Museu da Pessoa

Colecionadora de bons feitos e momentos

autoria: Museu da Pessoa personagem: Rosângela Ribeiro Mucci Barqueiro

Entrevista de Rosângela Ribeiro Mucci Barqueiro
Entrevistada por Luiza Gallo
São Paulo, 22/07/2022
Projeto: Inclusão e Diversidade - Ernst & Young
Entrevista número: PCSH_HV1221
Realizado por: Museu da Pessoa
Transcrita por Selma Paiva
Revisado por Luiza Gallo


P/1- Ro, pra começar, eu queria que você se apresentasse, dizendo seu nome completo, data e local de nascimento.

R – Eu sou Rosângela Ribeiro Mucci Barqueiro, nasci no dia doze de junho de 1959, na cidade de São Paulo, capital.

P/1 – E você sabe como foi o dia do seu nascimento? Te contaram a história?

R – Contaram a história da família, que foi bastante corrido (risos) e que meu pai estava trabalhando, chegou depois que eu já havia nascido, preocupado. Eu nasci na Clínica Infantil do Ipiranga, próximo, na época, do local onde meus pais moravam, que era na Vila Mariana e aí ele chegou e viu que tinha uma criança, entre outras, diferente, grande, gordinha e falou: “Nossa! Essa criança deve ter tido algum problema, porque ela é muito diferente das demais”. E ele ficou olhando, pra poder liberarem, pra ele entrar no quarto. E a enfermeira pegou essa criança e entregou na mão dele, pra ele entrar no quarto. Ele falou: “Mas essa criança...”, ela falou: “É a sua filha” e ele ficou muito espantado, porque eu era maior do que as outras crianças e ele achava que eu tinha meses, que tinha um, dois meses e aí ele entrou no quarto e falou pra minha mãe: “Ela é nossa”. (risos) E eles contavam isso com uma certa frequência para os meus irmãos. Eu sou a filha do meio, tenho um irmão mais velho, uma irmã mais nova que eu e nas reuniões de família, nos encontros, eles sempre contavam isso. Então isso foi uma marca muito forte pra mim, porque meu pai sempre demonstrou muito amor por mim, então é muito bom você ser desejado, querido. Eu acho que esse é um grande diferencial na vida de qualquer pessoa e isso era lembrado, de tempos em tempos.
Venho de uma família, meu pai é de família italiana, minha mãe é uma mulher que estava muito à frente do seu tempo, uma pessoa autodidata, praticamente não estudou, sabia ler e escrever e assinava o seu nome, mas com uma condição de inteligência emocional muito acima do normal. Minha mãe saiu de casa aos dezesseis anos, deixou todo mundo, foi embora, ‘tocou a vida’ dela, e meu pai, muito corajoso e apaixonado, acabou, mesmo sendo de família tradicional e conservadora, deixando de lado isso e “vamos construir daqui pra frente”. Mais tarde a gente entendeu que a saída da minha mãe não era só o que ela nos relatava, que ela veio de uma família muito grande, ela era a filha mais velha e presenciou muitas vezes o pai batendo nos irmãos e a gente entendia que era esse o motivo que a fez se desligar da família. Mas eu já adulta, aos treze pra quatorze anos, a minha mãe teve uma primeira crise emocional, na época foi colocado assim e ela foi diagnosticada com distúrbio bipolar, hoje conhecido como distúrbio bipolar. Ela precisou passar por algumas internações, fez tratamento e quando aderiu ao tratamento, tudo voltou ao que a gente poderia chamar de uma qualidade de vida melhor. Então eu convivi, desde jovem, com algumas limitações em relação ao entendimento do que se quer, de como você atingir as coisas, o preconceito, de tudo que faz a gente ser quem a gente é e se permitir fazer o que quer. A gente depende de um social que muitas vezes é segregador, discrimina e isso acaba trazendo dificuldade. Se a pessoa não tiver uma boa estrutura, um apoio familiar, pessoas importantes que te acompanhem, é difícil conseguir se manter honesto, íntegro e ter uma qualidade de vida.
Então, nessa ocasião eu também comecei... venho de uma família de classe média, precisando trabalhar, meu pai falava assim: “Mulher não precisa trabalhar”. Eu sou a primeira mulher na família que estuda à noite e que vai trabalhar. O sonho do meu pai era que eu casasse com quinze anos, morasse com ele e tivesse vários filhos, todos morando no mesmo lugar (risos). Mas eu falava pro meu pai que eu não ia casar, que não era meu objetivo casar, então que eu ia estudar e fazer as coisas. E aí com treze anos eu fui trabalhar com um médico neonatologista, eu nem sabia o que era isso, na época, mas a minha função era marcar consultas, confirmar as consultas, arrumar lá, organizar as fichas, fazer um arquivinho lá e eu fui orientada a despir a criança que chegasse para o médico poder pesar, medir, fazer a consulta clínica e depois, quando ele saía, eu vestia novamente a criança. Então eu vestia a criança, arrumava e devolvia pra mãe ou pro acompanhante. Essa era minha função. Só que eu não sabia que esse médico trabalhava com crianças com algumas deformidades, que tiveram algumas complicações por terem nascido prematuras, ou que tiveram alguns problemas durante o processo, mesmo, de nascimento, desde os primeiros dias de vida. E aí eu acabei tendo contato com crianças com deficiência, mas foi uma coisa muito natural pra mim, porque eram crianças. Então, eu, quando ia tirar a roupa, via que tinha alguma coisa diferente, às vezes um corpinho mais desenvolvido de um jeito, de outro, com algumas deformidades na cabeça, às vezes com um problema nos olhinhos, outras vezes com algum tipo de característica diferente, eu era curiosa, perguntava, ele me falava e tudo saía... e eu comecei a estranhar, às vezes, o comportamento da mãe, do pai, da pessoa que acompanhava, aquele sentimento de rejeição. Às vezes eu via que a mãe não tocava na criança, era a babá que ficava segurando e eu era muito curiosa, perguntava pra ele e ele ia conversando comigo e ele acabou meio que gostando de mim, porque eu não ficava assustada, nem amedrontada, nem achava ruim e até fazia algumas coisas diferentes, porque eu queria que aquela mãe sorrisse, que aquela criança ficasse bem, não ficasse tão desconfortável ali. Pra mim, hoje eu sei, mas na época eu não entendia porque a criança chorava quando a mãe tinha que tocar. Porque ela era mesmo rejeitada, (risos) não tinha jeito. Enfim, esse médico acabou me ajudando a estudar. Eu tinha dificuldades na aula de Biologia, de Química e ele, às vezes, ficava lá, me ajudando a fazer algumas coisas de escola, querendo me conhecer e sugerindo eu ir pra um caminho, talvez, de obstetrícia, de enfermagem e eu gostei da ideia. Passou, fui fazer outras coisas, acabei tendo que sair de lá, fui trabalhar em outras coisas, porque precisava ganhar um pouquinho mais pra poder fazer as coisas que eu queria. E trabalhar sem registro era meio complicado. Então aí eu comecei a trabalhar em vários outros lugares, fui ser secretária num escritório despachante aduaneiro, depois trabalhei com atividades que me davam uma rentabilidade maior pra poder fazer as coisas que eu queria, inclusive o cursinho, porque inicialmente eu não consegui bolsa, então tinha que pagar particular e meu pai falava assim: “Olha, você quer estudar? Vai, mas aí é por sua conta”. (risos)
P/1 – Ro, posso te interromper um pouquinho? Eu queria voltar bem no comecinho da sua infância e saber se você teve contato com seus avós.

R – Não. Nenhum.

P/1 – Não conheceu?

R – Meu avô paterno morreu um mês antes de eu nascer. Não tive contato com nenhum avô. Meu pai vinha de uma família italiana, que ele era o caçula de seis irmãos vivos, acho que eles eram em nove, mas quando eu nasci eles já eram em seis e meu pai era do tipo temporão. Então os meus tios tinham idade pra ser meus avós. Os meus primos tinham idade pra ser meus tios. Então eu fiquei mais próxima da família, uma família italiana que se reunia em festas e aniversário, Natal, Ano Novo, essas coisas. Eram os sobrinhos do meu pai, sobrinhos-netos, que eram os meus primos, vamos dizer, porque os primos eram bem mais velhos do que eu. O mais novo acho que tinha nove, dez anos mais do que eu, então eu não tive contato com meus tios... com os meus avós, mas tive muito com meus tios. E aí essa relação com a família era bem próxima. Meu pai foi um dos únicos irmãos que se manteve em casa. Todos os outros irmãos, que eu me lembro, nessa fase dos quinze, dezesseis anos, já foram pra apartamentos, e aí como a gente tinha uma casa grande, as reuniões de família eram na minha casa. E nisso a gente acabou tendo o privilégio de ter um convívio familiar com meus primos, meus tios e família italiana canta muito, come muito, fala muito, (risos) então a gente teve uma condição bastante favorável e, como eu falei, vez ou outra vinha a história de eu ser uma criança grande, bonita, gordinha, porque na minha época gordinho era sinônimo de saúde, de bebê Johnsons e tudo o mais e eu achava que eu era mesmo bonitinha. Até eu me tornei palmeirense, porque o ‘seu’ Leão, que era o pai do goleiro Leão, que foi goleiro do Palmeiras durante muitos anos, ficou famoso acho que pelo Palmeiras, gostava muito de mim, era alfaiate e tinha uma alfaiataria na esquina da minha casa e aí ele queria me ver pequenininha, ele me achava engraçadinha, enfim, falava: “Vem aqui”. Mas ninguém me carregava no colo, porque eu era pesada. Nem meus pais. Mas o Leão, quando saía do treinamento, (risos) ele o fazia me carregar. Aí eu achava o máximo ser carregada no colo. Não sabia quem era o Leão, (risos) não fazia ideia de quem era, acho que na época ele não era nem jogador profissional. Enfim, eu sei que eu me tornei palmeirense, porque eu era carregada no colo (risos) do Leão.

P/1 – E, Ro, você lembra de alguma vez, alguma reunião familiar que foi marcante pra você?

R – Todas eram. Eu tinha - e aí algumas das coincidências – um primo... aliás, ele continua existindo, embora eu não tenho contato com ele, mais, que tinha a minha idade, ele nasceu dia cinco de abril e eu nasci dia doze de junho, que teve poliomielite, então ele tinha uma deficiência física bem significativa e em todas as festas de final de ano todos nós nos reuníamos, inclusive ele, e eu era muito amiga dele, a gente se dava superbem e, assim, das pessoas com deficiência que eu conheço, que eu tive convívio, que eu brincava, que a gente fazia as coisas junto, que eu me lembro, era ele. E eu acho que isso também me ajudou a não criar nenhum tipo de segregação, por conta de uma característica, porque era o jeito dele ser. Ele tinha problemas nas pernas, um jeito de andar diferente, passou por várias cirurgias, eu lembro que ele tinha muitos... inclusive foi pro exterior, ficou um tempo fora. Eu me lembro o dia que a gente foi - a família muito junta, muito unida – no aeroporto, buscá-lo, ele veio com as duas perninhas engessadas, com uma trava no meio das pernas, que ele tinha que se manter durante um tempo com um trava nas pernas, mas a gente nunca deixou de comemorar aniversário, Natal, Ano Novo, a Páscoa, Dia dos Pais, Dia das Mães, então a gente sempre estava junto. E eu acho que isso me deu uma condição também favorável pra minha atuação, depois, porque era uma coisa natural, ele andava de forma diferente. Era uma das características, ele tinha mil outras. Esse foi o meu primeiro convívio maior com pessoas com deficiência. Lá atrás, antes, quando eu comecei a trabalhar, que eu fui trabalhar com as crianças pequenas e com múltiplas deficiências, aí já era uma outra condição, que era uma coisa estanque, eu via e depois passava, às vezes, dois, três meses é que eu ia ver de novo, num retorno, mas não tinha convivência. Com meu primo eu convivi. E com ele e com a minha família aprendi também muita coisa. Eu percebia a família, algumas pessoas da família faziam diferença, sim, em relação a esse primo, às vezes ficavam incomodadas de convidá-lo pra determinadas coisas, porque como será, será que dá, será que não dá? Na época tinha babá, lugar pra subir escada. A gente, que era arteiro, fazia um monte de coisas e eu vivia na rua. Meu irmão era dois anos mais velho que eu, então meus amigos eram os amigos dele. Ele, homem, era amigo de homem, jogava futebol na rua, andava de carrinho de rolimã, então eu me identifiquei muito mais com os meninos (risos) do que com as meninas. Só que, de repente, meu primo ia aparecer e aí a gente via a preocupação, às vezes, dos pais, das pessoas mais velhas em relação a: “Será que convida, não convida, é melhor não convidar?” e eu achava aquilo esquisito e eu perguntava pro meu pai. Desde nova eu perguntava: “Não vai chamar? Por quê?” “Porque isso, porque aquilo”. Aquelas explicações que eu só fui entender bem depois, né? Enfim, a gente teve um convívio que eu acredito ter favorecido bastante a minha identificação na área, não foi uma coisa complicada pra mim, conviver com pessoas com deficiência. A minha... eu tive chefes que tinham deficiência. Então, também essa coisa de que pessoas com deficiência são aquém, ou inferiores, ou de menos valia, pra mim não ‘bate’, porque eu tive chefes, (risos) patrão, pessoas com deficiência que trabalharam comigo e que tinham uma condição até superior na formação, na condição social. Então eu nunca tive esse paradigma como sendo uma coisa de menos valia, mesmo.

P/1 – Ro, na sua infância, o que você gostava de brincar?

R – De tudo. Principalmente das brincadeiras de menino. Meu irmão é que não gostava porque, pra ele brincar, a condição era cuidar de mim. E aí os amigos dele, que também tinha amigos um pouco maiores, acabavam cuidando de mim, porque meu irmão queria bater em mim, não queria que eu ficasse junto, como todo irmão mais velho não quer. “Não, deixa”, porque meu irmão era bom, ele jogava futebol, era muito bom, um cara popular na rua e eu sou da época que brincava na rua. Então os meninos, pra tê-lo no time, tinham que ‘carregar a malinha’, né? (risos) E aí eles me protegiam do meu irmão, porque às vezes meu irmão me sacaneava, mas eu acabei tendo, até hoje eu tenho muito mais contato e amigos homens do que mulheres. Sempre gostei de brincadeiras coletivas: jogar ‘queimada’, futebol, vôlei, bicicleta na hora de competir, mas eu nunca abri mão da boneca, fazia batizado de boneca, só que essas coisas de menina era pouquinho… me enjoava, eu queria brincar mais, eu queria mais coisas e nessa época também era uma época em que acho que devia ser começo de leitura de gibi, eu tinha amigos que faziam coleção de gibi. A minha casa tem um corredor muito comprido, são trinta metros recuados, a casa começa depois dos trinta metros. Então a gente usava aquele corredor pra jogar e tinha, na garagem, a mesa de ping pong e eu mais baixinha em relação ao meu irmão, nem sempre… mas eu lembro de cenas do tipo: eu sentada embaixo da mesa, vendo gibi, que era uma coisa que eu gostava. Pintar, desenhar, era uma coisa que era gostosa, mas o ping pong e a ‘queimada’ eram as coisas que eu mais curtia. ‘Queimada’ principalmente, por conta das risadas e de ser uma coisa coletiva. Eu gostava disso, de mais gente.

P/1 – Como era a dinâmica da sua casa? Os seus pais... conviviam todos juntos?

R – Todos juntos. Minha mãe era doméstica, morava em casa, tinha que cuidar dos filhos e da casa, que era muito grande. Nós, a diferença de idade nossa, do meu irmão pra mim, dois anos, e de mim pra minha irmã quatro, então eu sei que nós dávamos trabalho e me lembro muito pouco de pequenininho, mas já maior, por conta da minha mãe precisar de uma internação, de um tratamento e na época isso era uma coisa bastante restritiva, porque como falar com uma pessoa... na época o nome era psicose maníaco depressiva, que era esse o diagnóstico que era dado, então era meio que um assunto proibido, as pessoas evitavam falar. Mesmo eu já tendo meus treze, quatorze anos e já trabalhando, eu lembro que meu pai falava assim: “Olha...”. A minha irmã era pequena e alguém tinha que cozinhar na casa. Meu pai trabalhava o dia inteiro. Foi quando eu aprendi a cozinhar também, e aí meu pai falava assim: “Não chora na frente da sua irmã. Se você quiser chorar, espera eu chegar e a gente chora junto”. E a gente tinha esse trato, eu fiquei muitos anos sem chorar. Eu não chorava, por nada. E aí, nessa época, eu aprendi a cozinhar, fazer um monte de coisa, acabei indo fazer escola de culinária. Na minha época, Educação Física no ginásio era separado das aulas, né? Então eu tinha aula de Educação Física de manhã, saía correndo e ia pra casa, fazia comida, aí deixava as coisas preparadas pra minha irmã e a gente foi levando a coisa assim, porque pro meu pai era difícil, ele não aceitava as vezes que minha mãe precisava ser internada e a única pessoa que ele podia falar era comigo. Com meu irmão, um pouquinho mais velho, já não era muito presente, eu acho que por conta da idade, não queria participar, mas eu não tinha jeito, porque tinha a minha irmã que era bem mais nova do que eu e tinha que cuidar, né? Mas a gente tinha um convívio legal de família. Quando a minha mãe estava bem a gente ficava superbem. Tinha uma coisa de infância que eu amava, que era no domingo, meu pai sempre foi muito presente na vida da gente e aí no domingo era o único dia de folga, porque se trabalhava no sábado, até meio-dia e às vezes meu pai ia até um pouco mais tarde. Mas a gente viajava no domingo. Eu viajei muito com meu pai pra praia, pra Santos. Meu padrinho era de Santos, então eventualmente a gente ia visitá-lo e meu pai... era um dia só, mas a gente ia fazer piquenique e ia em todas as cidades do interior. Meu pai foi representante comercial da Santista durante muitos anos, então ele conhecia muitas cidades do interior, a gente ia e, no domingo, quando a gente não viajava, tinha uma coisa muito legal, que era todo mundo ir pra cama dele. Era nós três, meu pai, minha mãe, todo mundo na cama, zoando. Tinha uma televisão só, então a gente compartilhava, as brigas de quem é que vai mudar o canal, porque não existia controle remoto. (risos) Então, enfim, a gente viveu uma coisa de família muito legal, que foi em torno, mesmo, da TV, as discussões. Meu pai ia assistir os jornais, o Jornal Nacional era sagrado, então era pra gente ficar quieto, pra calar a boca, porque tinha que ouvir o Jornal. Meu pai era um cara que lia muito, foi o único dos irmãos que tem nível universitário. Todos os irmãos ajudavam o meu pai pra que o meu pai fosse o que eles não puderam ser, na época deles. Mas todos os irmãos muito bem-sucedidos. Foi uma época que o primário bastava pra você ser um empreendedor e um empresário de sucesso. E foi o que aconteceu com os meus tios, todos tinham uma condição socioeconômica melhor do que meu pai, que tinha, já, nível universitário. Mas o convívio com a família sempre foi muito positivo. Sempre com problemas a serem administrados, mas essa foi a melhor herança que eu tive, do meu pai e da minha mãe. Meu pai foi um homem extremamente honesto, correto. Eu lembro de um episódio: eu ia esperá-lo, quando ele chegava seis horas, seis e pouco da tarde, no portão, e aí na esquina do outro lado, de um lado era o alfaiate e do lado esquerdo era um barzinho. Uma vez o cara do barzinho me deu um chiclete, aqueles de caixinha e eu cheguei em casa com aquilo lá na mão e aí meu pai chegou: “O que é esse chiclete?” “Eu ganhei”. Ele falou: “Vamos voltar”. Aí foi comigo, fez eu devolver pro dono do bar, porque ele falou: “Não, você não tem que aceitar nada dos outros. O que é seu, é seu e quando você quiser, eu que vou comprar”. E eu lembro disso: eu morrendo de vergonha e o cara tentando falar que foi ele que tinha me dado, que eu não tinha pegado. Mas eu lembro dessa cena, eu ainda muito pequena. Meu pai foi sempre um cara muito honesto. Eu lembro que ele era contador da família, uma pessoa que fazia as coisas pra todo mundo, ajudava as pessoas com documentação pra fazer aposentadoria, ele ajudava as pessoas a fazer lá os acertos de contabilidade das coisas que tinha, então eu lembro que, na época do imposto de renda, meu pai ficava que nem um louco e lembro que ele deixava o imposto de renda dele por último e fazia questão dos centavos. Ele sempre pagou os centavos. Era uma coisa assim, que eu falava assim: “Mas por que não arredonda? Por que não põe pra mais, pra menos?” Tudo era com centavos. E a gente ficava até tirando sarro dele. Mas foi a melhor herança que eu tive: o amor do meu pai pela minha mãe e da minha mãe pelo meu pai, que era outra cena que eu nunca esqueci, que isso foi a vida inteira, enquanto ele viveu. A minha casa é um sobrado e meu pai, às vezes, ficava lá em cima e começava a gritar: “Olinda”. O nome da minha mãe era Olinda. Ou mãe, ele chamava minha mãe de mãe: “Mãe”. E aí a minha mãe parava o que estava fazendo: “O que foi? O que aconteceu?” “Amo você, eu te amo”. (risos) E a gente ouvia isso com uma certa constância. A minha mãe era uma pessoa mais reservada, ela não fazia escândalo, nem nada, mas do jeito dela fazia todas as vontades dele e também falava, então eu vivi isso. Apesar da doença, que não é fácil conviver com doença mental, apesar das dificuldades financeiras que a gente teve e das restrições que aconteciam, a gente teve uma condição bastante favorável.

P/1 – Eu queria saber que recordações você tem do período escolar.

R – Eu sempre fui uma pessoa esforçada. Eu queria alguma coisa, eu tinha que estudar muito. Eu percebia que o meu irmão era um cara assim, super... ele não queria saber de estudar de jeito nenhum, mas ele dava o jeito dele, conseguia ter uma coisa super fácil. E se eu quisesse fazer qualquer coisa eu tinha que estudar muito, ler, fazer as coisas. A minha irmã também estudava muito bem, acho que eles eram mais inteligentes do que eu e pra que eu conseguisse fazer as coisas e tudo mais, eu lembro que eu tinha que ‘dar duro’. Eu tinha que estudar. Eu falava: “Por que eles não estudam e tiram nota melhor do que eu?” (risos) Eu lembro disso. Mas eu era uma aluna aplicada, eu gostava de tudo, eu acho que eu gostava de aprender, eu tinha vontade de aprender. Eu era muito curiosa. Eu lembro que eu estudei em escolas públicas, então tudo era muito restrito e quando eu fui pro ginásio também era uma escola pública pobrezinha, mas quando eu fui pro colégio, eu fui pra um dos melhores colégios de São Paulo, na época. Você tinha que fazer vestibulinho pra entrar. E nesse lugar tinha quadra; laboratório de química; sala de música, era diferente, era muito grande, tinha cantina, não um cantinho qualquer, então era uma coisa assim que eu ficava deslumbrada quando tinha aula de laboratório, quando tinha a Educação Física na quadra, quando tinha que ir pra uma apresentação do _______. Era uma coisa muito legal, sempre e eu curtia, eu fazia parte das torcidas organizadas, eu fui atleta. Como eu sempre fui gorda, nasci gorda, meu apelido era Gorda, mas eu nunca associei isso a um possível bullying, ou uma coisa que me fizesse mal. Claro, tinha aqueles que me chamavam de Baleia, de gorda com um tom diferente, mas isso nunca foi um problema pra mim. Eu acho que, mais do que isso, eu fui muito amada pelos meus pais, pelas pessoas com quem eu convivi. Então quando as pessoas me chamavam de Gorda, nunca soou como um apelido pejorativo. Isso causa estranheza até hoje pra algumas pessoas que lembram de mim como Gorda, não como Rosângela (risos) e ficam assim, questionando: “Nossa, ai, desculpa, mas é Go”. Teve uma fase na vida que eu fiz teatro e me dei muito bem por conta de um papel que eu fui fazer, numa das peças, e fiquei conhecida no colégio e aí o pessoal me chamava de Go Star e eu achava aquilo o máximo, (risos) então eu nunca tive problemas com isso. Depois, agora, recente, de menos de dez anos pra cá, eu emagreci um pouco, então eu não fiquei mais tão obesa, mas os meus amigos que eu carrego até hoje, do primário, do colégio, alguns me chamam de Gorda e aí falam: “Não dá pra chamar de ex-gorda, não tem como. (risos) Ex-Go?” Que alguns escrevem, mandam alguma mensagem, é Go. Então eu tive essa condição de ter vivido uma coisa que foi um grande drama pra muita gente e que hoje talvez seja um dos maiores dramas, na minha época eu era uma pessoa diferente, no colégio tinha um gordinho, numa sala inteira, mas não era tão diferente. Eu tinha, também, um amigo negro na minha escola, que também pra mim não fazia diferença e hoje é diferente. Hoje você tem uma maioria negra, (risos) gorda e agora as maiorias sofrendo tanto bullying, preconceito, segregação. Eu vivi um momento de características de ser humano que é encarado de forma diferente. Eu acho que tinha, assim, um judeu na escola. Agora, quando você tem massas é que começa a ter umas coisas mais difíceis de se lidar. Acho que deve ter alguma coisa aí.
Mas vivi um momento bom na época de início da faculdade, onde eu me identifiquei com a profissão e comecei a conviver mais com pessoas com deficiência. Por ter que pagar a faculdade, precisei buscar bolsa de estudo, empregos melhores e aí tudo que eu fiz, desde o início da faculdade, foi relacionado à pessoa com deficiência. Acabei trabalhando sempre na área, mesmo nas vezes em que eu tentei sair, fui me especializar em testes projetivos e tudo mais, fui contratada pra trabalhar na época na Febem e aí o diretor da Febem me convidou pra trabalhar no hospital, porque ele estava sendo transferido pra penitenciária e ele queria que eu trabalhasse com os detentos que eram pessoas com deficiência física, visual, auditiva e aí ele tinha visto no meu currículo que eu já havia tido experiência na área da deficiência. Eu fui psicóloga do Clube dos Paraplégicos, eu trabalhei com pessoas com paralisia cerebral, com jovens e adultos com deficiência intelectual na Apae, num clube chamado Gaivota. Em todos esses lugares eu tive um aprendizado muito legal, muito mais fortalecido e mais aprofundado do que a própria universidade. A universidade te apresenta a deficiência. Então, teoricamente eu tive, por exemplo, um ano... existe uma disciplina chamada Psicologia do Excepcional, na época, né? Era a que se referia ao atendimento de pessoas com deficiência. Então, na época era Psicologia do Excepcional, um ano, só no quarto ano. Quando eu entrei na faculdade, meu objetivo em fazer Psicologia era porque eu queria trabalhar na AACD [Associação de Assistência à Criança Deficiente]. Na minha cabeça a AACD era um lugar de excelência no atendimento às pessoas com deficiência e eu queria me formar pra trabalhar, porque eu achava muito legal o trabalho. Pensando na autonomia, na independência das pessoas com deficiência eu falava: “Nossa, é um hospital que faz a reabilitação, as pessoas vão ter todos os recursos necessários, as possibilidades e aí após a reabilitação vão trabalhar e é isso que eu quero fazer”. Então durante o processo da faculdade eu acabei entrando pra algumas áreas de desenvolvimento pessoal, treinamento e fui descobrindo uma condição extremamente favorável para o processo de desenvolvimento das pessoas no trabalho. E pessoas com deficiência tinham algumas limitações, começando pela falta de oportunidade de poderem participar de processos seletivos, porque ainda hoje, mas na época muito mais, não se pode ser quem você é, você tem que ser o que o outro quer que você seja. Isso era uma coisa muito complicada pra mim, até pelos meus desafios pessoais. Pelo meu pai eu teria casado, teria tido filhos e me tornaria uma dona de casa, mas foi dado a mim a liberdade de escolha, de falar: “Você quer? Então vai. (risos) Mas é você que tem que dar conta disso”. E eu tive o privilégio de ter uma casa, não precisava, nunca precisei contribuir com despesas de casa, porque meu pai mantinha isso. Mas o que eu quisesse pra mim, eu tinha que ir atrás. Então, pra mim, se era possível pra mim, por que não pras outras pessoas? Mas eu via que algumas características faziam com que essas pessoas não tivessem as mesmas oportunidades. Então, ao começar a trabalhar, já estagiando, eu fiz muitos estágios durante o período da faculdade, eu sempre acabava trabalhando na área da deficiência. E conhecendo mais profundamente porque, como eu falei, na formação acadêmica era apenas uma apresentação, mas no dia a dia exigia muito mais e eu tinha que ‘me virar’, porque eu não sabia porque aquela pessoa reagia de tal forma, que trazia a ela alguns prejuízos se ela se mantivesse naquela condição. Então eu queria entender. Aí eu tinha que conversar com o neurologista, falar com outro profissional, com o médico, com o cardiologista. Onde eu procuro informação pra saber? Mas essa pessoa toma determinados medicamentos que dão sonolência, que têm efeitos colaterais e aí você tem que ir estudando e ir atrás da informação, porque isso a faculdade não te dá, né? E trabalhando e estudando, como é que você faz, né? E aí eu comecei a treinar ouvir, eu aprendi a ouvir as pessoas falarem o que sentiam. Por exemplo: no caso dos paraplégicos eu ficava curiosa. Você andou até tal tempo, de repente você parou de andar, por um acidente, uma lesão na medula, um tumor, enfim e “Como é que é agora? Sem andar”. “E aí? Como você não sente dor?” “Você sente dor? Tem mal-estar?” “O que faz você ficar tendo espasmos, existe medicação pra isso?” Eu aprendi muito com eles e fui descobrindo que pessoas com deficiência têm que se superar muito pra conseguir ser quem elas são. Então pra poder ter uma rotina normal, em casa, ou no seu lazer, ou na vida profissional, é um peso muito mais forte, mas é possível. A minha convivência com eles mostrou as possibilidades. Então eu fui convivendo com pessoas com deficiência e estudando. Na faculdade eu tive a oportunidade de fazer alguns estágios. Eu fiz estágio no Lar Escola São Francisco, que era um serviço de reabilitação, na época era um internato, então eles moravam lá. Eu aprendi muito com eles, com alguns médicos fisiatras e alguns profissionais da área. Depois eu fiz esse trabalho na Apae também, depois trabalhei na Febem, no berçário, muitas vezes com crianças desnutridas, que tinham algumas sequelas em função, às vezes, também, de maus-tratos. Eu trabalhava na enfermaria da Febem, de crianças pequenininhas. Então, eu fui meio que aprendendo em algumas áreas, não só na parte de saúde, mas na parte de educação e no social também. Eu via que as crianças e mesmo os adultos se davam melhor com brincadeiras, histórias e aí eu ficava assim, apaixonada pelo que a arte faz, a arte transforma, traz uma condição muito favorável pra qualquer ser humano, mas pras pessoas com deficiência parece ser uma condição sine qua non pra qualidade de vida. Então eu via que a contação de histórias, a leitura dos contos de fadas, as brincadeiras faziam toda a diferença, fosse no processo de reabilitação, fosse no dia a dia, na rotina e até pra, na época, chamada integração, que eu achava que já era inclusão. Porque como, pra mim, não tinha muita restrição, a participação das pessoas com deficiência, eu achava que as pessoas tinham que participar, mesmo, de tudo. Tem que fazer adaptação, claro, mas nada impediria de uma pessoa jogar vôlei, mesmo sendo cega e aí as pessoas falavam assim: “Como assim, Ro?” Quando a gente gosta do que faz a gente está bem, a gente faz até de ‘olho fechado’, não é assim? Óbvio que não dá pra pessoa jogar vôlei com videntes, porque é só descobrir que você tem uma baixa visão ou é cega que vão cortar em cima de você. Ninguém está nem aí se você tem ou não a deficiência. (risos) Porém, jogo de vôlei... eu jogava vôlei, então eu sabia que no jogo de vôlei muitas vezes a gente ganhava no saque. Então tem um momento lá de rodar, substituir e aí, se o cara for bom no saque, por que ele não pode jogar? Então, se ele é cego, ou se ele tem baixa visão e treinar, ele vai ser um exímio, muito mais do que eu, porque ele só vai fazer aquilo, jogar basquete, sei lá. Então eu via possibilidades que a grande parte das pessoas não viam e o que me incomodava era que elas a impediam de fazer, sem perguntar. Na cabeça das pessoas ele não pode, porque ele é cego. “Você perguntou pra ele se ele não pode?” “Não perguntei, mas é óbvio, né?” “Como assim é óbvio? É obvio pra você, que não sabe o que fazer se você fechar os olhos, mas se você perguntar, quem sabe?” Então, assim é em tudo. A gente vai vendo. Os pais: “Meu filho não põe a mão no fogão. Lá em casa, quem esquenta as coisas sou eu”. Pra quem enxerga, imagina pra quem não enxerga. Então coisas de superproteção que a gente vai vendo que existe um preconceito camuflado de atuação em que você parte da sua perspectiva, projeta no outro, só que dependendo do seu poder, você impede o outro. Então eu acho que eu fui aprendendo muito mais na convivência e eu tive o privilégio de ter mestres, gente muito boa, doutores, pessoas que ficavam meio que fascinados com a minha vontade de aprender, então nunca impuseram a condição de ter que pagar pra eu poder te dar essa informação ou qualquer coisa. As pessoas ficavam: “Não, vem cá, eu te explico, te conto, mostro pra você como que eu faço” e eu fui lapidando todas as oportunidades que eu tinha indo atrás. Eu estou acreditando que tudo que aconteceu não foi por acaso. Foram coisas que eu busquei, no entanto eu recebi muito mais de volta. Eu busquei informações e acabei tendo a informação, a convivência, as oportunidades. E depois de tudo isso, passando por vários estágios, trabalhando com várias pessoas, eu via que em reabilitação você trabalha, por exemplo, num consultório, na clínica, no hospital, atende a pessoa e é por um determinado tempo, depois você perde o contato. Ela te procurou no consultório, ou você atendeu dentro do hospital. A minha primeira pós-graduação foi em Psicologia Hospitalar, então eu acompanhei muita gente no hospital, em processo de reabilitação, de habilitação. Então quando termina isso você fica estanque, mas eu tive a chance de envelhecer nessa área, de continuar trabalhando nisso. Então, agora, hoje eu participo, como eu ainda estou na ativa, de alguns movimentos, de alguns eventos em que eu encontro pessoas que eu atendi lá atrás, ou colegas que trabalharam e aí eu fico super surpresa e feliz de ver casos em que eu fiz parte daquela história, por terem depositado confiança em mim, acreditado no trabalho que a gente poderia fazer. Essas pessoas se tornaram profissionais, algumas casaram, algumas tiveram filhos, outras já estão no segundo, terceiro casamento, na segunda, terceira profissão e isso é uma grande vantagem da gente que continua trabalhando, porque você vê o resultado que isso faz quando você trabalha com abertura, com possibilidades, com alternativas, que não é de determinar que a pessoa só vai poder fazer tal coisa. Então aquela pessoa que, no início, numa reabilitação dentro de um hospital, imaginava: “Nossa, todo tempo investido e agora eu não posso mais ser nada, ser aposentada” e você chegar e falar: “Você não precisa ser aposentada. Existem tecnologias, alternativas e você pode ser o que você quiser ser, inclusive continuar sendo o que você já é, se você é advogado, engenheiro, eletricista”. São muito poucas as profissões que uma pessoa com deficiência não pode realizar. E eu costumo dizer, eu ponho uma vírgula e falo: “Por enquanto, porque como está tudo com uma tecnologia tão avançada, eu acredito até que um cego vai poder pilotar”. Não sei se eu vou ver isso, mas (risos) eu acredito que pode existir essa possibilidade. O que eu vejo é que onde existe chances de tecnologia associada a conhecimento e um trabalho humanizado, todo mundo pode ser o que quiser. Houve uma mudança muito grande nesse meu processo, também, de formação, porque eu vivi um momento em que as pessoas com deficiência dependiam totalmente de suas famílias ou do Estado pra poder fazer qualquer coisa: pra se formar, pra poder trabalhar. Dependia. Um cego tinha que... dependia da escola pra aprender o Braile ou pra usar os instrumentos que davam a ele a condição de aprender uma escrita, dependia da escola especializada, da família, alguém com disponibilidade pra ler pra ele. Se ele quisesse fazer uma faculdade ia ser mais complicado ainda, porque aí o número de leitura é muito maior e ele tinha que depender do irmão, do amigo, do professor. Eu vim dessa época e peguei na hora em que a tecnologia aparece junto com internet, com computadores e aí as pessoas com deficiência começam a ter, quando têm o acesso a isso, as mesmas oportunidades e que aí ele pode ser mesmo o que ele quiser. Ele pode ler a hora que ele quiser, estudar na hora que ele quiser, ele não depende mais daquela mãe. Ele depende de um software, de uma tecnologia que hoje está disponível. Então ele estando motivado a buscar, ele vai poder fazer o que ele quiser. O que traz uma condição mais favorável também pra, num futuro, ele ter a opção de trabalhar onde ele quiser. E é isso que eu acho que é uma coisa que sempre também me movimentou, nessas buscas. Eu aprendi que, assim: uma pessoa, pra ser reconhecida, precisa ser alguma coisa. Quando você chega numa rodinha e alguém te apresenta: “E aí, tudo bem?” “Tudo bem” “O que você faz?” É a primeira pergunta. E é duro não poder responder o que você faz. Não porque você não queira, mas porque você não teve essa condição. Tem uma música que fala disso, esqueci o nome. Guerreiro Menino. Gonzaguinha. Daqui a pouco eu vou lembrar, mas nessa música ele fala que é dignidade o trabalho, sem isso você não existe. Então as pessoas se movimentam pra isso e a pessoa com deficiência também precisa disso, né?

P/1 – Qual é a importância de ter empresas e lugares que pensam e possam contribuir com a inserção das pessoas com deficiência no mercado de trabalho?

R – Eu acho que assim: não é só a empresa, eu acho que é a sociedade. É claro que a empresa comanda, porque ela tem o poder, ela supre uma necessidade dessa sociedade, em alguma coisa, então… mas ela é composta também por pessoas da sociedade. Essa coisa de trabalhar com a diversidade humana é fundamental, porque todos nós somos diversos. Nós temos características diferentes. E está mais do que provado que é na diversidade que você tem o maior aprendizado e a melhor rentabilidade. Não dá pra fazer tudo igual o tempo todo. Não dá pra você trabalhar, por exemplo, somente com jovens. Você vai ter um problema muito grave, se você pensar: “Só com jovem”. Não, porque eles não têm maturidade suficiente pra se comprometer. Se você não tiver uma pessoa mais velha, mais idosa, mais experiente, você está fadado a ter problemas graves. Se todo mundo se veste do mesmo jeito ou tem os mesmos valores, os mesmos princípios, você não tem chance de repensar e isso é muito ruim. Quando você aprende um caminho, a tendência é você repetir esse caminho, mas quando você descobre outros caminhos, ou a possibilidade de existir outros caminhos, você amplia sua perspectiva. Então eu faço o caminho pela avenida tal, não sei o que, pererê, nananã. Tem um monte de gente que faz isso o tempo todo e pega congestionamento de duas, três horas, porque tem medo de se perder, porque o GPS manda pra lugar diferente, porque não sei o que e tal. Mas tem aquele que se arrisca e descobre uma vicinal, um caminho um pouco diferente e descobriu que tem um barzinho ali, que dá pra esperar, tomar uma cervejinha, ou que tem um shopping, preciso fazer uma compra ali, mas se eu não conversasse com alguém que faz diferente de mim, como é que eu ia saber? Hoje a gente tem acesso a muita informação, a gente é bombardeado de informações, não dá tempo de processá-las, a gente nunca tem tempo. No passado a gente não tinha tempo, mas agora parece que o tempo passa muito rápido, exatamente porque é muita informação. E cada coisa abre uma ‘janelinha’, né? Até a própria entrevista aqui, (risos) a gente começa, vai ver e vai aparecendo um monte de outras coisas. E são no monte de outras coisas que aparecem oportunidades, até melhores coisas que não eram esperadas que podem trazer um ganho pra informação e as pessoas precisam se dar essa oportunidade, né? Então a diversidade, o pensar diferente, o ser diferente, o agir diferente é fundamental. Hoje se sabe que tem um monte de situações em que normalmente atribuía-se um valor inferior, por exemplo, a uma pessoa com deficiência intelectual ou com uma deficiência visual, limitar os passos que essa pessoa poderia fazer. Até bem pouco tempo atrás estava restrito o mercado de trabalho pra pessoas cegas. Ela seria massagista, mais recentemente analista de sistemas, músico e mais meia dúzia de profissões. E hoje você encontra pessoas trabalhando em diversos segmentos: economista, advogado. Eu até brinco, que as pessoas só fazem esse tipo de relação com profissão, como se o nível universitário, acadêmico: engenheiro, advogado, fonoaudiólogo... você tem quinhentas outras profissões dentro da área da engenharia, que você não precisa ser engenheiro pra executar, pode ser um tecnólogo, um auxiliar, um assistente em audiovisual e aí quando alguém pensa que uma pessoa cega pode trabalhar com audiovisual? E aí eu falo assim: “Por que não?” Porque nós, que enxergamos, ou que teoricamente não teríamos nenhuma dessas características, não conseguimos imaginar o que é possível, mas é possível. Então entre algumas formações e especializações que eu fiz, eu me tornei audiodescritora, na década de 2000. 2006, 2008 eu comecei a estudar um pouco mais profundamente a audiodescrição. E quando eu comecei a estudar, eu falava assim: “Gente, pra trabalhar com audiodescrição você precisa ter pessoas cegas junto”. Não é o que eu acho. É o que é, e o que é quem tem que falar é a pessoa cega, com baixa visão. Então ele precisa ser instrumentalizado da técnica, de como você faz, por exemplo, um roteiro, precisa ser uma pessoa com um bom vocabulário, que tem interesse em cinema, teatro, enfim, tudo que a gente descreve, transforma em palavras uma imagem, porém tem uma coisa a mais, que é a condição de prestar uma consultoria pra mim, que consigo enxergar, mas eu tenho um limite no que eu enxergo. Então fazendo um exercício rápido, é assim: eu vejo uma imagem e se eu for descrever essa imagem, eu vou levar, sei lá, cinco minutos pra conseguir descrever os detalhes dessa imagem e tudo mais. Quando eu estudo quais são as palavras, como que eu posso descrever isso de forma que uma pessoa consiga formar a imagem do que eu estou descrevendo e eu consulto um cego, faz isso, ele resume, sintetiza, às vezes em uma, duas palavras. Então pra eu ter um trabalho de audiodescrição com qualidade, eu tenho que ter um consultor cego ou com baixa visão. A condição é essa. E é isso que eu falo: as coisas se complementam. Quando você convive com o autista, ele age de forma diferente de você, mas quem disse que muitas vezes a ação dele não é mais pertinente do que a minha, com todas as condições de atenção, concentração, interação e tudo mais. A mesma coisa com uma pessoa com deficiência intelectual, quando ela consegue sentir satisfação naquilo que ela consegue fazer bem-feito, não tem coisa melhor pra você trabalhar do que ver pessoas felizes trabalhando. É muito ruim você chegar em um lugar pra trabalhar, que você vai ficar mais tempo lá do que com a sua casa, com os seus amigos, com as pessoas que você ama. Você vai ficar muito mais tempo no seu trabalho do que nas suas escolhas. Então se você estiver em um ambiente onde você encontra pessoas satisfeitas, felizes, você vai se sentir muito melhor. É muito agradável, gostoso estar. E uma pessoa que é afetuosa, uma pessoa que compartilha alegria, sem aquela inibição de: “Eu não vou falar”, sem o pudor, te favorece e é só convivendo que você aprende isso. É muito bom as pessoas poderem expressar formas diferentes da que você imagina. Então como é que é, pra você, fazer determinada ação? Você só pode fazer isso perguntando pra pessoa que faz.

P/1 – Ro, nessa sua caminhada, teve alguma pessoa, algum encontro, seja com alguma pessoa __________, ou outros profissionais na área, que tenha te marcado significativamente, que você possa contar uma história pra gente?

R – Muitas pessoas, não tenho uma, mas, em particular, eu acabei… depois de conhecer um monte de área e tudo mais, namorei com algumas pessoas com deficiência que trabalham na área, porque você trabalhando você convive mais com pessoas da área da saúde, da educação, então a chance de eu namorar com essas pessoas é maior do que com um astronauta, do que um cara de outro lugar, né? É mais fácil eu namorar com alguém que convive comigo dia a dia no hospital, na clínica ou no centro de reabilitação. E eu acabei conhecendo algumas pessoas, mas eu costumava dizer pro meu marido que eu me preparei a vida inteira pra conhecê-lo, porque meu marido foi cego, ele era uma pessoa que teve retinose pigmentar, perdeu a visão aos 23 anos, mas eu o conheci já com 27 anos, portanto ele já estava reabilitado. Eu brincava que ele só teve chance comigo porque ele já era reabilitado. Já ia, fazia, tinha autonomia e independência. Então a história do meu marido é fantástica, porque ele vem de uma família muito simples, com algumas dificuldades a partir dos quinze anos, quando ele identificou que tinha algum problema na visão, mas não sabia o que era, passou a usar óculos e foi diagnosticado bem depois, mas era um cara extremamente inteligente, com habilidades diferenciadas em espaço e localização e era muito safo na Geografia, na História. Era uma pessoa muito dinâmica. E aí o que aconteceu? Quando ele recebeu o diagnóstico de retinose pigmentar e que foi dada a ele a informação de que a chance que ele teria, muito grande, de ficar cego, não ficaria só na baixa visão, a chance de se tornar um homem cego na vida mais adulta seria maior, aí ele passou por um momento muito difícil e fez a opção. Ele já trabalhava numa empresa multinacional, já fazia faculdade quando ele descobriu que iria ficar cego e aí ele teve que dar uma guinada e falar: “Bom, agora eu vou ter que continuar, vou ter que aprender Braile, usar bengala e me adaptar no que eu consigo fazer”. Como economista onde ele trabalhava, ele trabalhava numa área de, acho, processos contábeis, alguma coisa assim, na indústria farmacêutica e ele era muito bom naquilo, mas ele não tinha mais condição de trabalhar, porque ele tinha que fazer conferências, tabelas e não tinha como fazer isso. Ele foi, na época, mandado embora e aí ele entrou no processo de reabilitação, aguardando o que poderia ser uma futura função, em outro local. E aí ele mudou, passou a fazer a reabilitação, descobrir que existiam outras áreas de atuação e se identificou com a parte de tecnologia da informação, computação, análise de sistemas e começou a buscar formação nisso. Aprendeu, com um grupo de cegos, programação de computador e na ocasião o Itaú era uma das poucas empresas que já tinha um grupo de pessoas com deficiência visual trabalhando na área de informática. Então ele acabou conhecendo essas pessoas, aprendendo e se identificando na área, passou a ser professor de programação de computação e foi convidado pra trabalhar, foi atrás de emprego, não conseguiu na condição de cego, ele passava em tudo e na hora de fazer os testes não era dada a ele a oportunidade, ele começou a ficar muito mal e aí ele buscou ajuda em vários lugares, inclusive no Rotary Club, que um senhor que tinha morado na casa dos pais dele durante o tempo que estava em formação, era do Rotary e ele falou: “Eu preciso de ajuda, porque eu não consigo passar nos processos seletivos e é por conta da minha deficiência e tal” e ele falou: “Eu vou conversar, vou ter uma reunião com alguns empresários”, no Rotary que ele fazia parte. E aí ele foi chamado por uma das pessoas que soube da história dele e foi convidado pra participar do processo seletivo na Sadia. Entrou na Sadia, na área de computação e foi nessa época que eu o conheci. Alguns meses depois que ele estava lá eu o conheci. Nessa época eu trabalhava no Clube dos Paraplégicos e ajudei a fundar, hoje é Cadevi, Centro de Apoio a Pessoa com Deficiência Visual. Na época era Clube de Apoio ao Deficiente Visual. Eu acabei ajudando a fundar essa instituição, visando a um centro de convivência social e esportiva. E esse diretor, um dos diretores desse clube quis que eu convidasse o Antônio Carlos, por conta da história dele, ele era uma pessoa muito querida entre as pessoas com deficiência visual, porque ele tinha muita paciência, dava aula, incentivava as pessoas a buscarem alternativas na tecnologia, então ele falou: “Eu o quero aqui com a gente, porque é ele que vai ajudar a gente a construir um clube com pessoas interessadas em trabalhar, porque ele via que, no clube, a tendência das pessoas era querer se acomodar, não querer trabalhar. As dificuldades são tantas, que as pessoas não se motivam, né? Mas ele achava que o AC podia ser uma referência. E aí eu falei: “Eu não tenho como convencer uma pessoa a ser voluntária (risos) num trabalho, mas eu vou tentar” e nas coincidências da vida, eu acabei não conseguindo fazer esse contato com ele, mas eu estava montando um grupo de voluntários pra atuarem comigo. E esse grupo de voluntários eu chamei meus amigos da faculdade que sempre me ajudaram nas horas difíceis e eles: “Nós topamos, vamos fazer um mutirão, entrevistas com os atletas e tal. Eu faço a entrevista com essas pessoas que vocês querem trazer pro clube” e aí ele acabou fazendo essa entrevista com esses meus amigos e aí eles falaram, esse meu amigo falou assim: “Olha, ele não queria fazer a entrevista. Ele falou que tem entrevista com a Rosângela, mas que ele não é com a gente”. Eu falei: “Depois eu falo com ele”. Bom, no final das contas eu acabei conhecendo e falei pra ele: “Você quer carona até o metrô, algum lugar?” Ele falou: “Não”. Eu falei: “Esse cara também é todo independente, não sei o quê. Tanto que o presidente queria que ele trabalhasse de qualquer jeito”. Passado uns dias alguém da diretoria fez aniversário e pediu pra convidá-lo, pra ir numa danceteria e caiu pra eu convidar, porque eu que teria feito, teoricamente, a entrevista. Eu falei: “Tá bom, eu convido”. E nós começamos a namorar nessa danceteria, nessa época. E foi uma época em que eu estava vendendo tudo do meu consultório, fechando meu consultório, porque eu ia pra Flórida, tinha recebido um convite pra trabalhar pro governo da Flórida durante dois anos, um trabalho na área da deficiência e aí eu falei: “Olha, acho que a gente não vai dar muito certo, porque eu estou praticamente já saindo, não sei o quê”. Ele falou: “Vamos tentar enquanto você estiver por aqui”. E a gente começou e tal, nesse meio tempo minha mãe ficou doente, precisou ser internada, eu precisei adiar e acabei abortando a ideia de sair do país e aí a gente acabou tendo uma vida mais íntima, começamos a construir as coisas juntos. E nessa ocasião me surpreendia a independência e autonomia dele, diferente dos outros cegos que eu havia conhecido. Mas ele sempre muito à frente, sempre muito despojado, fazendo as coisas e nós começamos a ter um convívio maior e aí eu passei a ter um convívio social maior com pessoas com deficiência. Eu conheci o Antônio Carlos em 1986, então de 1986 até 1990, quando eu casei, eu tive um convívio, além do profissional, social muito grande com pessoas com deficiência.


P/1 – Queria que você contasse como foi esse encontro com o famoso Antônio Carlos, muitos anos juntos, essa vida juntos.



R – É, a gente teve uma história construída de acordo com o que ele fazia, o que eu fazia, a família dele, a minha família, mas a gente decidiu que a gente seria um casal. Eu, que nunca tinha pensado em casar, e ele, acreditando nessa relação, me possibilitou viver com mais autonomia. O Antônio Carlos era uma pessoa muito bem-humorada. No início ele era uma pessoa bastante fechada, mas acho que por eu falar muito, ou por eu até exigir meio que assim: “Olha, se você não falar, eu não tenho ‘bola de cristal’’. Então (risos) eu meio que o ameaçava falar, né? E aí ele falava o que ele achava, a gente conversava muito e a gente acabou participando de muitas coisas em que ele conseguia falar pra mim onde as coisas ‘pegavam’, fosse no trabalho, fosse no social. Então a gente começou nessa condição de trabalho... de namoro e foi um momento, também, profissional meu, que eu tive que definir novas coisas porque, pra quem ia embora e decidiu ficar e retomar as coisas, eu tive que reiniciar tudo. E ele praticamente começando a vida profissional e também uma outra condição e aí eu falava assim pra ele: “Você vai ter que voltar a estudar, porque se você quiser melhorar, não vai dar pra ficar só...”. “Mas como é que eu vou fazer?” “A gente dá um jeito”. Então nós fizemos juntos Administração de Empresas. Ele, por conta da opção dele de estudos avançados em computação, entrou na faculdade, fez vestibular de novo, eu ajudei, pararã, bom, aí eu era a ledora dele. Então eu comecei a estudar. Literalmente, eu ‘emprestei’ os meus olhos pra ele, porque eu não entendia nada. Eu lia coisas sem saber o que eu estava lendo. Matemática Financeira, essas coisas que não têm nada a ver comigo. Ele da área de Exatas, de Lógica, eu do subjetivo. (risos) Enfim, não ‘batia’ nada com nada, em termos de... então, eu ‘emprestava’ os olhos pra ele. E aí eu tinha que descrever gráficos, tabelas, tudo pra ele. Bom, resumindo a história, eu aprendi muito por conta disso. (risos) O meu vocabulário melhorou, os meus interesses também, porque quando tinha a parte de leitura mais sociológica, antropológica ou coisa do tipo, eu acabava me interessando. E ele foi um desbravador na faculdade, porque eram poucas as pessoas com deficiência visual que faziam esse tipo de universidade. Então ele era o único e o primeiro a estudar lá, então os professores falavam: “Olha, nós não damos aula pra cegos” e aí ele já empoderado e incentivado por mim, porque meio que eu falei: “Se você não estudar, meu filho, não vai dar, porque eu continuo estudando. A gente vai conversar sobre o quê? Sobre futebol?” Falando nisso, ele era são paulino fanático… e aí eu falava assim: “Vai ter que estudar e eu estudo junto, eu sei que não é fácil, mas a gente vai junto”. Bom, aí ele se sentiu empoderado, eu fazia isso com muito prazer, muita satisfação, até porque o terreno era fértil, eu sabia que ali ia sair um bom ‘caldo’. Ele era muito inteligente, muito esperto. Então ia dar muito certo, se ele não desistisse. E assim foi, ele começou a frequentar a escola, a faculdade, com o pessoal falando pra ele: “Nós não somos especializados” e aí quando ele falava pra mim isso, com uma certa tristeza e insegurança, eu falava: “Dane-se, problema deles se eles não estão preparados, eles que se ‘virem’”. E aí, meio que perdido, por perdido e por inteiro, ele resolvia: “Professor, se você continuar falando ‘some isso com aquilo’, eu não vou conseguir participar, o senhor pode falar o que o senhor está... que número é esse que o senhor está somando, dividindo?” E começou a explicar pros professores a importância de serem explícitos naquilo que eles falavam. Mostrar: “Vem pra cá, vai pra lá” “Não, ‘vem pra cá’ não dá, ‘vai pra lá’ também não. Me fala se é pra direita ou se é pra esquerda, se é pra frente, se é pra trás”. Então ele começou, com o jeito dele, falando de futebol, que ele conhecia tudo de futebol, não só do São Paulo, mas de todos os times. Ele assistia o Primeiro Tempo, o segundo tempo, Mesa Redonda, quadrada, triangular, tudo. Então, brincando, gozador, com um bom humor, muita educação, Antônio Carlos sempre foi uma pessoa muito educada no trato. Eu sou mais, talvez pelo sangue calabrês, (risos) explosiva. Ele não, era mais contido. Então ele conseguiu que esses professores e até colegas o ajudassem a atingir os objetivos dele. O Antônio Carlos se deu muito bem na faculdade. Ele era um aluno exemplar, era quem fazia as provas todas orais e isso o incomodava: “Por que eu tenho que fazer? Todo mundo tem tempo e eu tenho que fazer oral” e era difícil pra ele fazer o oral, mas tinha que fazer, então aí a gente começou a questionar isso também, e a gente foi buscando alternativas. Então a convivência com ele, além de ter sido um grande aprendizado pra mim, eu acabei sendo beneficiada, me formei em Administração sem estar cursando, sem ser (risos) cobrada. Ele me trouxe perspectivas diferentes de visão. Inclusive de relacionamento, de amizade, de transparência. Eu aprendi com o Antônio Carlos a não ter pudor em relação à deficiência. Isso eu devo a ele. Nunca tive problemas de perguntar à pessoa: “Como você faz, como você quer fazer, o que está acontecendo?”, porque eu tinha, na minha intimidade, isso. Então ele me facilitou muito. Diferente, eu sinto essa diferença com os profissionais com os quais eu trabalho, porque eles não têm essa chance. Eles estudam e então eles fazem aquilo e existe os pudores: “Será que eu posso falar isso? Será que eu posso estar sendo invasiva?” Enfim, ter convivido com ele me trouxe uma condição muito boa, porque no começo eu era Ro, eu era conhecida como Ro Mucci, na faculdade, por ter sido líder estudantil, fui da formação, enfim, eu era uma pessoa bem conhecida pelo meu sobrenome também, Ro Mucci e quando eu comecei a namorar com ele eu passei a ser a Ro do Barqueiro. Aí, ficou Ro Barqueiro. E aí meio que qualquer coisa que ia acontecer, é o Barqueiro. O Barqueiro sempre era o primeiro, porque eu era a esposa do Barqueiro, (risos) a pessoa que... E quando eu comecei a trabalhar especificamente com pessoas com deficiência visual, isso foi em 1999, quando eu fui convidada pelo fundador da Laramara, num evento que ele tinha sido convidado. Era um evento para empresas, pra mídia e pra pessoas com deficiência visual. Foi realizado um debate na Folha de São Paulo pra ver por que as empresas não contratavam pessoas com deficiência. E o meu chefe, na ocasião, tinha uma relação com o pessoal da Sadia e numa viagem que ele fez com diretores, ele comentou do Antônio Carlos como um case de sucesso dele: “Nossa, deu super certo, a gente contratou uma pessoa assim e assim”. Na Sadia tinha quatro cegos trabalhando, mas esse diretor falou pro ‘seu’ Victor, que era meu chefe, que ainda nem me conhecia, que o Antônio Carlos tinha sido uma pessoa que surpreendeu muito, pela vontade de trabalhar, eu lembro que ele comentou que ele morava muito distante, a quarenta quilômetros, porque a Sadia era em Alphaville e ele morava na Cidade Ademar. Tinha que acordar de madrugada, pegar ônibus, pegar o Urubupungá (risos) na estrada e, quando perdia, tinha que... enfim, e o Antônio Carlos nunca atrasava, sempre disposto. Quem trabalha na área de análise de sistema sabe que de vez em quando é chamado pra trabalhar de madrugada e ele ia e tudo mais e ele comentou que era alguém, um funcionário com quem ele podia contar e que ele achava que isso era uma coisa de destaque. Meu chefe guardou isso. Quando ele, meu chefe, que é fundador da Laramara, marido da Mara, presidente, inclusive, atual, continua sendo presidente, atuante também. A Laramara foi criada pra atender crianças até os dezoito anos, depois até os 21 anos, mas as crianças cresceram, não existe outras referências de centro de reabilitação na área, ele achou que tinha que ampliar, então hoje a Laramara tem trinta anos de existência, mas hoje a gente atende de zero a quando der. Eu, hoje, atendo pessoas com 96 anos. Então a Laramara acabou se especializando, se tornou um centro de referência, não só nacional, internacional também, então no meio do caminho, que isso foi final dos anos noventa, começo da década de 2000, já tinha adolescentes e jovens adultos que procuravam mercado de trabalho e não conseguiam colocação profissional. Então, ele, por ser um empresário, um visionário, ter um relacionamento bem amplo, acabou sugerindo esse debate na Folha de São Paulo, convidou alguns empresários amigos, convidou a mídia televisiva, escrita, rádio, televisão, todo mundo, porque ele falou: “Alguém tem que fazer alguma coisa e nós vamos fazer”. E convidou pessoas cegas e com baixa visão pra poderem relatar a sua vida profissional pra que esses empregadores ou empresários se sensibilizassem na possibilidade de ter funcionários que produzem, que trazem o tal lucro pras empresas, por serem uma mão de obra qualificada e tudo mais. Então foi tudo dito, lá, eles fizeram, as empresas falaram porque não contratavam, falavam que era por baixa qualificação das pessoas com deficiência, porque as empresas não estavam adaptadas, porque não eram especialistas na coisa e que as pessoas com deficiência nem sempre tinham o perfil ou as condições de autonomia e independência pra chegarem até as empresas, enfim, davam todas as justificativas porque não acontecia. E aí ele fez uma provocação, chamou as pessoas com deficiência pra falar: “O que você faz? Onde você trabalha? Onde você mora? Como é que você fez faculdade disso? Você está na terceira faculdade, você fala quatro idiomas. Então o que você está falando aqui não ‘bate’ com o que estamos vendo aqui”. E eu comecei a ficar interessada. Aliás, não era pra eu ficar, eu só o levei. Só que na hora que eu cheguei, que eu fui estacionar o carro pra ele descer, eu vejo um monte de pessoas que eu atendi, eu falei: “Ué!” E aí as pessoas acabaram me convidando pra entrar, por isso que eu fui participar desse evento. Quando eu vi essa articulação do Victor, meu chefe, eu levantei a mão na hora lá, do debate e falei assim: “Escuta, tão legal isso que você está fazendo! Você conseguiu fazer?” Eu não fazia ideia de quem era ele. Imaginava que ele fosse um empresário qualquer. E ele não era um empresário qualquer, (risos) ele era um cara de destaque e eu é que era completamente fora de órbita. Fui muito metida naquele dia, levantei a mão, sem saber e falei um monte de besteira pra ele, mas entre elas falei uma coisa que ele ficou muito chateado, provocado, na verdade, porque eu falei assim: “Eu achei fantástico isso de você falar, provocar tudo isso, de ter aqui alguns empresários, mas eu vejo que o auditório está cheio de pessoas...” e, de fato, tinha um número grande de pessoas com deficiência, pessoas da área da deficiência, que estavam tentando fazer colocação e não conseguiam, de outras instituições e pouquíssimos empresários. Tinha acho que meia dúzia dos amigos dele, pessoas conhecidas dele. E a imprensa estava ali só pra falar sobre o evento na Folha, o debate na Folha. Eu falei: “Está na hora de vocês... se o objetivo é fazer com que... tinha que estar,

a imprensa deveria estar junto com vocês nisso pra divulgar pro maior número e segmento de empresas, indústrias, comércio, varejo, tudo que for, técnico, tecnológico, pras pessoas saberem que pessoas com deficiência podem trabalhar”. Ele ficou meio assim, respondeu na hora, as outras pessoas também responderam: “É, a gente precisa sair do gueto da deficiência, começar a colocar essas histórias”, que estavam sendo contadas ali, “na mídia, na televisão, no rádio. As pessoas contarem que tem pessoas trabalhando nisso, naquilo”. E aí, no final, ele falou: “Me deixa um cartão seu”. Aí eu dei o cartão meu pra ele e ele me chamou pra conversar e acabou me contratando naquele dia, no dia que eu fui lá, ele falou: “Eu quero que você trabalhe comigo, porque é isso que eu quero, a gente está começando a atender os adultos aqui e estamos vendo que eles estão com muita dificuldade, então eu quero que você faça uma proposta e você vai trabalhar na Laramara”. Eu falei assim: “Olha, eu posso ser consultora e faço uma proposta de dois anos e eu vou passar tudo que eu sei pra gente começar a trabalhar com isso” e aí mais pra frente eu acabei descobrindo que o objetivo não era eu, era o Antônio Carlos. Ele queria o Antônio Carlos trabalhando com ele. Mas quando ele me chamou, e eu apresentei a proposta pra ele, ele falou assim: “Eu quero que você trabalhe mais dias, não é um dia por semana, dois dias por semana. Quero que você trabalhe todos os dias” e aí eu falei assim: “Não, Victor, mas eu tenho consultório, um monte de atividades e eu só consigo fazer...” “Não”, eu falei: “Tá bom”. E aí meu primeiro questionamento com ele foi: “Se você acredita mesmo no potencial da pessoa com deficiência, por que na sua empresa não tem pessoas com deficiência trabalhando?” Na própria Laramara tinha alguns professores que tinham deficiência visual e que davam aula pras pessoas que iam na Laramara, mas não na área técnica, não nas unidades de negócio que tinha, não na administração, não na parte operacional. Eu falei: “Se você que é o presidente e pensa assim não tem, como é que você vai exigir que outras pessoas tenham?” Ele falou: “Tá bom”. Tirou sarro de mim, falou: “Tá bom, então põe, eu quero ver você colocar”. Então meu trabalho dentro da Laramara foi começando questionar as lideranças: “O que faz você não ter pessoas com deficiência visual trabalhando aqui?” E aí todas as justificativas: “Na sua equipe, na outra empresa tem, mas aqui é uma ONG, não dá, a gente não tem como. Como é que eu vou ter uma pessoa com deficiência?” Pra resumir a história a gente chegou a ter oitenta pessoas com deficiência trabalhando na Laramara. E o meu objetivo era mostrar a possibilidade. Eu não queria que ninguém trabalhasse dentro da Laramara, porque é muito acolhedor trabalhar na Laramara e estar protegido e eu estou feliz e contente aqui, mas a Laramara é uma ONG e tem um segmento certo, não teria como manter essas pessoas e nem fazer com que elas crescessem. O meu objetivo era fazer, mostrar pros nossos gestores que pessoas com deficiência visual reabilitadas podiam assumir determinados cargos, mas deveriam ser tratadas como qualquer outro funcionário. Cresceu, melhorou, fica. Não quer, cai fora, vai ter que buscar e se você cresceu mais… porque você teve a sua oportunidade, soube aproveitar e na Laramara não tem chance, você vai ter que ir pra outro lugar. Qual era o problema? Grande parte das empresas não queriam contratar pessoas pra trabalhar com elas porque exigiam a tal da experiência. E pessoas com deficiência não tinham experiência. Então eu falei: “Ótimo, eu vou dar a experiência pra trabalhar aqui e aí com experiência de seis meses, um ano, ela consegue participar do processo seletivo”. E foi exatamente isso que aconteceu. Só que, nesse meio tempo, não foi só a minha proposta. Quando foi a minha proposta, ele decidiu que... foi aí que ele me confessou que o Antônio Carlos iria trabalhar não só com a gente, mas que ia ser na minha sala. Eu falei: “Você está querendo separar os dois, porque eu e ele nos damos muito bem, nós estamos ótimos, vivendo um momento maravilhoso no casamento. Se puser os dois na mesma sala (risos) e ainda você de chefe, vai ser complicado”. Ele falou: “Não, vocês vão trabalhar juntos”. E aí o Antônio Carlos entrou com a proposta de empregabilidade, mas de um trabalho de instrumentalização das empresas e fomentação na mobilização de recursos. Então ele começou a identificar escolas que tivessem cursos profissionalizantes interessantes que pudessem ser instrumentalizados pra absorver esse público nas próprias escolas, universidades. Falou: “Então nós vamos abrir aqui”, na época estava começando as coisas de computação, de internet e tudo mais, então a SOS Computadores e outras, é que eu não sei o nome das empresas que formavam analista de sistema, ou pessoas que desenvolviam várias atividades e precisavam fazer uso do computador, ninguém sabia como usar. Então a gente ia lá, se matriculava e ia aprender a fazer excel, isso, as várias linguagens das plataformas da época. E ele fazia o contato com essas escolas dizendo que existia um público que precisava desses atendimentos. Aí descobriu que esse público também não tinha dinheiro pra pagar, então precisava ter empresas que bancassem esses cursos. Então a gente começou a ter contato com a empresa: “Nós vamos te dar... existe uma lei de contratação, se você não contratar, vai ter multa, então você não está fazendo favor nenhum. Por outro lado, você não sabe onde buscar gente qualificada, então eu vou te dizer onde é, desde que você nos ajude, bancando o curso”. Enfim, a gente começou a criar parcerias. Nesse tempo eu e o AC já viajávamos e a gente começou a viajar mais ainda, porque aí a gente ia pro centro de reabilitação no Rio Grande do Norte. Ia ter um congresso na região, no norte, nordeste, de reabilitação, a gente ia lá pra falar que pessoas cegas e com baixa visão, ou pessoas com deficiência poderiam, sim, trabalhar e tudo mais. E isso no norte e no nordeste, na década de 2000, era novidade, porque ninguém trabalhava. As pessoas faziam reabilitação, mas ninguém trabalhava. Se aposentavam ou tinham o próprio negócio, quem tinha dinheiro acabava montando, ou trabalhava pra família, alguma coisa assim, mas fazer um concurso, participar de um processo seletivo, entrar num escritório, numa indústria, num banco, ninguém fazia. E os técnicos começaram a nos questionar: “Mas como vocês fazem isso?” Porque eles também não viam, não vivenciavam isso. O Brasil é composto de Brasis, né? São Paulo, Rio é outro país. Todo o resto é uma coisa muito complicada, mesmo. Existem muitas coisas que são copiadas de São Paulo e Rio e adaptadas àquela região, segundo aquela cultura, aquele jeito. Mas pessoas com deficiência não se enquadravam em lugar nenhum. Até que a gente começou a ir de estado em estado, participar de congressos, de fóruns falando sobre e da importância das parcerias. Então o Antônio Carlos fazia parceria com o Ministério Público local, com a associação comercial, com a universidade e eu instrumentalizando a parte de reabilitação. É preciso tirar a pessoa da condição de dependência e, pra promover a independência e autonomia, precisa ser feito um trabalho de orientação e mobilidade, no caso dos cegos, de atividades de vida autônoma, onde as pessoas vão aprender a se ‘virar’ sozinhas, pra ter independência, autonomia e ‘tocar a sua vida’ em frente.

P/1 – Você continua trabalhando nessa área?





R – Eu trabalho hoje atendendo diretamente. Eu saí da área de Relações Institucionais. Hoje eu atendo a pessoa com deficiência. Na época eu só fazia relações institucionais e eventualmente fazia atendimento pontual da pessoa que foi discriminada, segregada, estava muito mal, porque já tinha feito todo o processo de reabilitação e não conseguia e era nítido… e aí a gente orienta, porque um dos ‘braços’ de atividade da Laramara é a defesa dos direitos da pessoa com deficiência, então a gente dá toda a condição pra que a pessoa busque os direitos através da lei e tudo mais, então quando acontecia de ter uma denúncia de que: “Olha, eu fui e eles sequer permitiram que eu fizesse o teste”, eu acionava, ou então, pra conseguir entrar, porque a lei de cotas favorece a entrada, mas a permanência e a ação inclusiva não acontece. Eles voltavam: “Olha, eu estou trabalhando no Tribunal da Justiça, eu sou advogado e eles só deixam, só permitem eu dobrar o papelzinho da senha”, aí a gente aciona, notifica o Ministério do Trabalho, junta provas e vai mostrando e aí a gente vai… e isso em todos os lugares. Eu falei do Tribunal da Justiça porque é uma coisa absurda contratar um advogado pela lei de cotas e colocá-lo pra dobrar a senha. E assim foram com igrejas que contratavam pessoas pra trabalhar no telemarketing e aí colocavam a pessoa pra trabalhar em horários diferentes, ou em condições, às vezes, até insalubres, ou então eles só contratavam e mandavam a pessoa ficar em casa. Então nesses casos eu acabava atendendo e atendendo, eventualmente, a família. Muitas pessoas com deficiência, ao entrarem pra um processo de reabilitação, por serem superprotegidas ou negligenciadas, também têm dificuldade a partir da própria casa. Então pais que não queriam que seus filhos aprendessem a usar bengala, porque achavam perigoso, porque acham que não dá, porque leva onde tiver que ir, como você vai se lançar no mercado de trabalho? “Olha, eu vou se meu pai me levar. Se meu pai não me levar, eu não vou. Se minha mãe me acompanhar”. Então a gente fazia esse atendimento também e esse trabalho com o AC, que eu acabava ajudando também no processo seletivo. Por isso que eu falo que eu me preparei pra trabalhar, porque se eu não tivesse feito faculdade de Psicologia, não tivesse entrado pra área de Recursos Humanos, ter feito uma pós-graduação nisso, se eu não tivesse vivenciado o processo de reabilitação nos hospitais, que foi uma outra pós-graduação, que foi de Psicologia Hospitalar, como eu poderia dar subsídios para a área que não entende nada de reabilitação? E que queria, inicialmente, apenas cumprir com a cota. E eu acho que ainda existe isso, na maior parte das empresas.
Mas o fato é que eu e o AC, trabalhando dessa forma, conseguimos uma coisa inusitada, um grande sucesso. Primeiro pela oportunidade que a gente teve com o ‘seu’ Victor Siaulys, que foi um empreendedor, empresário visionário, um homem extremamente generoso, sentiu na própria pele tudo que a deficiência pode causar, por conta da Lara, que era filha dele e tudo que ele vivenciava com as famílias de pessoas com deficiência dentro da Associação Laramara. Ele abriu muitas portas. Eu tendo o conhecimento técnico das necessidades a nível, por exemplo, de Recursos Humanos, eu falava: “‘Seu’ Victor, eu preciso falar com alguém da Tam. ‘Seu’ Victor, o senhor conhece alguém da indústria ou da Fiesp que eu possa conversar sobre isso?” E aí era assim: “Boa tarde, meu nome é Rosângela, eu sou psicóloga da Laramara e quem me passou seu contato foi o Senhor Victor Siaulys” “Pois não”. Eu tinha tentado, já, muitas vezes. “Aqui é a Rosângela Barqueiro, eu sou psicóloga, tenho uma proposta e gostaria de falar sobre isso” “Nossa, que legal, só que é o seguinte: a gente não tem horário, não posso te atender”. Isso foi quase um ano e meio, em todas as tentativas pras mesmas pessoas e mesmas empresas, um ano e meio, depois de inúmeras tentativas, conversando com ele, ele falou: “Mas eu posso conseguir isso pra você” “Você consegue?” “Consigo” “Então tá bom. Olha, eu quero falar com esse, com esse, com esse e com esse”. Falei com todos. Alguns me mandaram até pegar o helicóptero pra ir até ele. Então quando quer, se faz, né? Aí começamos pelo próprio Laboratório Aché, que ele era um dos donos, então conversei com o pessoal da área de Recursos Humanos e lá foram colocadas algumas pessoas com deficiência e aí Itaú e outras empresas que ele tinha contato, o AC também porque como ele tinha ensinado muita gente na área de tecnologia, ele acabou tendo contato com muitas pessoas com deficiência e que conseguiram entrar. Um porque era primo, o outro porque era sobrinho, o outro porque era filho, enfim, aí a gente conseguiu chegar nos lugares pra falar com o departamento que fazia a contratação, ou que impedia. Então quando a gente conseguiu entrar nisso, pra vocês terem uma ideia: nessa década... não, em sete anos, de final de 2000, até 2009, que foi quando o ‘seu’ Victor faleceu, embora a gente tenha continuado, mas até 2009 a gente teve um número muito grande de pessoas com deficiência visual absorvida pelo mercado de trabalho. Claro, isso ajudou. Ele abriu as portas, mas a lei começou a ser fiscalizada a partir do ano 2000. Então, nós, com aquele trabalho de parceria com as empresas acabou tendo contato com o Ministério Público, o Antônio Carlos passou a fazer sensibilização nas empresas e nós começamos a fazer um trabalho com os próprios procuradores do Ministério Público, porque o Ministério Público fazia fiscalização, o trabalho dele, mas não tinha pessoas com deficiência lá e aí o Antônio Carlos começou a questionar: “Escuta, vocês que vão cobrar a empresa porque não tem pessoas com deficiência, por que não tem aqui?” E aí a gente acabou indicando pessoas pra serem contratadas no próprio Ministério Público, e a convivência desses procuradores com pessoas com deficiência fez com que legitimasse a fiscalização, porque aí: “Olha, como você está dizendo que não pode? Eu tenho um funcionário que é cego, paraplégico, surdo. Por que você não pode ter? Vai ter, sim. Você tem tanto tempo pra fazer”. A gente criou um grande movimento, eu e o Antônio Carlos fomos muito respeitados pelos grupos de estudo, de trabalho, aqui na cidade de São Paulo. Começou por Osasco, no Espaço da Cidadania de Osasco, através de uma procuradora do Ministério do Trabalho, aí a gente acabou fazendo trabalhos de sensibilização, onde a gente reunia empresários e profissionais de Recursos Humanos, vendados, pra assistir um trecho de um filme, sem enxergar, ou sentado na cadeira de rodas, ou com pesos amarrados na perna, nos braços, com tampão no ouvido, pra eles sentirem um pouquinho do que era estar sem enxergar, sem andar, impossibilitado de algumas coisas. O objetivo nosso era mostrar que, mesmo sendo temporário, em um curto espaço de tempo, além dessa sensibilização, entender que o fato de você não estar enxergando, não estar podendo andar, não conseguir se levantar, ou se deslocar em um espaço curtinho, não impedia você de ter tudo que você teve, sua trajetória, sua história, seu conhecimento e aí a gente, nesse aquecimento, falava: “Por que você vai impedir uma pessoa, por que você não sabe como fazer? Você viu que eu te vendei, você não conseguiu sair do lugar e se localizar. Na hora que eu te dei uma bengala e te orientei corretamente, você não conseguiu chegar?” Então, a partir desses trabalhos de sensibilização, normalmente era de uma, duas horas, ou um café da manhã, ou um chá da tarde, ou um happy hour, que eu chamava um grupo de profissionais e o Antônio Carlos começava: “Vamos tocar o café vendado?” Ninguém quer tomar café vendado. (risos) “Como é pra você se servir?” E isso começou a trazer uma condição mais favorável na permissão de ‘vamos ver no que vai dar’. Então no início desse trabalho, até mais ou menos 2009, a gente teve mais de mil e poucas pessoas colocadas no mercado de trabalho. Pessoas com baixa visão e cegas. E aí a gente foi tentar fazer um levantamento, porque o Ministério do Trabalho notificava a gente que pessoas com cegueira não tinham essa facilidade, não conseguiam entrar, então a gente conseguiu colocar mais de mil e duzentas pessoas no mercado e aí a gente teve a informação do Dieese e do próprio ministério de que pessoas cegas tinham mais dificuldade do que pessoas com baixa visão. Aquela coisa do ‘vamos contratar uma pessoa com deficiência física, mas que não seja cadeirante; um surdo que ouça um pouquinho; um cego que enxergue um pouquinho’. (risos) Enfim, as preferências daquilo que eu poderia chegar mais próximo do que é chamado normal. Então as pessoas que precisam de uma cadeira de rodas, de tecnologia, de um aparelho, língua brasileira de sinais, enfim, normalmente são as mais rejeitadas no processo, porque envolve uma adaptação ou recursos que elas imaginam ser mais caro, ou mais difícil e tal. Nem sempre é, mas é o que as pessoas imaginam. Então eu comecei a pesquisar as empresas que começaram a ganhar dinheiro com a colocação profissional por conta da força de lei. Se as empresas são obrigadas a contratar, elas vão procurar profissionais, empresas de Recursos Humanos que façam colocação. Então juntando no Brasil todo profissionais especializados em Recursos Humanos, não dava 20% do que nós colocamos em São Paulo. A primeira pesquisa levantada de quantas pessoas haviam sido contratadas formalmente no estado de São Paulo, não vou lembrar o número, mas era em torno de seiscentas e trinta... não sei se é 636, mas era mais de seiscentas e menos de setecentas pessoas contratadas formalmente. A partir da fiscalização chegou a 350 mil. Então essa coisa de dizer ‘lei de cotas não deu certo’, claro que deu! (risos) Se não fosse a lei e a fiscalização, jamais teríamos trezentas e quarenta e poucas mil pessoas contratadas formalmente, com todos os direitos garantidos: férias, décimo-terceiro, fundo de garantia etc. Então a gente fez parte dessa história, a gente construiu essa história. Eu recebo presentes até hoje das pessoas com deficiência, que eram pessoas totalmente dependentes quando chegaram na Laramara, foram trazidas pelos seus irmãos que ajudavam a atravessar a rua e tudo mais. Lá aprenderam a usar a bengala, a ter autonomia, acreditar que poderiam voltar a estudar, aprender uma segunda língua, uma terceira língua, fazer um curso de informática, a entrar na universidade e hoje, quem era dependente, um ônus para a família, passou a ser o provedor da família. E não é um, ou dois, ou três casos, são muitos casos assim. Então, até hoje eu, mesmo depois da morte do ‘seu’ Victor e do AC, sou homenageada. (risos) Então as pessoas me chamam, lembram do nome dele, falam da importância do trabalho dele, do legado que ele deixou. Não só ele, mas o ‘seu’ Victor também. Então a gente teve uma condição que me favoreceu muito na área de empregabilidade. E aí isso acabou se ampliando também na parte sociocultural, na medida em que eu acabei, nessa ocasião, vendo a necessidade de ampliar algumas coisas na área de audiodescrição, porque pessoas cegas tinham uma limitação pra participar de tudo que tivesse imagem: show, teatro, cinema, mostras, exposições. Enfim, elas podiam participar? Podiam. Mas elas tinham uma condição que ficava aquém das informações possíveis, que todos têm direito de ter. E aí, relacionando a tudo que eu aprendi com o Antônio Carlos, quando eu ‘emprestava’ os meus olhos pra ele poder estudar, fazer as coisas, eu sempre gostei de teatro, cinema, então nunca deixei de frequentar esses lugares. Eu ficava cochichando pra ele e às vezes as pessoas mandavam eu calar a boca, que estava incomodando e eu falava: “Dane-se, muda você de lugar. Eu vou continuar fazendo. Se o cinema quiser colocar audiodescrição, eu não preciso ficar fazendo cochicho. Não vai fazer, então eu vou fazer do jeito que é possível fazer, mas ele não vai deixar de assistir”. E assim a gente foi indo, aos pouquinhos e aí outras pessoas, nós fizemos... eu, por gostar da área, trabalhar e frequentar e estar com eles, acabei ajudando a fazer a formação de plateia de pessoas com deficiência nos eventos culturais. Então a gente tinha as redes de apoio de amigos, as instituições parceiras, então a gente começou a articular isso. Você chama o pessoal do Cadevi, da Adega, da Fundação Dorina e nós começamos a trabalhar isso, fazendo com que as pessoas participassem, porque é só participando que as coisas vão acontecendo. Então a gente teve uma inclusão socioeconômica e cultural significativa, a partir dessa oportunidade sine qua non que o Victor deu, porque sem ele eu tenho certeza que eu não conseguiria um décimo do que eu consegui, porque nós vivemos num país onde o dinheiro, o poder e a influência têm um peso extremamente significativo. Você pode ter competência, vontade, ser uma pessoa justa, fazer tudo, mas se você não tiver o poder com você, a influência e o dinheiro também... isso abre portas. E uma das qualidades maiores que eu via no AC, no Antônio Carlos, era a generosidade dele em não ‘abrir mão’ de todos os ‘cartuchos’ que ele pudesse ter. Tem gente que fala assim: “Eu não vou ‘queimar o meu cartucho’ pra fazer isso pra tal fulano”. O Antônio Carlos era ao contrário: ele ‘queimava todos os cartuchos’ que ele tinha. Se ele conhecesse um cara no Rio Grande do Norte que poderia influenciar em alguma coisa, ele não tinha dúvida, ele ligava. Eu acho que isso também ele aprendeu com o Victor, que é uma coisa que você tem que... o ‘não’ você já tem, então... e isso fez com que a gente ampliasse tanto e fosse convidado por tanta gente. Diferente... nesse segmento existe uma concorrência muito grande, de discriminação e preconceito também, porque a deficiência física não quer falar com a deficiência visual, que não quer falar com a intelectual, cada um ‘puxa pela sua sardinha’. Você vai num congresso de colocação profissional de pessoas com deficiência, o cara da deficiência visual fala que ele é o mais discriminado, o da deficiência intelectual, os esquizofrênicos, enfim, todos acham que são os mais prejudicados ou menos favorecidos e tudo mais. Ao invés de se unir na busca de potencializar o melhor, existe mesmo uma segregação. Eu acho que é o efeito cascata, natural, isso é do humano. Esse é o lado chato desse planeta. Mas é isso. Então a gente conseguiu, num curto espaço de tempo, que foi nesses primeiros anos, consolidar e legitimar. Eu costumava falar, quando você fala assim, que esse amor construiu. O Antônio Carlos, do ponto de vista profissional, legitimava o que eu acreditava e estudava. Porque uma coisa era eu chegar pra um empresário e falar pra ele sobre as possibilidades de uma pessoa cega vir a trabalhar na empresa dele. Outra coisa era o Antônio Carlos chegar lá, com a bengala dele, numa estrada, numa marginal, ir no 25º andar e dar uma palestra pros diretores de Recursos Humanos. Eu, com toda a minha tecnologia, minha apresentação em powerpoint, a fotografia e mais as histórias e não sei o quê: “Nossa, Ro, que trabalho lindo!” Se emocionavam, às vezes eu ganhava até flores ou caixa de bombom, (risos) mas não saía disso. Quando o Antônio Carlos ia ou quando eu ia com ele, ou muitas vezes o Antônio Carlos ia com outros profissionais e eu com outras pessoas com deficiência, era impressionante, mudava completamente! Saía daquela coisa que a gente chama de solidariedade inoperante. O cara é solidário a tudo que você fala, mas é inoperante, porque ele não faz absolutamente nada. Então a gente brincava: toda vez que ele ia, saía e falava, fazia palestra ou firmava uma parceria, a gente se falava por telefone: “E aí?” Aí ele falava: “Sucesso!” A gente já sabia que tinha dado certo, porque é uma coisa impressionante a força que é uma pessoa empoderada, diferente, que faz as coisas de forma diferente, portanto ignorada pelo outro, ser aceita de imediato e ele conseguia isso. Então assim como pra mim foi muito frustrante estudar Psicologia e ver pessoas dentro do hospital sendo tratadas de forma desumana, ainda dá pra acreditar no ser humano, pelo fato das pessoas conseguirem superar suas dificuldades e usar o seu potencial a esse favor. Quantas vezes eu não encontrei pessoas famosas, especializadas, consideradas excelentes, mas agindo com preconceito e segregação! E às vezes prejudicando o desenvolvimento ou mesmo a vida das pessoas por considerarem pessoas com deficiência inferiores. E a pessoa com deficiência, ao participar da sociedade de forma ativa, ‘quebra’ isso. Não tem como manter isso. Porque, de fato, não é fácil ser pessoa com deficiência. E fica muito mais complicado quando você é impedido de ser pessoa. Então foi uma coisa que eu vivenciei aí e não tem outra palavra senão dizer que eu sou privilegiada, né? Eu não vivi isso uma semana, eu vivi décadas com ele, então foi uma grande, grande realização. (choro) Dá pra se emocionar, só de lembrar. Ele só não precisava ter ido tão cedo, mas acho que faz parte da vida, a gente vai aprendendo.
Mas você perguntou de hoje, né? Há dois anos eu... dois anos? Não, um pouquinho mais. Metade de 2019 eu passei... fiz um acordo com a Laramara, no sentido de atuar um número menor de horas - eu já sou aposentada - e trabalhar exclusivamente no atendimento. E atendimento de pessoas cegas, adultas e idosos. Eu estou querendo parar de trabalhar, mas o trabalho que o AC desenvolveu junto comigo foi muito presente na nossa vida profissional e pessoal e faz muito bem trabalhar nisso. A gente acaba tendo um retorno muito legal, então não dá vontade de você... você sabe que você faz diferença na sua atuação e, ao mesmo tempo, esse trabalho te traz um retorno muito legal, mas eu reconheço que já está na hora de parar, eu trabalho desde os treze anos, portanto já completou cinquenta, está na hora de eu parar. Então não sei quando vai ser, mas vai ser gradativo e a ideia é mesmo... já comecei a diminuir o ritmo. Então hoje eu atendo os adultos que procuram a Laramara, que são pessoas com baixa visão e cegas, que nasceram com a deficiência ou adquiriram já na fase adulta, principalmente, e no caso dos idosos quase todos já na condição de idoso é que adquiriram, porque muda essa condição da pessoa nascer cega, adquirir na primeira infância, adquirir na adolescência, na vida adulta, na idade avançada ou quando já idosos e acima de oitenta, muda completamente, em função de todas as características de cada fase. Então hoje não é fácil pra uma pessoa de oitenta anos, 85 se adaptar a todas essas tecnologias e de repente sem a visão, seja por conta de uma doença degenerativa, um tumor, um acidente ou até da própria velhice. E aí reaprender a usar, eles até sabiam usar o computador, mas como usar agora sem enxergar? E a tendência é ter várias adaptações nisso. É muito difícil pra família e pra pessoa entender como se dará esse processo. É muito sofrimento numa situação só, porque tem que se adaptar à nova condição de envelhecimento, ao próprio resultado do que foi a sua trajetória toda em termos de saúde profissional e social e à velhice propriamente dita, além da deficiência adquirida. Então de repente você se vê sozinho, porque você já não tem mais família, todo mundo morreu; você se vê ganhando bem menos do que você já teve a chance de ganhar; com muito mais necessidades; com uma saúde mais fragilizada; emocionalmente já... e com a dificuldade mesmo de manusear, de tocar, de usar os instrumentos que dependem do tato, da visão. É muita adaptação pra pouco tempo, porque você percebe que você não tem dias a mais, você tem dias a menos. Então do ponto de vista psicológico, emocional, é uma coisa que requer também uma dedicação grande e estudar, porque você tem que estudar tudo: psicopatologia, farmacologia, fazer a interação entre as consultas, entre os profissionais, porque se o médico dá um remédio que tem um efeito colateral neurológico, como é que eu vou conseguir a atenção e concentração daquela pessoa, naquele período? Enfim, são muitas variáveis que você vai ter, então o estudo consegue ser permanente o tempo todo. Quando algumas pessoas falam assim: “Nossa, eu não sabia que você tinha cabelo branco, que você atendia, não sei o quê”, eu falo assim: “Pois é, eu continuo aprendiz”. Não tem jeito. Eu não sei. Tudo que eu estudei, todas as histórias que eu posso contar, tudo que eu aprendi é nada diante do que a gente está vivendo. Nada. Cada caso é um caso, cada nova plataforma que inventam pra gente (risos) é uma nova alternativa, cada vez você tem que atualizar esse celular. Então não é fácil. É um momento que eu acho, pros idosos, extremamente desafiador. Você ter um diálogo com pessoas mais jovens, ter passado por tudo que passou e ainda ter que ter a paciência necessária, o conhecimento e a sabedoria de lidar com isso, sabendo que quem chegou sabe apertar o botãozinho, mas não sabe como chegou no botãozinho e, pra ele, se quebrar, troca e pra uma pessoa que não é assim.

P/1 – Ro, eu teria acho que mais milhões de perguntas pra te fazer, mas só pra gente finalizar, eu queria saber o que você quer deixar como seu legado pras próximas gerações. E se você quiser deixar alguma mensagem...

R – Olha, a gente tem que entender que a gente só dá o que tem, então a gente tem que ser um colecionador de coisas boas. O planeta está muito estranho, os humanos que se dizem humanos não parecem humanos, alguns bichinhos são mais humanos do que os próprios homens, então eu acho que a gente tem que ser mesmo colecionador de coisas boas pra poder oferecer o que é bom. A gente tem que aprender a ser bom. O que você espera do outro? Que o outro seja bom pra você? É o que você precisa exercitar, seja o que você for na vida. Pode ser um jardineiro, gari, presidente, CEO, seja o que você for. Se você for bom, e for uma pessoa generosa com a sua bondade, você consegue tudo. Não tem o que impeça a gente de ser feliz. Não é o dinheiro, não é o status, não é a importância. É bom. E acho que ser bom todo mundo pode ser. Da pessoa mais simples, mais humilde, à pessoa mais privilegiada, nobre, que possa existir. Se ela for boa, com certeza vai construir um meio melhor. Um lugar onde as pessoas possam usufruir dessa bondade, dessa solidariedade, dessa generosidade. Essa prática está muito difícil nos dias de hoje. A competitividade, a ganância, o poder estão tomando um espaço que as pessoas esqueceram de ser boas. Algumas até em nome da própria religião, enfim. Eu acho que os psicólogos que vêm pra trabalhar nessa área deveriam pensar na pessoa como pessoa, com limites, grandezas, habilidades, defeitos e não... eu brinco com o pessoal que trabalha na área de Recursos Humanos: quando você vai contratar uma pessoa, você foi treinado a identificar o potencial dessa pessoa. Quando se trata de pessoas com deficiência (risos) alguma coisa acontece e as pessoas procuram os impedimentos. Eles vão atrás do que ele não pode fazer, do que ele não vai conseguir, do que a empresa não vai poder oferecer e aí você fala assim: “Tem alguma coisa errada nessa estratégia porque, se o que dá certo, você aprendeu que é identificar o potencial pra poder desenvolver e usufruir desse desenvolvimento, que é o lucro, que é a produtividade, que é expertise, porque é que você procura, na pessoa com deficiência, o que ela não pode fazer?” Isso é uma coisa que é o pensamento errado e esse pensamento foi construído dessa forma em função da segregação, da discriminação, mas principalmente da falta de convivência. As pessoas tinham que conviver mais com pessoas... Até bem pouco tempo atrás você convivia com idoso, ele lá na sala, sentado no sofá ou no asilo. Hoje não dá pra ter asilo, não dá pra ter sala só pra ele, então o que faz com ele? As pessoas não sabem o que fazer. “Ai, meu pai era uma pessoa que adorava teatro, cinema. Desde que ele está com depressão ou quando ele perdeu a visão, ou não sei o quê, não faz mais nada” “E por que não faz mais nada?” “Por que o que ele vai fazer no teatro?” “Como assim o que ele vai fazer no teatro? Vai assistir uma peça” “Mas como ele vai assistir se ele não consegue nem enxergar?” E aí você vê o quanto as pessoas ainda ignoram as possibilidades, os recursos, se negam a querer aprender. “Não, eu vejo, eu assisto com ele em casa” “Mas o teatro não é o estar em casa, o cinema não é a telinha, ou a telona. O cinema é a chance de você sair, ver pessoas, encontrar, sair, discutir, falar como foi, encontrar com outras pessoas, ou com amigos, ou com desconhecidos, é tomar o cafezinho depois, ficar na fila do estacionamento. É isso que é o programa, não é a telinha”. Então a gente vê que nós, como pessoas, temos muito a aprender, ainda. As pessoas ficam restritas àquilo que elas conhecem. “É difícil, agora ele usa fralda” “Fralda dura quanto tempo? Duas horas? Faça uma programação de duas horas”. E assim é. As pessoas tendem a trazer dificuldade como forma de solução camuflada, porque não é solução nunca, deixar em casa. Então eu acho que é isso: a gente tem que buscar ser bom, apesar das notícias ruins, de encontrar gente ruim, gente cruel. Não é preciso dar a outra face, mas é preciso pôr limites no que as pessoas estão fazendo, segundo a ignorância delas. A gente tem que ser mais espontâneo.