ser presidente de uma entidade de classe e a outra é pretender ser presidente de uma entidade de classe legislando em causa própria, isto é, eu acho antiético. É uma opinião minha, muito pessoal, mas eu acho antiético.

P/1 - Bom, o senhor entrou na questão da Abifarma, então vamos voltar um pouquinho e dizer como é que acontece a sua entrada nessa associação e o seu envolvimento, né, com as questões mais políticas do segmento da indústria farmacêutica.

R - Bem, eu comecei a, era Abif, Abif na época.

P/1 - Associação Brasileira da Indústria Farmacêutica.

R - Isso. Depois continuou sendo Associação Brasileira da Indústria Farmacêutica, mas foi o resultado de uma fusão da entidade nacional com a Abifarma que era tido como das multinacionais, não o era. As multinacionais tinham muita força dentro da Abifarma, mas não havia nenhuma política contra as nacionais, de maneira alguma, tanto que foi uma das coisas que se caracterizou dentro da Abifarma depois que houve essa mudança na Lei de Patentes. A Abifarma não é fórum pra discutir patentes, patente é tabu dentro da Abifarma, não se discute. Daí que se criou a Cifabe, criou-se a Interfarma e criou-se a Alanac que é a Associação de Laboratórios Nacionais que conflitam porque uma é pró-patente e a outra é contra patente. Mas foi o senhor Sanches, que ocupou durante um curto período, em 1968, 1967, 1968, ele ocupou durante um curto período a presidência da Abifarma porque o presidente ficou doente e ele era vice-presidente e teve que ocupar, ele sugeriu o meu nome pra ser vice-presidente da Abifarma. Então em 1968 eu ingressei na Abifarma, corrijo Abif, como vice-presidente. E a indústria farmacêutica na minha época, agora eu não sei, estaria cometendo uma leviandade se trouxesse pra hoje esse conceito. É uma indústria muito pobre em liderança e eu consegui conquistar o apoio, a simpatia e isso me deu uma boa base, né? E depois eu acabei sendo arrastado pra presidência que já sabia que era uma posição delicada, e depois o problema mais tarde não foi a presidência, foi me livrar da presidência. (risos)

P/1 - Quais eram as questões mais importantes debatidas pela entidade naquele momento?

R - Bem. O controle de preço.

P/1 - O controle de preço sempre.

R - Eu vou conseguir uma cópia e vou fazer chegar às mãos de você oportunamente. O Globo tem uma seção: “O Globo há 50 anos”. Muito bem, em 1941 começou o controle da indústria farmacêutica, exatamente no ano em que eu comecei a trabalhar na indústria farmacêutica. Veja que coincidência! Agora que eu me dei conta. Desde 1941 que já havia controle, teve Sunab, teve Conep, compreendeu? Teve CIP, compreendeu? Então, um dos grandes problemas da indústria farmacêutica na minha época de dirigente de entidade era preço, obtenção de preço. Nós ficávamos sempre aquém das nossas necessidades. Isso fez com que inclusive, como já falamos a pouco, muitas indústrias nacionais trocassem de dono ou fechassem e muita indústria internacional saísse do Brasil; também aconteceu isso, indústria internacional se retirar do Brasil.

P/1 - O senhor se lembra de alguma especificamente?

R - Eu me lembro do Parke-Davis que hoje é distribuído pelo Aché, Laboratório Aché.

P/1 - Ele tinha atuação direta.

R - Tinha atuação, né? A Warner também, a Warner Lambert está com Aché hoje, compreendeu? Não me ocorre assim, de momento, outros nomes, mas alguns laboratórios multinacionais desistiram de trabalhar no Brasil porque não viam resultados. Outro é a morosidade do Ministério da Saúde no registro de produtos que até hoje é uma luta. Houve épocas, eu diria que do governo Figueiredo pra cá o negócio piorou muito, do governo Figueiredo, piorou demais. E começou haver uma onda de comentários sobre corrupção no Ministério da Saúde, que não me cabe dizer se procedem ou não, mas onde há fumaça, há fogo geralmente, né? E os ministros da Saúde, nós tivemos um exemplo no governo Itamar com Jamil Haddad que foi um caos no Ministério da Saúde. A única qualificação que ele tinha para o ministério era ser amigo do Itamar e médico só. E temos agora o nosso amigo Jatene, que é um cirurgião de primeiríssima ordem, mas que, às vezes, eu me questiono: “E como administrador?” Nós vamos enfrentar um imposto aí que é a ressuscitação ou ressuscitamento do IPMF e eu quero ver como é que ele vai administrar os recursos. O Ministério da Saúde é um ministério que tem os seus alicerces abalados e isso foi consideravelmente aumentado depois do... a partir do governo Figueiredo. Então o registro de produtos, preços e patentes e agora temos outro problema. Porque na época em que Jamil Haddad era ministro da Saúde: os genéricos... Os genéricos existem em todo país do mundo. Aspirina, Aspirina é marca registrada da Bayer. Muito bem, eles querem que no rótulo do produto 2/3 sejam ocupados ácido acetilsalicílico e um 1/3 do rótulo, da bula, melhor dizendo, do rótulo Aspirina. Ou é uma coisa ou é outra, ou leva a marca Aspirina, ou no caso, por exemplo, do Ascaridil ou o Levanizoli Johnson ou Aspirina, vamos dizer, qual é um líder, o Aché, entende? Se bem que o Aché é um laboratório nacional de padrão internacional, o Aché hoje não é brasileiro, é multinacional, tal o número de empresas que ele representa. Então o Brasil vai ser o único país do mundo onde vai ter a marca e a substância no mesmo rótulo, isso é um contrassenso e a substância em dizeres de tamanhos muito maiores que a marca. A famosa e famigerada, porque diferença entre famosa e famigerada é muito pequena 793, criação do excelentíssimo senhor ex-ministro Jamil Haddad. Nesse momento o problema dos genéricos é um problema muito sério e ele vem sendo postergado, eu não sei como é que essa novela vai terminar.

P/1 - Falando em produto, em remédio, uma coisa que me ocorre: o que é que houve de mudança substancial em termos de rótulos, embalagem de produto de remédio nesses anos todos que o senhor conviveu com esse...

R - Ah. Houve sempre uma atualização, não é? Os designs modernos, as cores mais atraentes, não é? Os laboratórios cuidam muito disso, pra destacar melhor nas prateleiras.

P/1 - Mas uma questão de design assim em termos de orientação interna, bula, essas coisas.

R - Há laboratórios, por exemplo, que têm cores padronizadas pra todas as suas embalagens, outros não têm cores, não é? Por exemplo, deixou, hoje um bom número de produtos não vêm mais em vidros. Quando são drágeas ou comprimidos vêm em blister que é aquela embalagem de alumínio que você aperta em cima e o comprimido ou a drágea solta embaixo. É muito mais prático aquilo e muito mais econômico, deixou de ser embalado em vidro.

P/1 - As mudanças de embalagem contribuem pra aumentar as vendas dos produtos?

R - Muitas vezes sim, porque é muito mais prático você carregar um blister no bolso do que um vidro. Essa é uma das razões, a praticidade.

P/1 - Mas a maioria dos remédios é receitada pelo médico, por isso é difícil que um produto se levante por causa da embalagem, quer dizer, é preciso que...

R - Ajuda.

P/1 - Ajuda. Bom, vamos falar um pouquinho de ambiente de trabalho na Divisão Farmacêutica; eu tenho aqui a informação pelo menos o pessoal das outras divisões acha que a Divisão Farmacêutica sempre foi a mais séria das divisões. É uma fama que tem, né? O senhor... Bom, antes de entrar vou ter que fazer uma interrupçãozinha vamos trocar de fita.

[Troca da fita 001-C]

P/1 - Bom, retomando a pergunta, era sobre o ambiente na Divisão Farmacêutica, que sempre teve certa fama dentro da Johnson de ser a mais séria, a divisão mais séria. Como é que o senhor entende isso, como é que o senhor via o ambiente de trabalho dentro da divisão? (pausa). Pode continuar.

R - Bem, eu não diria bem a mais séria eu diria a mais ética. A Divisão Farmacêutica sempre primou pela ética e era considerada uma divisão da elite, de elite, diz melhor não da elite, de elite. O pessoal tinha um treinamento mais acurado e havia uma preocupação que esse treinamento fosse permanente. Eu institui, aí me perdoe se eu falo na primeira pessoa, mas eu institui desde a minha época do Rio, naquela época se trabalhava aos sábados pela manhã, não havia semana inglesa. Então, eu institui reuniões de trabalho aos sábados pela manhã, que começavam às oito horas da manhã e normalmente se estendiam até o meio dia, meio dia e meia de treinamento. Aqui da matriz seguiam boletins de instrução que nós aprimorávamos por iniciativa própria no Rio e nós fazíamos muito treinamento de visitas médicas, quer dizer, nós pegávamos dois companheiros de trabalho, um fazia o papel de médico e o outro fazia o papel do visitador. Então era uma prática muito salutar e muito produtiva porque o que fazia o papel de médico procurava jogar umas cascas de banana no meio do caminho. (risos) Mas o que estava sendo alvo desta brincadeira sabia que depois ia haver recíproca. Então eles estavam sempre muito afiados no preparo e nas convenções de vendas que havia, que naquela época eram bienais, a equipe do Rio sempre se saía muito bem devido a esse treinamento. E eu tive um problema que eu consegui resolver de uma maneira especial, era o problema da pontualidade, que tinha... três vezes por semana, os rapazes tinham a obrigação de ir ao escritório e as outras duas vezes, eles estavam dispensados. Eles iam segundas, quartas e sextas, e sábados, terças e quintas não. Então era a pontualidade; então eu institui uma caixinha, era uma caixinha de contribuição mensal que todos colaboravam, inclusive eu, que servia assim para um aperto, um aperto financeiro em vez de tirar dinheiro emprestado tirava na caixinha, tinha um juro, que por sinal não era dos mais baixos, faz lembrar até o Malan hoje. (risos) Ou o Loyola, diria melhor. Mas quando atrasava, o indivíduo pagava uma multa e a multa ia pra caixinha. Então eu não precisava dizer quem é que chegou atrasado, o próprio colega dizia: “Olha, você chegou atrasado, paga a multa.” (risos) E foi uma maneira que a pontualidade passou a ser uma constante no escritório do Rio de Janeiro e eu trouxe isso pra São Paulo, compreendeu?

P/1 - A caixinha?

R - E depois que eu já era gerente e tudo mais, isso estava difundido por todo Brasil, a caixinha da multa.

P/1 - A caixinha da multa.

R - A caixinha da multa, né? E que servia para dois propósitos: havia uma contribuição mensal para um aperto eventual e as multas entravam como uma espécie de juro da caixinha.

P/1 - Interessante.

P/2 - Senhor José Augusto, o senhor comentou no começo da entrevista quando estava preenchendo as fichas, do relacionamento das pessoas dentro de uma empresa. Gostaria que o senhor falasse, o senhor sempre chega, dá bom dia pras pessoas. Eu queria que o senhor resgatasse isso pra gente, da importância que tem isso pro senhor.

R - Bem. Eu penso que, antes de mais nada, é uma demonstração de educação além de ser uma demonstração de consideração. Porque o fato de eu encontrar um jardineiro, ou um faxineiro ou uma faxineira é um ser humano como todos nós. Então eu acho que merece o nosso respeito, merece a nossa consideração e não custa desejar bom dia. Às vezes a pessoa está com um problema, já vem de casa remoendo esse problema, não é? Ou chega no trabalho e leva uma advertência do seu chefe, isso cria assim mau humor, cria instabilidade, insegurança e um bom dia dado com um sorriso é um estímulo. Conosco isso também tem um efeito positivo então vamos, por questão de empatia, vamos nos colocar no lugar dos outros. Eu sou defensor ardoroso do calor humano no relacionamento no trabalho. Acho isso indispensável. Quando isso deixa de existir passa a haver rivalidades acirradas, passa a haver ressentimentos, não é? Passa a haver muitas vezes um fuxiquinho, uma interpretação errônea, às vezes, não é um fuxico é uma interpretação errônea, né? O sujeito olha assim e diz: “Olha, fulano já está olhando atravessado.” Não. Eu acho absolutamente, e recomendo, que toda empresa deveria ter que, antigamente era departamento de pessoal, hoje é relações industriais, né? Deveria olhar isso com muito carinho.

P/1 - Eu queria, complementando essa pergunta, que o senhor me falasse como é a hierarquia dentro da empresa, quer dizer, como tem sido no decorrer desse período todo que o senhor trabalhou. É uma hierarquia rigorosa em que chefe e subordinados colocam-se numa posição de respeito absoluto ou há um contato mais à vontade, né, entre subordinados.

R - Não. Não existe uma hierarquia rígida, não existe, é uma das grandes virtudes da empresa, não existe rigidez no trato do superior com os seus auxiliares, sejam imediatos ou não. É muito comum aqui, eu sou um dos poucos que muita gente me chama de senhor, acho que pelos cabelos brancos, compreendeu? Mas eu sempre digo: “O senhor está lá em cima.” Porque geralmente é você. E nesse ponto, sendo uma empresa americana, os americanos simplificam o inglês com o you, simplificam tudo, não tem senhor, os latinos é que são muitos, né? Eu trabalhei nesse Espasil e era mossieur, mossieur, le docteur, né? Tinha esse tipo de tratamento, aí já era um tratamento rígido. Os europeus de uma maneira geral, e particularmente os latinos, os europeus de origem latina eles são muito rigorosos nesse tipo. Mas aqui na Johnson felizmente sempre houve um tratamento muito à vontade.

P/1 - Uma curiosidade, o senhor disse que na brincadeira o que fazia o papel de médico jogava umas cascas de banana para o outro. Que tipo de coisa pode acontecer num relacionamento entre vendedor e médico que pode colocar o vendedor nessa situação?

R - Às vezes o médico faz uma pergunta que se o propagandista não estiver bem preparado, não conhecer o assunto, porque é muito importante que quando se vai promover um produto, e é uma promoção verbal a visita do propagandista, que ele conheça o seu produto muito bem, mas que conheça os concorrentes também muito bem. Não que ele vá depreciar o concorrente, aquele ditado que diz: “Falem mal, mas falem de mim” é uma realidade além de ser antiético. É deselegante uma pessoa, por exemplo, depreciar um produto, eu vou promover o meu produto e depreciar o alheio, de jeito nenhum! Então a gente tem que vender o nosso produto, conhecendo a concorrência porque se for levantado algum ponto da concorrência, sem o sentido de depreciar, mas no sentido de mostrar que o nosso tem algo mais, pra poder destacar o que nós temos de algo mais, né? Então esse era o tipo. São perguntinhas capciosas às vezes, às vezes fazem até no sentido de enredar o cidadão. Era a isso que eu quis me referir como casca de banana.

P/1 - Bom. Você quer fazer uma pergunta?

P/2 - Ao longo desses anos todos que o senhor trabalhou na empresa, o retorno que o consumidor deu pro senhor, para o departamento do senhor. O senhor comentou uma coisa assim de quando o Modess foi lançado no Brasil teve um nordestino que ligou pro senhor achando um absurdo.

R - É. Aí já não era o meu departamento, mas como ele pegou o telefone, viu que era Johnson, ele ligou e me destratou. Agora eu me lembro em que revista saiu, no Reader’s Digest.

P/1 - Seleções.

R - No tempo em que havia Seleções em português. Nem sei se ainda existe isso hoje em português.

P/1 - Tem. Ainda tem.

R -

Tem? Então um nordestino ligou pra mim, mas aquele bem arraigado no sotaque nordestino, não sei se tem algum nordestino aqui. (risos) Bem arraigado que aquilo era, como é que ele falou? Ele não falou que era uma indecência, ele usou outro termo bem característico, mas ele quis classificar de obscenidade. Foi o que ele disse: uma obscenidade uma propaganda do Modess numa revista como Reader’s Digest. “Essa revista entra na minha casa, né, como é que eu vou levar essa revista para os meus filhos?” Com a propaganda do Modess. Então veja o que é conceito, isso foi em 1950, o conceito de hoje que a televisão invade a casa dos outros e a gente vê nas novelas das seis, que é uma novela de horário infantil, cenas de sexo, né, as coisas mudam. E o nordestino tem uma coisa, quando ele resolve desfraldar uma bandeira, ele desfralda mesmo, no sentido agressivo, ele é nacionaleiro e vai ali. Felizmente o clima mudou muito em todo o Brasil. Mineiro também era muito puritano, né? Mineiro era o puritanismo personificado, assim não sei se estou pisando no pé de alguém. (risos)

P/1 - Não. Eu sou mineiro, mas concordo plenamente.

R - A tradicional família, como é que é?

P/1 - _______ ________.

R - Aquilo era. Era o puritanismo, né? Mas de Minas nunca recebi nenhuma reclamação não.

P/1 - Houve algum outro fato com consumidor que assim...

R - Não só esse, mesmo porque eu não estava ligado a consumidor, né, estava ligado a médico.

P/1 - E médico. Algum médico reagiu de alguma maneira?

R - Alguns médicos, por exemplo, em relação ao Jonconol reagiam, né? Eu, por exemplo, visitava um professor muito famoso, a origem dele, ele era de Mato Grosso, até hoje a família dele é famosa no Mato Grosso, a família Corrêa da Costa, o professor Clóvis Corrêa da Costa, era professor de ginecologia e obstetrícia, ele fazia mais obstetrícia do que ginecologia. Eu não podia nem falar no Jonconol com ele, né? Então eu me abstinha muito simplesmente. Pra que é que eu ia criar uma área de atrito quando eu tinha outros medicamentos que ele receitaria. E ele apreciava a minha atitude. Mas era uma maneira, uma manifestação de respeito, né, pra que eu iria tocar no ponto fraco, ele muito provavelmente o mais delicadamente possível ia dizer: “O senhor quer ter a bondade de se retirar.” (risos) Não dá.

P/1 - Senhor José Augusto, o senhor se aposenta e se desliga da empresa, não é isso?

R - Eu me desligo da empresa e depois resolvi fazer, primeiro passo pela vice-presidência da Abifarma, em 1981 eu me aposentei. Por isso é que o meu currículo só tem dados até 1981, tem muita coisa, inclusive é um currículo extenso porque eu tive muitas atividades no exterior. Em Montevidéu, eu chefiei muitas vezes a delegação brasileira a nível da Conferência Setorial da Alalc, hoje Alad, nem existe Alalc nem Alad, hoje é Mercosul, não é? E eu quero ver como é que o Brasil vai resolver essa questão no Mercosul de 1793 e outras coisas mais. Mas tinha uma entidade que congregava todas as entidades latino-americanas da indústria farmacêutica, a Quifarma, eu compareci a muitas reuniões da Quifarma, inclusive muitas vezes chefiando a delegação e fiz algumas excursões também no Pharmaceutical Manufation Association, que é a entidade PMA americana, né, que equivale a Abifarma aqui no Brasil, representando a indústria brasileira. Tive uma vez na Organização Pan-americana de Saúde.

P/1 - O senhor a partir então da sua aposentadoria também não trabalhou mais na área de militância política da indústria farmacêutica, né? Aí o senhor passou a prestar assessoria.

R - Só assessoria e consultoria. Depois que eu... O trabalho mais produtivo que eu realizei nessa primeira fase de consultoria na Johnson foi esse programa de educação contra doenças sexualmente transmissíveis, que o Rio Grande do Sul é, na minha opinião, o único Estado que encara esse problema com realismo. Eles são de uma realidade chocante, eles têm inclusive filmes sobre esse assunto, filmes que à primeira vista podem chocar, mas que são necessários porque isso tem que ser. Como agora estão fazendo com o Bráulio, tem que chocar pra provocar reação. Então é o único Estado que encara o problema de frente. E nós tínhamos um interesse subjetivo que era o nosso preservativo, o Jontex. As vendas de preservativos cresceram tanto através desse programa, que foi oriundo do Rio Grande do Sul, que aqui em São Paulo teve o apoio do professor Walter Belda, da Faculdade de Higiene, e no resto do Brasil, que nós acabamos pondo a azeitona na empadinha dos outros porque a nossa produção não atendia a demanda do mercado e os outros concorrentes se fartaram de vender, né, mas através desse trabalho. Foi um trabalho muito bem feito, eu consegui apoio da classe médica de praticamente todo Brasil nessa área.

P/1 - Até pegando produtos de segmentos diferentes, se na década de 1960 foi a pílula que tomou o mercado do preservativo, agora houve uma certa inversão, né?

R - Não. O preservativo, o brasileiro tem um conceito de preservativo que eu vou me permitir reproduzir aqui porque se ouve com relativa frequência: “Usar preservativo é a mesma coisa que chupar bala com papel.” Não precisa dizer mais nada. (risos) Dentro desse conceito, não é, eu ouvi isso tanta vezes.

P/1 - Bom, eu queria que o senhor fizesse um balanço dessa sua trajetória no sentido de avaliar o que o senhor teria feito diferente tanto em termos pessoais como em termos de trajetória profissional.

R - Eu posso lhe dizer que tudo que eu fiz eu fiz conscientemente e o lá de cima foi muito meu amigo, continua sendo, por isso que eu sempre uso essa expressão, repito, “graças a Deus”. Mas sempre fiz por merecer, sempre lutei muito. Eu como funcionário, como chefe sempre procurei dar o exemplo, exigente, mas não intransigente, humano e principalmente sabendo reconhecer os méritos daqueles que dão o melhor de si, como eu dava e como continuo dando. Tenho um nome limpo na indústria farmacêutica e no conceito geral, felizmente. Haja visto que eu sou muito respeitado na indústria farmacêutica pelas posições que eu ocupei e pelo comportamento que eu sempre tive. E enquanto eu tiver saúde eu pretendo continuar trabalhando, se não visando remuneração visando satisfação pessoal. Vamos admitir, por exemplo, que ano que vem eu deixo de trabalhar visando remuneração, vou me dedicar a uma instituição de caridade, posso ajudar, eles precisam tanto de ajuda. Digo isso de coração. E por outro lado quando a pessoa chega à faixa etária em que estou é muito importante uma terapia ocupacional, senão começa a elucubrar e entra em pane. (risos)

P/1 - Bom, eu agradeço ao senhor ter dedicado todo esse tempo e se o senhor quiser concluir ou dar uma outra... Um complemento ao seu depoimento fique à vontade, a gente agradece.

R - Eu só diria o seguinte: que esse espírito johnsoniano, se é que possamos aplicar esse espírito de corpo que predomina dentro da Johnson, seja sempre uma constante porque todos aqueles que ocupam cargos diretivos na Johnson ocupam através de terem mostrado condições, qualificações pra tanto. E que seja essa família, esse clima de cordialidade, de compreensão de que a Johnson tem no seu corpo funcional.

P/1 - Ok.

R - Tá.

P/2 - Obrigado.

[Fim da entrevista e fim da fita 001-D].