Museu da Pessoa

Amigos, irmãos, camaradas

autoria: Museu da Pessoa personagem: Nilce Therezinha Cervone Tranjan

Depoimento de Nilce Tranjan
Entrevistada por Luiz Egypto e Luis Ludmer
São Paulo, 11 de setembro de 2019
Projeto Instituto Vladimir Herzog
Entrevista número PSCH_HV806
Transcrita por Selma Paiva
Revisado por Luiz Egypto

P/1 – Boa tarde, Nilce. Muito obrigado por ter aceitado o nosso convite. A gente queria começar com um registro básico: seu nome completo, o local e a data do seu nascimento.
R – Meu nome é Nilce Therezinha Cervone Tranjan e, no decorrer disso daqui, eu quero dizer porque eu sou Tranjan, porque é um fato muito, historicamente, estranho. Eu nasci no dia 8 de junho de 1936. O que mais que você perguntou?
P/1 – Local.
R – Eu morava, meus pais moravam na Mooca, onde eu passei os primeiros quatro anos da minha vida, mas nasci em uma maternidade, que foi a Pro Matre, em São Paulo.
P/1 – O nome dos seus pais.
R – Minha mãe era Deolinda de Lourdes Teixeira Cervone e meu pai era Hugo Cervone.
P/1 – O que seus pais faziam?
R – Meu pai era contador e minha mãe era dona de casa, muito entristecida por não ter podido estudar. Ela gostaria muito, mas ela veio como imigrante, os pais dela são imigrantes açorianos e eles vieram muito pobres e ela mal terminou o primário. Mas era uma mulher muito forte, muito bacana.
P/1 – Você conheceu seus avós?
R – Conheci minha avó Maria e meu avô João, por parte de [mãe] e uma avó, Rafaela, por parte do pai, e o avô paterno não conheci.
P/1 – Havia, na família, a história sobre a vinda deles dos Açores?
R – Havia. Tem mais histórias da vinda dos Cervone. Na vinda dos açorianos nunca eles contaram nada, não tinha nenhum dado a respeito. Agora, a parte do Cervone, sim. Tem uma, até, muito engraçada. Quer que conte?
P/1 – Por favor.
R – Eles eram do sul da Itália e diz a crônica familiar que eles brigaram com o vigário da cidade em que eles moravam. Começou uma briga – que a religião era muito importante – entre eles e, lá pelas tantas, um dia, dizem que meu avô subiu no altar e deu-lhe uma mordida na orelha. Segundo uns, cortou a orelha; segundo outros, não. E aí ficaram meio marcados e a família achou que eles deviam sair da Itália e aí vieram para o Brasil. Família briguenta, você já viu.
P/1 – Você lembra ou tem notícia da atividade dos seus avós, o que eles faziam?
R – Lá eu não sei. Eu sei que eles vieram com dinheiro, porque meu avô abriu uma chapelaria na [Rua] Xavier de Toledo que, segundo eu sei, porque no conservatório eu tinha um professor, chamado José Sepp, que a primeira vez que ele meu viu e falou Cervone, disse: “Você é parente do dono da chapelaria?”. Era uma época em que se usava muito chapéu e, então, a chapelaria era uma coisa boa. Posteriormente, meu avô morreu meio cedo e a família ficou sob a égide do filho mais velho, que resolveu ir para o interior, para Santa Bárbara do Oeste e lá abriu uma sacaria, que era uma coisa que dava muito dinheiro, porque ensacava toda a cana local, aquela coisa toda e, enfim, eles eram bastante bem de vida. O único irmão que não foi para lá foi meu pai. Que meu pai trabalhava como contador numa fábrica, na época famosa, de cosméticos, Royal Briar e conheceu minha mãe, como operária, lá. E aí se apaixonaram e então ele não quis ir para o interior e ficou aqui. Casaram-se e foram felizes para sempre.
P/1 – Você tem irmãos?
R – Eu tenho um irmão falecido há dois anos, que era o mais jovem, e tenho uma irmã viva, dois anos mais moça que eu.
P/1 – E como era a casa da sua infância? Você disse que morava na Mooca.
R – Com quatro anos, minha lembrança da Mooca é muito pequena. Eu mudei para a Vila Pompéia, que era um bairro tranquilo, sossegado, cheio de casinhas. Meu pai mudou para lá porque ele teve um problema pulmonar, que era um problema da família Cervone inteira. Meu avô morreu, um tio meu morreu [por isso] e então ele precisava de um lugar alto, e a Pompéia pareceu que fosse um lugar ideal, no caso e nós mudamos para a Pompéia. Das ruas da Pompéia, que eu me lembro, na minha infância, só tinha a Avenida Pompéia calçada. O resto era tudo terra, terra. Então eu peguei, quando criança, não asfaltamento, [mas] o calçamento de todas as ruas. E foi uma grande brincadeira na minha infância brincar com os materiais, quando iam fazer o calçamento, pedregulho. E a minha infância foi muito de rua. Porque, na verdade, você tinha aquelas casinhas todas, mais ou menos as pessoas que moravam eram um tipo de família semelhante, e então tinha aquela coisa dos vizinhos serem uma coisa muito importante. Hoje em dia você mal vê a pessoa no elevador e lá não: toda noite sentava na porta da casa, se contava - cada vez numa das casas, punha as cadeiras lá – histórias e as crianças brincavam na rua. Era a escola e a rua. O maior castigo que meu pai e minha mãe podiam me dar era dizer: “Hoje você não vai para a rua”. Falava isso, desmoronava o mundo, porque era aquele grupão de crianças brincando de barra manteiga, aquele negócio que você atira a bola para acertar o outro, eram tudo brincadeiras grupais, coletivas. Fazer estátua, passar anel. Eram coisas muito divertidas, que eu fico com muita pena da criançada de hoje não ter esse prazer da brincadeira coletiva. Você tem um pouco em prédios, quando tem uma área de lazer para criança, mas não é a mesma coisa. Não é coletivo. Um vai para o escorregador, o outro vai pra não sei o quê. Aquela coisa que você junta grupos e você é do grupo de cá, você é do grupo de lá e tem que sair correndo, tem que pegar, tem que isso, tem que aquilo. Isso era muito, muito, muito motivador na minha infância, era uma coisa muito boa. Eu estudava em um colégio lá perto de casa, o Sagrado Coração de Jesus...
P/1 – Foi sua primeira escola?
R – Não. Minha primeira escola primária eu nem lembro o nome. Só lembro de uma coisa da minha escola primária: que tinha um retrato do Getúlio [Vargas] na parede. Aquele retrato do Getúlio entronizado ali ficou muito na minha memória. Mas eu não me lembro mais. Eu lembro de detalhes, assim, por exemplo, de eu ter ficado muito estupefata quando, pela primeira vez, eu com um livro na mão e a professora lendo, eu entendi que aquela palavra que eu não conseguia ler, que era pneu, era pneu, porque, para mim, aquele “pn”, aquela coisa, que palavra é essa? Eu não lia. Na hora que ela leu pneu, foi assim tcháaaaaa. Outra revelação incrível para mim, no primário, foi que o Sol era maior que a Terra. Nossa, para mim aquilo também foi uma coisa fantástica! Cheguei em casa: “Mãe, você não sabe: o Sol é maior do que a Terra”. Minha mãe acho que nem acreditou se era verdade. Eu sei que ela era bem simples, talvez não soubesse isso. Mas, para mim, essas descobertas marcaram muito, como também no secundário, quando eu descobri que o Freud era ‘Froid’. Então também foi uma coisa, uma revelação. São aquelas coisas que vão se revelando a você durante a vida, na escola. E isso marcou muito a minha infância, essa ingenuidade das crianças na época. Não tinha assim tanta informação e as descobertas eram mais satisfatórias. Era aquela coisa que, quando você descobria um negócio, você ficava muito feliz em ter descoberto aquilo. Então, do primário eu me lembro disso. Aí, no ginásio, eu fui para o Sagrado Coração de Jesus, que era uma escola de freiras, feminina. Só quando eu estava no quarto ano primário é que entraram uns três ou quatro garotos lá que ficavam, assim, meio isolados, no fundo do pátio.
P/1 – Perto da sua casa essa escola?
R – Dois quarteirões. Eu morava a um quarteirão da Avenida Pompéia, de quem está subindo a avenida, do lado direito; e a escola ficava a dois quarteirões, do lado esquerdo. Eu me lembro perfeitamente, também, uma das coisas gostosas, era quando chovia, porque tinha aquele meio fio que baixava – porque o colégio era mais alto – aquele aguaceiro e você tirava sapato e meia, subindo por aquele aguaceiro, era a maior maravilha.
P/1 – Gostava de fazer represa também ou não?
R – Represa acho que não. Eu gostava de andar naquela [correnteza]. Represa devia ser uma boa, não me ocorreu na época. Mas devia ser uma boa.
P/1 – Alguma professora ou professor que tenha marcado sua memória?
R – Nesse colégio eu comecei a estudar piano com uma irmã muito bonita, uma mulher alta, de olhos verdes, chamada Madre Cornélia. E tinha a madre superiora, que era uma mulher muito rigorosa, irmã de um padre da igreja Nossa Senhora do Rosário, que também era a dois quarteirões da minha casa. Então, ela era severa e eles falavam entre si, e então o padre sabia da vida da gente. E tinha um padre – isso aí é até chato de contar, mas, enfim, é um fato – chamado Fortunato, que deve estar morto há muito tempo, que, quando eu ia confessar, quando era com o Padre Severino, que era o irmão da madre superiora, era ótimo, mas quando eu ia com o Padre Fortunato, ele me fazia uma pergunta que me perturbava muito, toda vez. Eu confessava uma vez por semana, porque a gente ia tomar comunhão no domingo e tinha que estar limpíssima, então eu confessava todo sábado. E todo sábado esse padre fazia a mesma pergunta para mim: “Você fez porcaria essa semana?” Eu não entendia muito bem o que seria “fazer porcaria essa semana”. E então, aquela coisa eu não sabia o que responder. Me perturbava. Então, eu dava um jeito sempre, quando eu fosse confessar, esperava o Padre Severino, porque o Padre Fortunato era uma pessoa assim que me abalava. Não sei exatamente por que, na época, porque eu não entendia, mas abalava. E assim foi minha primeira infância. As amigas eram todas locais, das casinhas em torno e tinha fatos que eram estranhos, que depois eu vim a entender, bem depois, como uma vizinha em frente à minha casa que morreu lá pelas tantas, jovem. [Tinha] 17, 18 anos. 17 anos. Irmã de uma outra, que era minha amiga. Quer dizer: essa mais velha, eu era bem mais jovem, era amiga da irmã mais jovem dela. Na época em que ela morreu eu estava menstruando pela primeira vez. E tinha tabus para todo lado: não pode lavar cabeça, não pode comer laranja, não pode comer isso. E disseram que ela morreu porque lavou a cabeça menstruada. Aquilo me deu um mal-estar! Como? Lavou a cabeça menstruada e morreu? A gente já era apavorada porque não podia isso, não podia aquilo, estava iniciando essa etapa da minha vida, foi um troço meio estranho, assim. E depois, evidentemente, pensando no assunto, mais velha, porque eu me lembro que, no enterro dela, o namorado dela chorava muito. Era um vizinho. E aí me veio aquela sensação, que eu nunca soube se era verdade ou não, mas eu fiquei achando que ela tinha feito um aborto e morrido disso, porque não podia dizer, na época, que fez um aborto. Então, morreu porque lavou a cabeça menstruada. Esses misterinhos da infância da gente, numa época em que as informações eram vagas e que você não tinha muito onde procurar se esclarecer, não é? Você tem os pais, você tem os amigos, você tem a escola. Não tinha televisão, nada disso. Não tinha internet. Não tinha. Então, era muito cheio de mistérios. A gente tentava entender aquelas coisas e os pais, evidentemente, não contavam para a gente, pra valer. Então, era uma infância mais com prós e contras. Eu não sei o que era melhor: não saber isso, mas ter uma espontaneidade, uma ingenuidade, viver uma infância muito bem vivida, ou se, se a gente soubesse... – não sei, é uma coisa que ficou. Porque a minha geração trilhou um caminho de muita mudança, muita mudança, muita mudança. Quer dizer: eu me lembro que, na minha infância, o rádio era uma atração até maior que a atração da televisão, depois. O rádio era uma coisa que tinha a radionovela, minha mãe ouvia todas as radionovelas de uma estação chamada Rádio São Paulo. PRK5 Rádio São Paulo. E essa Rádio São Paulo começava com as novelas às oito e meia da manhã. Então, tinha às oito e meia, nove e meia, dez e meia, de hora em hora, onze e meia, parava na hora do almoço para ter um programa de cinema de um jornalista chamado Marino Neto, então parava naquele momento ali, aí começava de novo: uma e meia, duas e meia, três e meia, quatro e meia, cinco e meia, aí parava para ter o Angelus, e tinha a “Hora do Brasil”, e o que acontecia? Acabava a “Hora do Brasil” e começava de novo. Oito, nove, dez. E cada um desses blocos, dessas radionovelas, tinha um elenco próprio. O elenco da de oito e meia, mais duas e meia, mais não sei o que, era tal. Me lembro nomes até: Valdemar Simioni, Odair Manzano. Tinha um monte de gente, assim, com vozes lindas e que você ouvia aquilo. Eu fazia lição na cozinha ouvindo a radionovela que a minha mãe estava ouvindo. E é impressionante: tinha atenção para as duas coisas, não sei como, hoje eu fico pensando, mas tinha. Eu tinha 15 anos quando veio a televisão. Meu pai era um financeiro de uma empresa e ele ganhava muitas coisas de clientes, então nós fomos um dos primeiros, na rua certamente, a ter uma televisão, porque ganhamos uma televisão de um cliente lá da fábrica e era atração da vizinhança toda. Tinha gente que se pendurava na janela porque não dava para entrar todo mundo, porque era a vizinhança inteira querendo ver aquele fenômeno que era a televisão. Então, eu me lembro que a minha casa tinha uma janela no térreo que, do lado de fora, você galgando uma muretinha ali, via pela janela. E tinha gente pendurada naquela janela vendo programas de televisão. E eu me lembro que a gente tinha uma tela, porque a televisão era em preto e branco, mas tinha vindo junto uma tela com listas coloridas. Mas não eram listas fixas, eram listas assim que meio que se misturavam nas fronteiras. E você punha isso na frente da televisão para parecer colorido. Aquilo era um sucesso! É impressionante! Mas você vê: você nasce na era do rádio... Tinha o telefonema interurbano: você tinha que pedir de manhã para conseguir que, à tarde, você conseguisse falar com o Rio: “Quero falar com tal número”. “Sim, vai demorar umas três, quatro horas”, demorava cinco ou seis. Para uma era que você passou para a televisão, que mudou completamente, e aí passou para a internet, para o computador. Então, na cabeça da gente, é muito difícil você fazer essas passagens muito bruscas, grandes. Mas, enfim, foi assim.
P/1 – Você se referia àquela grande instituição do televizinho, não é?
R – Televizinho. Exatamente, o televizinho. Tinha os mais chegados que entravam. Isso significava casas pegadas. Nas casas pegadas a gente fazia umas amizades, mas vinha gente do quarteirão inteiro.
P/1 – Afora essa convivência de vizinhança, brincadeira de rua, vocês iam com frequência “à cidade”? Porque ir “à cidade” era um evento.
R – Nesse período da minha primeira infância e adolescência, eu devo à minha mãe uma coisa que marcou muito a minha vida: ela era apaixonada por cinema. Então, nessas alturas, toda quarta e toda quinta-feira, a gente ia. Chamava-se matinê, porque não tinha sessões corridas. Então, tinha as sessões da noite e, durante o dia, tinha uma sessão à tarde, que eles chamavam de matinê. Não era vespertina, era matinê. E toda quarta-feira tinha num circuito de cinema, toda quinta-feira tinha noutro, e eu saía com a minha mãe para ver um filme. Isso era inevitável. A minha mãe me contava, claro que isso eu não tenho lembrança, que ela foi comigo ao cinema quando eu tinha 15 dias, e que ela levou uma toalhinha que ficava passando na minha cara, para eu ficar tranquila. Ou seja: o histórico é que eu ia ao cinema desde nenê. E evidentemente, eu não lembro, mas lembro muito bem, a partir de uns seis, sete anos, a gente ia. Eu me lembro perfeitamente de um cinema que tinha no Brás, eu morava na Pompéia e, àquela altura, você tomar condução para ir para o Brás, não era mole. Era longe. Mas chamava-se Cine Universo. E o que tinha esse cinema de especial? Ele abria o teto. Antes de começar a sessão, o teto abria. Então, você ficava dentro de um cinema, com o teto aberto, era uma coisa ótima. E lembro de uma vez de uma chuva enorme que começou de repente, a gente lá e toca a fechar aquele teto rápido. Naquela altura tinha matinê nesse Cine Universo, tinha matinê em dois cinemas no Largo do Arouche, tinha matinê no Cine Esmeralda, das Perdizes. Então, ou era no Cine Esmeralda ou era no cine... não lembro como chamava o do Largo do Arouche. Tinha dois, mas eu não lembro o nome. Era toda semana. Tinha o Cine Nacional, na Lapa, também. Então, a gente ia toda semana. Quando eu já era maior, 12 anos, que eu era desenvolvida, passava por 14, ainda ia à noite, aos sábados, com meu pai e minha mãe. Ou seja: eu tive uma infância extremamente cinematográfica.
P/2 – Seu pai também gostava de cinema?
R – Minha mãe era apaixonada. Meu pai gostava, mas acho que mais para levá-la. Não era, assim, a paixão da vida dele. Agora, meu pai era outra coisa: todos os sábados me trazia um livro. Todos os sábados. Ele chegava, trabalhava só de manhã e ele chegava em casa com duas coisas, sempre: um livro e uns polpetones, que ele comprava lá perto de onde ele trabalhava, que era no Belém. Então, era assim. Recordação de infância: aquele livro, que era sempre muito bem-vindo.
P/1 – Que tipo de livro? Que tipo de leitura era essa?
R – Infantil, mesmo. Eu lembro que tinha uma coleção, que era pequenininha, assim, amarelinha, e tinha uma coleção maior que ele trazia sempre também e, mesmo depois, quando a gente cresceu, meu pai era a felicidade dos vendedores, porque aparecia um cara vendendo uma coleção... naquela altura se ia muito a escritórios para vender coleções de livros. Tanto que eu tenho até hoje, agora estão com meu filho, a coleção completa de [Erico] Veríssimo, do Machado de Assis... todas essas pessoas que tiveram coleções, meu pai comprou todas, todas. Tanto que, bem mais tarde, quando eu trabalhei na Enciclopédia Britânica, eu cheguei para o meu pai e falei: “Pai, eles têm uma técnica de venda que você não vai resistir, mas você não compre, não compre, porque eu estou lá dentro. Pelo amor de Deus, se eles chegarem perto de você, você não resiste”. De fato, quando eu vendi Enciclopédia Britânica, anos e anos depois, eu não saía de um escritório sem ter vendido uma e às vezes eu fazia uma coisa que era – nunca contei lá, evidentemente: tinha gente que escutava, eu ia para determinada pessoa, mas aí tinha uma pessoa no escritório que escutava e se aproximava e também ia comprar, e aí você ia ver o salário dele e eu percebia que aquilo ia pesar na vida dele loucamente e eu não fazia o pedido. Fazia na frente dele, mas não fazia de verdade. Aí, depois, sei lá, o que eu inventava, mas enfim, era uma técnica. Então meu pai era desses que caía em todas.
P/1 – Depois desse colégio de freiras, religioso, qual foi a sua trajetória educacional?
R – Aí foi o seguinte: quando eu terminei o ginásio, eu já estava no Conservatório Dramático Musical de São Paulo fazendo piano, que eu comecei lá com as freiras e depois fui para o conservatório. Então, eu resolvi que ia ser pianista e parei, parei de estudar. Queria só ficar com o piano.
P/1 – Seus pais concordaram?
R – Concordaram, porque na minha casa não era obrigatório estudar. Apesar do meu pai ter toda essa ligação com as coisas, estudava se quisesse. Acabou o ginásio, ficava a critério da pessoa e, como ele achava que o piano também era uma coisa bacana, ele concordou, não teve problema. No conservatório eu me formei em 1954. Aí eu senti uma falta enorme, um arrependimento muito grande, enquanto eu estava indo no conservatório, de ter saído da escola. Eu sentia falta da escola, sentia muita falta da escola. Uma amiga minha que estudava no Colégio Estadual Presidente Roosevelt, na Liberdade, na Rua São Joaquim, falou para mim o seguinte: “Nilce, presta o vestibulinho, o vestibular, volta, vai lá”. Eu falei: ‘Mas eu estou parada agora, me formei no ginásio acho que foi em 1950. Como é que eu vou agora, em 1953, voltar?” “Se inscreva, se inscreva.” Eu fui lá me inscrever e, por uma sorte incrível – você vê que tem coisas de sorte que mudam a sua vida – nesse ano não teve vestibulinho. Porque eu não teria passado, estava muito afastada. Abriram dois primeiros anos de clássico e eu me engajei lá. Aí fiquei, fiz o clássico no Colégio Roosevelt, que era absolutamente maravilhoso. É incrível a escola pública, mas aquele colégio era fantástico. Eu devo a minha formação mais básica àquele colégio e lá conheci um professor chamado Villa-Lobos, de Filosofia. A minha ideia era fazer Ciências Sociais. Esse professor Villa-Lobos chegou para mim e falou: “Não, você tem vocação para Filosofia. Você vai fazer Filosofia. Eu tenho uma aluna no Bandeirantes que também tem essa mesma vocação e eu vou passar as férias dando aula para vocês e vocês vão prestar vestibular e vão entrar em Filosofia”. Disse e fez. Eu passei dezembro, janeiro e fevereiro, eu e uma menina chamada Fúlvia, íamos todos os dias, todos os dias, para a casa dele, que era na Granja Viana, na época que a Granja Viana era um matagal, com algumas casas aqui e ali, tinha só a capelinha, já tinha aquela capelinha. Nós passávamos o dia inteirinho lá. E, de fato, passamos no vestibular, fomos em frente, ela desistiu depois. Eu fui até o fim, e foi onde eu conheci o Vlado.
P/1 – Você foi estudar no Maria Antônia?
R – Fui estudar na Maria Antônia.
P/1 – E como era esse tempo de universidade?
R – Na universidade eu mudei completamente, porque, ao mesmo tempo em que esse professor disse que minha vocação era Filosofia, que eu não estava sabendo, mas que era, o professor anterior a ele, professor Hélio, dizia: “Nilce, você é ótima, mas você é um pouco reacionária demais. Você sempre toma partido reacionário”. Tinha uma briga sobre voto do analfabeto, eu ficava contra. Tinha uma briga contra não sei o que lá... minha posição era sempre a mais conservadora. E ele falou: “Você precisa mudar isso”. E, na faculdade, houve essa mudança. De repente eu conheci um monte de gente que pensava completamente diferente da minha formação conservadora. E aquilo também foi outra descoberta brutal na minha vida. De repente ver que tudo aquilo que eu pensava precisava ser refletido, não era daquele jeito. Eu tinha pego aquelas coisas todas sem pensar muito no assunto, mais como uma tradição da minha formação. E aí eu mudei completamente, na faculdade. A faculdade foi, assim, um lugar daquilo que eu falei que, na infância, me encantava, do Sol maior que a Terra. Foi de repente descobrir coisas fantásticas, que eu não tinha nem ideia, foi uma grande mudança na minha vida. Porque a faculdade de Filosofia, naquela época, era muito boa. Hoje também é, mas, enfim...
P/2 – Ainda tinha a Missão Francesa?
R – Tinha muita gente. Quer dizer: a Missão Francesa, não, mas tinha muita gente ainda. Por exemplo: meu professor de Ética era francês; o professor de Lógica era francês. E a escola que estava por trás dos professores brasileiros, toda, era ainda, bastante... tanto que eu, por exemplo, passei a fase toda de faculdade só com as [edições] francesas, porque, para mim, era mais fácil ler as coisas francesas porque, na faculdade, tudo tinha um laço francês. E foi aí, então, que eu conheci o nosso amigo.
P/1 – Você continuava morando na Pompéia?
R – Eu morei na Pompéia até me casar, com 27 anos.
P/1 – Como é que foi esse primeiro encontro com o Vlado?
R – Se você me perguntar o primeiro encontro, não vou saber dizer. É aquela coisa que você está na faculdade. Eu fui uma aluna que entrou em 1958 e fiz 58, 59, 60 e 61. Eu fazia todas as matérias do ano. A sensação que eu tenho é que o Vlado já estava na faculdade quando eu entrei. Ele não fazia todas as matérias certinhas do ano. Ele fazia algumas matérias no ano, então eu tenho a impressão que ele esticou esses quatro anos de alguma maneira. Eu não juraria isso, mas, por exemplo, para mim, o Vlado, de repente, está dentro da faculdade. E de repente a gente tem algumas aulas juntos e outras, não. Eu não tinha todas as aulas com o Vlado. Eu tinha algumas aulas com o Vlado. Mas no fora da aula, que também era muito importante, o bar da Maria Antônia lá em frente, que a gente ia e conversava, as coisas que iam sucedendo. Por exemplo, a renúncia do Jânio foi naquela época. Então, se falava muito de política. Se falava muito. E nós fizemos um grupo, que era o Vlado, eu, um amigo dele que tem cartas, depois eu fiquei sabendo, nem sabia que eles tinham se correspondido depois, o Tomas, a Irede Cardoso, que depois veio a ser vereadora... quem mais que era do grupo? Nós quatro. É. Nós ficamos um grupo, não fechado, [mas] muito permanentemente juntos. E até eu já contei essa história, mas eu acho muito engraçada, então conto de novo, que o Vlado era uma pessoa diferente. O Vlado era uma pessoa diferente. Talvez por isso ele marcou tanto. Ele era uma pessoa muito séria em tudo que fazia e, ao mesmo tempo, muito compreensiva, muito aberta, muito acolhedora. Além da faculdade, onde eu tinha essa interlocução com ele, permanente, ele fazia um monte de coisas fora. Ele era um homem de sete instrumentos, ligado à comunicação. O que ele queria, mesmo, na vida, era se comunicar – ou através do jornalismo, ou através do cinema. Ele achava que a missão do ser humano era uma responsabilidade social. E, nisso, a comunicação era fundamental. Eu me lembro que, naquela época, a gente ia estudar em casa – eu contei isso por causa do comentário da minha mãe –; eu tinha uma sala na minha casa, uma sala de visita – uma sala de estar, como dizia na época – em que estavam meu piano, um sofá, duas poltronas e a vitrola – na época era vitrola – do meu pai, que todo domingo, depois do almoço, sentava lá e ia ouvir uma ópera. Mas então a gente ia estudar lá em casa, porque era quem tinha aquele espaço isolado, podia fechar a porta, e a gente dividia as tarefas: você estuda tal coisa, você estuda tal coisa e a gente ia para a minha casa uma ou duas vezes por semana e cada um ia expor o que tinha estudado, os outros faziam perguntas, depois o outro expunha, e era assim. Vlado chegava em casa, todo mundo se acomodava na poltrona, no sofá, e ele deitava no chão. E fechava o olho. Ficava lá de olho fechado, no chão. E minha mãe, de vez em quando, ia trazer um café, uma coisa assim, e minha mãe perguntava: “Mas esse rapaz está estudando? Ele está sempre dormindo”. Não estava dormindo, absolutamente. Mas era uma atitude de... no chão, estendido, de olho fechado. Agora, quando vinha a pergunta, vinha a pergunta certeira; quando ele expunha, vinha a exposição certeira. Ele sempre surpreendia, porque ele estava além do que aquela coisinha frágil que ele era, [ou] parecia. Ele estava sempre mais além.
P/2 – Mas ele se sentia muito à vontade na sua casa.
R – Muito à vontade. A gente era amigo, amigo pra valer. Muito amigo. Por exemplo: naquela época eu tive um problema muito grave com meu irmão. Na Pompéia tinha umas pequenas gangues de roubo de coisas de automóvel. Não roubava o automóvel: roubava o pneu, roubava o rádio. E ele estudava à noite e acabou que se ligou e ele foi preso. E foi um período terrível, porque eu era oito anos mais velho do que ele e ele era quase um filho para mim, aquela coisa assim que, apesar de ser só oito anos, mas eu tinha ajudado a criar aquela criança e aquilo me dava uma sensação de culpa muito grande: “O que eu fiz de errado para ele ter ido por esse caminho?” E eu falava muito com o Vlado sobre isso, a gente contava muito essas angústias pessoais de um e de outro. E a minha, na época, era o meu irmão, uma angústia. E um dia aconteceu um negócio mais chato, porque aí, naquela época, também, tinha uma coisa que era assim: tinha um roubo qualquer, uma coisa qualquer, e chamavam os habituais suspeitos. Então ia lá. E um dia, meu irmão, numa dessas chamadas, bateram muito nele. Ficou muito machucado. Eu fiquei muito mal, fiquei mal, mal, mal, mal e, conversando isso com o Vlado, o Vlado falou assim: “Vamos ao cinema”. Eu falei: “Você está louco? Eu estou mal”. “Vamos ao cinema.” Me levou para ver uma comédia, “Deu a Louca no Mundo”, nunca vou esquecer. Incrível o bem que aquilo me fez! O bem que aquilo me fez foi um negócio impressionante. Eu entrei derrotada dentro do cinema e saí assim: “Vou fazer alguma coisa, não vai ficar assim, vou fazer coisas”. Ele tinha muito essas soluções de tirar você da angústia e te fazer olhar ao redor alguma coisa mais positiva do que aquela angústia que você estava sentindo. E ele era muito assim. A gente tinha essa coisa de essas coisas mais íntimas serem muito tocadas entre a gente.
P/1 – Amigos de verdade.
R – Eu acho que eu tive muito pouca gente que eu possa dizer que eu fui tão amiga quanto ele. Eu acho que mais uma pessoa só. E ele também era uma pessoa assim: ele era preocupado. Por exemplo, naquela altura ele queria muito fazer só coisas mais, não mais importante no sentido de ser mais importante, [mas] que diziam mais parao jeito de ser dele. Então, por exemplo, naquela altura, uma das coisas que ele fazia: ele traduzia, para a Editora Abril, histórias em quadrinhos. Pato Donald, Mickey Mouse, essas coisas. E eu, naquela altura, ainda vivia de mesada. Um dia ele chegou para mim, e ele sabia disso, que aquilo me fazia mal, que não via a hora de começar a trabalhar, não tinha como ainda, e aí ele falou: “Você quer esse emprego para você? Porque eu não vou ficar com ele, porque agora eu tenho coisas diferentes para fazer. Você quer?” Eu falei: “Quero, mas eu não sei fazer. Meu inglês não é assim essa maravilha, não sei os truques”. Porque eu lia muito revista em quadrinhos. “Eu não sei aqueles truques todos.” Ele falou assim: “Você lê revista em quadrinhos?” “Leio. Desde pequeninha eu leio.” “Então eu vou te ensinar uns truques e você vai ver que vai dar para fazer.” E ele me ensinou uma série de coisas, que parece incrível que não tenha truques, mas tem, você tem certos caminhos que você faz para traduzir. Hoje eu não sei, mas na época, Pato Donald, essas coisas. E eu fiquei um ano com esse emprego. Meu primeiro emprego foi a atenção dele em que eu começasse a ganhar o meu dinheiro, que ele achava importante. E aí, dentro da faculdade também, numa dessas aulas que nós fazíamos juntos, ele conhecia bem o Walter Lourenção, maestro. Ele era muito amigo da mulher do Walter Lourenção, a Mariinha. E aí o Walter Lourenção dava aula em três colégios. Ele dava aula... não, o terceiro não era dele. Ele dava aula no Maria José e no Mackenzie. E aí ele queria sair, não queria mais ser professor, convidou o Vlado. Aí o Vlado falou para mim: “Você quer esse emprego? Eu não vou ser professor também. Minha vida é por outros caminhos. Se você quer, eu te indico para o Walter”. Eu falei: “Mas ele me conhece pouco, a gente tem aqui uma ou outra aula juntos” “Melhor ainda. Então, vamos lá.” E ele indicou e o Walter passou para mim, realmente, os dois colégios. Então eu, antes de sair da faculdade – me formei em 1961. Em 61 mesmo, durante o quarto ano, eu peguei esses dois colégios e peguei mais um, que a professora de Pedagogia, tinha também. A faculdade, naquela altura, eu não sei se ainda tem, [tinha] Colégio de Aplicação. Um aluno que ela achava que era bom, então, ela me deu também. “Você quer ser professora? Então vai ser também no Colégio [de Aplicação].” Foi lá que eu dei aula para o Ismail Xavier, de quem depois eu vim a ser aluna. Mas, enfim, essas voltas.
P/1 – Quais eram as disciplinas que você dava nessa escola?
R – Eu dava Filosofia para o terceiro ano clássico no Colégio de Aplicação; dava Filosofia para o terceiro ano clássico do Mackenzie; e dava Psicologia para o terceiro ano científico do Mackenzie. Porque, naquela altura, quando eu entrei, em 1958, na faculdade, era o primeiro ano do curso de Psicologia, separado da Filosofia. Então, tinha muita matéria de Psicologia dentro da Filosofia ainda. Tinha umas três, quatro, cinco matérias que ainda permaneciam também na Filosofia. E o Mackenzie foi assim uma experiência incrível, pelas várias coisas que talvez interesse contar, porque não são minhas, em particular. Por exemplo: no Mackenzie dava aula de Português, eu sempre esqueço o nome dele, não sei por que, o cara que foi o ator principal do [filme] “Bandido da Luz Vermelha”, esqueci o nome dele agora [Paulo Villaça]. Era um ótimo professor de Português. Lá pelas tantas ele mandou ler um livro do Fernando Sabino, nada mais, nada menos que Fernando Sabino, chamado... como era?... esse mais famoso do Fernando Sabino...
P/1 – “Encontro Marcado?”
R – “Encontro Marcado.” Isso bastou para que ele fosse desligado da escola: o “Encontro Marcado”, do Fernando Sabino. E arrancaram páginas do livro na biblioteca. Então, era uma coisa! Era o Mackenzie, era 1961 e um professor perde a sua cadeira porque indica o “Encontro Marcado”, porque ele devia ser meio... não é uma boa referência. Ou talvez por ser ator também, sei lá. Perdeu o emprego. E eu perdi o cara com quem eu conversava dentro do Mackenzie. E outras coisas engraçadas, por exemplo: no terceiro ano clássico, para o qual eu dava aula de Filosofia, tinha gente muito boa lá dentro como aluno. Muito boa. E eu, naquela altura, já estava muito ligada, por causa do Vlado, à Cinemateca, a cinema, dado à minha formação de cinema e dado ao que eu conversava e via de filmes com o Vlado. Eu tentava dar as aulas de Filosofia, não assim: começa dos pré-socráticos, depois vem Sócrates, depois vem Platão. Eu pegava filmes, artigos de jornal, focalizava alguma coisa e, a partir daquilo, eu dava aulas. Sabedores, alunos da classe, que gostavam de mim e das aulas, de que aquilo podia ser meio fatal para mim, o Mackenzie tinha uma escuta na sala. Não ficava o tempo todo ligado, mas eles, alunos, sabiam exatamente quando estava ligado, porque tinha um certo sonzinho que eles sabiam que estava lá. Então, quando eu entrava na classe, eles faziam rammmmmmm e eu já sabia que aquela aula tinha que ser clássica, bonitinha e eles sabiam direitinho isso. Já o científico me odiava e eu os odiava. Eles não gostavam de Psicologia, não gostavam da aula, não gostavam de nada, eu não gostava deles. Era um negócio! Eles zoavam o tempo todo. Enfim, quando eu tinha uma aula lá às sete da manhã, eu ia de ônibus da Pompéia para lá, então eu acordava às cinco horas. Todo dia que eu tinha que acordar às cinco horas, para dar aula para eles, eu ficava doente, mesmo. Me doía a barriga, a cabeça. Eu ia, assim, para o matadouro. No Maria José, por sua vez, eu tinha um aluno, também é importante essas coisas, que era sobrinho... não era do dono, porque o dono era o [Assis] Chateaubriand, mas do diretor chefe dos Diários Associados. Me esqueci o nome dele também. Esse cara entrava na aula, sentava na primeira fileira e abria um jornal. Aí eu falava: “Nada mal você ler o jornal, mas lê no último, porque aqui você me tira a visão. Então, vai ler no último. Se você quiser, eu te dou presença também, você sai”. Um dia esse aluno aparece com uma mochila, senta na primeira fileira e abre a mochila e tira um revólver. De verdade, não era de brinquedo. Aí eu falei: “O que é isso?” Ele falou: “Não, é que eu quero que você saiba que eu pertenço a um grupo que... você soube do incêndio da Estrela?” A fábrica de brinquedos Estrela tinha tido um incêndio recentemente. “Pois é, eu conheço o grupo inteiro.” Uma ameaça. Esse cara, eu não me lembro exatamente o que ele fez com a professora de Latim, mas ele fez alguma coisa na casa dela, não me lembro mais o quê. Ele era um cara perigoso. Estava lá no Maria José estudando, não foi expulso, nada disso. São coisas. Isso tudo aconteceu em 1961. É impressionante, não é? A gente pensa também que, às vezes, o mal está concentrado no momento presente, aliás está, mas tem cultura desse direitismo, muito antiga. Quer dizer: o Bolsonaro não faz o que faz e o grupo dele, sem ter um respaldo de uma cultura por trás dele. Não tenha dúvida.
P/1 – Certamente.
P/2 – Posso voltar um passo? Ou você quer ir pra frente, Luiz?
P/1 – Fique à vontade!
P/2 – Na faculdade, esse último ano você não está, ainda, formada e já trabalha?
R – Já estou dando essas três aulas.
P/2 - O Vlado também trabalhava?
R – Trabalhava. O Vlado trabalhava feito louco. Ele fazia artigo para revista, fazia artigo para jornal, fazia colaboração com os cineastas da época, porque ele era muito ligado à Cinemateca. Foi ele que me levou para lá, inclusive. Ele não trabalhava na Cinemateca, não era contratado pela Cinemateca, mas ele era uma pessoa, assim, absolutamente, prata da casa. Ele era muito ligado à Cinemateca. Ele conhecia, quem, na época, estava tentando fazer cinema, que era o Maurice Capovilla, enfim, aquele grupo pequeno ligado à Cinemateca, e ele estava sempre colaborando com alguém no roteiro ou dando uma ideia. E eu me lembro que, quando foi em 1962, ele foi para Mar Del Plata, para o festival, e na hora que ele voltou, disse assim: “Trouxe um ‘cadeau’ para você”. E eu não sabia o que era “cadeau”, apesar que o francês ser um pouco mais familiar para mim, mas o “cadeau” eu desconhecia. Então eu fiquei esperando, que objeto é esse que ele me trouxe, um “cadeau”? Era uma malha dessas que a Argentina faz, como é?
P/1 – Cashmere?
R – É. Eu usei muito essa malha, uma malha marrom. E, nessa altura dos acontecimentos, falava muito de cinema, ia muito a cinema. E, quando chegou 62... Bom, Colégio de Aplicação era por um ano, acabava, no Maria José eu não queria ficar nem morta e o Mackenzie simplesmente me despediu também. Ele chegou pra mim, o diretor e falou: “Olha, Dona Nilce, sabe o que é? A senhora dá aulas para crianças de 16, 17 anos, muito influenciáveis, eu acho que é uma época que eles têm que pensar sozinhos, são crianças e a senhora está influenciando. Então, nós resolvemos tirar a matéria do currículo, não vai ter mais Filosofia”. Tirou. Depois o governo também tirou, em seguida. Então, eu fiquei sem profissão. E aí, o que acontece? O Vlado, já naquela coisa de Cinemateca, tinha a SAC, que era a Sociedade Amigos da Cinemateca, que não era bem o que é hoje, ela era um braço executivo da Cinemateca, cujo presidente era o Paulo Emílio Sales Gomes e trabalhava lá gente da Cinemateca, como o Jean-Claude Bernardet, e quem não era da Cinemateca estava sempre por lá. E nessa altura, o Roberto Santos, que era uma pessoa de cinema muito querida, tinha a cabeça muito semelhante à da gente, resolveu dar um curso de roteiro, para quem quisesse, lá na Cinemateca. Então, para esse curso de roteiro fomos eu, o Jean-Claude, o Vlado, claro, e dois estudantes, o Antonio Carlos Viana e o Durval Rosa Borges, que eram muito apaixonados por cinema e viviam na SAC. E nós fomos fazer um curso de roteiro. O que constava esse curso de roteiro do Roberto Santos? A gente saía de manhã, a ideia era fazer uma cobertura do fim de feira. Xepa. Quem é que ia lá pegar aqueles produtos que não eram vendidos, eram jogados de lado, porque não aguentavam ir em outra feira? Aquela coisa toda. E depois fazia um relatório. Daquele relatório sairia um roteiro que a gente filmaria. E nós fomos muitas manhãs a fins de feira, nos mais diferentes lugares de São Paulo. E até, também acho que vale contar, porque é uma coisa de São Paulo: num dos dias que a gente estava lá no fim de feira, nós fomos falar com uma mulher que estava catando coisas e a gente falava com aquele pessoal. E ela falou assim: “Não, está muito calor, vamos até minha casa, que eu faço uma limonada pra vocês”. Fomos até a casa dela, que era um barraco que mal você conseguia ficar de pé, você precisava ficar meio assim para ficar dentro do barraco e ela, de fato, foi e fez a limonada e falou: “Agora eu tenho uma coisa para mostrar pra vocês”. A gente ali, se acomodando do jeito que dava, ela abre uma gaveta e traz um álbum de fotografias. A gente se animou, álbum de fotografias. Quando ela abre o álbum de fotografias, para vocês terem uma ideia do impacto, eram fotografias da filha dela morta, no caixão. Várias. De vários ângulos. A menina morta no caixão. Foi tão impactante aquilo, que a gente nem perguntou mais nada ou, pelo menos, se perguntou, eu não lembro. Acho que eu tirei da minha memória. Não sei. Aquilo era assim: aquela mulher pobre, que ia lá fazer xepa, que tinha uma vida miserável, que possivelmente nunca tinha tido uma foto da filha dela, nunca tinha podido, que não era época de celular, de nada disso, tinha gasto o dinheirinho dela pra ter uma lembrança da filha e era da filha morta. Aquilo foi uma pancada na gente. Foi incrível. Então, foi uma coisa, assim, que a gente teve muito de experiência nisso. Em 1962 ainda nós chegamos a ir para o Rio, nesse curso, para fazer entrevistas em Mangueira, mas aí foi um fracasso, não deixaram a gente subir, a gente voltou e aconteceu que, por um acaso que eu não sei explicar, porque o Roberto Santos adorava aquilo que a gente levava para ele, não chegou a se fazer nada, não se fez um filme. O Vlado só veio a fazer em 1963, quando ele foi para o curso do [Arne] Sucksdorff, no Rio de Janeiro. Então, esses anos todos nós ficamos sempre muito ligados. Aí, quando foi 63, eu saí da Cinemateca. Porque eu era secretária da SAC, eu que ficava lá na SAC o dia todo fazendo carteirinha para os membros e a SAC, naquela altura, tinha umas coisas fantásticas: a gente fazia festivais. Então, durante o período que eu fiquei na SAC, por exemplo, nós fizemos o festival de cinema russo, festival do cinema japonês, festival de cinema polonês e esses festivais eram feitos no Ibirapuera. Algumas sessões eram feitas no Cine Coral, porque a SAC ficava em cima de um cinema na Sete de Abril, chamado Cine Coral, cujo dono era um cara assim muito colaborativo com a gente também. Mas quando eram festivais, a gente ia lá para o Ibirapuera. E enchia de gente, era uma coisa. Então, a SAC ficou sendo assim uma espécie de embaixada de cinema em São Paulo. O pessoal ia para lá, ia conversar. Eu me lembro quando o [Hector] Babenco veio da Argentina, era lá que ele ia bater papo. O [Rogério] Sganzerla era um menino, e era lá que ele ia bater papo. Tinha sempre um monte de gente de cinema batendo papo lá. E eu não sei como eu conseguia, porque eu era desse grupo, mas eu entrei em contato também, não me lembro através do que, para dizer a verdade, com o Walter Hugo Khouri, que era um cineasta, na época, considerado de direita. Hoje ele está cultuado aí, o pessoal viu que era injusto com ele. Porque ele era um cineasta existencial, estava mais para [Michelangelo] Antonioni do que para um cinema engajado. E, na época, aquela briga, e eu me lembro que eu saía com os dois grupos. Eu ficava uma boa parte do tempo com o pessoal da Cinemateca, mas tinha minhas saídas com o grupo do Khouri. E eu me lembro que tinha um, que agora eu esqueci o nome, que ele me apelidou de Ninotchka: ela é de esquerda, mas ela gosta bem de olhar uma vitrine. “Ninotchka” é um filme do [Ernst] Lubitsch, que é sobre uma militante russa que vai para Paris para militar, fazer espionagem, e se encanta com Paris, se encanta com a vida de Paris. Então, ele dizia que eu era um Ninotchka. Eu era de esquerda, mas era encantada com as coisas que só a direita podia dar. Era muito engraçado.
P/1 – Mas você se achava uma pessoa de esquerda, assim, organicamente? Militava em algum partido?
R – Eu me achava, totalmente. Não, nunca fui de entrar em partido, mas toda a ambiência, a vivência que a gente tinha era muito de esquerda. Não tenho dúvida. Quer dizer: o Vlado, para mim, era como um guru, total.
P/1 – E nesse tempo da Cinemateca ele era um participante assíduo?
R – Muito assíduo. Ele estava o tempo todo por ali. O tempo todo ajudando, criando, fazendo críticas dos filmes. Ele era um apaixonado pelo documentário. E era um apaixonado pela ideia de que o cinema era a arte que podia... não que ele desprezasse o cinema como arte, ou seja: como fazer cinema, como um filme é bom, o outro é mau, no sentido cinematográfico; mas, para ele, o fundamental era a responsabilidade social do cinema. Era a arte que punha a realidade para você ver. Quer dizer: a única que podia pegar aquela realidade ao redor e botar dentro de uma arte, que era um invólucro bom para você jogar para as pessoas e fazer as pessoas verem o que elas não viam no nariz delas – e através da arte elas conseguiriam ver. Ele era apaixonado por um cineasta argentino, o [Fernando] Birri, que era um cara com quem ele também fez curso de cinema [na realidade, quis fazer mas não fez] e era isso: ele gostava do documentário. Tanto que, quando ele foi para o Rio, ele fez o documentário dele e era a questão: tomar o cinema. O jornalismo, para ele, era importante, porque também era uma coisa que ele podia analisar, era uma coisa que ele podia lançar para ser refletido pelas pessoas, mas fundamentalmente, fundamentalmente mesmo, o cinema era mais apaixonante para ele do que o jornalismo. Mas cinema custa dinheiro, custa tempo, custa tudo aquilo. Eu, várias vezes, me perguntava: “Por que o Vlado não foi para o cinema?” E as duas respostas que eu tenho, uma é óbvia: ele morreu cedo demais, certamente ele teria ido mais para o cinema, e, fora disso, ele era um cara que não era rico, sustentava a família, junto. Quer dizer: ele, o pai e a mãe moravam juntos naquela altura, depois ele mudou para a Praça Roosevelt, num apartamento. Mas, enfim, para você ter uma ideia, no fim da década de 60, quando ele já tinha voltado de Londres... Porque aí, quando foi 63, 64, eu comecei a namorar uma pessoa de música, que era o Geraldo Vandré, e casei com o Geraldo Vandré em 1964. Aí a minha vida foi muito puxada para o lado da música. Quer dizer: eu já não tinha tanta coisa ligada ao Vlado e ao cinema como antes, que era todo dia, era minha vida, o cinema. Mas aí o marido já puxou para o negócio da música. E durante 1964 e 65 eu fiquei muito ligada a essa parte de música e o Vlado viajou, foi para Londres, e eu me correspondia com ele. Em 1966, o meu casamento estava meio... porque esse negócio de você ser casada com alguém famoso, era época dos festivais, aquela coisa, minha casa vivia cheia, eu acordava com gente, ia dormir com gente, era uma coisa assim que me perturbava um pouco, eu não tinha uma vida minha, própria, e aí o casamento começou a dar sinais de desgaste. E eu escrevi para o Vlado: “Não está bom, o que eu faço?” Aquelas coisas, as velhas confidências, não é? Ele falou: “Vem para cá, vem para a minha casa, você fica um tempo aqui, que sua cabeça vai melhorar, certamente. Sai daí um pouco”. E eu fui, foi em maio de 1966. E fiquei até setembro de 66 na casa do Vlado, a Clarice grávida, peguei o nascimento do Ivo lá, e pegada à casa do Fernando Pacheco Jordão e da Fátima. E essas duas casas eram uma espécie de embaixada do Brasil em Londres. O que ia de gente para lá não era normal. Toda semana tinha alguém ali, se fazia um almoço, se reunia à noite para conversar. Enfim, a brasileirada toda lá em Londres ia para a casa do Vlado e do Fernando. As feministas diziam “para a casa da Clarice e da Fátima, que negócio é esse”? E o Vlado sempre preocupado. Ele era muito acolhedor e pensava muito no outro. Vlado era um cara que pensava no outro. Era uma característica dele. Ele viu que eu estava com muito pouco dinheiro, eu fui com muito pouco dinheiro para lá. E um dia, a gente conversando, ele contando, porque eu saía durante o dia e à noite eu contava o que eu tinha visto em Londres, como é que tinha sido, e ele falou: “Mas você conta tanta coisa interessante! Sabe o que você deve fazer?” Porque veja bem, Londres em 66 era dos Beatles, Carnaby Street, King’s Road, o britânico mudando de jeito de ser, aquela coisa, então tinha muito para você comentar, muito para você discutir. Ele falou: “Por que você não faz isso em crônicas para a BBC? Vai ser bacana você mandar para lá a impressão de uma brasileira nessa Londres. Vai ser muito bacana contar”. E eu topei, fazia uma crônica por semana e isso me dava um dinheirinho também, porque, na realidade, eles pagavam as crônicas. Então, era aquela coisa assim. Aí nós voltamos. Ele voltou de Londres, eu me desquitei. Aliás, não me desquitei, porque isso é uma coisa que eu quero contar, porque diz bem, Museu da Pessoa, acho que isso aí é importante: quando foi fim de 1966, comecinho de 67, eu me separei do Geraldo. E o Geraldo, nesse momento, teve que sair do país. Porque ele tinha feito aquela música “Pra Não Dizer que Não Falei de Flores” e realmente os militares estavam atrás dele, porque não perdoaram o verso “viver sem razão”. Eles não perdoavam isso. E o Caetano, eu me lembro que o Caetano foi preso e, quando saiu, falou para o Geraldo: “Se esconda, porque eles estão atrás de você. O tempo todo eles perguntavam de você. Se esconde”. E o Geralmente realmente acabou se escondendo na casa da mulher do Guimarães Rosa, que era uma mulher fantástica também. E acabou saindo do país, tudo acobertado pela mulher do Guimarães Rosa. Como era o nome dela? [Aracy de Carvalho Guimarães Rosa]. Ela era fantástica. E o que aconteceu? Eu já estava separada dele quando ele foi. Isso foi em 68, que ele foi embora.
P/2 – Você já tinha voltado para o Brasil, de Londres.
R – O Vlado tinha voltado para o Brasil.
P/2 – E você não?
R – Não. Eu voltei em 1966 mesmo, continuei meu casamento até comecinho de 67, aí em 67 me separei. O Geraldo, por sua vez, depois dessa separação, fez aquela coisa do Rio de Janeiro [Festival Internacional da Canção], de “...Não Falei de Flores”, começou a ser perseguido e, enfim, em 68 ele saiu do Brasil, depois do AI-5. Ele saiu do Brasil e, depois de um tempo no Chile, casou-se com uma menina chamada Bélgica. Eu, aqui no Brasil, em maio de 1968, comecei a namorar o meu atual marido e então a gente queria o desquite, porque não tinha sentido ficar... Eis que um amigo nosso, advogado, se encarregou do caso e pediu o meu desquite e o dia que eu fui chamada lá para o desquite, o Geraldo, por não estar no Brasil, tinha um advogado colocado para defendê-lo, porque o Estado botava um advogado. Só que esse advogado era da... não vou lembrar agora como era o nome daquela pessoa que era o Ministro da Justiça na época, mas enfim, era do estafe do Ministro da Justiça.
P/1 – Alfredo Buzaid?
R – Não, não era o Buzaid. Ou era o Buzaid? Talvez fosse o Buzaid. [Era Luís Antônio da Gama e Silva.] Eu não sei, eu sei que era um advogado que era do gabinete de advocacia que pertencia ao Ministro da Justiça na época. E ele me perguntava assim o tempo todo: “De quem você está querendo se desquitar?” Eu falava: “Geraldo Pedrosa de Araújo Dias”, que é o nome do Geraldo. “Não, você está mentindo.” “Os papéis estão aí. Eu sou casada com o Geraldo Pedrosa de Araújo Dias.” “Não, o nome do seu marido não é esse.” Falava: “Você quer o pseudônimo dele, que é Geraldo Vandré?” “É, você está querendo se desquitar do Geraldo Vandré.” “Sim, o pseudônimo dele é Geraldo Vandré, mas...” Só para resumir esse pedaço da história, eles não me deram o desquite e o meu advogado ficou sabendo, escarafunchando, porque tinha tumultuado toda aquela sessão, dizendo que eu era mentirosa, que eu estava querendo enganar a Justiça, que eu estava querendo me desquitar era do Geraldo Vandré. É porque, como o Geraldo tinha casado lá, eu podia, se reclamasse, trazê-lo de volta para o Brasil, por bigamia. Eles podiam trazer de volta. E eles queriam o Geraldo de volta. Então, eles queriam que eu dissesse: “Ele está casado lá”. Enfim, eu me manquei e só vim a me desquitar quando o Geraldo voltou para o Brasil. E aí é que tem outro caso muito interessante para eu contar do Brasil, porque o Brasil é um país surpreendente. Quando o Geraldo voltou, acho que foi 74, se não me engano. Foi quando do golpe do Chile, 1973. Quando o [Salvador] Allende caiu no Chile. E a mãe do Geraldo aqui no Brasil era amiga, de salão de cabeleireiro, da mulher de um general; e falou com a mulher desse general: “Ele quer voltar” – ele estava numa embaixada – “mas estão criando os maiores problemas para ele sair da embaixada”, e esse general é que concedeu a volta do Geraldo. Se não me engano, foi em 74. Não sem que ele tivesse que ir para a televisão dizer um monte de coisas a favor do Exército. Mas o que eu ia contar é que, quando o Geraldo voltou, era a oportunidade... Porque eu e o Ercílio queríamos ter filhos, mas pela lei do Código Civil da época, se eu tivesse um filho, ou ele seria só meu ou seria meu e do Geraldo. Ou era um bastardo, porque não podia registrar no nome do Ercílio, pelo Código Civil da época. Então, poxa, como é que vamos ter filhos? O Geraldo voltou, finalmente eu consegui me desquitar e aí, isso que é surpreendente: naquela época tinha uma lei que, se um homem vivesse cinco anos com uma mulher, se ele pedisse, ela podia usar o nome dele. Então, a gente vivia há mais de cinco anos e o Ercílio fez o pedido e nada mais, nada menos, eu passei a ser Tranjan por certidão de nascimento. Você pode ver a minha certidão de nascimento, está lá: Nilce Therezinha Cervone Tranjan. Por exemplo: hoje meus filhos são filhos, os dois Tranjans, seriam irmãos, porque está na certidão de nascimento ali. É uma loucura, não é? Mas foi como eu conseguir registrar os dois com Tranjan. Vejam só! Meus dois filhos.
P/1 – É o retrato de uma sociedade patriarcal.
R – Patriarcal, machista, direitista. Bota os “istas” que você quiser aí que vai caber. Mas, enfim, voltando ao Vlado, quando o Vlado voltou, eu já estava casada com o Ercílio, eu fiz um telejornal, na época era TV Paulista, depois a Globo comprou e passou a ser Globo de São Paulo. Na hora do almoço. Chamava-se... como chamava o jornal? Esqueci o nome do jornal. Chamava-se “Revista da Cidade”. Eu fazia junto com o Kalil Filho, que tinha sido “Repórter Esso”; com um padre da [igreja da] Consolação, fazia junto com o... enfim, eram três, quatro jornalistas e esse jornal tinha uma personalidade: realmente cada um tratava de um tipo de assunto e eu tratava muito de entrevistar pessoas de arte e de política. Esse jornal durou 1967 – eu trabalhava na [revista] “Claudia” junto – e 1968. No fim de 68, mas acho que um pouco antes do AI-5, teve um caso no Rio de Janeiro daquele estudante [Edson Luís de Lima Souto] que foi morto [pela polícia] no [restaurante estudantil do Calabouço], e uma menina do Rio de Janeiro veio e pediu para ser entrevistada no jornal. Eu chamei-a, entrevistei e, quando acabou a entrevista, evidentemente, a polícia estava na porta. E me levaram, e ao Kalil, para uma delegacia. E queriam que eu falasse sobre essa menina: onde ela estava hospedada, quem ela era, tatatá. Eu falei: “Não sei. Ela apareceu, contou o caso do Rio, achei o caso do Rio um caso digno de ser reportado, mas eu não sei onde ela está hospedada, se voltou para o Rio ou não voltou”. E nós chegamos a passar uma noite na Polícia Federal, eu e o Kalil, uma noite que uma mulher e um homem nos interrogavam muito amistosamente, lá na Rua Piauí, porque eu me lembro que nós estávamos no subsolo e ali tinha uma janelinha e a gente via movimento do pessoal da TV lá em cima. E foi uma noite muito chata, porque a mulher insistia que nós éramos dois pares, por que não ficar junto os pares? Eu com o cara que eu não lembro o nome e o Kalil com ela, que eu não lembro o nome. Então, foi uma noite de um horror, de uma desagradabilidade, assim. Na manhã seguinte soltaram a gente. E aí, pouco depois, nós saímos da Globo e fomos para a Bandeirantes, logo depois veio o AI-5 e a Bandeirantes fechou também o jornal. Aí eu fui para a publicidade. E, na publicidade, eu voltei a ser companheira do Vlado.
P/1 – Desculpa, eu queria voltar num segundo: como é que foi essa sua chegada ao jornalismo? Você disse que foi correspondente da “Claudia”.
R – Correspondente, não, eu trabalhava na “Claudia”. Eu tinha duas funções na “Claudia”: eu era assistente da Carmem da Silva, que fazia a parte de Psicologia, para a época adiantadíssimo, muito de vanguarda; e fazia uma seção que se chamava “Claudia Realiza seu Sonho”. Era assim: as pessoas escreviam, contavam seu caso pessoal e faziam um pedido. E a gente podia atender através do departamento comercial. Tinha, assim, os pedidos mais estranhos. Se vocês quiserem que eu conte o mais estranho, querem?
P/1 – Por favor.
R – O mais estranho foi uma menina do Nordeste que escreveu e contou o seguinte: “Eu era noiva e meu noivo estava construindo uma casa pra gente e tal, a gente ia casar, a casa estava quase pronta já, e um dia ele me convidou para ir lá e aí ele abusou de mim. E depois disso ele não quis mais saber de mim. Não sei o que, passou-se o tempo, eu estou namorando uma outra pessoa, mas não tenho coragem de dizer para ele que eu não sou mais virgem. Então, eu fui me confessar com o padre daqui” – isso era não sei se Paraíba ou Ceará – “e o padre disse que, em Recife, tem um médico que reconstitui o hímen, mas eu não tenho dinheiro, eu queria que a ‘Claudia’ realizasse esse meu sonho”. Eu tenho essa carta até hoje. Aquela ingenuidade, porque a “Claudia” publicava matéria do que a pessoa pedia, o pedido que ela fazia tinha uma matéria que eu tinha que escrever. Imagina se eu podia escrever essa matéria na “Claudia”, naquela altura dos acontecimentos. Mas aí, como é que eu fui para o jornalismo? Eu acho que foi o Kalil Filho que me convidou. Agora, por que ele me convidou? Ele fazia um jornal à noite e ia fazer esse jornal à tarde, às duas horas da tarde. Não sei te dizer agora como é que eu fui parar lá nesse jornal, para dizer a verdade.
P/2 – E para dar aula, você nunca mais deu?
R – Não, nunca mais dei aula.
P/1 – Aí você foi para a publicidade?
R – Fui pra publicidade.
P/2 – E encontra o Vlado?
R – Fui para a Thompson, onde eu era redatora e o Vlado era Rádio TV. Naquela altura tinha o Departamento de Rádio e TV. Eu tinha ido – eu vou contar isso também – para a Thompson através de uma entrevista que eu tinha feito nesse jornal com uma pessoa lá da Thompson. Quando essa pessoa soube, o Saldiva, que tinha fechado o jornal, ele me convidou para fazer um serviço na Thompson, que era uma agência de publicidade, a maior do Brasil, na época, e que era o seguinte serviço: eu tinha que acompanhar uma equipe da Johnson & Johnson pela periferia de São Paulo, não só periferia, mas inclusive periferia de São Paulo. Eles iam lançar um tampão e queriam saber se teria aceitação aquele tampão, porque eram máquinas caras. Existia, já, um anterior, mas o anterior ia ser retirado de praça, porque ele absorvia esticando. Esse ia absorver alargando e era muito mais seguro, mas eles não queriam importar as máquinas se não tivessem certeza de que isso pegaria. Então, a gente ia ter que ir para a periferia, falar com as pessoas sobre menstruação, como é que é, como é que não é, o que vocês usam, o que vocês não usam. E aí os tabus apareceram, todos que você pode imaginar, e as coisas mais incríveis do mundo. Não só o que não podia comer, o que não podia fazer, mas o que elas usavam na menstruação. Porque você pensa que a toalhinha antecedeu o Modess, mas elas usavam coisas incríveis. Por exemplo: sabugo de milho. Sem milho, é claro, o sabugo, para absorver. Coisas desse tipo. E eu tinha que fazer um relatório e a Johnson & Johnson analisar aquela coisa. Finalmente eles acabaram lançando o OB, mas dali eu passei a ser uma redatora normal da agência e o Vlado, ali, com Rádio e TV.
P/2 – Essa parte nunca ninguém contou e então é bastante importante. Não tem nenhuma outra fonte que conte o período de publicidade do Vlado, nesse ano, especificamente.
R – Ele não ficou muito tempo, não, mas ele era uma pessoa... O que eu posso contar de publicidade do Vlado, na época, primeiro que ele conhecia cinema pra caramba e, então, realmente, ele era uma figura absolutamente útil e desejada naquele departamento. Segundo, que toda hora do almoço ele subia para a minha sala, ligava para a Dona Zora, mãe dele. E ficava muitos e muitos minutos lá conversando baixinho, chachachacha, que eu nem me lembro que língua eles conversavam, mas ficavam muito tempo lá. O Vlado era muito dedicado a isso. Aí ele acabava de ter aquele papo dele, que era diário, não sei como eles tinham tanto assunto! Eu me perguntava. Falava: “Caramba, quanto assunto aí para todo dia você ter 15, 20 minutos ali”. Aí a gente saía, ia ao cinema; quando já esgotavam os filmes, a gente ia almoçar na [rua] 25 de Março, que era ali perto, mas normalmente a gente saía para um cinema. Esse período de publicidade foi um período em que a gente conviveu muito e falou muito sobre cinema, viu muito cinema. Enfim, a rotina de uma agência de publicidade, realmente, é aquela: os clientes dão os dados, você faz uma campanha, a campanha tem os anúncios, os filmes, os comerciais, a parte comercial era viabilizada pelo Departamento de Rádio e TV, que era, então, ele que fazia e não tinha grandes novidades. Não era um período... não me lembro de nenhum caso muito fora do normal, para poder contar para vocês. Acho que você não tem essa fonte, porque não tem o quê. É uma coisa que era um trabalho.
P/1 – Ele gostava do que fazia ou não? Reclamava?
R – Sendo cinema, ele sempre estava com o pé dentro. É claro que não era o sonho da vida dele fazer comerciais. Mas nunca ouvi uma queixa. Mas também logo depois ele se mandou. E foi fazer o que ele gostava de fazer. Quer dizer: não foi cinema propriamente dito, foi alguma coisa em área de cinema, mas ele começou TV, se aprofundou em jornalismo e começou a TV, onde eu tenho o último caso dele para contar, que é o fato de que ele fazia um telejornal na TV Cultura e eu, nessa altura, estava grávida do meu primeiro filho. E uma noite ele foi lá em casa e falou: “Olha, eu quero que você apresente o telejornal”. Eu falei: “Você não quer esperar eu dar à luz?” “Não. É exatamente isso que eu quero: que você vá apresentar grávida. É aí que está a coisa mais interessante. Eu quero que as pessoas vejam que a vida flui. Você vai lá apresentar grávida”. E eu topei, falei: “Tá bom, então vamos lá”. Só que, em seguida, aconteceu, não deu tempo de ele introduzir essa novidade no telejornal. Ele foi preso e morto. Eu posso contar da noite da morte dele, do horror que foi, porque a Fátima e o Fernando apareceram em casa e disseram: “Mataram o Vlado”. Para mim era como dizer um absurdo tão grande. “Como, mataram o Vlado? O que é isso?” Aí ela contou que ele tinha ido de livre e espontânea vontade lá no DOI-Codi, que ele tinha sido procurado no dia anterior, tinham combinado no dia seguinte. Ele era uma pessoa completamente tranquila. Ele enfrentava as coisas com uma lógica! Ele pensou que fosse lá e logicamente ia desembaralhar as coisas. Tanto que a Clarice nem foi com ele. A Clarice ficou muito tempo, depois, com isso na cabeça: “Puxa, por que eu não fui com ele?” Mas era uma coisa tão assim, que não se esperava nada demais, e quando a Fátima falou isso, nossa, eu desmoronei e ela falou: “O Fernando tem que falar com o Audálio [Dantas], nós temos que fazer um monte de coisas e eu quero que você fique com os meus filhos” – ela morava numa vila – “lá na nossa casa”. Então, levou a gente para aquela casa e eles foram fazer as coisas todas que eles tinham que fazer. Parece que o Fernando exigiu a presença do Audálio imediatamente. Tenho um amigo em comum, o Rubens, que disse que ele foi para a casa dele telefonar e que ele, aos berros, pediu ao Audálio que viesse e nós, na casa dele e da Fátima, a noite inteira, carro de polícia rondando, era uma praça redonda, sem fazer nenhuma força para não fazer barulho, a noite inteira aquela coisa. Quando foi de manhã, o Fernando e a Fátima voltaram, nós fomos para casa de uma amiga comum e eu fiz, àquela altura, eu me lembro, dezenas e dezenas de telefonemas. Toda minha agenda eu comuniquei o que tinha acontecido, que o Vlado estaria às três horas da tarde em tal lugar. O que eu fiz e que muita gente deve ter feito também, evidentemente, porque encheu. Eu me lembro do Paulo Emílio Sales Gomes, para quem eu liguei, e ele dizia: “Mas, como?” Sabe aquela estupefação? Porque o Vlado era uma criatura mais gentil, mais doce, mais colaborativa, mais amiga, mais preocupada com tudo, com a coletividade. Era tudo, menos uma pessoa que você pudesse matar, assim, desse jeito. Aliás, não se deve matar desse jeito ninguém, mas a estupefação diante dessa coisa do Vlado... E aí teve esse momento que aquilo tudo encheu muito, ficou lotado de pessoas e, então, de repente, aquilo começou a tomar força. Depois veio o enterro, onde teve o episódio da Rute, onde teve o episódio [do rabino] impedindo que ele fosse enterrado juntos aos judeus suicidas. Foi uma movimentação, foi um negócio assim, e aí até acho que foram vocês que me perguntaram: “Por que o Vlado teve esse impacto?” Eu acho que o Vlado teve esse impacto por ser quem ele era, por estar fazendo o que ele estava fazendo e porque também a ditadura já estava começando a cair de madura. Quer dizer: então juntou. Tanto que, quando veio o caso seguinte, do Manoel [Fiel Filho], que também foi morto no DOI-Codi, juntou tudo e explodiu mesmo. Mas eu acho que, se não fosse o Vlado quem sofreu isso, teria demorado mais. Com o impacto do Vlado... Por exemplo: eu não fui à missa da Sé, porque eu estava com uma barriga, eu tive meu filho dia 19, eu estava no finzinho [da gravidez] já e não deixaram eu ir, que eu estava muito abalada, muito. Você viu o que foi aquela missa, não é? Então, de repente, a ditadura viu que tinha uma força contrária que não era tão fraca assim, agindo, já, vindo para fora. O Vlado foi fundamental. Triste de ter sido fundamental para isso, mas foi.
P1 – Além da missa que houve, que teve um caráter simbólico muito forte, houve também aquele abaixo-assinado, de 1004 assinaturas de jornalistas, que as pessoas estavam se expondo.
R – Estavam. Aí você vê, tanto pela questão do Vlado ser quem era. Quer dizer: houve tanto o problema da consciência dos jornalistas, como o fato do Vlado ter sofrido aquilo. Ou seja: de fato foi um impacto brutal e foi pena que custou a vida do Vlado, mas não foi tão em vão assim, dado a isso.
P/1 – Como é que você enxerga hoje a existência de uma entidade como o Instituto Vladimir Herzog? No que ela pode contribuir para fazer com que a vida do Vlado seja preservada no sentido do exemplo, das missões, do legado?
R – Eu acho que é muito importante. Veja bem: tem Instituto FHC, instituto isso, instituto aquilo. É importante que uma pessoa que não tenha sido do alto escalão da política, uma pessoa cuja vida é marcada por uma luta permanente pela verdade, pela coletividade, pela franqueza, pela veracidade da informação, tenha um instituto para fazer prêmios a novos jornalistas, lançar novos jornalistas, para fazer essa coisa da ocupação, colaborar com a ocupação. Eles estão fazendo lá, eu sei porque eu cedi livros, para ter uma espécie de... museu é uma palavra chata, a não ser Museu da Pessoa, que amplia, mas, enfim, para fazer a presença dele ser uma inspiração permanente. Novas coisas vão acontecendo, novas coisas vão sendo anexadas ao instituto, enfim, essa vitalidade é que o instituto pode ter. Ele, até agora, se engajou em causas fantásticas. O instituto é uma maravilha! Quer dizer: tem as coisas permanentes, tem as coisas que ocorrem em um determinado momento sem que a gente espere. Eu acho que é isso. Eu só fiquei um pouco chateada, a primeira vez que eu dei uma entrevista para [o grupo de pesquisa da] ocupação [Vladimir Herzog, no Itaú Cultural] tinha acontecido uma coisa que eu achei de uma barbaridade incrível: o Olavo de Carvalho deu uma entrevista por Skype para a revista “Carta Capital”, para um jornalista da “Carta Capital”. E essa matéria está comprovada, tem o Skype lá, foi publicada pela “Carta Capital”. Nessa matéria, no meio de mil perguntas que se fizeram ao Olavo de Carvalho, lá pelas tantas o jornalista perguntou: “E a questão da tortura?” Estavam falando da ditadura. E ele falou: “Que tortura? Acho que não existiu, eu tive uma sobrinha que foi presa, disseram que ela perdeu o rim, ela saiu de lá mais bem alimentada e mais bonita do que nunca. É uma besteira esse negócio de tortura. Teve uma coisa ou outra, como em qualquer lugar, mas...” Aí o jornalista falou: “E o caso Herzog?” Aí ele falou assim: “O caso Herzog, isso é óbvio, todo mundo sabe que ele era um espião inglês, que ele trabalhava para o serviço de espionagem inglês e que foram eles que mataram o Vlado. É sabido”. Então, quando eu fiz a entrevista, eu falei sobre isso e falei também com o instituto. Falei: “Gente, o Olavo de Carvalho está nos Estados Unidos. Lá, a pena para quem não prova o que fala, não é como no Brasil, que vai ficando para lá. Lá tem pena, tanto que lembra o caso Paulo Francis, que teve que pagar uma verdadeira fortuna – até teve um infarto por causa disso – para Petrobras, porque não conseguiu provar uma declaração que ele tinha feito”. Nem o instituto, nem ninguém se interessou por isso e eu acho que é uma desfaçatez. Eu acho que é difícil você ter um advogado que pegue o Olavo de Carvalho, mas eu acho que se fizesse uma campanha a partir disso, se arrecadasse fundos para um advogado lá, sabe? Era uma coisa importante para o Vlado. Vlado morto pelo serviço secreto inglês, espião inglês, o que é isso? E, ao mesmo tempo, seria interessante também para desmascarar um cara como esse Olavo de Carvalho, que fica dizendo essas coisas impunemente; ele pode falar qualquer coisa que tudo bem, estamos aí. Isso eu ainda vou cobrar do instituto, porque eu acho que é uma missão boa. Se bem que agora passou.
P/2 – As coisas têm evoluído tão rápido, não é?
R – Pois é. Mas enfim eu acho muito importante o instituto, acho o trabalho que ele fez fantástico, o que continuam fazendo lá fantástico. Sempre que eu puder colaborar, colaborarei e acho que muita coisa nova vai aparecer e eles vão assumir, vão discutir. Enfim, é muito importante que isso permaneça, não morra.
P/1 – Nilce, tem um componente em toda essa história, malgrado a tragédia, assassinato e tudo o mais, mas os embates que a Clarice decidiu enfrentar e ganhou. Como você avalia, do ponto de vista feminino, esse tipo de disposição, determinação, coragem, oferecimento ao sacrifício, enfim, porque não deve ter sido fácil, não será fácil, jamais seria fácil. Como você avalia isso?
R – O problema é o seguinte: nunca deram muita importância ao que as mulheres podiam fazer. Na realidade, essa pergunta que você faz: como uma mulher, do ponto de vista feminino, feminista, assume tudo isso, eu acho que as mulheres sempre assumiram, mas não tiveram voz. As mulheres são pessoas que estão tendo voz agora. Até com alguns momentos de confusões entre determinadas coisas, mas, enfim, o que eu quero dizer é o seguinte: a Clarice foi guerreira, foi corajosa, foi uma pessoa que não deixou pra lá. Se fosse um homem defendendo a sua mulher, essa pergunta não teria tanto sentido e vice-versa, porque ela, como mulher, como ela enfrentou isso? Enfrentou isso como um ser humano aguerrido, ligado à sua época, ao seu tempo e ainda falando do pai dos filhos dela, do marido dela, de um integrante da imprensa nacional. Eu acho que ela foi corajosa, mas fez o que devia fazer. Tinha que fazer isso aí, mesmo: a gente tem que resistir, seja homem, seja mulher, seja bissexual, gay, o que for. Eu acho que a palavra resistência não está ligada ao gênero. A palavra resistência está ligada a um estado de espírito, em coisas que você acredita e que você tem que brigar por elas. Por exemplo: hoje nós estamos num momento que tem que ter resistência. Não é de movimento feminino, só. De movimento feminista, dos movimentos particulares, que são vários: negro, feminino, isso e aquilo, mas tudo para um fim comum, de resistência a uma coisa muito grave que está acontecendo neste país. Então, toda vez que houver necessidade de resistência, que venham todos: feministas, homens, a gente precisa é fazer frentes contra o retrocesso, contra a barbárie. Enquanto a gente puder. Eu tenho uma nora muito resistente, eu tenho uma filha muito resistente nesse sentido.
P/2 – Quantos filhos você teve?
R – Eu tenho dois filhos.
P/1 – O nome deles.
R – Marina Tranjan a mais nova, é ligada a teatro e o Tiago Tranjan, que é o mais velho, que é professor da Federal, de Lógica. Então, está todo mundo resistindo, porque as faculdades estão sendo abaladas, o teatro nem se fala! Eu tenho filhos que estão nas áreas que mais estão sendo pisoteadas, abaladas, desmotivadas. Nossa, é um negócio horrível! Então, tanto meu filho como minha filha, mulher ou homem, estão resistindo do jeito que eles podem. Eu sempre digo que resistência também tem que ter líderes, pessoas que têm voz, porque se você não tem líderes, você fica resistindo, mas não chega, não é? Fica atomizado, fica a bolha. A gente acaba tendo uma certa catarse quando fala: “Meu Deus do céu!” com as besteiras que eles falam, mas não: eles falam besteira, eu acho que até para esconder a verdade das barbaridades reais que estão sendo feitas: esse desestímulo da pesquisa, essa falta de verba para as áreas essenciais, esse descaso para com a cultura, esse ministério que parece de comédia. Enfim, é um negócio que a gente tem que ter líderes. Hoje eu li um negócio do [ministro] Celso de Mello [do STF], maravilhoso, dizendo que ele vai resistir lá no Supremo de todo o jeito a isso que está acontecendo, num artigo maravilhoso que está no Elio Gaspari da “Folha [de S.Paulo]” de hoje, em que ele está traduzindo uma entrevista que o Celso deu para a Mônica Bergamo. Então, se cada um, no seu setor, principalmente as pessoas que têm voz, um magistrado do Supremo, um professor, enfim, todo mundo que tenha voz, tem que juntar gente em torno dessa voz e de si mesmo. Ainda mais quando acontecem barbáries como a do Vlado, como as de hoje, que não morreu ninguém, graças a Deus, mas estão matando o espírito, que também é uma morte tenebrosa.
P/2 – Posso voltar um passo para trás? De 75 para hoje você fala: “Eu fui para a publicidade”.
R – Ah, tem um fato interessante pra contar sobre a publicidade. Eu comecei, então, como redatora, e em 1971 – falando de mulheres – eu e duas amigas minhas abrimos uma produtora de comerciais. Chamava-se... nome infeliz, mas enfim, Short Filmes. Não devia ter esse nome, foi besta, mas enfim, na época e nós éramos pessoas, as três, bastante envolvidas com publicidade na área de rádio e TV e bastante boas profissionais. E metemos as caras e fomos em frente. E tem um fato, que é esse que eu queria contar, muito interessante, que a gente fazia os contatos e, como as três eram de publicidade, todas tinham contatos e cada uma fazia os seus contatos, e num dos contatos que eu fiz o diretor de Criação falou assim para mim: “Estou interessado, sim, claro, vamos trabalhar juntos. Agora, se tiver um problema maior, tem um homem com quem eu possa falar?” Eu falei: “Não, não tem. Você vai ter que falar comigo, com a Izabel, não vai ter um homem, não”. Mas você vê? São essas coisas. Um outro fato que não tem nada a ver com publicidade, mas quando eu me separei do Geraldo, um dia eu queria muito alugar um apartamento, sair de um apartamento que nós dois morávamos, porque como ele estava em dificuldades, eu queria entregar para ele o apartamento e eu estava procurando apartamento. Você sabe que não alugavam apartamento para mulher separada? Era uma coisa que eu tive que batalhar para isso que você não pode imaginar, que finalmente nem consegui. E o caso que eu quero contar é que um dia eu fui numa festa com um casal amigo meu, um casal até de psiquiatras: “Vamos numa festa aí e tal, é aniversário de fulaninho”. Fomos para a tal festa. No meio da festa, minha amiga me chama assim do lado e fala: “Vamos embora”, bem bronqueada. Eu falei: “Por quê?” “Porque a dona da casa” – que era mãe do aniversariante – “falou que você é uma pessoa separada e uma má influência para o filho dela. Então, vamos embora, porque ela quer que a gente saia, mas eu é que quero sair agora”. Você vê: isso tudo era... que ano que eu me separei? 1967. Você tinha esse tipo de mulher separada sair da festa porque era má influência, não conseguir alugar um apartamento sozinha... são coisas assim. E, na publicidade, então, teve esse caso. Nós ficamos com essa empresa de 1972 a 75, quando eu tive o meu primeiro filho. No final, um pouco antes de ele nascer, eu deixei e aí, quando eu voltei, eu fiquei uns tempos, porque eu tive o primeiro filho, depois tive minha filha, logo em seguida, depois eu acabei, a partir de um contato de publicidade, que era o Luiz Antonio Furquim, eu fui pedir um emprego para ele: “Preciso voltar, não posso ficar sem trabalhar, é chato. O que você acha que pode fazer?” Ele trabalhava no Pão de Açúcar, era diretor de comunicação do Pão de Açúcar: “O Pão de Açúcar vai lançar uma revista. Eu posso te indicar para o [Luiz Carlos] Bresser-Pereira”. Aí ele me indicou para o Bresser-Pereira, eu fui lá conversar e, por uma sorte incrível, o Bresser adorava cinema e era ligado à Filosofia. Então, eu caí assim do céu para ele e fui fazer uma revista que se chamava “Doçura”. Outro fato interessante. Essa revista era na Alameda Lorena. Aqui é a Brigadeiro Luiz Antonio, Alameda Lorena, Batatais. Então, esse interior todo era do Pão de Açúcar. Você podia ir por dentro para esses lugares todos. E fizemos uma revista e eu não era, naquela altura, uma jornalista. Acho que nessa altura já precisava de registro de jornalista e eu não tinha. Aí o próprio Bresser-Pereira falou em convidar o Narciso Kalili, que era um jornalista que tinha feito o “Bondinho” lá para o Pão de Açúcar, e que tinha sido uma revista de muito sucesso. Então veio o Narciso Kalili e sua equipe e eu administrava, em termos de Pão de Açúcar e Narciso administrava, em termos de jornalismo. E a revista foi ganhando uma cara política, cada vez mais. Até que um dia o Narciso falou: “Tem muito marido matando mulher em Minas Gerais. Já é o quarto ou quinto caso que tem acontecido. Vamos fazer uma matéria sobre isso”. E mandou o Azevedo, que era um jornalista da equipe, lá para Minas e a matéria saiu na capa da revista do Pão de Açúcar como “Os Maridos Assassinos de Minas”. Aí, o que aconteceu? Aconteceu que, numa reunião, lá em Brasília, em que estavam o Abílio Diniz e mais um ministro que era de Minas, esqueci o nome dele agora. Esse ministro chegou, numa reunião de um comitê ali e falou assim: “Escuta, você tem lido a revista do Pão de Açúcar?” É claro que o Diniz não lia, não é? Diniz falou: “Sim, por quê?” “Você viu a capa desse mês?” Quando o Abílio viu a capa daquele mês, eu só sei que no dia seguinte eu fui chamada pelo Furquim e ele falou assim para mim: “Nilce, os remédios amargos a gente toma na hora. Você e toda a equipe estão despedidos”. Fomos despedidos, Narciso e toda sua equipe e eu. Aí a revista voltou a ser... Mas tinha a parte de receitas, tinha a parte feminina, tinha tudo. Só que tinha uma matéria, sempre, que ia para a política. E cometeu-se a insensatez de botar na capa. Porque se não tivesse na capa, eles não tinham nem visto também.
P/1 – Foi curto e grosso.
R – Curto e grosso. Como a volta foi curta e grossa, também.
P/1 – Alguma coisa que você queira acrescentar?
R – Então, você falou de publicidade. Aí eu saí, quando eu voltei... quando é que foi? Eu fiquei com meu filho, trabalhei na revista “Doçura” até essa dispensa, aí eu acabei indo para ser representante da Embrafilme aqui em São Paulo, porque o Ismail Xavier era muito ligado à Embrafilme e me apresentou para o Celso Amorim e o Celso Amorim me pôs como representante da Embrafilme aqui em São Paulo. Eu fiquei dois anos nisso e depois voltei para a publicidade, para a [agência] Salles, mas aí já como Rádio e TV. E fiquei na Salles como Rádio e TV até 1982: fiz muita coisa, muito comercial na minha vida. Aí fui para a Leo Burnett, de onde fui despedida por uma dessas pequenas coisas, também, de não entendimento mútuo. E depois disso eu fui trabalhar numa produtora, a Jodaf, que era uma produtora muito da moda na época, trabalhei um tempo na Jodaf, e aí chegou a eleição do [Mário] Covas. O Covas foi eleito e o Fernando Pacheco Jordão me indicou como chefe de Comunicação. Aí eu fui para o palácio como chefe de Comunicação, não na área jornalística, na área de comunicação e publicidade. Fiquei até quase o Covas morrer. Aí depois, o Covas não gostava, de jeito nenhum, de publicidade, ele achava que, como ele estava fazendo, o jornalismo tinha que dar. Se estava sendo feito, por que precisava fazer publicidade? Tinha que estar no jornalismo. E a gente dizia para ele: “Se o trem chega na hora, ninguém bota no jornal. Bota se o trem atrasa”. Então, não adianta você achar que todo mudo sabe e tal. Não sabe. Tem que dizer. Mas foram anos de muita resistência dele à publicidade. Muita resistência, ele não gostava. Ele morreu, aí eu fui para uma editora do filho do Gabriel [Tranjan], meu sobrinho, e fiquei lá três anos e depois passei a fazer coisas em casa, mesmo, “freelancer”, que é o que eu faço até hoje.
P/2 – No período da redemocratização, você atuava?
R – Eu tenho um filme. Será que eu dei para o instituto? Está lá no instituto. Mas eu tenho cópia, se vocês se interessarem. Preciso achar, mas tenho cópia. Eu fiz uma matéria muito grande num dos comícios que teve para a redemocratização, eu tenho entrevista de muita gente boa lá, muita gente boa. Então, eu posso achar esse filme pra vocês.
P/1 – Você está falando da Diretas Já?
R – Diretas Já.
P/2 – Um filme independente?
R – Como eu trabalhava com Rádio e TV, eu consegui as fitas, me deram de presente as fitas e eu fui lá, com a cara e a coragem, na Praça da Sé, e tem gente entrevistada pra caramba. Porque desde Tancredo [Neves], tem um monte de gente entrevistada. São horas de fita. Eu posso tentar achar também.
P/1 – Documento, não é?
R – É um documento. E tem uma cópia com o instituto. Eu dei para o instituto uma cópia.
P/2 – Vamos procurar.
R – E o tal documentário que eu fiz sobre a Praça da Sé foi com a minha produtora.
P/2- A Short?
R – A Short Filmes. Ou seja: eu tinha lá equipe: tinha montador, fotógrafo, tinha som direto, essas coisas todas, e ganhei uma verba. Era um concurso do estado de São Paulo sobre coisas do estado que você pudesse contribuir como documento. Aí eu ganhei uma verba que deu para comprar o filme virgem. Porque nesse ano o presidente dessa comissão era o Roberto Santos, que era uma pessoa ótima, e ele achou que todo mundo que tinha concorrido devia ter uma parte. Não devia ter um vencedor só. Aí ele dividiu, foi bacana nesse sentido, mas ficou muito pouco para cada um. Quer dizer: eu só consegui fazer porque eu tinha pessoas que fizeram de graça para mim.
P/1 – Que data que era isso, como era a história?
R – Era 1974 e a Praça da Sé estava sofrendo uma profunda transformação porque iam instalar, lá, o metrô. Então eu tenho muita coisa da Praça da Sé como ela era. Tanto que o documentário termina com a implosão do prédio.
P/1 – E da Praça Clóvis [Beviláqua].
R – Mas eu só fiz a Praça da Sé. Não cheguei na Praça Clóvis. Tem muita coisa interessante que ocorria lá na praça. A praça era do povo, mesmo. Vou tentar achar.
P/1 – Nilce, alguma coisa que você gostaria de ter dito e a gente não te estimulou a dizer?
R – Não. Acho que eu falei demais, até.
P/2 – Onde foi parar a Nilce pianista?
R – A Nilce pianista, por um golpe de sorte resolveu... não é golpe de sorte, foi assim: quando você é piano, o [Arthur] Rubinstein, que é um grande pianista, dizia assim: “Quando eu paro de tocar um dia, eu noto uma diferença incrível; quando eu paro dois dias, a minha mulher me cobra; quando eu paro três dias, a minha empregada me cobra”. Então, com esse negócio de eu passar a estudar, faculdade e tal, não dava tempo. Porque eu estudava, quando eu estudava só piano, oito horas por dia. Eu era dedicada. Eu falei golpe de sorte, porque eu vim a ter artrose e a minha carreira teria ido por água abaixo por causa da artrose. Eu, hoje, por exemplo, não consigo teclar de jeito nenhum. Ainda bem que eu saí antes que fosse impedida de continuar, não é?
P/1 – Nilce, como você se sentiu dando esse depoimento para nós?
R – Tranquila. Espero que ele seja de alguma utilidade. É bom falar da gente, do passado da gente; a gente traz para a memória um monte de coisa e vê que não viveu tão em vão assim.
P/1 – Que ele será útil, você pode ter certeza disso.
R – Espero.
P/1 – E quais são seus sonhos, Nilce?
R – Acho que meus sonhos, agora, são todos dirigidos a filhos e netos. Porque chega uma hora em que você sabe que você pode ser estímulo para eles. Você já não tem uma voz para fora. Porque, quando você é um jurista famoso, um radialista famoso, mas eu não sou famosa, nem nada, então o que eu posso fazer é colaborar assim num nível de estar sempre estimulando netos, filhos, estar sempre recebendo, em troco disso, uma convivência maior. Isso. Acho que quem tem 83 anos não tem muito sonho. Tem que ter sonhos mais de acordo com a realidade.
P/1 – Ok, muitíssimo obrigado pela sua entrevista.
R – Imagina! Obrigada a vocês.
P/2 – Muito obrigado, Nilce! Foi um prazer muito grande.
P/1 – Muito tocante te ouvir!
R – Obrigada!
P/1 – Muito obrigada!
P/2 – Muito rico.