Museu da Pessoa

Cinema na igreja, paquera na praça

autoria: Museu da Pessoa personagem: Maria Aparecida de Lima Conde

Projeto Ponto de Cultura
Depoimento de Maria Aparecida de Lima Conde
Entrevistada por Sueli Andrade e Vanice Deise
São Paulo, 04/08/2007
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista PC_MA_HV041
Transcrito por Rosângela Henriques
Revisado por Viviane Aguiar
Publicado em 18/02/2008

P1 – Para a gente começar, eu queria que você dissesse seu nome completo.

R – Maria Aparecida de Lima Conde.

P1 – Você nasceu onde e quando?

R – Eu nasci em 12 de outubro de 1942, em Pederneiras, São Paulo, embora minha data de nascimento que conste na certidão seja 12 de novembro, por erro do cartório.

P1 – Mas como é que foi essa história?

R – Essa história é interessante até, porque o papai foi me registrar, inclusive sem avisar minha mãe, escolheu ele mesmo o nome, e chegou ao cartório. Segundo ele, o oficial de cartório bebia mais do que qualquer coisa, e ele foi dando os dados, e ele passou já no formulário de certidão todos os dados, a data de nascimento, e depois tomou nota em algum papelzinho à parte para registrar num livro de registro civil. E, então, o meu nome Maria Aparecida foi uma decisão particular dele, e não de família, e foi assim que aconteceu. E a minha mãe gostaria que eu tivesse tido outro nome, mas acabei me chamando Maria Aparecida. Só Maria Aparecida. Alguns perguntam se é com dois “p” pela data de nascimento, mas é um “p” só.

P1 – E você sabe dizer qual seria o outro nome que a sua mãe gostaria?

R – Ah, sim. A avó da minha mãe se chamava Gabriela, e ela queria que eu tivesse esse nome, mas não teve. Minha mãe era bastante submissa, aquela mulher às antigas que achavam que as decisões pertenciam ao homem, ao marido, e não se preocupou em discutir com ele como eu já fiz com meus filhos, com meu marido que nome teriam os filhos, né? Ele decidiu todos os nomes dos oito filhos e foi comigo a primeira, eu sou a primeira filha e por isso que me chamo... E a minha mãe, quando ele chegou com a certidão, ela ficou decepcionada, segundo ela contava, e falou: “Maria Aparecida, mas eu queria que ela se chamasse Gabriela.” “Por que Gabriela”? “O nome da minha avó de que eu gosto muito.” “Mas ela nasceu no dia de Nossa Senhora Aparecida, ela devia mesmo se chamar Maria Aparecida, e foi assim que eu resolvi.”

P1 – E qual o nome dos seus pais, Maria Aparecida?

R – Joaquim e Maria. Minha mãe foi batizada como Teodorica, mas naquele tempo eles mudavam. Entre o nome do batismo e nome do registro civil, a coisa não tinha nada a ver, mas ela acabou sendo chamada a vida toda de Teodorica, Dorica, Dorinha, Dora. Então, ela é conhecida até hoje como Dora.

P1 – E o nome dos seus avós?

R – Dos meus avós paternos, Sebastião e Cândida, e maternos, João Tomás e Helena.

P1 – E a atividade profissional dos seus pais?

R – Meus pais, até grande parte da vida deles, a minha mãe era dona de casa, e uma boa parte da vida do meu pai era produtor rural, ele tinha fazenda e depois ele foi pra cidade e passou a ser comerciante. Quando nós entramos em idade escolar, os três primeiros filhos, somos oito como eu já falei, mas quatro nasceram na cidade, os outros tinham nascido na fazenda. E aí é que ele passou a ser comerciante e como tal ele se aposentou e vendeu a fazenda porque era uma fazenda enorme. Mas os pais tinham muitos filhos também, então, quando morreram os pais, foram dividindo e aí pronto, essa fazenda hoje está retalhada na mão de terceiros. Só um tio que tem ainda uma parte da fazenda.

P1 – O seu pai foi comerciante em quê?

R – Ele era comerciante de carne, porque, como ele trabalhava com pecuária mesmo, com bois, ele se sentiu melhor em trabalhar com casa de carne, porque ele conhecia bem o assunto. E também ele teve lanchonete, teve bar e restaurante num espaço de tempo de dez anos. O restante foi comerciante de carne.

P1 – E a sua mãe, qual era a atividade dela?

R – Dona de casa, exclusivamente cuidar dos filhos, da casa, que era uma coisa muito comum na época. A mulher não tinha espaço no mercado de trabalho. Aliás, o curioso, é bom até dizer que a minha mãe ficou insatisfeita com isso, porque ela queria estudar, ela queria ser professora, e o meu avô dizia: “Estudar para quê? Se é para casar e ter filhos, não precisa saber nada.” Então, ela se conformou mesmo, o traço principal dela. Hoje ela vive internada numa clínica, porque ela sofre de Alzheimer, e meu pai faleceu já. E ela tinha vontade de estudar, ela gostava muito do Magistério e queria dar aula, porque ela via, gostava da professora, que era uma professora, porque naquele tempo os fazendeiros faziam assim: colocavam uma espécie de um professor particular em casa para ensinar os filhos e ensinava os filhos dos vizinhos. Então, ela queria ser professora, mas o meu avô disse que não, porque ela ia se casar e ter filhos, para que estudar? Com o meu pai aconteceu mais ou menos a mesma coisa. Ele queria muito estudar, mas ele era o primeiro filho e tinha que tomar conta da fazenda. Então ele também fez um curso primário particular, na fazenda. E ambos não fizeram nem o fundamental formal, que naquele tempo era primário. Eles não fizeram por conta das atividades da família, que não considerava os estudos como uma parte importante. Meu pai, embora quisesse, ficou reservado aos mais novos. Os irmãos mais novos estudaram.

P1 – E a sua família é de Pederneiras mesmo?

R – É todinha, dos dois lados.

P1 – Tem alguma ascendência anterior?

R – Sim, meus avós maternos eram mineiros, meu avô era de Aiuruoca, Minas Gerais. Tem um estudo genealógico da família Arantes, que era a família do meu avô. Os meus avós paternos eram daquela região, mas também o meu bisavô veio de Minas Gerais, só que eu não sei a região. Então, nós somos os paulistas que foram para Minas e voltamos para São Paulo (risos).

P1 – E você passou a infância em Pederneiras?

R – Eu passei a infância. A primeira infância foi na fazenda em Pederneiras.

P1 – Até que idade?

R – Até sete anos, de sete para oito anos, porque meu pai resolveu esperar que a minha irmã completasse sete para ir pra cidade, para que a gente frequentasse a escola. Por isso que ele resolveu se tornar comerciante. Então, ele vendeu a fazenda e foi para a cidade e montou um negócio, e nós íamos para a escola. Éramos quatro, três mulheres e o quarto era homem, e depois os outros todos eram homens. E fomos para a escola primária em Jaú, aí já não era em Pederneiras mais, a gente mudou de Pederneiras para Jaú, que era uma cidade próxima. E aí em Jaú eu estudei até o segundo grau, as minhas irmãs, meus irmãos, e depois é que fomos saindo de lá.

P1 – E as lembranças dessa infância na fazenda, do que você se recorda? Como era a sua rotina? O que é que você fazia?

R – Como eu saí de lá com seis, sete anos, eu me lembro de alguma coisa, mas nós tínhamos aquela vida mesmo de fazenda que, mesmo com seis, sete anos, a gente já era... A mulher era obrigada praticamente a ajudar nos afazeres domésticos, tínhamos pouco tempo para brincar, mas brincávamos. Eu me lembro de um cachorro que a gente gostava muito, que morreu atacado por um policial. Então, a gente brincava muito com esse cachorro. A gente tinha uma liberdade, embora em alguns momentos ajudássemos, eu era a mais velha e minhas irmãs eram pequenininhas, mas brincávamos de coisas que nós mesmas inventávamos. Minha mãe fazia alguns brinquedos para nós. Mas no Natal meu pai comprava boneca geralmente, boneca simples, que a gente acabava perdendo. Eu só guardei a primeira boneca que eu ganhei quando eu fui para a cidade, que eu tenho até hoje. Está lá, e a minha filha diz que vai ficar pra ela.

P1 – Tem nome essa boneca?

R – Olha, eu me lembro de não ter dado nome, porque não era... Naquele tempo não havia esse costume. Era a minha boneca, então, eu queira que minha mãe fizesse roupinhas para ela, mas a minha mãe não fez, porque não tinha tempo, oito filhos. Eu brincava muito. Tinha a boneca e os brinquedos. Eu me lembro de uma cena marcante da minha infância, foi de tomar leite tirado na hora, eu e minhas irmãs pequenininhas ainda de camisolinha bem cedo, de flanela, nós íamos com uma canequinha, e a minha mãe colocava Toddy na canequinha de alumínio, e o meu pai ordenhava a vaca diretamente na caneca. E a gente vinha tomava aquele leite que ainda estava quente, ordenhado na hora num cantinho da casa onde batia sol, tomávamos o leite, eu e minhas irmãs, e depois tomávamos um café mais completo dentro de casa. E aí brincávamos, ajudávamos no que fosse possível. As famílias eram muito grandes e a gente visitava muito os parentes, então, a vida social era entre os parentes com os primos, primas mais. Meu pai era o filho mais velho, minha mãe não era a filha mais velha, mas aí sim a gente tinha uma convivência com os meus primos do lado materno e muito mais com parentes até entrar na escola. E depois a gente fazia amizade na escola, tinha várias amizades.

P2 – Era sua mãe que contava história?

R – Minha mãe que contava essa história para nós. Ela tinha umas histórias que ela contava sempre para nós enquanto ela costurava, e nós ao redor dela, ela contava. Eu não lembro bem das histórias, eu deveria ter registrado, mas ela contava não muitas. Ela não tinha um repertório grande, ela contava três ou quatro histórias, e a gente pedia para repetir e eram as mesmas sempre. E falava dos costumes, das crenças, que existia o saci mesmo, e contava história de assombração. Eu adorava era minha avó materna contar história de assombração. A minha mãe contava histórias de contos de fadas e ela costurava até altas horas. Ela dizia que ouvia às vezes um assobio, não tinha luz elétrica na fazenda, muito forte um assobio, porque diziam que era o saci que passava por ali e ela acreditava nisso. Era qualquer... Uma ave noturna devia ser, mas a mamãe achava que era o saci e passando por ali, então já era hora de ela ir dormir, ela recolhia as coisas todas e ia dormir. E quando a gente ia pra fazenda, nós morávamos numa fazenda e íamos pra fazenda dos meus avós maternos, íamos para os avós paternos e maternos. Passávamos alguns períodos de festas familiares, de fim de ano, Natal, aquela coisa toda era sempre com a família. E a avó preferida era a mãe da minha mãe, porque ela reunia os netos todos ao pé do fogo, de noite, e contava história de assombração. A gente vibrava com as histórias de assombração, adorava ouvir e depois morria de medo na hora de dormir. Mas aí eram os primos todos na época de Natal ou então quando a família se reunia para algum evento familiar. Então, os primos todos se reuniam em volta da minha avó, e ela tinha um espírito assim muito alegre, ela era bastante desembaraçada, falava, era uma avó que marcou muito. Essa minha avó Helena.

P1 – A Gabriela ou não?

R – Não, a Gabriela era a mãe do meu avô. Da minha avó Helena, eu me lembro, que foi uma coisa marcante, nós é que gostávamos muito mesmo da nossa... Eu não conheci a minha bisavó Gabriela, ela já tinha morrido quando eu nasci. Agora a minha avó Helena era uma figura à parte, muito alegre, recebia as pessoas, e a minha mãe é o oposto totalmente, minha mãe é extremamente fechada, depressiva, tanto que eu acho que o Alzheimer tem um pouco a ver com isso mesmo, uma pessoa quieta no canto dela, não abria. Submissa ao extremo, a vontade do meu pai era lei, e a minha avó Helena não era assim. A mãe dela era totalmente diferente, ela chamava os netos, chamava atenção se a gente aprontasse. É claro que a gente aprontava, mas nunca nós nos sentimos mal na casa dela. Nós nos sentíamos muito à vontade, adorávamos ir pra lá com os primos todos, e ela reunia a gente pra contar história de assombração, história de como ela conheceu o meu avô quando ela tinha 13 anos de idade e casou com 14. Ela contava história da vida, ela tinha um papo muito bom que reunia pessoas em torno dela, uma figura que marcou muito, a minha avó Helena, mais do que a minha avó Cândida, que era a mãe do meu pai. Ela era severa com os netos, nós aprontávamos, claro, fazíamos as nossas estripulias infantis, e ela chamava a atenção e ela dizia que criança não tinha vez, não deixava que chegássemos perto dos adultos, porque conversa de adulto era de adulto e criança que fosse brincar lá fora. A minha avó Helena não. A conversa fluía bem, criança entrava e saía, ela conversava com adulto, se criança chamasse a atenção, ela dava atenção. Então houve essa diferença muito grande, essa minha avó paterna era controladora ao extremo da nossa vida. Para mim, ela dizia que não devia... Eu terminei o curso de Magistério e passei a dar aula e queria fazer faculdade, e ela disse que eu não tinha nada que fazer faculdade e sim pagar o estudo que meu pai tinha me dado. Aí eu não deixava barato, eu respondia, eu falei: “Como pagar o estudo que meu pai me deu, eu e minhas irmãs ganhamos esse estudo, porque papai tinha bar e lanchonete e a gente ajudava.” Eu e minhas irmãs, meus irmãos eram menores, ajudávamos a servir no balcão, no caixa, quando faltava garçom, a gente substituía, ajudava na cozinha a cozinheira e ajudava a servir lanche e essa coisa toda. Então, eu falei assim: “Meu pai não pagou estudo, nós ganhamos.” Eu respondia e eu era a neta mais malcriada que havia, porque eu falava o que eu pensava. Fiz o curso pagando o meu curso, fiz Serviço Social em Bauru e dando aula em Jaú, eu pagava o meu curso, porque meu pai... Nós éramos oito filhos. O professor de Biologia, aliás, eu adorava, eu queria fazer era Biologia, não era Serviço Social, e meu pai não tinha... Eram oito filhos, e eu a mais velha. O professor de Biologia esteve em casa para dizer ao meu pai que deveria me deixar fazer Biologia em Araraquara, que era USP [Universidade de São Paulo], naquele tempo, depois é que, quando foi criada a Unesp [Universidade Estadual Paulista], passou a ser ligado à Unesp, mas no meu tempo era ligado à USP, era um campus isolado da USP. E eu queria muito, o meu sonho era fazer Biologia em Araraquara, que era pertinho de Jaú, uns 70 quilômetros por aí, e meu pai falou para o meu professor que ele não tinha condições de me manter em Araraquara, como é que ele iria... A faculdade era pública, mas ele não teria condições de me manter lá, pagar um pensionato, uma pensão, sei lá o quê, e alimentação e tudo, porque ele tinha mais sete filhos para criar e estudar. E eu não tive também a iniciativa, como depois eu vi várias pessoas fazendo: “Vou dar aula particular, vou me virar, arrumar um emprego, sei lá que tipo de emprego, para me manter na faculdade.” Eu não tive essa ideia. Mas aí, então, o que aconteceu? Eu fui fazer Serviço Social até por indicação, sugestão inicialmente de umas amigas lá da cidade que foram fazer antes. Eu fui fazer Serviço Social em Bauru porque eu estudava de manhã, saía às seis horas de Jaú, entrava às sete na faculdade e, quando era meio-dia... Das sete às onze e meia por aí, e chegava à uma e pouco em casa, e ainda ia dar aula como professora substituta. E, depois, à noite, eu dava aula também como professora de supletivo, de adulto, e conseguia estudar para a faculdade, fazer os trabalhos de dez às duas, das dez da noite às duas da manhã, e eu levantava às cinco e meia, seis horas. Foram quatro anos terríveis aqueles.

P1 – Puxado, né?

R – Puxadíssimos, mas eu consegui me formar e os meus irmãos... Minhas irmãs fizeram Pedagogia, elas ficaram sempre na área da educação, e uma delas já faleceu, e meus irmãos, dois concluíram faculdade, porque não tinham a mínima vontade mesmo de estudar. Um deles se formou em São José dos Campos, até porque eu já estava nessa altura... Eu estou até pulando a minha adolescência, mas ele acabou indo estudar lá por minha influência, eu o ajudei lá. Mas eu fiz assim em toda a adolescência, ajudando ao mesmo tempo em que estudava, trabalhava em casa e aí fui fazer faculdade do jeito que eu falei e concluí a faculdade. E também consegui fazer concurso público para o Magistério e aí eu vim para São Paulo. Quando eu fiz concurso público, eu fui aprovada, mas não tinha terminado a faculdade ainda, estava no quarto ano. Como conciliar o quarto ano de faculdade com o emprego público que eu acabara de ser aprovada? Então, foi aqui em São Paulo que eu fui nomeada para professora de primeiro grau, que era de primeira a quarta série e tinha que terminar... Eu tentei transferência para o quarto ano de Serviço Social em São Paulo, e no quarto ano não se dá transferência, eu não sei se ainda é assim hoje, mas naquele tempo era. E aí eu não queria deixar de fazer a faculdade. O que é que eu consegui? Eu consegui uma coisa maluca, que foi conversando com o diretor da escola onde eu dava aula, eu estava com uma primeira série. Ele falou: “Se você fizer o seguinte... Não é justo que você não conclua a faculdade, você fez até o terceiro ano, estagiou.” Eu tinha que fazer trabalho de conclusão de curso e tudo. “Eu passo você para auxiliar, assistente de direção.” Não ganhava nada, só o serviço, né? “Aí, você vai poder trabalhar dobrado nos dias que você estiver em São Paulo.” Porque a faculdade eram três vezes por semana no último ano, terça, quarta e quinta, eu tinha que fazer estágio e fazer o TCC também. Aí ele falou: “Você, segunda-feira, aula você tem terça, quarta e quinta, na segunda-feira você trabalha de manhã aqui na escola e leva todo o serviço.” Porque não era informatizado, eu tinha que levar folha de pagamento, de frequência para a Delegacia de Ensino, eu levava e ficava até além do horário, eu levava e chegava em casa no final da tarde. E aí eu ia para a faculdade terça e quarta ou quarta e quinta, eu só fui duas vezes por semana, eu tinha que fazer segunda e fiquei... Não era DP por falta, naquele tempo não era isso, eu fiz outros exames por não ter completado a frequência toda do quarto ano de faculdade em duas disciplinas. Nas outras. Como eu ia sempre segunda e terça, aliás, terça e quarta ou quarta e quinta, a quarta feira eu me livrei, mas a terça e quinta eu consegui fazer só meio período, a metade, 50%, faltou um pouco porque, até eu resolver isso, já tinham começado as aulas. E eu sempre perguntando na secretaria da faculdade de Serviço Social o que era necessário para fazer exames e não perder a faculdade. Porque não tinha DP, você tinha que prestar novos exames, além de apresentar o trabalho de conclusão de curso, defender numa banca esse trabalho, a secretária falava que era 40%, mas não era Direito, era Serviço Social, funcionava junto com a faculdade de Direito de Bauru. Faltava uma semana para terminar as aulas, aí ela resolveu olhar lá que eram 50%. Eu quase tive um “piti”, quase não, eu tive um “piti” na faculdade. Aí a direção, bastante preocupada com o fato, e eu tinha sido aprovada no TCC com louvor, já tinha conseguido. Eu fiz Serviço Social Escolar em Jaú, trabalho com alunos carentes, com alunos de baixa renda, eu fazia um trabalho social com eles e ainda ajudava a minha prima a fazer o TCC dela, que era com recreação, o direito ao lazer para crianças desfavorecidas economicamente, e eu escrevi o meu TCC e o dela. Isso é uma coisa desagradável de falar, mas ela não estava nem um pouco preocupada, porque ela me ajudava a fazer levantando dados, pesquisa, tudo ela ajudou, ela fez a pesquisa, mas não escreveu o texto dela, eu escrevi o meu e o dela. E depois nós fomos aprovadas, mas aí faltava frequência para eu concluir. Aí, eu teria que frequentar o quarto ano inteirinho sem precisar fazer TCC, eu tive um “piti” na faculdade, passei mal, quase tive um treco. Aí, veio diretor, reitor, todo mundo, para saber o que estava acontecendo, porque eu chorava desesperadamente. Por que o que eu fiz? Viajava de trem de São Paulo para Jaú, saía às segundas ou terças, tomava o ônibus às três ou quatro da tarde, chegava às dez da noite sem comer, porque eu não tinha dinheiro – eu comprava pacotinho de biscoito de polvilho, que era o que o dinheiro dava –, para poder chegar no dia seguinte, fazer a faculdade e fazer o estágio ainda na escola. Porque eu continuei com o estágio até terminar a pesquisa, do atendimento socioeconômico dessas famílias, das crianças que eram atendidas pela chamada caixa escolar, que era a instituição que dava ajuda para as crianças que não tinham meios nem para adquirir material escolar nem para adquirir uniforme. Hoje isso está tudo resolvido, mas naquele tempo não estava. E escola pública era a melhor, não existia nem particular, então recebia os alunos com dificuldades econômicas com bastante má vontade até. E eu, como futura assistente social, tratei de tentar mudar isso. E aí, para eu terminar o meu curso, foi assim uma epopeia mesmo. Quando um professor de Sociologia que fechava frequência em toda aula, porque ele contava, porque na faculdade é muito comum um assinar pelo outro e o outro pelo um, para ter frequência, até hoje isso é comum. E esse professor passava ou então deixava a lista com o primeiro aluno e um assinava pelo outro, acontecia desde aquele tempo essas coisas na faculdade. Mas esse professor, que foi de Política Social, Sociologia, ele sabia que eu estava... Ele me viu aos prantos, desesperada, tendo um “piti”. Por sorte, ele contava os alunos, se eram 20 alunos tinha que ter 20 assinaturas. Ele fazia a chamada e não considerava nem de quem tinha assinado. Mas ele, por dois dias, que equivaliam a quatro aulas, ele se esqueceu de passar a lista. Era final de ano mesmo. Aí ele falou: “Espera aí, vai buscar as duas últimas listas de frequência.” Chegou lá e falou: “Assina aí.” O professor mais cri-cri da faculdade, e eu assinei e ainda tive que dar um cano na escola aqui. Eu faltei uma semana, era semana de prova, que eu tinha que estar aqui para ajudar dar as provas, porque eu era assistente de direção. Eu liguei para avisar que eu estava com problema para completar a frequência para ir para a segunda chamada, que era em janeiro, se não, eu não conseguiria concluir a tempo. E foi assim que eu consegui concluir a faculdade a duras penas. Fiz o exame de segunda chamada de Política Social e Psicologia Social, foram as duas matérias que eu não consegui frequência suficiente. Os professores nem sequer olharam e me deram. “Ah, eu vou dar a média do que você teve aí durante o ano. Você tinha mais ou menos oito, nove, eu vou te dar oito e meio.” Deram-me oito e meio e nove, e assim eu acabei conseguindo concluir o curso de Serviço Social e vim para São Paulo. Eu já estava dando aula aqui, e aí eu soube de um concurso na Secretaria que se chamava Promoção Social, que estava sendo criada. Eu prestei o concurso e comecei a trabalhar. Aí eu me afastei sem vencimentos do Magistério e comecei a trabalhar em São José dos Campos, aliás, inicialmente em Jacareí, e foi onde eu me aposentei.

P1 – Entendi. Mas antes disso a gente precisa voltar um pouquinho.

R – Tudo bem, porque eu falei da minha vida escolar, né?

P1 – Não tem problema. Eu queria que você contasse um pouco como é que foi essa passagem da fazenda para a cidade? O primeiro contato com a escola? Como é que foi?

R – Foi interessante, porque a gente morava numa fazenda, era outra realidade. A cidade, embora não fosse grande, mas você tinha vizinhos. Então, foi um certo estranhamento de início, mas a minha mãe nos levou. Eu lembro até hoje que mudamos para a cidade cerca de 15 dias antes do início das aulas.

P1 – Em Pederneiras, foram para Pederneiras?

R – Em Jaú. A fazenda era em Pederneiras, mas nós nos mudamos para Jaú. Foi lá que meu pai foi ser comerciante, e a minha mãe nos levou para a escola, nós três, a mais nova foi para o pré, e eu e a do meio fomos para a primeira série. Mas o meu pai, na fazenda, já tinha praticamente me alfabetizado, porque ele ia para um distrito vizinho e comprava jornal todo dia, porque ele gostava de ler e eu, muito curiosa, queria ver o que estava escrito ali. Ele me dizia e pedia para eu escrever em letra cursiva, e eu copiava, e ele acabou me alfabetizando. Eu cheguei alfabetizada na escola, embora com oito anos. Naquele tempo, não havia a possibilidade de você fazer os exames e já passar para a segunda série. Eu tive que frequentar a primeira série mesmo. O primeiro ano primário, que era como se chamava naquela ocasião, então eu fiz. Mas a minha mãe nos levou as três, porque a mais nova, que tinha seis anos, ia para o pré, eu, oito. Nós tínhamos um ano de diferença, e a outra, de sete, para a primeira série. Sem nenhuma ideia de que era um ambiente totalmente novo, uma coisa nova que podia ser assustadora para nós, a mamãe nos largou as três no pátio da escola e foi embora. E adivinha o que aconteceu? Nós três abrimos o maior berreiro. Porque nós nos vimos, três crianças, que fazia 15 dias que tínhamos chegado da fazenda, mal conhecíamos os vizinhos, tímidas, bastante caipirinhas mesmo. Porque morávamos na fazenda, e a minha mãe sem nenhuma malícia mesmo de pensar que nós... Ela achou que as professoras já iriam nos assumir e nos levar para a sala, mas ela não esperou e nem falou com a professora. Essa cena não sai da minha cabeça e nem das minhas irmãs. Ela nos deixou ali, e como nós nos vimos? No meio de um monte de crianças, de professoras, de pessoas desconhecidas: “Cadê minha mãe?” As três abriram um berreiro, aí vieram as professoras para saber o que estava acontecendo. “A minha mãe?” “Mas cadê a sua mãe?” Porque todas as crianças estavam acompanhadas pelos pais ou por um irmão mais velho, e nós não. “Cadê a sua mãe? Tem alguém com vocês? Alguém trouxe?” Então, esse foi um início traumático, mas aí as professoras nos acalmaram, nos agradaram, foram buscar um lanche, alguma coisa assim, e nós entramos na sala. E, daí para a frente, foi natural irmos sozinhas, aprendemos assim, nós morávamos a umas cinco quadras da escola. Nunca mais ninguém nos levou para a escola, a minha mãe nos levou no primeiro dia, e a partir do segundo dia íamos as três de bolsinha na mão e aquela coisa toda, uniformizadas para a escola. E foi assim. Quer dizer, o fator traumático foi essa questão da escola.

P2 – E qual é o nome das suas irmãs?

R – Maria Helena, a do meio, que já faleceu, e Dinorá, que está lá em Jaú ainda.

P2 – E dos outros irmãos?

R – Celso, o mais velho dos homens, que também faleceu, depois o Agostinho, Joaquim Alberto, João Paulo e José Alaor. José Alaor é o mais novo. Mas dois faleceram, a minha irmã de câncer de mama, e o meu irmão de derrame cerebral. E eu sou a mais velha.

P2 – E, além da escola, o que mais você fazia em Jaú naquela época?

R – Na escola, a gente fazia... Quer dizer, como era costume mesmo, nós íamos para a catequese. Tinha um cinema, e o legal das aulas de catecismo é que eram concluídas com uma sessão de cinema, porque o padre tinha um projetor lá e arrumava filmes de aventura. Não eram filmes religiosos, não, o interessante é que nós tínhamos... Mas aí nós tínhamos que frequentar as aulas de catecismo e ganhávamos ponto. Os mais frequentes tinham direito à sessão de cinema. Então, a gente adorava ir à missa e, da missa, a gente ia para a aula de catecismo e, da aula de catecismo, para o cinema, que era nos fundos da casa paroquial. Todo mundo ficava sentado no chão mesmo, e o Padre Serra, é o nome dele, projetava o filme. E, quando faltavam dez minutos para a missa das dez, ele interrompia. “Quem não foi à missa das dez está na hora!”

P2 – Dez da manhã ou da noite?

R – Da manhã de domingo. Mas aí nós íamos à missa das oito e meia, e dali íamos à aula de catecismo e, da aula de catecismo, para o cinema e filmes. Eu lembro até um tal de Fu Manchu, um filme antigo de aventura que eu guardei, mas tinha bangue-bangue, tinha filmes românticos, o padre tinha uma seleção de filmes legais. Eu nunca ouvi falar em nenhum outro lugar no mundo que um padre fizesse isso, projetasse filmes para as crianças. Mas isso não sendo o suficiente... O cinema é uma coisa muito marcante na minha vida, eu adoro cinema. E depois íamos para casa ajudar minha mãe a fazer o almoço, lavar a louça e aí íamos para o cinema vespertino, que se chamava matinê, mas era à tarde. Então íamos lá, e era pipoca e sorvete, fazia parte do cinema, né? As três, porque o meu irmão era mais novinho, então, nós três íamos todo domingo à tarde à sessão de cinema. Então, era dupla a sessão de cinema no domingo. Esse era o divertimento preferido, a gente adorava ir ao cinema, e o meu pai tinha os tostõezinhos dele para nos mandar para o cinema e ainda comprar um saquinho de pipoca na entrada e um sorvete na saída, numa sorveteria famosa que tinha em frente a uma praça que até hoje existe, mas está em outro local. O meu irmão me mandou ontem um artigo, uma crônica de jornal da cidade que eu achei super... Até, se eu soubesse disso, porque o Bruno falou depois, é uma coisa que eu poderia ter trazido, é uma coisa legal e que eu participei daquilo, a crônica falando: “As pessoas que entraram aqui compraram tal coisa, foram ao cinema do Padre Serra, foram isso e aquilo.” Então, conforme as experiências de vida, você sabe. “Então, você tem 40, você passou dos 60, você...” Pelas experiências. E a crônica é muito interessante, que meu irmão me mandou ontem, e eu até quero dar para o Bruno ler, porque é muito interessante. Ele vive brincando comigo, né? “Você é velhinha mesmo, mãe.” Eu falo: “Eu sou vivida.” (risos) Então, ir ao cinema foi a nossa principal diversão. Depois, mesmo saindo, indo para a rua, já na época de adolescente, já no ginásio, e as paqueras que hoje já não são assim mais como naquele tempo, né?

P1 – Como é que era?

R – Ah, começava com troca de olhares entre meninas e meninos, tinha o footing, você já ouviu falar de footing? Vocês já ouviram falar? Vocês são muito jovens ainda, né? Footing era o seguinte: lá era um tanto quanto humilhante para a mulher, porque em geral nas cidades do interior existe em torno do coreto da praça. Coreto vocês já ouviram falar o que é isso, né?

P1 – Sim, claro.

R – Onde toca uma banda de vez em quando. Então, em sentido contrário, os meninos e meninas rodam para se conhecer, trocar olhares, e dali saírem os namoros. Era um negócio legal, né? Mas, só que em Jaú, como o coreto ficava... Lá tinha jardim de cima e jardim de baixo, o jardim de cima é em frente à igreja matriz. Quando eu era bem pequena e ia ao cinema, eu falei do cinema de infância, depois do cinema da catequese, do cinema à tarde, o jardim de cima chamado... Tinha outro nome, Praça João Ribeiro de Barros, que foi o primeiro aviador a atravessar o Atlântico, vocês nem devem saber disso, mas essa é uma história de Jaú, porque o primeiro que atravessou o Atlântico Sul. Então, essa praça tem o nome dele, Praça Comandante João Ribeiro de Barros, tem até rodovia com esse nome lá. Como a cidade é em declive, ela tem num declive acentuado, a igreja matriz que parece uma catedral fica... Lá vai ser diocese agora, depois de anos e anos. Uma escadaria enorme para chegar na igreja, a praça era nivelada, então, embaixo tinha uma escadaria enorme que nós adorávamos subir e descer correndo e ir para a sorveteria, e na rua do lado era o cinema. Então, com o centenário da cidade, eles aterraram essa praça, não tinha nem coreto mais. Aí o coreto ficava no jardim de baixo, que ficava a umas quatro ou cinco quadras, mas a Sorveteria Pereira, que era o nome dela, ficava em frente a essa praça que foi descaracterizada, fizeram um monumento brutal de João Ribeiro de Barros lá, mas podia ter feito sem ter descaracterizado a praça, né? As pessoas não foram consultadas e não gostaram, a população não gostou e nem eu gostei, como criança eu não gostava. Não sei por que o pessoal não gostava de ir lá para o jardim de baixo, que se chamava Praça da República, e nesse jardim de cima nós ficávamos. Os rapazes ficavam. A rua era interrompida, o trânsito, e ficavam todos parados ali em frente. Era um negócio ridículo, e as meninas em frente à sorveteria iam e voltavam de uma esquina à outra. Esse era o footing, e dali saíam os namoros.

P2 – Continuando, você estava contando do footing, e a partir daí se iniciou algum namoro? Alguma paquera?

R – Todas as meninas daquela época tinham a sua história, e eu também, né? Só que eu era muito tímida, eu era extremamente insegura e, então, me escondia até. As amigas falavam: “Oh, o fulano está olhando pra você.” E eu, muito tímida, me escondia atrás das outras. As minhas irmãs já eram mais desembaraçadas, mas rolava de vez em quando alguma conversa, muitas vezes, porque para namorar, namorar mesmo, eu lembro que eu tinha um paquera que durou três anos e o dia que ele quis me namorar, eu falei: “Você não acha que você está três anos atrasado, não?” (risos) Dos 15 anos aos 18. “Você está três anos atrasado, agora eu não quero.” Uma parte importante da história é que a gente gostava muito de ir para Pederneiras, que era a minha cidade natal, onde morava a minha avó, essa minha avó.

P1 – A avó Helena?

R – A avó Helena. E tinha uns bailes. Porque hoje a história de vocês é completamente diferente da minha, que tenho 64 anos. Nós íamos para os bailes comemorativos disso e daquilo, era baile junino, caipira, sempre tinha um baile, e a gente ia para Pederneiras. Em Jaú também tinha, mas eu preferia os de Pederneiras.

P1 – Por quê?

R – Por quê? Não sei, porque eu me sentia muito mais desembaraçada em Pederneiras e eu achava que os meninos em Jaú me esnobavam e os de Pederneiras não. Então, lá a gente dançava, rolava alguma paquera, início de namoro que depois não continuava e essas coisas todas em Pederneiras. Mas em Jaú não. Eu era outra pessoa, tanto que eu gostava muito mais de ir para Pederneiras, e até hoje tem, sabe aquele lugar especial na memória? É Pederneiras, uma cidade que deve ter hoje uns 40 mil habitantes por aí, fica a meio do caminho entre Jaú e Bauru. Mas naquele tempo era pequena, tinha 20 mil habitantes ou 30 mil, sei lá, mas a gente se sentia muito à vontade tanto na minha avó, que ela punha a gente à vontade. Aí os primos se reuniam para ir ao baile, era aquela festa de se arrumar para o baile, voltar, e íamos à pé para o clube, era perto e aquela coisa toda. Então, lá era a minha lembrança mais feliz de adolescência e início de juventude. Foi lá em Pederneiras, Jaú não. Eu não gosto de Jaú. Quando eu falo, a minha irmã e o meu irmão, meu irmão não, meu irmão compreende isso, mas os sobrinhos não entendem e falam: “Tia, por que você não gosta de Jaú?” Eu falo: “Não gosto, porque eu me sentia preterida, eu me sentia menosprezada.” Eu tinha duas primas que colaboraram muito com isso. Elas diziam que eu estragava fotografia, porque eu não era fotogênica, outra menina lá me chamava de feiura, dizia que eu era muito feia, eu era desengonçada. Na verdade, eu era menina normal, nem bonita e nem feia, normal. Mas botaram na minha cabeça que eu era muito feia, a minha prima, porque eu estragava fotografias, e uma menina que a minha avó adotou, assumiu a guarda, sei lá, começou a me chamar de feiura porque percebeu que aquilo me pegava. “Oh, Feiura, você vai fazer isso ou aquilo.” Então, essas coisas marcaram muito tristemente a minha adolescência em Jaú. Por isso que eu nem reparava se algum menino olhava em mim. Imagina se alguém ia olhar pra mim? Eu era muito feia, eu saía sim, eu ia ao cinema, eu ia para baile, mas, quando algum garoto se aproximava, eu me trancava em copas. Depois é que eu fiquei sabendo de garotos que se interessavam por mim, mas eu nem percebia.

P1 – E depois desse namoro de 15 aos 18?

R – Não foi nem namoro, foi uma paquera.

P1 – Isso, paquera. Depois teve algum namoro? Como é que foi isso?

R – Aí, depois disso, em Jaú não. Quando eu entrei na faculdade, quer dizer... Não, ele era de Jaú sim, o primeiro namorado meu foi. Eu tive quando entrei na faculdade, era um rapaz de Jaú que ia fazer Direito e até que, a pretexto de saber como era, porque ele fez depois de mim, ele entrou um ano depois de mim, ele era um ano mais novo. Aí eu dei todas as dicas do vestibular, até emprestei material todo para vestibular para ele, e acabamos namorando.

P1 – Qual era o nome dele?

R – Eu me lembro bem, porque ele tinha o nome do meu avô, era Sebastião, e a minha avó ficou... Até hoje eu acho que ela atrapalhou esse namoro, porque ela adorava se meter na história das netas.

P1 – A avó Helena?

R – Não, a avó Helena não se metia. A outra avó, a avó controladora mesmo, ela controlava a nossa vida, dizia que nós tínhamos que ajudar meu pai, porque meu pai era isso, se a gente fazia uma roupa... A minha mãe tinha uma costureira que ia em casa e costurava para todos nós e cobrava baratíssimo. Ela ficava uma semana em casa costurando para todo mundo. E nós não tínhamos televisão, e a minha avó tinha. Então, nós íamos ver televisão na casa da minha avó e levávamos uma roupa, porque a costureira fazia a roupa, e a gente fazia bainha, pregava botão, essas coisas. A gente ia lá com uma sacolinha, porque a minha avó morava a uma quadra da nossa casa e a minha avó falava: “Outro vestido? Custou caro?” E eu era muito danada nesse ponto, eu triplicava o preço só para atazanar a minha avó, e ela falava: “Imagina, fazer seu pai gastar isso?” “Ele deu o dinheiro, eu comprei o tecido, e a costureira é barata, que a senhora sabe.” Era nada, o vestido era barato, mas eu fazia questão de atazanar essa minha avó, coitada, ela só foi melhorar comigo quando ela já estava bem idosa. Mas, enquanto eu era adolescente, jovem, eu briguei muito com ela, porque ela interferia demais, e eu não engolia. Foi uma relação difícil com ela, porque ela interferia demais, e eu devolvia. Meu marido diz hoje que começou cedo, então, porque eu não deixo para depois, eu falo o que eu sinto. E a minha avó foi... Natal, a gente não gostava de passar o Natal lá, porque controlava, mandava a gente ir embora, não podia ficar perto dos adultos. Então, eu acho que esse namoro a minha avó atrapalhou, porque ela soube que eu estava namorando e, quando ela soube o nome do rapaz, que era o nome do meu avô: “Ah, Sebastião, então deve ser uma excelente pessoa, né?” Eu falei: “Ah, por que eu fui falar?” Eu só sei que, dias depois, o rapaz voltou dizendo num dos encontros que ele não tinha condições de se casar antes de dois anos, fazia poucos meses de namoro, eu nem estava pensando em casar, aí por isso que é uma desconfiança que eu nunca... É uma suspeita que eu nunca pude apurar, se tinha alguma verdade nisso, mas eu tenho a

impressão que... Porque ela fez isso com outros namorados meus ou paqueras, dizia que eu era estudiosa, tinha que ajudar, e comigo o namoro tinha que ser sério, ela falava para os rapazes isso, né? Ela fez isso duas ou três vezes comigo, então deve ter feito com esse também. Então, foi essa a minha história em Jaú, e aí depois eu comecei a estudar em Bauru, mas eu ia e voltava. Eu concluí a faculdade do jeito que eu falei, a duras penas, e vim para São Paulo para dar aula na Vila Antonieta. Eu não sei se vocês ouviram falar alguma vez desse bairro, lá na Zona Leste, para lá da Vila Formosa. Já ouviram falar em Vila formosa pelo menos?

P1 – Sim.



R – Então, eu dei aula durante uns três anos. Três não, dois anos, foi um ano e pouco, porque eu terminei Serviço Social e prestei concurso em seguida e deixei o Magistério. E aí eu fui para São José dos Campos, porque foi lá que eu fui trabalhar, que tinha a Secretaria da então Promoção Social, criada pelo Governo de Estado, criou regionais em todo... Regionalizou o Estado, dividiu o Estado em regiões, e cada uma tinha uma região de uma área de política pública, ou era Promoção Social ou de Assistência Social, Saúde, Educação, por aí afora.

P1 – E, em São José, a senhora ficou quanto tempo?

R – Em São José, eu estou até hoje.

P1 – Continua lá, então?

R – Continuo lá, porque eu conheci o meu marido lá e eu fiquei trabalhando nessa divisão regional até que fui nomeada diretora, fui diretora regional durante bastante tempo. E aí, quando foi o governo Maluf, ele me exonerou porque tinha que colocar quem votou nele para ser governador, porque era aquele coisa de eleição indireta no tempo da ditadura. Então, eu trabalhei um tempo em São Paulo, um ano em São Paulo ainda, eu tive que vir para cá, me mandaram para cá, me transferiram compulsoriamente para cá, porque eu era também atrevida o suficiente para dizer que eu não gostava do Maluf mesmo. E tinha um senhor que era chefe da Defesa Civil e de um escritório regional de planejamento que queria me levar lá para assessorá-lo, só que aqui eles seguraram o meu processo de comissionamento o quanto puderam. Então, eu fiquei viajando um ano, eu já tinha casado e estava grávida do meu primeiro filho, que eu acho que perdi por isso. E eu fiquei em São José dos Campos, eu fui para lá para trabalhar e aí eu fui chamada para exercer um cargo aqui em São Paulo e foi uma coisa... Esse é um pedaço interessante, porque era um cargo de coordenadora estadual de desenvolvimento comunitário, isso foi antes do governo Maluf. Aí uma amiga nossa, minha amiga até hoje, ela estava ao contrário, vindo de São Paulo para São José dos Campos, porque ela ia se casar e morar lá, o noivo era de lá. Então, ela conseguiu uma transferência, a família dela morava lá. E eu brinquei com ela, eu estava saindo para exercer esse cargo em São Paulo: “Oh, Neusa, vai ver que comigo vai acontecer a mesma coisa!” Sabe quando sai da sua boca de brincadeira? E aconteceu exatamente isso. Nas minhas idas para São José dos Campos, porque todas as minhas amizades eram lá, eu ia muito para lá, eu conheci meu marido, que tinha terminado Física na USP aqui em São Paulo, ele trabalhou uns dois anos numa fundação ligada à USP, e depois foi para lá para trabalhar no CTA, que é o Centro Técnico Aeroespacial, porque lá tem dois institutos de pesquisa que são reconhecidos, são referência mesmo no Brasil inteiro e internacional também. E meu marido foi para lá trabalhar no CTA, e eu tinha uma amiga que cismou da cabeça dela. Ela namorava um amigo do meu marido, que moravam ambos no mesmo prédio. E ela cismou que iria apresentar o meu marido para mim, e ele falou: “Essas coisas não se fazem, porque um dia não dá certo e a gente é que botou esses dois em contato.” Ele era o namorado dela. Então, ela queria apresentar e não apresentou, porque o namorado e depois marido dela não recomendou que ela apresentasse. Mas o acaso fez com que nos conhecêssemos. Ele ia mudar de apartamento, ele tinha comprado um apartamento, e eu ia todo final de semana para lá, eu ainda estava trabalhando em São Paulo. Eu ia todo final de semana, porque minhas referências, minhas amizades todas eram em São José dos Campos. Às vezes, eu ficava aqui em São Paulo, quando o pessoal de São José vinha para cá, eu ficava aqui. E, então, o namorado dessa minha amiga ia se mudar para o apartamento que ele comprou, e daí eu cheguei, porque eu passava final de semana lá no apartamento que ela morava, essa amiga minha. E ela falou: “Ah, porque o Humberto vai mudar hoje e não sei o quê, e ele contratou um caminhãozinho muito ruim para levar a mudança dele e ele está com o som dele, o som é sensível para ir naquele caminhão.” E eu, morrendo de vontade de dormir à tarde para sair à noite, porque eu trabalhava à beça, né? Eu falei: “Tudo bem, Ruth, eu levo no meu carro para ele.” E ela falou: “Ah, que bom.” E eu queria que ela falasse: “Não, muito obrigada, você fica aí dormindo, você está cansada.” (risos) E eu cheguei no apartamento desse amigo, estava o meu futuro marido ajudando a mudança. Quer dizer, nessa de ajudar na mudança desse amigo, acabamos nos conhecendo e começamos a namorar, e um ano depois casamos.

P1 – É mesmo? Qual o nome do seu marido?

R – Francisco. E ele trabalhava no CTA, mas dois anos, três anos depois, ele passou para o Instituto de Pesquisas Espaciais, onde ele trabalha até hoje, porque eu já me aposentei, mas ele não, porque ele começou mais tarde. Ele terminou a faculdade para começar, e homem se aposenta mais tarde, né? Então, ele está lá ainda no Inpe [Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais].

P1 – E esses anos em São José dos Campos, ou seja, casada, na Secretaria, como é que foi? Como é que está sendo?

R – Aí eu voltei para lá depois desse ano que eu exerci o cargo de coordenadora estadual de desenvolvimento comunitário, ligado ao secretário. Não é ligado ao governador, é ao secretário. Aí eu voltei, era no fim do governo Maluf, assumiu e daí foi.

P1 – Em que ano?

R – Em 68 por aí, 69, aliás. E começou o governo Maluf, que foi uma perseguição para todo mundo, eu era perseguida lá, porque eu não tinha papas na língua, porque eu não gostava dele mesmo, é um cara corrupto e foi a vida inteira. Fez um governo horrível. E esse senhor que queria me levar para trabalhar com ele, uma vez falou assim: “Cida”, ele me chamava de Cida, “você que não tem papas na língua, se prejudica, porque você devia ficar quieta, porque tem uma pessoa que você considera muito que diz que você é mal vista pelo Governador Maluf”. Eu falei: “Ah, é? Me dá uma declaração por escrito que eu vou pôr no meu currículo, ser mal vista pelo governo Maluf para mim é uma honra.” E aí eu fiquei. Mas eu fui perseguida durante uns dois anos, porque eles não me transferiam para outra secretaria, eu tive que ficar viajando, e foi aí que eu já tinha casado e engravidei do primeiro filho e perdi. Até que esse mesmo senhor me levou para falar com um deputado federal que tinha influência sobre o Maluf para que eu conseguisse a minha transferência lá para São José para trabalhar com ele, comissionada no outro serviço, a Defesa Civil, e assim não ficaria na Promoção Social, de onde eu era. Mas eles enrolaram uns dois anos esse meu processo e nessa vez ele... Como estava enrolando, ele me levou para falar com esse... Eu falei: “Eu não gosto de influência de deputado.” Ele falou: “Mas você vai falar comigo, vamos tentar.” Quando chegamos para falar com esse deputado, ele vira assim. Deputado federal, mas muito amigo do Maluf, né? Eu chego no gabinete. Mas nós fomos falar não com o Maluf, pelo amor de Deus, fomos falar com o secretário, né? Eu acho que teria asco se fosse falar com ele. E fomos falar com o secretário e com esse deputado federal, aliás, antes, minto, o deputado federal não entrou na história, fomos falar com o deputado federal que tinha escritório em São José dos Campos, e esse senhor que queria que eu trabalhasse com ele: “Ah, a Cida”, ele me chamava de Cida também, “trabalha muito bem, é por isso que eu vim apresentá-la para a gente conseguir. Eu quero que ela trabalhe comigo, porque está fazendo falta uma pessoa que me assessore, e ela trabalha muito bem, e eu queria os seus préstimos para convencer o secretário a assinar o comissionamento dela”. Aí, vira o deputado: “Eu gostaria que ela trabalhasse conosco.” “Não, mas ela trabalha muito bem.” Ele falou: “Eu não estou me referindo a isso...” Um carioca lá metido à besta. “Eu estou me referindo a trabalhar mesmo politicamente para nós.” Eu falei: “Muito obrigada, deputado, pela sua atenção.” E levantei e saí. Ele teve que me acompanhar, olha se eu ia trabalhar politicamente para ele? Nunca que eu ia trabalhar para um cara safado daquele. E daí eu acabei ficando, tendo que viajar mais um tempo até que o chefe da Casa Militar do governador, que precisava... A quem estava afeita a Defesa Civil, é que foi falar com o governador e aí liberaram finalmente o meu afastamento. E nessa altura eu já tinha engravidado novamente, aí o Bruno nasceu. Depois, quando eu terminei a licença gestante do Bruno, eu voltei para minha antiga secretaria, mas aí voltei na condição de assessora, porque eu já não era mais diretora, mas eu tinha me efetivado no cargo e fiquei lá até me aposentar. Aposentei-me e ainda fui chamada para ser secretária municipal de Desenvolvimento Social. Por dois anos e meio, eu fui secretária municipal de Desenvolvimento Social, foi um trabalho muito bom, gratificante, que deu para fazer um trabalho na cidade muito legal. Mas terminou o governo, claro, eu era cargo de confiança, eu saí e passei a trabalhar voluntariamente como assistente social, participar de movimentos de assistência social. Como política pública que não era, porque era filantropia. Política social era considerada até outro dia filantropia. E nós entendemos a assistência social, que ela é uma política pública, e a Constituição de 88 a considerou política pública. Então, nós lutamos pela aprovação da lei que regulamenta a assistência social como política pública, eu participei dessa luta no Vale do Paraíba inteiro, constituindo um fórum de trabalhadores sociais pela assistência social como política pública. Isso foram uns dois anos, até que ela foi aprovada, e voltei. Eu já tinha voltado para a divisão regional, e a divisão já estava engajada nesse movimento. Por isso que eu fui depois para a prefeitura e continuei participando de movimento, eu participo ainda do Fórum de Assistência Social, porque lá a prefeitura não considera assistência social conforme... Em minha opinião, porque isso é uma opinião pessoal, eu vejo que a prefeitura não considera de fato a assistência social como deveria considerar, e então eu faço um trabalho voluntário numa comunidade carente. Uma favelinha.

P1 – Em São José?

R – Em São José dos Campos, eu coordeno um grupo de mulheres para trabalhar segundo os princípios da assistência social como política pública, o fortalecimento de vínculos familiares e comunitários. Nós implantamos lá um grupo de terapia comunitária, com uma médica que faz parte do projeto. Eu coordeno esse grupo de mulheres que fazem discussões sobre seus direitos sociais, tem a parte recreativa e de inserção produtiva, elas confeccionaram colchas, hoje confeccionam calendários de tecidos com temas poéticos, porque o nosso projeto está ligado a outro projeto que é financiado pelo Instituto C&A de Desenvolvimento Social, que trabalha com crianças com o Projeto Prazer em Ler. As crianças participam de oficinas literárias, têm uma biblioteca comunitária, rádio comunitária financiada pelo Instituto C&A e eu faço trabalho com as famílias através das mulheres que são mães, tias, avós dessas crianças. E agora eu estou um pouco afastada, porque eu estou mais aqui em São Paulo do que lá.

P1 – E por que mais em São Paulo no momento?

R – No momento, porque nós resolvemos uns problemas aqui de família e para ajudar o Bruno em algumas coisas, que ele está precisando ajudar. Então, eu fico bastante aqui, fico lá e fico aqui, estou vivendo entre aqui e lá.

P1 – O Bruno é filho único?

R – Não, eu tenho uma filha. Eu falei no Bruno e esqueci. Ah, se ela sabe disso... E a Renata. Chama-se Renata a minha segunda filha, imagina, uma filha que eu tanto quis também, eu tanto quis o filho como a filha. É que, quando eu engravidei da Renata, eu não acreditava que eu engravidasse, eu fui engravidar com 44 anos. Eu sou naquela curva de maternidade que começa dos 16 aos 40, que as mulheres são mães, 40 já não tem mais. A maior parte das mães. Eu queria ter um segundo filho, mas pela idade eu não tinha. Até que um dia, sem perceber, sem imaginar, eu achei que já estava entrando na menopausa, eu me vi grávida. Eu fui à ginecologista e falei: “Não sei, acho que estou entrando na menopausa.” Ela me examinou, falou: “Não, você está grávida.” “Não, você está louca.” Eu fui fazer o famoso teste, o HCG, e deu grávida. E aí foi assim aquela sensação de presente que eu recebi.

P1 – Sem dúvida. E foi uma gravidez normal?

R – Foi. Eu tinha hipertensão arterial, tinha arritmia cardíaca, porque, com essa idade, a gente tem alguns problemas, né? Mas correu normalmente. Eu tive que fazer cesariana, eu fiz dos dois, do Bruno e da Renata, e a Renata está com 19 anos e faz Psicologia em Ribeirão Preto. Está no segundo ano de Psicologia. Ela já veio aqui ao Museu com o Bruno uma vez ou outra, vocês acho que não conheceram, mas alguém aqui conheceu.

P1 – Vamos ver se a gente cobra do Bruno da irmã vir dar o depoimento também.

R – A Renata é completamente diferente do Bruno, ela leva a vida tranquila. O Bruno é muito assim, como eu diria? Ele é agitado, preocupado com as coisas e tem essa preocupação com essas coisas. O Museu, ele ainda não está, ele está com problema de distúrbio do sono e tem vindo atrasado, mas ele trabalha até muito além, não tem pressa para ir embora. Ele está tratando e, graças a Deus, já está resolvendo. Até a gente está resolvendo tudo isso, né? Eu nem sei se ele gostaria que eu falasse isso, eu acho que não. Se ele não gostar, vocês apaguem.

P1 – Não se preocupe.

R – Mas ele está bem, graças a Deus. Ele teve esse distúrbio do sono e está tratando e já está resolvendo, mas a Renata... Porque ele é muito preocupado com tudo, ele leva as coisas a sério, ele gosta aqui do Museu, ele adora o Museu, tanto que, se ele tem problema para acordar, ele não tem problema para ir embora. Então, ele fica aqui e vai embora mesmo. Outro dia, diz que o Erick falou para ele: “Bruno, vai embora, está na hora, por que você não foi embora ainda? Vai embora.” Mas ele gosta muito daqui, e a Renata esteve aqui uma vez porque ela veio à USP fazer uma... Ela estuda na USP de Ribeirão Preto, ela faz Psicologia, e ela está doidinha para voltar para cá, para voltar não, perdão, vir para São Paulo, porque tem umas matérias no terceiro ano que não têm lá na grade curricular da USP de Ribeirão. Então a pretexto de frequentar... Ela pode, não é trancar, ela pode fazer como optativa, se não me engano, na USP, três, quatro disciplinas. Ela quer também cursar como optativa algumas disciplinas de Cinema. Então, ela está assim na dúvida, mas ela é tranquila, com ela não tem tempo quente. Enquanto o Bruno é mais esquentadinho, ela não é. Ele é mais preocupado das coisas darem certo, empenhado nas coisas, e ela é empenhada também, porque ela vai bem na faculdade, ela passou direto do colegial para o vestibular da Fuvest, direto, mas porque ela é cabeça fresca, não é que ela seja uma superinteligência não. A Renata tem uma cabeça tranquila, fresca. Então, para ela, não tem tempo quente.

P2 – Puxou a mãe ou não?

R – Não, nem o pai. Acho que ela puxou a avó dela, a minha sogra. A minha sogra tinha um temperamento muito tranquilo, ela é muito o temperamento da avó, isso é interessante. Ela não saiu a ninguém da minha família, não saiu ao meu marido, que é esquentado, sabe aquelas pessoas meio esquentadas? E nem a mim, que sou muito preocupada, nervosa, elétrica.

P1 – Maria Aparecida, a gente está chegando já ao final e aí é uma parte de avaliação. Pensando na sua trajetória de vida, quais seriam as lições mais importantes que você teria para deixar registrado aqui pra gente?

R – A trajetória de vida mesmo é que não foi uma vida fácil, mas serviu para algo muito importante. É que a vida vale mesmo a pena, apesar de todas as dificuldades que você enfrenta, e eu enfrentei muitas, como vocês ouviram. Vão ver, estão ouvindo, mas eu acho que vale a pena também a gente não ser... Controlar a ansiedade, essa é uma coisa que eu nunca consegui controlar, sou uma pessoa ansiosa, muito. E, embora eu não tenha conseguido fazer o curso que eu quis fazer, eu consegui me realizar em Serviço Social, porque eu tenho uma visão social, de justiça social. Então, eu acho interessante registrar aqui na minha trajetória de vida uma das coisas que eu não busquei, que foi essa profissão, mas ela veio como que por acaso. Foi o que eu consegui fazer, mas ela me preencheu, eu me senti gratificada, apesar de ser muito difícil, porque, para você lidar com pobreza, você vai na contramão da história. Porque a tendência é favorecer o poder e a riqueza, em todas as sociedades você vê isso. Então, eu tenho lutado na contramão da história. Eu tenho vindo na contramão mesmo da história e, apesar disso, eu acho importante ter, não por opção, mas por oportunidade que me foi dada acabar me engajando mesmo nesse tipo de luta, que é pela justiça social. Então, essa é uma coisa que eu acho que marcou a minha vida até porque eu tive uma vida mesmo difícil, não a ponto... Claro que não tão difícil quanto aqueles para os quais eu quero justiça, né?

P2 – E, para a gente encerrar, como é que a senhora se sentiu ao dar esse depoimento?

R – Bom, eu acho que devo ter falado demais, porque eu falo muito, mas eu me senti bem, porque a gente resgata muita coisa da história da gente, né? Apesar de que tudo que eu coloquei aqui está presente na minha memória, e provavelmente alguns fatos que eu não gostei eu devo ter apagado, eu não falei, não lembrei, né? A importância disso é poder registrar e resgatar uma história que, para mim, tem sim hoje, com essa idade, um significado, tem um sentido. Os meus filhos têm muito isso também, a minha filha participa do comitê pela Central dos Estudantes, contra a reforma universitária que o Serra quer. E ela, quando pequenininha, dizia que a última coisa que ela queria saber era de política na vida. E hoje ela faz política estudantil, o Bruno também é muito engajado, é uma pessoa com uma visão muito crítica. Eu e meu marido passamos isso para eles com certeza, né?

P1 – Tá certo. Foi ótimo o seu depoimento, eu queria agradecer a sua presença, e, enfim, muito obrigada, Maria Aparecida.

R – De nada. Até eu estava falando com o Bruno, eu falei desse trabalho voluntário. Você já desligou tudo aí?

P1 – Não.

R – No trabalho comunitário que eu faço, tem algumas histórias de vida interessantes de pessoas das classes populares. Tem uma senhora negra que tem uma história que valeria a pena. Ela tem segundo grau, mas tem uma vida muito difícil, porque preconceito racial, o fato de ser mulher. E ela é muito articulada para falar.

P1 – É uma ponte que a senhora pode fazer do trabalho lá aqui com o Ponto de Cultura do Museu. Seria ótimo, né?

R – Eu acho que seria uma coisa... Uma história de vida interessante essa história.

P1 – Ótimo, a gente vê isso, obrigada.

R – De nada.