Museu da Pessoa

A vida é isso: viver e se superar

autoria: Museu da Pessoa personagem: Edson Cavalcante Pinheiro

Entrevista de Edson Cavalcante Pinheiro
Entrevistado por Luiza Gallo
São Paulo, 04/07/2022
Projeto: Inclusão e Diversidade - Ernst & Young
Entrevista número: PCSH_HV1219
Realizado por: Museu da Pessoa
Transcrita por Selma Paiva
Revisado por Luiza Gallo

P/1 – Pra começar, quero te agradecer super por estar aqui com a gente e queria que você se apresentasse, dizendo seu nome completo, data e local de nascimento.

R – Meu nome é Edson Cavalcante Pinheiro, eu nasci em um seringal, no interior do Acre, mas fui registrado em Cruzeiro do Sul.

P/1 – Que dia?

R – Dia três de junho de 1979.

P/1 – E qual o nome dos seus pais?

R – José da Silva Pinheiro e Sebastiana Cavalcante Pinheiro.

P/1 – O que eles faziam, fazem?

R – Meu pai era Soldado da Borracha, seringueiro, desde a infância, e depois, quando teve a Segunda Guerra, num projeto entre o Brasil e os Estados Unidos, por ele estar na região, ele foi enviado pra trabalhar nas estradas de seringa, pra extração da borracha, pra mandar pros Estados Unidos e aí depois eles receberam o título de Soldado da Borracha, mas ele sempre foi seringueiro. E minha mãe sempre foi, por a gente morar em seringal, a gente era em muitos filhos, em doze, aí o trabalho maior ficava com ela, que fala que é do lar, mas é a que trabalha mais, né? (risos)

P/1 – E você sabe um pouco da história do seu pai?

R – Sim. A gente, quando era pequeno, meu pai contava muita história de como era a vida. Eu lembro que ele falava que saiu de casa com quatorze anos e foi morar numa tribo indígena, com os índios, porque era melhor do que (risos) ficar em casa. E lá ele já trabalhava, com essa idade já tinha estrada, que eles falavam antes, de seringa, onde o seringueiro já era responsável, saía três horas da manhã, com quatorze anos, com a espingarda, uma lamparina na cabeça, que colocava uma lata com óleo diesel e um paninho molhado, que a luz ficava acesa e um protetorzinho pro vento não apagar. E essa era a claridade que eles tinham às três horas da manhã e aí eles saíam cortando as seringas e colocando as xícaras, pra recolher o leite e aí, quando dava umas cinco horas eles faziam o retorno. E ele falava muito que nesse percurso ele encontrava muitos animais, se deparava com onça. Era bem punk mesmo. E a gente pequeno ficava ouvindo-o contando, meu tio contava também muito essas histórias, que andava com ele. E era nossa alegria ficar lá ouvindo as histórias, às vezes a gente se assustava, mas a gente tem muita lembrança, sim.

P/1 – Você falou que, quando ele foi pra uma aldeia, tribo indígena, era melhor. Como era a vida dele, antes de ir pra lá?

R – Ah, porque geralmente, em regiões assim, vou falar pela nossa região, seringal: quando nasce um filho homem significa que é mais uma mão de obra dentro de casa, que geralmente as mulheres, as meninas, são colocadas pra tomar conta do lar, ficar com a mãe, cuidando dos menores e os homens com... eu comecei a trabalhar com onze anos. Então, com onze anos, já tinha que ‘me virar’, pra trazer renda pra dentro de casa e é tudo muito difícil, muito caro as coisas, nesses lugares, porque lá onde a gente morava a forma mais rápida de chegar era de barco, que demorava quatro dias. Então, só tem uma pessoa que vende as coisas, o preço era ela que dizia, ela dizia quanto pagava nas coisas que a gente produzia, então era tudo muito crítico e eu imagino que devia ser muito difícil pra ele conviver lá, com a família, as condições precárias que devia ser pra ele e aí ele... ou talvez podia ser por danação dele, de não querer (risos) aceitar as ordens, as regras do meu avô e resolveu sair de casa, mas ele sempre ensinou muito pra gente não se acomodar. E isso é uma coisa que eu sempre guardei pra mim: não se acomodar, sempre trabalhar. Então eu, com treze anos, já tinha meu empreendimento, já fazia pipa pra vender, tinha jeito de ganhar dinheiro, eu procurava sempre fazer alguma coisa: catava fruta no mato, ia vender pras pessoas que não podiam ir, então eu ‘me virava’ e eu fui levando isso pra vida e eu faço isso até hoje, eu não consigo ficar parado, a todo momento eu quero inventar e estar fazendo uma coisa nova. Quando eu vejo uma coisa: “Isso aqui é uma oportunidade de fazer um trabalho diferente, ajudar alguém”. Eu gosto muito de trabalho de ajudar as pessoas e isso tudo eu aprendi com ele e com a minha mãe também.

P/1 – Você lembra de alguma história que seu pai tenha te contado, da aldeia?

R – Da aldeia, não. Da aldeia falava pouco, ele falava mais que os índios eram muito bravos, porque na região era muito afastado, então eles não tinham muito contato com branco e eles eram muito bravos. A minha mãe fala que às vezes eles iam... porque lá a gente tinha a casa de farinha, bem longe, e fazia farinha e ia deixando lá e às vezes eles vinham de madrugada, pegavam as coisas que tinha: farinha, faca, espingarda, o que eles fossem achando, eles iam levando pro meio do mato. Eles eram bem bravos, mas de meu pai falar a história dele, quase não... acho que não deve ter sido uma experiência boa também, não (risos).

P/1 – E como você descreveria seu pai? O jeito dele, a relação de vocês...

R – Ah, bruto, como todo homem do mato, assim, muito… mas a gente sempre teve certeza que ele sempre amou a gente. Tudo que ele fazia, hoje eu vejo: me obrigava, às vezes, a trabalhar até mais do que eu conseguia, era pra eu entender que eu podia fazer, que eu tinha capacidade. E é isso. Eu agradeço muito, tanto ao meu pai, como a minha mãe, por tudo que eles me ensinaram, por tudo que eles fizeram eu passar, as surras que eu levei. Isso aí tudo acrescentou, pra hoje eu ser a pessoa que eu sou.

P/1 – Ele não demonstrava tanto carinho assim, é isso?

R – Não, não. Geralmente a minha mãe era mais de cuidar, de conversar, de querer que a gente estudasse, minha mãe sempre incentivou muito da gente estudar. E meu pai já foi muito da gente ter que trabalhar: “Não, tem que trabalhar, estudar” – às vezes ele falava – “não dá futuro, tem que trabalhar, trazer renda pra dentro de casa”. E quando ele ia trabalhar, eu ia com ele. Tem uma história muito... que eu nunca esqueço, que ele foi cavar uma fossa, um buraco e era ele cavando e eu com a pá, tirando e eu indo. Chegou uma hora que meu braço já não respondia mais e aí eu: “Pai, meu braço está doendo”. Ele: “Isso é preguiça, continua”. E eu não podia deixar acumular o barro. (risos) Então eu pensava: ou a dor, ou uma surra. (risos) Hoje é engraçado, no momento, assim, era bem difícil, mas também: “Tá bom, vai embora”, eu já ia pra outro lugar, já juntava os colegas, que a gente ia jogar bola e ele: “Não foi trabalhar porque queria jogar bola”. Então, ficava muito assim. Meu pai nunca... uma coisa que depois que eu fui ter entendimento disso, eu percebi o quanto foi importante pra mim, que meu pai nunca me deixou... quando eu morava no Acre, antes da gente mudar pra Rondônia, eu não sabia que eu era deficiente. Eu não tinha esse entendimento de eu ser deficiente. Eu entendia que eu tinha nascido com um braço com problema, mas meu pai: “Ah, não, ele é deficiente, um coitadinho, vou deixá-lo de lado”. Não. Às vezes eu trabalhava até mais do que os outros. (risos) Sempre... e quando a gente mudou pra Rondônia, que eu fui atrás de emprego lá, eles: “Olha, tem uma associação de deficientes que trabalha com pessoas com deficiência”, eu: “Quero emprego”. Aí eles: “Não, mas lá eles têm mais facilidade de arrumar emprego pra pessoa com deficiência”. Eu falei: “Legal”. Aí foi quando eu conheci o esporte, mas lá meu pai nunca: “Você é um coitado, deficiente”. Tanto que a gente nunca foi atrás de aposentadoria, de nada. E depois de grande, eu trabalhando, eu fui ao Centro de Trabalho pegar um documento, a delegada queria me aposentar. Eu falei: “Minha senhora, não tem como, não quero, eu trabalho, tenho renda”. Ela: “Não, mas é seu direito, você tem que aposentar” e findou que ela não me deu o documento. (risos) Essa história é engraçada, depois eu a conto completa.

P/1 – E você conheceu seus avós paternos?

R – Tenho vaga lembrança deles. Muito vaga. Tanto paterno, como materno. Tenho beeeem vagas lembranças. Quando eles morreram, a gente era bem pequeno, não tem muita coisa na memória, pra... tive essa infelicidade, queria ter conhecido, convivido com eles. Geralmente os avós ‘babam’ mais. (risos)

P/1 – Nenhuma história deles, nenhuma lembrança?



R – Não. Deles eu não tenho praticamente lembrança de nada, só do que a minha mãe conta. Minha mãe conta bastante história da parte dos pais dela, mas eu participando, não.
P/1 – E sua mãe, como você a descreveria?

R – Ah, minha mãe é uma guerreira. É uma pessoa iluminada, analfabeta, mas que todos nós… quem não se formou foi porque não quis, mesmo. Mas todos sabem ler, escrever. No mínimo tem a oitava série. E eu… minha mãe sempre me incentivou a estudar. Eu, quando pequeno, não gostava muito. Eu gostava mais de trabalhar, do que de estudar. Eu tinha muito a visão do meu pai: não via muito futuro no estudo. Por não ter serventia pra gente, lá, o estudo. Mas minha mãe sempre incentivou estudar, eu fui, fui, fui e depois tive esse entendimento da importância do estudo e aí foi quando eu resolvi que eu queria terminar o segundo grau, fazer uma faculdade, cheguei a fazer pós-graduação e hoje eu sou um amante de estudo, de livros. Eu não consigo viver se eu não estiver lendo um livro, estudando. Então, minha mãe, uma pessoa que não tinha esse entendimento de nada, mas ela conseguia ver isso e fez a gente entender. Eu lembro muito, quando eu era pequeno, minha mãe colocava a gente pra estudar tabuada e até hoje eu não entendo como ela conseguia, que ela sabia - porque ela não sabia ler - os números e a resposta. Então ela colocava a gente: “Vocês vão estudar vinte minutos”. A gente ficava estudando a tabuada e ela com uma ripinha na mão, que era a palmatória, que chamava. E aí quando terminava, ela pegava a tabuada, fazia as perguntas dos números pra gente, se a gente acertasse, ok; se errasse, levava uma palmada, um ‘bolo’, que falava. E até hoje eu não entendo como ela fazia aquilo pra gente. (risos) Mas ela fazia questão, ela acordava a gente cedo pra estudar. Ela via muito, no estudo, uma forma de mudar de vida. E realmente foi todos nós, a gente vê de onde todos nós, da nossa família, saímos, do seringal, de uma casa bem simples, com bastante dificuldade e hoje boa parte da família está em Rondônia, minha mãe também está em Rondônia, lá ela tem a casa dela, uma casa boa, confortável. Meus irmãos têm, também, a casa deles, os empregos deles e tudo por causa do estudo, de ter feito concurso, alguns fizeram concurso, outros empreenderam em alguma área, mas você vê que tudo que ela fez lá atrás, pra incentivar a gente de estar estudando, de querer aprender, valeu muito, porque hoje são os frutos que a gente colhe. Ela viu que a gente tinha oportunidade de mudar de vida e realmente aconteceu. Eu sinto que minha mãe é uma pessoa que... e até hoje ela está lá, guerreira. Meu pai faleceu, já, mas ela está firme e forte, com a gente, apoiando a gente, até hoje dá conselho, e aí ela está, agora, aprendendo a ler e escrever, com quase oitenta anos ela resolveu que ela queria aprender a ler e escrever e aí ela está aprendendo. E ela já faz uma coisa que eu não faço, que é preencher aqueles livrinhos que tem, de caça-palavras. Ela pega um livrinho daquele ali e termina rapidinho. Ela diz que vê o desenho das palavras. Aqueles outros de responder, que é de pergunta e você vai colocando as letrinhas, ela faz e eu não consigo fazer. (risos) Pra você ver como é o dom da pessoa, né? Mas é isso.

P/1 – E Edson, seus irmãos, você tem doze ou são doze filhos?

R – Não, doze irmãos. (risos) Filhos eu queria ter cinco.

P/1 – Ah, não, digo dos seus pais. São treze filhos no total, ou doze?

R – Doze. Desculpa, tinha entendido errado. São doze.

P/1 – E você gostaria de ter cinco?

R – Cinco. A ideia era essa. Mas os tempos são diferentes, a gestação é diferente. Aí quando teve dois, a gente resolveu parar. Mas é porque meu pai, antes de casar com a minha mãe, teve uma outra esposa e sete filhos com ela e ela faleceu, aí foi quando ele casou com a minha mãe. Aí nós somos em cinco. Então, são sete do primeiro... e a mãe que criou, porque eles eram pequenos, jovens ainda, adolescentes. Quando ele casou com a minha mãe, minha mãe já entrou com a função de criar sete filhos. Ela já entrou, aí criou os sete, com cinco nossos. A gente era oito e ela falou que três - que era muito comum morrer no parto - não sobreviveram, desses oito nossos, mas nós somos em doze, todos ela criou, cuidou iguais, com todo carinho. Então, a fila é bem grande.

P/1 – Você sabe onde eles se conheceram, seus pais?

R – Não sei. (risos) Mas no seringal tudo é pequeno, próximo: as comunidades, as pessoas. Tipo: alguém vai acender uma fogueira, aí vem todo mundo de canoa, fica lá naquele lugar até tarde da noite, depois volta. Ou então: “Vamos fazer farinha”, quando tem uma colheita, aí vai muita gente pra aquele lugar, porque se torna uma festa. Trabalha, faz a colheita, a farinha, o biju, a tapioca, aí todo mundo come ali, confraterniza, um ajuda o outro, então tem muito isso nos ribeirinhos. E é isso que fortalece as comunidades, as pessoas e aí vão criando essa convivência e conhecendo um ao outro. Eu acho que numa dessa situação eles se conheceram e ficaram juntos eternamente.

P/1 – E a relação dos seus irmãos mais velhos com a sua mãe, é ‘de boa’?

R – A mãe fala que tinha os momentos de dificuldade normal, por ser uma pessoa diferente, às vezes o pensamento vinha: “Está tomando lugar”, mas na verdade não era, porque a outra mãe deles tinha falecido, mas a mãe fala que cuidou deles muito bem, eles gostam dela, têm respeito por ela. Quando eles vêm do Acre, que vão lá em Rondônia, vão lá visitar, fazem questão de ir. A gente sempre teve um laço muito junto. Meu pai sempre foi muito unido. Todos os irmão assim. A gente conheceu, frequentava a casa um dos outros, sempre teve muito isso. Hoje eu tenho contatos com sobrinhos meus, do meu pai com a outra esposa e é tio, me chamam de tio, a gente tem um carinho muito grande um pelo outro, uma relação bem legal. Mas eu acho que, no geral, eles têm uma boa relação com ela, sim.

P/1 – Como foi crescer com a casa cheia?

R – Não é fácil. É muita gente, é pouco espaço, quatro, cinco, dois na mesma cama, é bem... uma guerra dentro de casa você tem. O legal é que você aprende a se posicionar, a dividir, a definir o seu espaço. Desde pequeno você sabe: “Opa, eu posso ir um pouquinho. Aquele ali eu já não posso, porque senão ele vai me dar uma surra, aquele lá vai me bater. Não, aquele ali me protege”. Coisa que hoje as crianças já não têm muito. Hoje os pais são muito superprotetores. Antigamente não, no seringal cada um tinha... pra sobreviver, era guerreiro, porque tinha muito, acontecia muito ataque de onça, de animais por perto da casa. Muito comum isso lá, na época. E tudo ficava, a espingarda ficava à vista, faca. Então desde cedo a gente já sabia o que podia e o que não podia, do que podia brincar, do que não podia brincar. Então, é muito... foi um aprendizado, desde pequeno, conviver com muita gente. Tanto que hoje eu não tenho dificuldade, eu convivo com as pessoas, divido espaço, saber o meu lugar, isso naturalmente ficou pra minha vida.

P/1 – Tem alguma história marcante com algum irmão?



R – Eita! Vai acabar a fita da máquina. (risos) A gente era muito ‘arteiro’, então a gente brigava muito e sempre um ficava ensinando o outro. Então quando a gente ‘aprontava’, tinha uns que já apanhavam e já não choravam. Eu, como mais novo, falava: “Você vai apanhar, mas não pode chorar, então você não conta o que aconteceu pra mãe”. Aí a mãe chegava da avó, uma lapada, você já falava tudo e aí apanhava da mãe, sabia que ia apanhar do irmão, mas nossa, a gente, ao mesmo tempo que brigava muito, se defendia muito. A gente cuidava muito um do outro. A gente pescava, caçava. Antigamente era comum: [quando] criança a gente caçava passarinho, fazia os estilingues, juntava dois, três, ia pro meio do mato caçar passarinho. Às vezes a gente tirava o dia inteiro pra fazer as bolotinhas com argila pra poder fazer o que era a munição, no estilingue. Então eram essas coisas assim: bola a gente praticamente todo dia brincava. Tinha que ter um tempinho no final da tarde pra brincar. Às vezes não tinha bola, a bola furava, ou não tinha mesmo, a gente inventava uma bola lá, fazia saco, alguma coisa. Criança se diverte, né?

P/1 – Já tinha quase o time todo completo, então…

R – Tinha bastante. Dava um time de salão tranquilo, com reserva. (risos)

P/1 – Vocês são… a maioria homens, tudo homens?

R – É, a maioria homem. Do casamento com meu pai e minha mãe só tem uma mulher. Você imagina o tanto que ela sofreu! E aí, do outro, são quatro mulheres e três homens. Aí foi mais mulher. Mas, nossa, assim, minha irmã era… até com a gente já protegia, a gente já cuidava. Até hoje a gente tem esse cuidado com ela e ela é muito próxima da minha mãe, então fica que a gente cuida das duas.

P/1 – E Edson, você sabe a história do seu nascimento?

R – A mãe conta bastante coisa relacionada ao meu nascimento. Da parte do parto, da dificuldade, da demora de eu ter nascido, da minha deficiência, ela fala que eu demorei pra sair e aí teve o parto e provavelmente deu essa falta de oxigenação no cérebro, de ficar com a deficiência. E ela conta que meu braço, quando eu nasci, era bem enrolado e, se tocasse, eu chorava. E ela não sabe se, na hora de puxar, quebrou também o braço, não foi só a falta de oxigenação, teve a deficiência de plexo e aí ela fala que meu pai, depois de alguns dias foi numa tribo, com os índios, e aí trouxe um óleo que eles ensinaram pra passar no braço e virar, que o braço ia ficar bom. Mas diz que ele chegou, à noite, com a lamparina, porque lá não tinha energia, no óleo diesel: “Vamos fazer agora” e aí a mãe também não sabe se foi na hora que fez que virou o braço e quebrou. (risos) Falei: “Mas por que o deixou fazer?” “Porque ele foi lá com o índio e os índios falaram que ia ser bom, seu braço ia ficar normal” e aí findou que depois que eu tinha uns dez, doze anos ela me levou em alguns médicos pra ver, operar, e aí os médicos queriam serrar aqui, pra virar. Eu falei: “Não, mãe, deixa assim. Se nasceu assim, deixa, não me atrapalha”. Sempre me acostumei, nunca me impediu de trabalhar, de fazer nada. As dores que eu sempre senti foram suportáveis, nada que me atrapalhasse, aí findou que eu não fui atrás de tratamento.

P/1 – Você que escolheu?

R – Sim, eu que escolhi. Eu falei pra ela. Tanto que na época tinha uns médicos que queriam... Uma vez eu fui numa lanchonete comprar um refrigerante pra minha mãe e tinha dois médicos sentados, bebendo, ortopedistas. Eu lembro muito bem, eu era pequenininho. E aí ele viu e falou: “O que aconteceu?” Aí eu fui e contei pra ele, e ele: “Eu sou médico, trabalho no hospital tal. Se você quiser...”, eu falei: “Não, mas a gente não tem dinheiro pra isso, não”. Ele: “Não, mas eu vou fazer tudo pra você e você não vai precisar pagar nada”. Aí ele anotou o telefone pra minha mãe, depois a gente foi lá, atrás dele, fizeram exames tudinho, aí quando chegou bem na época de fazer, falei: “Deixa assim. Não mexe, não”. Aí a mãe: “Então, se você quer...”.

P/1 – Ela respeitou?



R – Sim. Aí também nunca... mas também ela sempre viu que nunca me atrapalhou. E aí eu, às vezes, usava a deficiência, sem saber. Eu era muito brigão quando eu era criança. Às vezes, alguém chamava, falava algum apelido, se eu não gostava eu já ia lá e já descia porrada. (risos) A hora que eu saí, a diretora vinha da escola: “Por que você brigou?” “Porque ele me chamou de deficiente, tem o braço quebrado, tal”, mas eu sempre convivi bem com a deficiência. Desde pequeno, a mãe sempre fala que eu sempre convivi bem, nunca tive problema.

P/1 – Você nasceu de parto normal?

R – Foi, era de parteira. No meio do nada, era uma tesoura esquentada, água quente do lado. Não tinha, que nem eu falei no início: eram quatro dias dentro de um barco pra chegar na cidade, que era Cruzeiro do Sul e é onde tinha hospital, que tinha parto e não tinha como fazer isso, não. Então lá no meio do mato sempre teve a parteira, que a mulher já tinha colocado em vida uns duzentos, trezentos, todas as crianças do lugar era sempre ela, então a vida dela, ela vivia pra isso, ela era mantida, todo mundo dava um saco de arroz, um saco de feijão, um saco de farinha, porque lugar assim, em comunidade, todo dia nasce uma criança, né? A vida dela era fazer menino sair. Sempre, acontecia muito de às vezes atravessar, ficar ao contrário e tinha muita infelicidade também, mas era o que tinha pra região, não tinha opção.

P/1 – Você é o mais novo, caçula, ou não?

R – Não. Tem um que é mais novo do que eu ainda. Eu tenho 43 e ele tem 37. Ele é cinco anos mais novo que eu.



P/1 – Como era chegar... é que você conheceu, só veio um depois de você?

R – Sim.



P/1 – Como foi essa chegada de um irmão mais novo na família?

R – Sempre foi e sempre será difícil, né? Porque geralmente uma criança quando chega toma o espaço de todas (risos). Quem tem irmão, mais de um filho, sabe: o mais novo chega e às vezes os pais nem fazem isso por amar mais, é porque é mais frágil, tem que ter um carinho diferenciado, um cuidado diferente e aí nós, como os outros irmãos mais velhos: “Poxa, agora é tudo pra ele”. A gente vai brincar, tem que levar, cuidar. É nossa responsabilidade. Se ele cair e se machucar, é a gente que apanha. Então sempre teve isso, mas nada além do normal, de: “Vamos colocá-lo pra se ferrar”. Não. É porque como eram muitas crianças, a gente era em muitos e os pais trabalhavam, meu pai trabalhava muito, a minha mãe trabalhava muito, imagina lavar roupa de quatorze pessoas na mão, na beira do rio! Aí tem que estender, limpar a casa, terminar de fazer o café, o que tinha pra comer do café, já tinha que se organizar e fazer alguma coisa pra comer no almoço. Quando terminava, pega aquele monte de prato, de panela, e põe na cabeça e vai lá na beira do rio, lava tudo, traz. Só a caminhada já... então não tinha tempo pra cuidar e aí era assim, a gente que cuidava um do outro. Sempre foi assim: mais velho cuidando do mais novo, mas acontecia muito, por isso que aconteceram muitos acidentes. Era bem... não é muito diferente de uma criação de... esses dias eu estava assistindo um documentário de leão. É muito parecido: o pai trabalha, cuida e a mãe é responsável por prover o alimento e os filhos ficam ali, bem vulneráveis, até eles atingirem a idade de deixar de ser vulneráveis, é mais ou menos assim a gente que morava em comunidade, a gente era muito vulnerável. Então era bem...

P/1 – Queria só saber se você se lembra de alguma história na comunidade, assim, pequeno. Ou que aconteceu alguma coisa com vocês ou com a vizinhança. Não sei. Uma história de infância.

R – Como eu estava te falando, quando, à noite, meu pai contava, ficava nossa diversão ele contar uma história pra gente, que a gente sentava e aí meu pai ia contar as histórias, minha mãe também. Hoje, às vezes, eu sento com ela e ela começa a contar as histórias, começa a trazer lembranças. Estava falando da época que dava enchente, que a nossa casa era feita em cima de palafitas. Só que, dependendo da enchente que vinha, entrava água na casa e não podia abandonar a casa, porque as pessoas vinham e levavam o que tinha e também não dava pra ficar todo mundo na casa, então ia a maioria pra casa de farinha, que era geralmente num lugar muito alto, que a água não chegava, só que a casa de farinha é aberta e aí ficava... a gente dormia só na rede, então carapanã a noite inteira, fazia festa, era aberta, estava propícia a qualquer animal chegar e atacar e aí ficava um ou dois na casa, sempre revezava, toda noite ficava um ou dois. E era mais ou menos isso, isso era muito comum as famílias fazerem, por mais que fizessem as casas altas, mas dependendo da enchente que vinha, tinha enchente que ultrapassava muito e a gente falava: “A enchente, a última que veio é a mais alta”, daí fazia a casa daquela altura. Aí, às vezes demorava cinco, seis anos, tinha uma enchente mais alta ainda. Então, era muito nesse sentido, assim. Tanto que a casa de farinha, quando as pessoas, as famílias iam fazer, já era grande nesse sentido, pra quando… se alagar e a gente precisar, a gente vem morar na casa de farinha. (risos) E passava índio. A gente via que a casa de farinha era - a gente chama de carreador, na beira do mato. A gente via que era o carreador de passagem dos índios, de caça. Então, às vezes, a gente estava de madrugada, dormindo, a gente começava a ouvir aqueles barulhos de pisada, aí ficava todo mundo quietinho. Só que não vê, porque na floresta, dez metros, vinte metros você não consegue mais ver nada, porque é muito escuro e a gente só ouvia aqueles passos, sabia que eram os índios. Eles passavam, iam embora, se não mexesse com eles, eles não mexiam com ninguém, eles já tinham mais ou menos essa noção, que essa época que o rio enchia, todo mundo saía, ia pras casas de farinha e tal. Tanto que essa época eles não mexiam nas casas de farinha, porque sabiam que sempre tinha gente. (risos) Mas é mais ou menos assim as histórias. De caça meu pai contava muita história de sair pra caçar, se deparar com onça, aí ter que ficar trepado a noite inteira, porque não sabia onde estava a onça. Aí é mais ou menos essas coisas assim.

P/1 – Já aconteceu com você?

R – Não, comigo não. (risos) Ainda bem que não, porque eu acho que eu ia aprender a correr, naquele tempo. (risos) Ia ser mais rápido do que a onça.

P/1 – E dava medo? Vocês tinham medo?

R – A gente sempre foi treinado pra ter medo de tudo: de água, porque tinha muito jacaré, então a gente tomava banho na beira do rio, mas era com medo o tempo todo. Então, sempre assim: um cuidava do outro, a gente via, a água mexia, a gente saía, mas tinha muita cobra, muita sucuri e a gente sempre ficava muito atento. Era normal a gente ter medo, assim, de tudo. Então, vamos no rio buscar água, nunca ia só, ia sempre com outro. Vai em tal lugar pegar uma macaxeira pra cozinhar, sempre ia em dois. Porque floresta, imagina isso há quarenta anos, era muito preservada. Então, uma região… e a nossa região lá era mais preservada ainda, por ser afastada. Isso fazia com que tivesse muitos animais, tanto de caça, que era o nosso consumo, que a gente vivia da caça e da pesca, porque quando é um consumo pro dia a dia, não acaba, né? A gente viveu isso a vida inteira e não acaba. E tinha também os animais predadores, que viviam na região e se alimentavam dessas caças. Então a gente era muito treinado pra ter medo. (risos)

P/1 – Mas esse medo não podia paralisar, né?

R – Não. A gente respeitava a natureza, sabia dos limites da natureza, em que árvore a gente podia subir, que tipo de animais eram perigosos pra saúde, que tipo de plantas. A gente sempre soube, desde pequeno, de plantas: essa aqui pode fazer um chá pra curar tal coisa; esse aqui tem veneno. Então, era o medo no sentido de aprender, ensinar, fazer com que a gente sobrevivesse em quaisquer situações. Era mais ou menos isso.




P/1 – Qual atividade você gostava mais de participar, nessa época? Você falou fogueira, farinha, biju. Não sei. Qual atividade era mais especial, pra você?

R – Eu sempre gostei mais da que tinha comida, né? (risos) Então, o fazer a farinha é um processo bem sofrido, é muito difícil. Então tem um desgaste físico muito grande: descascar a macaxeira, arrancar a maniba da terra requer muita força. Carregar, lavar, jogar na água, tirar da água, fazer a farinha, você fica muito tempo ali na beira do fogo, só que no final você faz os bijus bem grandões, na beira da torradeira e aquilo ali você vai comendo com café. Eu gostava também de pescar, porque pescava, comia o peixe. Eu gostava de cuidar das galinhas com a mãe, porque era tipo: se a gente cuidava das galinhas, tinha ovo; se tinha ovo, tinha café da manhã. A gente comia muito ovo com farinha. Sempre amei comer ovo com farinha. Até hoje eu amo, desde pequeninho. Então eu gostava muito, com a minha mãe, ajudá-la a cuidar das galinhas pra poder ter… e eu gostava mais dessas coisas assim. (risos) Só que às vezes a gente não escolhia, tinha que ajudar em tudo, a girar uma borracha e ir jogando leite para a borracha ir coalhando, pra fazer a peça. Tinha hora que não tinha como escolher, não.

P/1 – Vocês se revezavam?

R – Às vezes, sim. Às vezes quem estava lá começava o serviço e terminava. Não tinha muito: “Eu vou ficar um pouquinho, depois tu vem”, porque dá muita briga nessa troca: “Já deu meu tempo, agora é sua vez”. Então meu pai, você começou a fazer o serviço com ele, tinha que terminar. Ele era muito assim, já, porque acho que ele entendia assim: na hora de revezar ia começar a dar briga e ele era muito impaciente, aí já estressava, acho que dava que apanhava, então ele já pegava, levava um e trabalhava o tempo todo com ele e no outro dia levava outro, aquele lá já fazia outra coisa. Então ele levava dois, três, todo mundo já trabalhava, ia fazer as coisas. Era bem assim.

P/1 – E sua família tinha o hábito de comemorar em festa?

R – Não. Pra você ter ideia, (risos) quando a gente mora… a vida inteira que a gente morou no seringal, não lembro de nunca ter comemorado aniversário, essas coisas. Tinha as datas religiosas, comemorativas que as pessoas levam muito a sério, as pessoas mais antigas. E aí eles preservavam muito essa data. Tipo a Semana Santa, eu lembro muito bem que, na época das festas da Semana Santa, os dias lá, a gente comia muito mingau de milho, a gente chama lá de mugunzá, não sei como é que se chama aqui, se é canjica, alguma coisa, mas a gente chamava de mugunzá e a gente comia muito isso, que é muito gostoso, e peixe. Não podia comer carne na semana. A gente comia muito peixe. E a gente ficava desejando acabar pra comer carne. Mas essas festas, assim. Agora, outras festas de aniversário, essas coisas assim, a gente não tinha tempo, a gente vivia cansado. Então trabalhava praticamente todo dia. Não tinha muito tempo pra fazer e também não tinha dinheiro, recursos, não tinha muita... depois que a gente mudou pra Rondônia, que aí a gente começou a trabalhar, cada um trabalhando, arrumou emprego pra todo mundo, aí a gente começou a reunir mais a família, a comemorar aniversário. Às vezes reunia todo mundo no domingo, fazia ‘aquele almoço’ no domingo, mas enquanto lá não tinha muito, não tenho muita lembrança de ter essa coisas, não.

P/1 – Você lembra do seu primeiro aniversário comemorado?

R – Nossa! Essa foi difícil, hein! Eu acho que eu já deveria ter uns 21 anos, que eu lembro que eu trabalhava e aí o pessoal do trabalho se reunia pra gente fazer uma festinha de aniversário. Acho que vinte ou 21 anos, mais ou menos.

P/1 – Como foi que você...
R – Então, é estranho, porque é uma coisa que a gente nunca... tanto que a gente nunca lembra muito da data de aniversário um do outro. Minha mãe está com oitenta e poucos anos, dia 29 agora foi o aniversário dela e um dos meus irmãos não lembrava. (risos) E aí a minha irmã: “Poxa, seu desnaturado”. Ele falou: “Nunca lembrei”. A gente não sabia. Quando eu casei minha esposa falava, até hoje ela fala: “Nossa, vocês são muito estranhos! Vocês não sabem a data de nascimento um do outro, de aniversário”. A gente nunca se apegou nisso, porque tinha muita gente que cria essa importância de comemorar, é uma forma de manifestar o carinho, o respeito e tudo, e a gente não sabia o que era isso, praticamente. Então não tinha isso, porque antes, também, as coisas não chegavam. A gente ficava um mês sem ver pessoas. A gente não tinha muito contato com pessoas, então não tinha troca de experiência. Hoje em dia tudo é fácil. Pelo mínimo que uma comunidade seja afastada, mas é capaz dela ter, talvez, um grilhão de bateria, ou rádio, ou alguém na comunidade tem uma televisão. Naquele tempo não tinha, não existia nem um motor gerador, praticamente. Era bem natural, mesmo. E aí a gente tinha que aprender a transformar tudo ali, de forma que não estragasse, e a natureza ensinava muito isso. Então, quando foi a primeira que eu tive aniversário eu lembro, foi legal, mas ao mesmo tempo estranho, por não ter tido muito isso a vida inteira. Tanto que até hoje eu não comemoro muito. A minha esposa e os meus filhos: “Vamos comemorar”. Tudo bem comemorar, a gente sai, vai pra algum lugar comer, mas festa, festa, festa não tem hábito, não. Minha mãe também, comprou um bolinho, cantou parabéns pra ela: “Vamos fazer festa?!” “Não”. (risos) É o jeito que a gente foi criado.

P/1 – Como era sua casa, Edson?

R – Qual?

P/1 – Lá da infância.
R – Uma casa simples, de madeira, tudo de tábua, o assoalho. Sempre tinha aquelas frestazinhas, então caía alguma coisa, já caía lá embaixo, dependendo do tamanho da coisa que fosse. Coberto de palha. E bem simples mesmo, tinha as divisórias de quartos, salas, que uma parte dormia nos quartos e a outra parte dormia nas salas, eram redes, dormia muito em rede. Tanto que é um hábito que eu tenho até hoje, eu amo dormir em rede. Deito em rede, eu me enrolo nela e ela vira uma cama pra mim. Mas é o hábito, desde pequeno. E os colchões nossos a gente tinha o saco, como usa aqui, pra colocar o colchão dentro, só que o nosso lá a gente colocava capim. Pegava o capim, batia, secava, batia o capim e enchia. Aquilo ali era o colchão. Então quando era pequeno, se mijasse, de manhã tinha que tirar e colocar pra secar. Imagina o peso daquilo ali! Tinha que contar com alguém que quisesse ajudar, senão tinha que levar sozinho. Aí o travesseiro era assim também. E a casa era cheia de armador de rede, porque ocupa menos espaço e cabia todo mundo e às vezes vinha meus tios de outras comunidades e aí ficavam lá em casa e aí já vinha, já trazia, a gente chamava de moroca, com a rede, já armava a rede, já vinha com a rede e a corda, já sabia. Meu pai tinha nas paredes um monte de gancho, tipo feito um S, que aí chegava: “Vou dormir aqui”, só pendurava lá, armava a rede, pronto. Era assim. E aí tinha mesa de madeira, fogão a lenha, porque não existia gás, era tudo na lenha, então pra fazer o café tinha que acordar mais cedo, a gente comia muito o cuscuz, que lá plantava o milho, a mãe pegava, cozinhava, colocava, ralava na mão, a gente que fazia os ralozinhos, a mãe ralava na mão e aí colocava na tampa da panela e fazia no vapor. Eu lembro quando a gente chegou em Rondônia, que a gente encontrou cuscuzeira, eu falei: “Pra que serve isso aqui?” O pessoal: “Pra fazer cuscuz” “Ué, mas não é na panela que faz?” “Não. Você joga aqui dentro, põe água embaixo”. Falei: “Olha!” Muita diferença. A gente descobriu muitas coisas assim que ficaram na memória, nesse sentido.

P/1 – E me conta uma coisa: no parto da sua mãe, quando você nasceu, contaram pra ela que você teve falta de oxigenação no cérebro? Como foi isso?

R – Na verdade, eu vim descobrir essa parte da falta de oxigenação depois de grande, que eu fiz alguns exames e aí constatou que a minha deficiência foi por falta de oxigenação. A mãe fala que eu demorei pra nascer, mas essa parte da falta de oxigenação foi através de exames depois, que identificou que deu esse pico de falta de oxigenação, que aí eu tenho uma deficiência do lado direito.

P/1 – Você já era grande?

R – Quando eu descobri? Sim, que eu fui fazer exames, que aí fiz o exame da cabeça, eletro e fiz eletro do corpo inteiro. Foi quando eu descobri realmente o que tinha acontecido.

P/1 – Queria saber quando você mudou pra Rondônia, sua família toda.

R – Em 1995. Eu nasci em 1979, eu tinha dezesseis anos. A gente saiu do seringal e foi pra Cruzeiro do Sul, que é a capital... não, é uma cidade maiorzinha do Acre, que era mais próxima do seringal. E aí a gente mudou pra lá, ficamos lá um tempo, aí depois foi quando a gente veio, mas lá nessa cidade, em Cruzeiro do Sul, a gente já chegou, a gente conheceu tudo, tinha casa com energia elétrica, geladeira, água encanada, fogão a gás e a lenha. A gente descobriu o que era maçã. (risos) Mas era muito caro, não dava pra comer, não. Imagina, em 1995, uma maçã custava tipo um real. Um real, em 1995, valia quanto? Era uma fortuna. Então a gente teve um pouco de aprendizado lá, nessa cidade, e quando a gente veio pra Rondônia, aí nossa, pra nós era cidade grande, tipo São Paulo. Tinha ônibus, tinha tudo e aí nós chegamos lá e em pouco tempo a gente já arrumou emprego, uma semana, duas. Tinha uns primos nossos que moravam lá, os filhos do meu tio, que é irmão do meu pai, foram pra Rondônia há muito tempo e ‘fizeram a vida’, tinham comércio, loja, um monte de coisa e quando a gente chegou lá, já deu emprego pra todo mundo e aí a gente falou: “Agora a gente vai ficar rico, porque está todo mundo empregado, recebendo salário” e aí foi tudo diferente, a gente foi vendo, começou a ver as coisas: televisão colorida, nossa, tudo era descoberta pra nós, as coisas que a gente via.

P/1 – Então, com dezesseis vocês foram pra Cruzeiro do Sul...

R – Não, com dezesseis a gente já foi pra Rondônia. A gente foi pra Cruzeiro do Sul, eu devia ter acho que uns, sei lá, onze, dez anos. Mais ou menos é isso aí.

P/1 – E qual foi a descoberta mais curiosa, pra você? A grande novidade.

R – Em qual?

P/1 – Em Cruzeiro do Sul.

R – Foi ver frango congelado. (risos) Acho que foi uma das coisas que eu vi, não tinha acesso a isso. Maçã, igual eu falei. E peixe vender no mercado, tipo vender fruta. Cara, quem vai comprar? Porque o rio está aí, ó. O rio passava perto da cidade, então a gente falava: “E quem vai comprar?” E aí a gente foi vendo que tinha que comprar, porque as pessoas (risos) não pescavam, porque trabalhavam, mas foi mais ou menos essas coisas simples, que pra muitos é natural. Eu falo muito pros meus filhos que as coisas que eles já tiveram acesso até hoje, na vida deles, de conhecer, eu fui ver com... eu fui tomar Coca-Cola eu tinha dezoito anos. A primeira vez que eu coloquei Coca-Cola na minha boca. Um gosto horrível! (risos) Mas depois eu gostei, né? Depois que eu fui entendendo que era gostoso. Mas a gente não tinha acesso às coisas, assim. Então é um lado gostoso de você ver uma coisa pela primeira vez e provar. Os meus meninos já comeram de tudo e a gente… eu falo: “Olha, com vinte anos eu não tinha comido as coisas que vocês já comeram”. Pizza, nossa! Nem lembro quando foi a primeira vez que eu fui saber o que era uma pizza. Acho que eu devia ter uns vinte, 22 anos.

P/1 – Vocês se adaptaram rápido a essas novidades todas?





R – Não. Eu lembro que quando... Cruzeiro do Sul ainda era próximo da nossa realidade de sítio, essas coisas. A gente, no nosso quintal da nossa casa onde a gente morava era muito grande, então a mãe criava galinha, eu criava jabuti. Meu tio vinha do seringal e trazia o jabuti pequeno e eu criava (risos) pra quando crescer a gente comer. Coisa antiga, né? Porque era uma cultura lá da região. Tinha muito essas coisas, em fartura. E o meu tio vinha e trazia cacho de banana e a gente pendurava na casa, assim, no meio da cozinha, que no seringal a gente fazia isso: tirava um cacho de banana e pendurava no meio da casa, todo mundo que passava ia lá, metia a mão. Não tinha negócio de cortar e deixar as palmas de banana no lugar, era tudo pendurado. E a gente meio que fazia isso na nossa casa, lá. Por hábito. Dormia em rede. Tinha as camas, mas a gente dormia tudo em rede. Então a gente ainda tinha essa coisa. Quando nós mudamos pra Rondônia eu fiquei por vários anos falando pros meus pais: “Na hora que eu tiver condições, eu vou embora”. Eu não pensava, eu queria voltar pra onde a gente estava, porque eu tinha deixado meus colegas pra trás, as pessoas que eu tinha criado vínculo e eu sempre falava: “Eu quero voltar. Não, não dá pra viver aqui. Aqui a cidade é muito complicada, grande”. Tudo era longe, não dava pra fazer as coisas andando. Ou tinha que ir de bicicleta, ou ônibus. E aí eu sempre falei, sempre tive... hoje não mais, mas já tive muita vontade de voltar.







P/1 – Quais foram os maiores desafios, pra você, da cidade grande?

R – O maior desafio foi me adaptar com as pessoas, porque a gente veio de um lugar onde, na linguagem popular, não tinha papel pra assinar documento, contrato, nem nada. Então a palavra de uma pessoa, se eu desse a minha palavra em alguma coisa, ela tinha que ter valor. E quando a gente foi pra cidade, a gente falava as coisas, as pessoas... a gente começou a ter dificuldade, nesse sentido. Eu fui enganado muito, já, até hoje, nesse sentido, porque sempre… uma pessoa falar pra mim tal coisa, eu acredito. Uma das coisas que até hoje eu ainda não aprendi. Tanto que eu uso muito minha esposa nisso. Quando alguém: “Faz um favor, um negócio comigo, faz isso” “Cara, vê lá com a minha esposa”. Porque eu, pra mim, ensino muito pros meus filhos: “Se você der a palavra numa coisa, não precisa assinar um documento” e todo mundo fala: “Você está errado, tem que assinar, tem que ter um documento”. E é uma das coisas, eu acho que foi a coisa que eu mais tive dificuldade. Muita, mesmo. E que tenho até hoje. (risos) Tanto que eu falei pra você esses dias que a gente estava combinando e as vezes que eu não podia. Nossa, pra mim, se eu der a palavra numa coisa, eu tenho que cumprir.

P/1 – Seus irmãos também, a família toda?

R – Eu acho que sim. Pra alguns dos meus irmãos, eles gostaram mais, porque tiveram mais oportunidade de emprego e gostavam de sair mais, fazer mais amizades. Então tiveram alguns que: “Não volto de jeito nenhum pra aquele lugar, porque a gente sofreu o que sofreu lá e agora a gente tem tudo aqui, eu não quero aquela vida mais”. O meu pai não conseguiu. Meu pai voltou. Ele chegou em determinado momento da vida que ele falou: “Se vocês quiserem ficar, vocês ficam aqui cuidando da mãe de vocês e eu vou voltar pra lá pra cuidar dos outros filhos que ficaram lá”. Aí conversou com a minha mãe, ela falou: “Olha, aquela vida de sofrimento lá não volto mais, não”. Aí ele falou: “Então você fica aí”. Eles não se separaram, mas se afastaram. (risos) Mas aí ele foi e não ficou muito tempo, porque ele chegou a falecer. Faleceu lá. Mas quando ele saiu de Rondônia pra ir pra lá, ele foi com o intuito de fazer - ele já tinha quase oitenta anos – a casa da minha irmã, lá. Que ele queria construir a casa dela, não queria que ninguém construísse e foi pra lá com essa história de fazer a casa, aí findou que depois não quis mais voltar, mas eu o entendo, da dificuldade de se adaptar no lugar, pessoas analfabetas pegarem ônibus. A gente tentava, que a gente trabalhava, eu o dia inteiro e estudava à noite, que eu queria continuar estudando. E eu saía cedo de casa e chegava muito tarde, então às vezes não conseguia sair com eles, pra eles pegarem um ônibus, aí eles ficavam dependendo dos meus primos, ou então de alguém pra fazer isso, eu acho que isso foi uma das coisas que meu pai... fez com que ele não se adaptasse de jeito nenhum. Minha mãe, falar pra ela voltar, ela não quer de jeito nenhum. “Vou sofrer? Quero nada”. Ela fala: “Não, aquela vida de sofrimento não quero mais pra mim, não”. (risos) Mas é isso.

P/1 – Você consegue dizer o maior aprendizado do seringal pra você? O maior ensinamento desse momento, desse tempo vivendo lá.

R – Pra mim, o maior aprendizado que eu tenho é que nada é impossível, se a gente quiser uma coisa e tiver vontade de fazer, porque eu tenho muito exemplo do meu pai. Imagina uma pessoa com quatorze anos, com uma espingarda e ser dono de uma estrada de seringa. Ali, não em palavras, mas com atitudes, comportamento, mostrava que basta a gente querer. Acho que essa foi uma das coisas que me fez chegar onde eu cheguei no esporte, porque em diversos momentos muitas pessoas falaram: “Larga disso, isso não dá futuro”. Eu nunca tive que provar nada pra ninguém, mas sempre tive que provar pra mim e eu sempre acreditei que só depende de mim, não das outras pessoas, e consegui alcançar tudo que eu sonhei, que eu queria. Então acho que o aprendizado maior é esse.

P/1 – Tem alguma saudade de lá?

R – Não. (risos) Eu até tentei, quando a gente morava em Rondônia, trazer o seringal. Eu comprei e comecei a comprar terra e ir pra terra trabalhar igual eu trabalhava lá. Mas aí eu peguei sete malárias e desisti. (risos)

P/1 – Você estava contando que você tentou levar o seringal pra Rondônia.

R – Pois é. Eu comprei umas terras em Rondônia, trabalhando, aí fui juntando um dinheirinho e aí deu vontade de comprar umas terras pra começar a mexer com produção, com as coisas que eu fazia lá, que eu via fazer lá. E aí eu já comecei comprando as terras num lugar bem difícil, tinha que atravessar um rio bem difícil, uma cachoeira e era uma área bem deserta mesmo. Só que não deu muito certo, porque toda vez que eu ia, eu ia todo final de semana pra lá, trabalhar, e eu fazia questão de trabalhar, então eu roçava à foice, levava os trabalhadores pra trabalhar também, a gente fazia comida na lenha, pescava o peixe, que era um rio, tirava o peixe e já cozinhava, então era tudo bem rústico, mas era gostoso, a gente ia geralmente no final de semana, no sábado e voltava no domingo e lá tinha lugar pra dormir, perto. Só que eu peguei muita malária lá, eu cheguei a pegar sete malárias e aí eu falei: “Não, esse negócio não vai dar muito certo, não”. (risos) Aí depois construíram umas usinas bem na região onde eu tinha as terras e aí precisaram usar pra fazer área de reserva, aí eu tive que me desfazer das terras, aí ficaram de lembrança só as malárias, que eu tive, por muito tempo, tratar meu fígado pra poder voltar ao normal, mas a experiência lá de trás ajudou muito, porque lá a gente tratava muito com ervas, folhas e eu praticamente não tomei remédio de farmácia pro fígado, tratei com essas ervas e até hoje, por a gente ser atleta, tem que fazer exame todo ano e meu fígado perfeitinho. (risos) É isso.

P/1 – Edson, que lembranças você tem da escola?

R – De muita briga, viu? Eu era muito danado quando eu estudava. Porque desde pequeno eu nunca tive a escola, por mais que minha mãe tentasse me passar que a escola era um lugar bom, era onde ia transformar minha vida, eu lembro muito que eu ia pra escola pra comer. Por a gente não ter comida suficiente em casa, então eu ia pra escola pra ter o lanche; quando tinha almoço, ter aquele almoço; então, se desse comida e pudesse repetir, eu ia repetir, porque eu sabia que era aquela comida que tinha, mas eu não encarava a escola como uma coisa importante pra vida. Demorei muito pra isso. Então a lembrança que eu tenho, nossa, minha mãe era direto chamada na escola. Na época que eu estudava ainda tinham as palmadas lá na nossa região, então eu tomava bastante. (risos) Ficava de joelho no milho. Eram essas coisas assim, mas eu brincava muito. A gente tinha muito espaço no pátio da escola, então a gente brincava muito de pega-pega, de bandeirinha. Não tinha bola, não tinha muita condição de ter bola, então essas outras brincadeiras que ‘rolavam’. A gente subia muito em árvores, caía, se machucava. Aproveitei bastante assim na época de escola. Algumas coisas que eu não me alegro tanto, mas que infelizmente a gente não pode voltar no tempo, mas que ficaram de aprendizado. Mas eu tenho muitas lembranças boas nesse sentido, que eu brinquei bastante, comia bastante. Alegria é quando eu sabia… porque às vezes a escola também não tinha comida, faltava na escola, aí eu nem queria ir, (risos) mas quando eu sabia que tinha, eu não faltava nem um dia.



P/1 – Isso foi onde?

R – Isso era lá em Cruzeiro do Sul.

P/1 – Teve algum professor ou professora marcante pra você?

R – Tinha. Um professor. Na verdade, tinha o diretor de uma escola que eu estudava que ficava na porta olhando pra ver se a gente chegava com a roupa limpinha. E a gente era obrigado a usar camisa social branca e calça social escura, sapato preto e tinha que chegar limpinho lá. E a gente já saía de casa brincando, pra ir pra escola, então chegava na escola já suado e eu andava tipo meia hora pra chegar na escola, então não tinha como chegar e aí sempre eu levava puxão de orelha, que se tivesse sujo, aí (risos) tinha puxão de orelha e eu lembro muito bem dele por causa da roupa da escola, chegava lá, já sabia que ele ia… mas nunca quis o mal dele, fazia parte, todo mundo, mas lembrança de professores não. Eu tenho de Rondônia, já, quando eu já tinha dezesseis, dezessete anos, mas antes não tem muito não.

P/1 – E colegas?

R – Tinha bastante. Se tem uma coisa que eu sempre fiz, foi amizade. Eu acho que foi uma das coisas que eu mais senti quando saí do Acre, foram as amizades que eu tinha. Tinha colegas lá que eu tinha como irmão. Eu vivia na casa deles, eles viviam na minha casa. Isso depois que a gente mudou pra Cruzeiro do Sul, que eu tenho mais lembranças de amizade. Tanto que quando a gente mudou pra Rondônia, ainda fiquei por muito tempo em contato com alguns e aí depois fui perdendo, fui perdendo, fui perdendo e hoje praticamente não tenho mais contato com eles, mas sempre tive grandes amigos lá.

P/1 – Alguma história marcante dessa época da escola?

R – Nossa, sim. Eu sempre fui bom de fazer pipa, que a gente chamava de papagaio lá e eu sempre fui bom de empinar e ‘cortar’ os outros, que eu fazia… Imagina uma pessoa com doze anos, eu pegava o vidro, pilava, o que eu fazia? Eu tinha um casco daqueles motores de geladeira, com ferro, aí eu jogava um vidro dentro e colocava um pano, pra não... (risos) não sei como eu conseguia pensar aquilo com doze anos. Aí eu ficava pilando aquilo ali, eu fazia o vidro, misturava com cola e passava na linha, eu ganhava muito, eu ‘cortava’ muito dos colegas, das outras pessoas, e eu me destacava muito nesse sentido. E tinha um rapazinho que os pais dele eram muito ricos, ele morava numa casa bonitona, então ele tinha muito dinheiro, linha nova, sempre papagaio novo, a pipa nova, tinha tudo. Se a gente fosse jogar bola, ele tinha a bola nova. E aí ele começou a se aproximar de mim, a gente foi fazendo amizade, eu fui ensinando as coisas pra ele e eu lembro que um dia eu tinha ido estudar e quando eu cheguei da escola, ele: “Vamos lá pra casa, eu comprei linha, papel, a tala, tudo, pra fazer”. Eu falei: “Vamos”. Aí eu fui lá ensiná-lo. Cheguei lá, a gente fazendo lá, a mãe dele: “Para pra vocês lancharem”. Aí tinha leite em pó, chocolate, pão, queijo. Nossa! Eu falei: “Cara, que esse cara é rico”. (risos) Coisas que a gente não tinha o costume de ver. Aí ele foi me ensinar a fazer chocolate. São coisas, lembranças da época da escola, nesse sentido, dessas amizades, assim. Acho que é bem legal. Fazia tempo que eu não lembrava disso. (risos)

P/1 – Você trabalhava com pipa? Chegou a trabalhar com pipa?

R – Cheguei. Eu montei um comércio pra mim, de tanto que me destaquei, na frente da minha casa. Então era ruim, porque eu não tinha mais tempo de brincar, eu quase não brincava, mas em compensação eu ganhava bastante dinheiro e eu pegava parte desse dinheiro e dava pra minha mãe, pra ajudar a comprar as coisas da casa e eu vendia muito, muito, muito mesmo. Tinha dia que eu não dava conta, porque começou a vir gente de outros bairros, porque as que eu fazia eram bem-feitas e eu já fazia em cima de rabiola, já no ponto, com tudo certinho, só a pessoa amarrar na linha e subir. Eu já deixava tudo prontinho e aí eu comecei a me destacar, de vender. Então, eu fiquei... até quando a gente saiu de Cruzeiro do Sul, saiu do Acre, pra vir pra Rondônia, até o último momento, vendendo isso. Eu comecei a juntar dinheiro pra comprar, que eu sempre sonhei em ter uma bicicleta e aí eu fui numa bicicletaria, arrumei um quadro velho, comprei tinta, pintei o quadro, aí fui numa bicicletaria, o cara me deu roda, uma roda velha, aí eu fui catando peças de lixo e montei uma bicicleta pra mim (risos). O que não dava pra montar, eu comprava, com o dinheiro que eu ganhava das pipas. Eu tive a minha bicicleta, que eu montei, mesmo. Eu pintei. Toda enferrujada, mas o freio era sandália Havaiana (risos). Mas eu tinha uma bicicleta e parte do dinheiro da pipa eu fazia isso: eu dava pra minha mãe pra ajudar nas compras, nas coisas de casa; eu comprava roupa pra mim. Isso com treze anos, eu mesmo já comprava minha roupa, separava um dinheirinho pra eu sair no final de semana, pra ir pra praça, comer um X Salada. Era isso, a gente já ‘se virava’ desde pequeno.

P/1 – Qual você considera que foi o seu primeiro trabalho?

R – Eu trabalhei muito de tudo: quebrando tijolo pra fazer aterro; trabalhei muito limpando quintal pras pessoas, capinava o quintal, varria; tive esse trabalho das pipas e quando a gente foi pra Rondônia eu acho que meu primeiro trabalho mesmo, de eu ficar muito tempo, foi lavando carro. Como eu queria continuar estudando, eu lavava carro e estudava. Aí depois eu arrumei outro emprego, que aí eu fiquei trabalhando durante o dia e estudando à noite. Mas o meu primeiro foi de lavador de carro. Fiquei acho que uns dois, três anos.

P/1 – Com dezesseis?



R – É, mais ou menos dezesseis anos. E aí eu trabalhava e gostava. Tanto que até hoje eu ainda prefiro assim, eu e meus filhos lavarmos o carro, do que os vizinhos lavadores. Aí eu lavo com eles, dou cinco reais, dez reais pra eles, pra eles se animarem de trabalhar de alguma coisa. Independente do que seja, se estiver ganhando dinheiro honesto, não importa, o trabalho vale. Mas acho que foi que trabalhei mesmo, o primeiro foi de lavador de carros.



P/1 – Pensando no Cruzeiro do Sul, esse tempo que você morou lá, o que foi mais marcante pra você?

R – Nossa! Eu acho que as amizades foi o que marcou mais. De todos, porque a gente morou uma época num bairro e depois a gente foi pro outro, os dois lugares, as amizades das pessoas. Tem um colega nosso lá, da época, que era cadeirante, só que ele não tinha cadeira, então ele andava ‘no braço’ mesmo, se arrastando no braço e pra mim, naquele tempo, na mesma idade dele, era normal, eu não o via como ‘coitado do deficiente’. Não. Tudo que ele fazia era bem-feito, então a gente queria estar perto dele, então marcou muito. Pra minha família inteira. Minha mãe tem um carinho, até hoje, muito grande por ele e acho que as amizades foram o que marcou mais aquela época lá.

P/1 – E como foi a mudança pra Rondônia?







R – Nossa, foi ruim. Foi bem difícil, foi bem complicado a gente ter que se adaptar a uma vida nova, praticamente, de tudo. Nunca é fácil uma mudança, né? E da forma que a gente veio, de onde a gente morava, vir pra uma cidade que a gente veio, Porto Velho, que é a capital de Rondônia, tem uma estrutura de cidade grande, então muito fluxo de carro, ônibus, moto, tudo é comprado, então a gente penou muito. Tudo, se a gente quisesse comer uma banana, tinha que ir no mercado comprar. Se quisesse comer farinha, tinha que ir no mercado comprar. Se quisesse comer peixe, tinha que ir no mercado comprar. Então, foi bem difícil. Acho que eu demorei uns dois a três anos pra me adaptar e dizer assim: “Eu não quero mais voltar pra lá”. Mais ou menos isso.



P/1 – Que lembranças você tem da escola?

R – Em Porto Velho?



P/1 – Hum-hum.

R – Da escola eu tenho bastante lembranças boas, porque eu cheguei num lugar onde eu não conhecia ninguém e quando eu cheguei lá eu já fui tentar conseguir uma vaga pra eu começar a estudar e aí, ‘de cara’, eu tive que passar dois dias e duas noites numa fila pra conseguir uma vaga, (risos) pra eu entrar na escola, porque não tinha vaga em lugar nenhum, só tinha uma escola que abria essas vagas e aí disseram: “Geralmente vai abrir depois de amanhã, mas já está cheio. O pessoal chega aqui...”, eu falei: “Então tá, eu vou ficar aqui desde agora” e aí fiquei dois dias.

P/1 – Sozinho?



R – Sim, mas aí outras pessoas viram que eu estava lá e começaram a chegar depois, no outro dia, mas no primeiro dia eu fiquei sozinho. E aí eu usava o banheiro da escola e às vezes comia alguma coisa lá por perto. Aí, depois, no último dia já começou a chegar mais gente e aí, às vezes: “Posso ir lá em casa, tomar um banho, você cuida da minha vaga?” “Vai”. Ia em casa, tomava um banho, comia. E fiz muitas... minhas amizades praticamente partiram dessa escola. E eu tenho muitas lembranças, foi de muito aprendizado, porque as normas eram diferentes, as regras eram diferentes, o estudo já era mais voltado pra arrumar emprego, essas coisas. E a diversidade de pessoas. Tinha pessoas de condições financeiras melhores, tinha pessoas de condições financeiras não tão boas. Tinha que trabalhar o dia inteiro, eu já trabalhava o dia inteiro, então geralmente eu chegava cansado na escola. Uma lembrança de muito persistência pra poder terminar o segundo grau.

P/1 – Teve alguém, algum encontro nessa escola muito importante, pensando em professores, colegas?

R – Ah, tinha sim alguns professores lá que eu tenho lembrança deles até hoje, que eles sempre ensinaram pra ser uma pessoa boa, honesta, focado no estudo, que não me deixasse levar pelas más amizades. Então uns três, quatro professores que focavam muito nisso, acho que por saber que a gente veio de outro lugar, que a gente é meio besta, burro pra algumas coisas e aí eles sempre ficavam em cima nesse sentido, em tomarem esse cuidado pra não se envolver em coisa errada. Acho que mais ou menos isso.

P/1 - Como você se divertia, na juventude? Qual era a diversão?

R – Eu gostava de jogar sinuca, bola. Era mais ou menos essas coisas assim. Gostava muito de ir pra banho, gostava de pescar, porque a região norte, de uma forma geral, Rondônia tem muitos balneários, muitos rios e a gente ia muito pra esses rios, pescar, tomar banho que a gente fala, jogava bola praticamente todo dia. Trabalhava, quando dava cinco horas parava de lavar os carros e ia jogar bola, a diversão era jogar bola. (risos) E sinuca. Sempre... às vezes eu recebia, chamava um colega, chegava em um bar, comprava quinze fichas de sinuca e ficava lá, jogando sinuca e tomando Coca-Cola. (risos) Só pra poder jogar sinuca. Eu gostava bastante.

P/1 – Com quem você ia?

R – Geralmente tinha um, dois colegas que gostavam também. Aí quando eu tinha dinheiro, eu pagava e quando eles tinham dinheiro, eles pagavam. Tinha um colega meu que a gente não tomava nenhum tipo de bebida, essas coisas, era só Coca-Cola, então a gente comprava uma Coca e ficava... o dono do bar já sabia: “Vocês vão ficar só...”. (risos) A gente ficava só jogando sinuca.

P/1 – E seus irmãos? Você tinha uma relação próxima com eles nessa época?

R – Foi uma época que a gente já começou a se afastar mais devido ao trabalho. Cada um trabalhava em um lugar diferente e os círculos de amizade, por eu trabalhar o dia inteiro e estudar à noite, eu fui fazendo meu círculo de amizade e meus irmãos foram fazendo o deles. A gente se via mais final de semana e aí foi uma época que a gente se afastou muito, mas final de semana a gente procurava sempre estar junto, fazer uma refeição em família, porque meu pai sempre, mesmo lá, cobrava pra gente, no mínimo dia de domingo todo mundo se reunir pra almoçar junto, mas a gente, às vezes, se encontrava mais na hora do futebol, quando dava certo, porque o campo de futebol era em frente a nossa casa e aí a gente se encontrava pra jogar bola. Era bom na hora que dava briga lá no campo, porque a gente era em quatro, então quatro a gente já sabe que vai estar do mesmo lado, pra (risos) ajudar um ao outro e futebol tem dessas coisas. Mas a gente se afastou um pouco. Mas hoje a gente tem - cada um, sua família, todos estão casados – um convívio bem próximo hoje, está sempre procurando saber quando dá pra estar juntos, quando eu vou pra lá eu procuro estar com eles, aproveitar os momentos com eles.

P/1 – E esses encontros de domingo?

R – Sempre foram legais. A mãe sempre cozinha e aí sempre foram momentos da gente... a gente relembra as besteiras que a gente fazia, ri muito um do outro, conta bastante as conquistas que um tem tido, o outro tem tido. Todos têm filhos já, então nossos filhos conversam entre eles. É um momento assim igual desde quando a gente chegou: quando a gente se reunia de domingo era pra gente contar como tinha sido a nossa semana. O pai perguntava, a mãe perguntava, a gente falava, podia dar bronca, às vezes um dedurava o outro, era assim.

P/1 – E aí seu pai voltou pro seringal?



R – Voltou pra Cruzeiro do Sul.

P/1 – Cruzeiro do Sul.
R – É.

P/1 – Quantos anos você tinha?

R – Eu já estava com 23, mais ou menos, 24 anos.

P/1 – Estava em Porto Velho?

R – Porto Velho. Eu tinha, acho, iniciado, estava no esporte, tinha iniciado o esporte paralímpico, eu trabalhava. Quando eu parei de lavar carros, eu fui procurar uma associação de deficientes pra eu arrumar um emprego. E aí quando meu pai resolveu que ele ia embora, eu já tinha arrumado emprego, eu falei: “Não vou”. Aí chamou, ninguém quis ir, ele falou: “Eu vou só” e ele foi. (risos) Mas a gente entendeu. A mãe ficou um pouco triste, por tudo que eles viveram juntos, mas teve que aceitar. Ele foi, meus outros irmãos lá cuidaram dele, dentro do que podiam cuidar, ele tinha o cantinho dele, vivia do jeito que ele queria viver e foi isso.

P/1 – E como foi seguindo sua vida? Desde que você saiu da lavagem do carro e entrou pro mundo do esporte, como foi?

R – Quando eu fui na associação de deficientes eu fui procurar emprego e conheci o esporte, porque eles falaram: “Não, você tem que praticar esporte”. Eu falei: “Não, eu quero arrumar um emprego, eu tenho que me sustentar” “Não, mas dá pra fazer os dois” “Então tá, vamos”. Aí eles arrumaram emprego, foi até interessante o primeiro emprego, porque tinha que fazer uma prova de datilografia e eu nem sabia o que era uma máquina de datilografia. E aí eles me emprestaram a máquina. Eu fui num dia e a prova ia ser no outro dia, de tarde, que era nos Correios. E ele falou: “Eu te empresto a máquina, tu leva pra casa” e eu peguei a máquina e levei. E fiquei o resto da tarde e a noite. No outro dia de manhã, quando eu acordei, eu não sentia meus dedos, de tanto ficar apertando aquelas teclas. (risos) E aí continuei, com muita dor, fiquei a manhã inteira e à tarde tinha a prova e eu fui, no Correio. Aí cheguei lá, tinha a de escrever, fiz a parte escrita todinha. Quando fui fazer o teste, eu falei: “Olha, a situação aconteceu assim, assim, assim”. Aí o cara falou: “Pode ficar tranquilo que tem bastante vaga, provavelmente você vai entrar”. Eu falei: “Melhor”. Ele falou: “Mas procura fazer”. Aí eu fiz e passei, aí eu comecei a trabalhar e na época eu comecei a fazer atletismo, as corridas. Só que eu fazia atletismo e tênis de mesa, aí eu abandonei o atletismo e fiquei só no tênis de mesa. Aí, depois de muito tempo, trabalhei vários anos, aí quando eu entrei no Correio comecei a fazer curso de informática, fiz curso de datilografia, tenho certificado até hoje de datilografia computadorizada e manual e aí fiz os cursos de informática básicos, que a gente conhecia naquele tempo e aí eu fiquei praticando esporte, aí depois eu parei um tempo, aí voltei e um período que foi bem difícil de eu continuar no esporte, foi quando eu tive que fazer faculdade, então eu acordava cinco horas, treinava até as sete, trabalhava de oito ao meio-dia, aí eu malhava, fazia musculação de meio-dia a uma, entrava na empresa duas horas, saía cinco horas, treinava das cinco às sete e fazia faculdade das sete e meia até onze horas da noite. Então, foi um período bem punk pra mim. Foi quando eu cheguei a cogitar a possibilidade de parar o esporte, só que a bolsa da faculdade era ligada ao esporte, (risos) eu não podia parar. Mas eu consegui vencer e deu tudo certo.

P/1 – Queria entender como você foi pra essa associação.

R – Por incrível que pareça não era tão longe de casa, mas eu não sabia que existia, aí eu conheci um rapaz na escola que ele também era deficiente físico e ele vivia falando dessa associação e aí um dia ele falou: “Cara, vamos lá se associar”. Eu falei: “Cara, eu vou pra lá pra quê? Um monte de deficiente lá”. Ele: ‘Mas tu é deficiente também” Eu falei: “Eu sei, mas eu tenho minha vida, trabalho”. Ele: “Não, vamos lá”. E aí eu fui quando ele disse: “Cara, vai ter um teste amanhã pra trabalhar numa empresa, aí vai ter carteira assinada, um monte de benefício. Acho que é melhor do que tu ficar no lavador”. Aí eu falei: “Então eu vou”. Aí foi o dia que eu fui, que eu conheci a associação e no outro dia tinha o teste, já. Só que eu fui um dia antes e aí eu fui lá, tudo de esportes foram eles que me introduziram, tanto que até a última empresa que eu trabalhei antes de eu mudar pra São Paulo sempre foi através da associação de deficientes. Eu nunca me desliguei deles, nesse sentido. Tudo foi através do vínculo com eles. Todos os empregos eram eles que me alocavam, quando eu queria sair do emprego, queria um outro melhor, aí eu os avisava e aí eles providenciavam, então eles tinham essa coisa bem legal, nesse sentido. Quando tinha um curso pra fazer, eles perguntavam se eu queria. Eu fui gostando de estudar. A faculdade foi eles que conseguiram a meia bolsa pra mim. Então a associação foi muito importante pra mim. Eu devo muito a eles, nesse sentido.







P/1 – Quantos anos você tinha?

R – Eu comecei acho que mais ou menos 24, 25. Mais ou menos isso. Eu sou ruim de lembrar a idade das coisas. Lembro que eu comecei a faculdade em 2004, mais ou menos e aí fiz a faculdade e depois eles conseguiram uma pós-graduação pra mim da área que eu me formei, que eu me formei em Processamento de Dados, Informática. E aí eles conseguiram a pós, pra eu fazer, pagar metade, eu fiz e quando chegou na época da conclusão da pós foi na época que teve os jogos do Rio, o Parapan, aí eu tinha que decidir: ou finalizar a pós, ou treinar pro Pan e aí eu decidi que queria treinar, deixei a pós de lado, perdi, mas deu certo, que eu fui pro Pan no Rio, ganhei medalha de ouro lá, aí as portas se abriram de forma que até hoje eu nem acredito muito nas coisas que acontecem.

P/1 – Você comentou que você não tinha entendimento da deficiência.

R – Não.

P/1 – Como foi isso? Como você entendeu?

R – Então, eu cheguei na associação. Foi mais quando eu cheguei na associação, porque eu vi, eu sempre falo pro pessoal: eu cheguei lá e vi aquele monte de aleijado. Tinha cadeirante, com muleta, tinha de tudo. E aí quando eu cheguei lá, eu meio quietinho, tímido, lembro que um rapaz: “Ô, aleijado, vem aqui”. (risos) A gente brinca muito entre nós. E aí eu: “Pô, esse cara nem me conhece e já está me chamando de aleijado”, mas tá, fui entender, eles foram me apresentar às pessoas e aí eu via o cara sem as pernas rindo, feliz. Outro na cadeira de rodas, alegre, brincante. Um sem braço. E aí eles começaram a contar a história deles, aí eu fui entendendo sobre a deficiência, sobre eu me colocar na condição de ter uma deficiência, mas eu sempre me vigiei pra não deixar isso me fazer ser um coitado. Tipo, cara, não vou usar a minha deficiência pra: “Sou um pobre coitado”, não. Eu sempre - tenho uma limitação física – deixei bem claro até na associação, mas isso não me impede de trabalhar, de fazer as coisas, de conviver na sociedade, de ter uma família. Eu quero ter direitos iguais a todo mundo e deveres também, igual todo mundo. Não só meus direitos, mas meus deveres também quero cumprir. E aí foi quando eu comecei a ter entendimento de pessoa com deficiência e aí vivi nesse mundo e hoje a maioria dos meus amigos são todos deficientes. Assim, amigos próximos, está tudo faltando um pedaço. Algum lugar está faltando. (risos)

P/1 – Foi nesse momento que você foi atrás de fazer exames?



R – Não. Os exames eu já vim fazer quando eu estava aqui em São Paulo, porque aí eu precisei passar por classificação internacional pra diagnosticar realmente qual era a minha deficiência, porque lá fora tinha-se dúvidas do que realmente era minha deficiência, por eu não ter documento, e aí o Comitê Paralímpico pagou uma série de exames pra eu fazer e aí esses exames foram detectando o que realmente eu tinha de deficiência. Tanto que hoje tem uma briga muito grande, porque eu estou numa classe de competição e quando eu fui pra classificar veio uma pessoa da Índia e de um outro país que eram especialistas em paralisia e até hoje tem a briga que eles querem me baixar de classe, porque eles falam que eu podia estar na classe mais baixa e eu: “Não, a que eu estou está ótima”. E toda vez que tem que refazer a classificação, fica essa briga. (risos) Mas foi aqui em São Paulo que eu fui entender, mesmo, sobre o que realmente aconteceu, qual a deficiência que eu tinha e a minha é diferente, porque ela se demonstra quando fica em situação de stress. Então, em treino, em competição ela aflora bastante, mas em repouso ela é pouco perceptível, eles falam, mas quando entra em stress, a fadiga se torna muito visível. Então é mais ou menos isso.

P/1 – Quando você ficou entendendo qual é a deficiência, algo mudou na sua vida ou pra você?

R – Acho que eu comecei a, talvez, respeitar mais as pessoas e aceitar mais como elas são, porque eu comecei a ver pessoas diferentes e eu comecei a entender as limitações de cada uma, porque a princípio, tipo: às vezes eu estava com um colega que não enxerga e eu saía andando e o largava pra trás e eu: “Caramba, larguei o fulano”. Aí tinha que voltar, pegá-lo, segurava, e ele: “Pô, cara, tu me deixou pra trás” “Pô, cara, desculpa, que eu não tenho muito esse...” e ele: “Não, tudo bem, você vai aprender”. Aí eu comecei a ter mais esse entendimento, das nossas limitações, cada um do jeito que é. Todos somos iguais, independente da diferença, mas acho que foi mais ou menos isso que eu entendi.

P/1 – Mas foi um momento importante?

R – Sim, muito importante, porque isso eu levei pra vida. Eu uso isso na minha vida diariamente, pra não exigir algo - tanto das outras pessoas, como de mim - que não tem capacidade de fazer. E saber que a gente vai ter sempre pessoas do lado que têm a capacidade de fazer, independente da condição dela.

P/1 – E pra sua família, como foi esse momento?

R – Então, quando eu comecei a trabalhar, a me destacar, num primeiro momento a minha mãe até falava, que eu comecei com esporte junto: “Larga disso, isso daí não dá futuro, você tem que só estudar” “Mãe, mas eu tenho que estudar e praticar esporte, porque eles estão conseguindo as coisas pra mim”. Porque eu fui o primeiro filho que fiz uma faculdade e aí eu consegui levá-la pra formatura, então eles viram que aquela associação de deficientes abriu as portas pra mostrar um outro mundo pra mim, uma outra vida. Eu conheci minha esposa, também ela é deficiente, na associação de deficientes. Tudo que eu falo que eu conquistei foi através, teve vínculo com a associação de deficientes e com o esporte adaptado, paralímpico. Então, praticamente minha família viu quanto isso fez bem pra minha vida e hoje eles falam: “Quando você parar, você vai continuar envolvido com o movimento paralímpico”. Falei: “Acho que não tem mais como desvincular”. (risos) Acho que é isso.

P/1 – Então desde que você entrou na associação, quais foram os trabalhos que você realizou?







R – Trabalhei no Correio por um período e aí depois eu mudei pra trabalhar com empresa de distribuição de energia elétrica, fiquei um período nela e aí depois eu fui pra uma outra área de empresa de geração de energia elétrica, que eu fiquei onze anos trabalhando nela. E aí foi meu último emprego de carteira assinada, antes de eu vir pra São Paulo. Isso tudo foram empresas de associação de deficientes. E quando eu cheguei aqui em São Paulo, que eu me cadastrei numa outra entidade, essa entidade me direcionou também e hoje eu trabalho numa empresa, no Marketing, eu faço a parte de marketing externo, divulgação da empresa em redes sociais e também é associação de deficientes. (risos) Então, só saí do estado, troquei de um estado pro outro, mas continuo ligado, nesse sentido.

P/1 – Como foi esse trabalho de geração de energia? Você nasceu num lugar que não tinha.

R – Não tinha energia.

P/1 – E aí você começou a trabalhar...







R – Engraçado foi que, quando fizeram esse projeto, colocaram os atendentes todos portadores de necessidades especiais e nós fizemos um treinamento por um bom período, só que quando uma pessoa vai numa empresa de energia reclamar, ela não vai lá pra dar um abraço, então já vai pra brigar. Nossa! Assim: a gente via cada coisa e nós éramos o cartão de visitas da empresa. Então as pessoas chegavam e xingavam a gente, pessoas de idade chegavam e xingavam, chamavam a gente de burro, disso e aquilo outro, mas era engraçado porque a gente ria um com o outro, porque cadeirante, a gente falava: “Cara, se aquela mulher te bate, como tu ia correr? Tu estava ferrado”. (risos) Ficava zoando: “Aquele fulano lá”, porque a gente via os que pegavam um atendimento ruim e depois a gente ia zoar dele. “Quase tu apanhou” e aí a gente falava: “Se aquela pessoa pegasse a sua muleta, você ia apanhar com as tuas pernas”. (risos) E um dia eu estava treinando a minha esposa, ela estava no guichê e eu do lado e eu comecei a desenhá-la e uma senhorinha pegou o medidor, o relógio do padrão que ela tinha arrancado e atacou em cima da mesa. Naquele dia eu quase tive um filho. Um pedacinho da nossa experiência na empresa era desse jeito. Mas foi legal que a gente ficou três anos, a gente conseguiu mudar muito a imagem da empresa, tanto que um projeto que até hoje - ele começou em 1999 pra 2000 – funciona, a empresa mantém, porque mudou a imagem dela e a gente foi desbravador e eu fico feliz de ter feito parte desse primeiro momento. E era quente a sala. Nossa! Pensa num lugarzinho pequeno, abafado, aí entrava, quando abria o portão, tinha cinquenta pessoas pra entrar. A gente já falava: “Eita que hoje vai ser doído” e a pessoa reclamando que a conta da energia estava cara e a gente ia lá e mandava o técnico voltar. Às vezes a pessoa vinha, tinha seis contas atrasadas e: “Por que cortou minha energia? Vocês são uns ladrões”. Eu falei: “Minha senhora, eu não sou dono da empresa, não, estou aqui atendendo”, mas foram momentos de muito aprendizado.

P/1 – Era atendimento direto com o público?

R – Atendimento frente a frente, meio metro de distância.

P/1 – Tem alguma história muito marcante?

R – Tem a do medidor, que a minha esposa até hoje fala: “Eita, naquele dia eu te vi, quase tu chorou, né?” A mulher jogou o medidor na mesa, então foi uma história que marcou muito. E aí com os outros colegas, às vezes a gente via, dava vontade de ir lá defender, mas aí a gente não podia se meter, a pessoa tinha técnicas pra tentar remediar aquilo, mas tinha um colega nosso que era cadeirante, que o bichinho sofria, a gente falava: “Cara, na hora da peia, todo mundo vai correr e ele vai ficar sozinho e vai apanhar”. (risos) Acho que mais ou menos essas coisas assim. Acho que o legal da vida, o que eu tiro muito é que tudo a gente tem motivo pra rir. Às vezes não naquela hora, mas depois, quando passa a situação, a turbulência, a gente sempre tem do que dar umas boas risadas.

P/1 – E em paralelo você já estava, já, no esporte?

R – Já. Eu já praticava. Na época eu praticava tênis de mesa, já tinha participado de algumas competições no estado, tinha ganhado e depois, quando eu saí da empresa de distribuição de energia, eu mudei pra uma de geração e na época ela começou a me apoiar, pra eu viajar, pra competir fora. Então ela liberava pra eu ir competir em Manaus, que era mais perto. As competições por lá aí ela dava alguma ajudinha, os funcionários se juntavam, faziam uma ‘vaquinha’ pra comprar algum material que estivesse precisando, porque era tudo muito caro e eu bancava do meu salário e aí eles se juntavam pra dar essa força. Às vezes, quando tinha competição aqui em São Paulo, que eu tinha que vir de ônibus, então eles se juntavam pra inteirar a passagem e sobrar cinquenta reais pra eu comer, na ida e na volta. Aí era desse jeito. Mas foi uma empresa muito boa, trabalhei onze anos. Acho que foi um dos empregos que eu mais sofri quando eu saí, porque eu criei uma família lá, todo mundo torceu muito por mim. Onze anos é muito tempo, né? Então eu frequentava a casa dessas pessoas. São pessoas que até hoje eu tenho amizade. Quando eu vou lá em Porto Velho, eu os visito, direto eu falo com eles por mensagens. Viraram muito amigos, bem leais mesmo. Acho que é isso.

P/1 – Como foi o início do tênis de mesa, dessas competições?

R – Era difícil. Primeiro por não ter material, não ter muita estrutura, não ter tempo pra treinar, a gente não tinha muito tempo pra treinar. Tinha que tudo se adaptar. As mesas não eram de qualidade, igual vinha pra competição, chegava e tinha. E por não ter dinheiro pra viajar, eu perdia, ficava muito tempo dentro do ônibus, então chegava, ficava dois dias dentro do ônibus, quando chegava aqui o pé estava inchado, aí no outro dia já tinha que competir. Às vezes o tênis entrava machucando, mas tinha que competir. Aí competia sábado e domingo, pegava o ônibus de volta, mais dois dias. Aí chegava lá, no outro dia já tinha que trabalhar, ou se chegasse duas horas, já tinha que trabalhar à tarde e foi bem complicado, bem difícil, mas eu consegui ir vencendo etapas e cheguei a ser campeão brasileiro de tênis de mesa, fui campeão estadual, campeão brasileiro, e foi engraçado, que na época que eu conheci o atletismo, que eu fui pra competição de tênis de mesa e faltou um colega no atletismo e aí o cara da associação falou: “Vai lá correr”. Eu falei: “Estamos lá”. Eu fui, corri e ganhei a prova. E não sei se foi sorte ou azar, tinha um olheiro da Seleção lá. Aí terminou a competição, fui pro tênis de mesa, perdi na final, mas estava felizão, que eu tinha perdido pra um cara muito bom, aí teve o encerramento, aí eles: “Troféu, atleta revelação, Edson Cavalcante”, eu falei: “Ué, mas já faz tempo que eu estou no tênis de mesa” “No atletismo”. Eu: “Atletismo?” Aí eu fui lá, eu tenho até hoje o troféu e aí depois ele me chamou, falou: “Cara, você tem um talento enorme no atletismo. Não vou dizer que você está no esporte errado, porque você é um dos melhores, mas pratica e tal. Vai ter uma competição lá em São Paulo, eu vou te levar”. Falei: “Beleza”, mas tipo assim: “Está doido? Ficar no meio do sol correndo não é pra mim, não”. Já tinha pegado sol a vida inteira. Eu gostava de tênis de mesa porque era sempre lugar fechadinho e tal, só que o meu técnico ficou na minha cabeça: “Cara, vamos treinar”. Eu: “Claro que não” “Vamos treinar”. Eu: “Não” “Vamos treinar pro atletismo” “Não”. Aí ele começou a fazer eu correr sem eu perceber que ele: “Vamos fazer essa corrida aqui, pro tênis de mesa”. E eu comecei a correr. E aí surgiu uma competição, mandaram o convite pra mim, que ia ter aqui em São Paulo e eu vim e fiquei em segundo lugar nessa competição. Aí quando eu voltei, ele disse: “Não, agora você vai treinar, vai treinar, vai treinar e vamos fazer roupa pra você”. Aí arrumaram dinheiro, fizeram roupa, só que fizeram as roupas que a gente usa de atletismo, que são lycra e tal. Quando eu vi aquela roupa, falei: “Cara, não vou usar isso aí. Não tem, não dá pra usar isso aí”. Não tinha coragem. (risos) Era tosco. Aí, ele: “Não, cara, porque tu fica mais colado, vai correr mais rápido”. Eu falei: “Tu é doido, não vou correr com isso aí, não. Eu não tenho coragem, não”. Aí tá, largou a roupa de lado, eu corri de calção, pra você ter ideia, camiseta e eu comecei a conciliar os dois: atletismo e tênis de mesa, até... aí, em 2004, eu fui convidado pra vir pra seletiva dos Jogos Paralímpicos de Atenas. Só que eu não sabia nem o que eram jogos paralímpicos, de viajar pra fora do Brasil, e falava: “Esses caras não...”. Não tinha essa visão disso. Aí vim, ganhei e fiquei primeiro suplente, pra ir pros jogos. Se acontecesse alguma coisa com alguns dos atletas, eu entrava, mas aí deu tudo certo deles irem e eu não entrei. Aí o meu técnico dizia: “Vamos treinar, vamos treinar”. Quando foi em 2005, eu comecei a treinar certinho. Aí ele já conseguiu passagem de avião pras competições, pra eu ir. Na primeira que eu fui, eu bati o recorde brasileiro. Aí fiz o circuito em 2005 todinho, só que detalhe: eu fui pra essa competição, quando eu cheguei lá, eu ganhei, vou embora. Quando eu cheguei em casa, aí me ligaram: “Olha, me passa seus dados bancários”. Do Comitê Paralímpico. Eu falei: “Por quê?” Porque a competição dava um prêmio de mil reais. Isso em 2005. Foi engraçado essa... aí eu falei: “Tudo bem”, passei, ele falou: “Aí você ganhou a passagem de ida e volta, de avião e hotel cinco estrelas pra próxima competição”. Falei: “Olha, rapaz, esse negócio é bom”. (risos) Aí eu falei pro meu técnico, ele falou: “Cara, vamos treinar, então”. Aí eu fui pra outra etapa e toda etapa que eu ia, eu batia o recorde brasileiro. E aí começou a entrar dinheiro, eu falei: “Cara, tênis de mesa eu tirava do meu bolso, pagava”. Borracha, raquete, tudo era muito caro. Dificilmente eu tinha condições de dar dinheiro pro meu técnico e aí eu comecei a ter condições de dividir o que eu ganhava com ele. Falei: “Rapaz, acho que esse negócio aqui é melhor pra nós”. Ele falou: “Vamos focar nisso aí. O que você acha?” Eu falei: “Ah”. E aí, quando foi em 2005, eu fiquei entre os dez atletas e ganhei uma outra bolada de dinheiro e aí ia ter o Campeonato Mundial na Holanda, em 2006. E aí o coordenador falou: “Você tem que decidir agora qual esporte você quer: atletismo ou tênis de mesa”. Eu falei: “Rapaz, atletismo”. (risos) Aí abandonei o tênis de mesa. E a história é longa.

P/1 – Qual foi, voltando pro tênis de mesa, a sua primeira medalha, primeiro título?

R – A minha primeira medalha foi lá em Porto Velho, num campeonato regional. Acho que eu fiquei em terceiro lugar. Ano passado eu fui na minha cidade e eu até tirei foto da medalha e postei no Instagram. Um quadradinho de plástico, com uma linhazinha amarrada, um pedaço de barbante amarrado e eu as tenho. Eu ganhei duas medalhas.

P/1 – Como que é? Qual é essa sensação?

R – Nossa! Acho que toda medalha tem um gosto diferente, porque envolve todo um ciclo, um período de treino, de desgaste, de abrir mão de algumas coisas pra você chegar naquela específica medalha. E essa era a minha maior dificuldade, o tempo, que eu não tinha. Então eu não tinha tempo, não tinha dinheiro (risos) e tinha muitas privações e ganhá-la, pra mim, foi uma realização, porque eu falei: “Cara, você pode, você chegou até aqui, então agora quer dizer: se você está entre os três, significa que você tem chance de ser o primeiro”. E foi aí onde eu me apeguei de achar mais tempo pra eu conseguir treinar mais. E o meu treinador... tanto que até hoje a gente é amigo, nossa, a gente tem uma amizade fora do comum. Ele mora em Brasília, mudou pra Brasília, dá aula lá, mas quando ele vem aqui pra São Paulo, fica na minha casa, eu vou pra lá e fico na casa dele, então a gente criou um vínculo muito grande. E ele era meio doido. Se eu falasse: “Vamos treinar dez horas da noite?”, ele: “Vamos”. Se eu falasse pra ele: “Vamos treinar meio-dia?”, ele: “Vamos”. Não tinha hora pra ele treinar. Então a hora que eu falasse que ia treinar, ele pegava a bicicleta dele e ia. E eu achava tempo do nada. Às vezes, lá no trabalho: “Não vai ter expediente hoje à tarde, vamos treinar?” “Bora”. Então, a gente treinava muito e aí foi onde eu fui começando a viajar, comecei a ir pra Goiânia, chegava em Goiânia e ganhava, aí vinha pra São Paulo e ficava entre os três e aí começou a evoluir.

P/1 – Qual foi o campeonato mais marcante de tênis de mesa, pra você?

R – O mais marcante foi quando eu fui campeão brasileiro, em Goiânia. Porque já tinha dois anos que eu estava batalhando e eu sempre perdia na eliminatória, ou na semifinal e aí, dessa vez, na final, eu peguei o cara mais forte e eu fiz o possível e o impossível ali na mesa e ganhei dele. O mais marcante foi que, quando terminou, na hora da premiação foram entregando os troféus de campeão e aí ia faltar um pra mim, eu falei: “Cara, eu estou três anos esperando esse troféu. Não. Alguém fica sem”. Aí teve um cara lá que sempre ganhava e falou: “Não, eu pego o meu depois, pode dar pra ele que ele merece e tal”. Eu falei: “Não. Sair daqui sem o troféu é a mesma coisa que não ter ganhado”. (risos) Então ficou bem marcado. E, assim, foi meu último título no tênis de mesa, porque depois disso eu continuei treinando, mas não cheguei a competir. Fiquei competindo - porque tem uma sequência: regional, estadual – lá e antes de vir pras competições grandes, eu tive que ‘abrir mão’, mas ainda tenho saudade do tênis de mesa.

P/1 – E você joga, de vez em quando?

R – Faz tempo que eu não jogo. Esses dias eu estava lá no Comitê Paralímpico e eu fui visitar esse meu ex-técnico, ele estava lá e eu fui vê-lo treinar com os alunos dele, ele estava aí e deu vontade de voltar. Falei pra ele: “Arruma uma raquete que eu vou voltar”. Aí ele ficou de arrumar a raquete, se ele arrumar, eu tenho que cumprir minha palavra, de voltar. Acho que vai ser legal.

P/1 – E essa transição pro atletismo? Você se encantou por esse esporte?

R – Eu aprendi a gostar, porque o atletismo é um esporte mais sofrido do que os outros. Todo esporte é sofrido, o de mesa você vai à exaustão, todos você sofre, mas o atletismo tem um sofrimento a mais, algo a mais e eu nunca me adaptei com esse sofrimento a mais, porque o atletismo você tem que chegar ao ponto de vomitar, levantar e continuar treinando. Tem momentos que você sente dores musculares e você tem que correr, fazer tiros em cima daquelas dores, pra você passar aquela fase da dor, então ele tem um nível de sofrimento maior e não tem frio, não tem chuva. Se está chovendo, você tem que treinar; se está fazendo frio, você tem que treinar. Não tem proteção. Se está o sol muito quente, você tem que treinar no sol quente. Então não tem muitas formas de passar a mão, de aliviar, não. Do jeito que tiver, você tem que ir. Seja na chuva, seja no sol, no que for, você tem que ir.

P/1 – Essa disciplina é natural sua, ou também foi um aprendizado?

R – Não. É na base do grito, mesmo, viu? O meu treinador sofre bastante comigo. Ele é um japonês daqueles bem bravos e ele fala que, se ele aliviar comigo, eu descanso. Então é na base do grito, mesmo, na cobrança, que eu sou… que ele fala que eu sou mole pra treinar. Eu sinto que eu treino bastante, mas ele fala: “Você é mole pra treinar, então eu tenho que estar o tempo todo puxando a sua corda, não pode...”. Tanto que quando eu comecei a treinar com ele, que eu corri agora... com ele eu ganhei medalha em 2016 e em 2017 eu corri a melhor marca da minha vida. Eu ganhei a medalha no Rio, nas Paraolimpíadas, cheguei: “Professor, aí a medalha”. Ele olhou, olhou, falou: “Parabéns. Curte, terminou de curtir, põe na gaveta e guarda, porque ela não vai fazer você ganhar lá na frente. Descansa uma semana, semana que vem você vem treinar”. (risos) Pra você ver o nível. E aí quando foi em 2017, eu corri a melhor marca da minha vida com ele, assumi a liderança do ranking mundial e aí eu liguei pra ele felizão: “Professor, corri a melhor marca da minha vida, não sei o que, fui líder do ranking mundial”, ele: “Não fez mais do que a obrigação. Estava na hora”. Esse aí... então, às vezes eu fico tentando fazer um pouquinho mais pra ele elogiar, mas é difícil. Então, a disciplina vem muito disso: grito, cobrança. E eu já percebi que eu sou esse tipo de atleta que tem que ser cobrado, xingado, submetido a desafios. Se me deixar dentro da zona de conforto, não vai, não.

P/1 – E qual é a sensação de bater um recorde?
R – Nossa! É uma sensação de que tudo que foi feito, foi perfeito, que nada errou. É uma sensação de ser abençoado. É um sentimento de bênção muito grande, porque imagina quantos atletas estão treinando diariamente, sofrendo para alcançar aquilo, aí você é o privilegiado de ter aquilo, de ser o primeiro do mundo, chegar em qualquer competição mundial e todo mundo olhar e: “Eu tenho que ganhar daquele cara” e você está aquecendo, todo mundo olhando pra você e onde você chega: “Parabéns pelo resultado, pelo recorde”. Então é bom e perigoso ao mesmo tempo. É uma bênção, mas se a gente não cuidar, é perigoso subir pra cabeça e isso afetar os treinos, em tudo. Eu acho que o meu professor trabalha muito isso, ele não deixa a gente subir o degrau e dizer: “Eu sou o top”. Ele está sempre: “Ei, psiu”. Pra você ter ideia, ele já me mandou embora da pista. No meio do treino, ele mandou parar o treino, pegar as minhas coisas e ir embora. Depois de ganhar medalha na Paraolimpíadas, depois de ser o primeiro do mundo, ele falou: “O dia que você quiser treinar, você volta”.

P/1 – Por quê?



R – Porque ele achou que eu estava ‘enrolando’ o treino. Não estava fazendo com a capacidade que eu tinha pra fazer os tiros. Naquele momento ele entendeu isso e aí ele falou: “Vai embora”. E aí eu fui e depois, quando eu voltei, aí eu treinei dobrado. (risos) Então foi bom, porque ele falou, falou, falou, eu não entendi, ele falou: “Pega as suas coisas e vai embora” e aí todo mundo assim: “Caramba, ele mandou o Edson embora”. Fui bravo com ele e depois, quando eu voltei, já voltei treinando normal, fazendo tudo que ele mandava. Eu entendi, falei: “Se eu vacilar, ele vai...”. A medalha, a conquista, os recordes, é tudo que nós, atletas, almejamos, só que vem em cima de benefícios, um monte de coisas, mas também tem os riscos que podem fazer a gente se perder no meio do caminho e aí não conseguir mais avançar. Então o que eu acho legal é isso: que ele está sempre dando esse discernimento do jeito dele, mas a gente aceita.

P/1 – Tem alguma competição que foi muito marcante?

R – Eu acho que a competição, pra mim, mais marcante, de todas que eu tenho, tem a de conquista e tem uma de decepção. Então tem as duas. A de conquista foi eu ter ganho a medalha na Rio 2016, dentro de casa, a torcida fervendo e poder subir no podium, ver a bandeira do Brasil dentro de casa, então foi assim algo que todo dia eu me ajoelho e agradeço a Deus por eu ter tido essa oportunidade, por que quando vai ter outra olimpíada no Brasil? A gente nem sabe se vai ter. Então fazer parte dessa história... tem muitas pessoas que eu conheço hoje, que estão no esporte e falam: “Cara, eu estou no esporte paralímpico porque...”. Esses dias um colega estava falando: “Eu estava no hospital, tinha acabado de fazer cirurgia e estava passando na televisão e eu vi você ganhando medalha, então eu falei que eu queria ser igual você” e hoje ele é melhor do que eu na prova dele e eu falo: “Agora eu quero ganhar de você”. (risos) Então essa é mais marcante positivamente. E a outra, que foi um aprendizado muito grande, mas no momento foi uma tristeza, que quase me tirou do esporte, foi em Pequim 2008, quando eu abdiquei de muita coisa, ‘abri mão’ de muita coisa pra treinar, pra ir pras Paraolimpíadas de Pequim e eu tinha corrido um mês antes na Tunísia e abaixo do recorde mundial, só que não validou, porque o vento foi acima do permitido. E quando a gente chegou nos jogos: “Vou bater o recorde” e o professor falava: “Cara, entra e corre. Você só pode fazer isso, então vai lá e faz o que você sabe fazer. O restante é consequência”. E eu entrei, corri, o recorde mundial era onze e 31, eu corri onze e trinta e fiquei em quarto lugar. Os quatro primeiros atletas correram abaixo do recorde mundial. E eu fiquei, voltei pra casa, parei de treinar, fiquei sem entender, fiquei uns seis meses sem treinar, que eu não entendia porque eu não tinha ganho (risos) a medalha. Aí depois os colegas foram conversando comigo, dando orientação e aí eu fui entendendo, aceitando e resolvi continuar, voltar, mas foi um aprendizado muito grande nesse sentido e que eu levo pra minha vida até hoje. E, sei lá, não é porque eu sou o primeiro que eu vou ganhar e coisas impossíveis podem acontecer. Então são essas duas competições.

P/1 – E viagens, dentro do esporte?





R – Nossa! Quantidades, muitas.

P/1 – Imagino! Mas uma ou algumas bem significativas pra você.



R – Teve mais engraçadas. Acho que das viagens mais engraçadas que a gente fez, que a gente sofreu e que a gente riu com o nosso sofrimento, foi quando a gente foi pra Tunísia, porque é uma região muito diferente do Brasil. Eles valorizam tudo: alimento, pra eles, independente da quantidade, não pode ser jogado fora porque tem pessoas que necessitam muito, e aí às vezes a gente estava no restaurante tomando água, ficava meio copo de água, eles vinham, pegavam aquela água e jogavam na garrafa de novo, pra outra pessoa que sentava lá na mesa. (risos) Comida caía no lugar de servir, eles juntavam com a mão e colocavam de volta. É um lugar muito quente. Os carros, a gente andando, parecia aquele desenho de bate-bate, que um carro vem, bate de um lado, o outro vem e bate do outro e o motorista xingava: “Eeeee” e a gente lá, não sabia o que estava acontecendo, que a gente não entendia. A gente sofria e ria das coisas, porque era totalmente diferente de tudo. E a gente falava: “Não vamos mais aguentar comer no hotel, vamos comer fora”. A gente foi numa lanchonete que tinha do lado de fora, chegou lá e pediu tipo um hambúrguer que eles tinham enrolado, o cara pegou o pão e jogou em cima do balcão, cheio de poeira e começou, a gente: “Nãoooooo. (risos) Vamos voltar pra comida do hotel que é melhor”. Então foi uma viagem que marcou muito e até hoje o pessoal da antiga, da época, quando a gente se encontra, fala: “Cara, e aquela viagem da Tunísia, hein?” Acho que foi uma das viagens que mais marcou. Outra pra mim que marcou muito foi que eu sou o rei de se perder, quer se perder, anda comigo. A gente se perdeu na Holanda e aí eu pedalei, eu estava com um colega que é médico e eu falei: “Doutor, você sabe falar inglês?” “Sei, falo bem”. Só que a gente não ‘se ligou’ que a gente estava numa cidadezinha do interior da Holanda. Eles falavam tudo a língua deles lá. Quando ele começou a falar, a pessoa não entendia o que ele falava e ele não entendia, eu falei: “Doutor, o que está falando?” “Não sei, não”. A gente se perdeu. Acho que nós pedalamos duas horas, três horas, mais ou menos. Entre duas e três horas. E eu sentei, eu lembro, no meio-fio e comecei a chorar, falei: “Doutor, daqui eu não saio mais pra lugar nenhum. Só dá a direção. (risos) Vamos chamar a polícia, vamos entrar na frente de uma viatura, chamar pra levar a gente preso”. E nós estávamos num resort recém-construído e ninguém sabia onde era. Olha, aquele dia foi sofrido. Daí eu comecei a pensar em casa, na minha família, nossa, começou a dar um desespero. Aí eu falei: “É, o Doutor não ajudou muito não”. Acho que essas duas viagens ficaram bem-marcadas.
Já me perdi em Portugal. Você imagina! Me perdi em um monte de lugar. Agora não saio mais com um, dois. Sinceramente, saio com quem conhece, que é mais fácil. Mas tem muitas aventuras assim e saber que tem hora que eu fico lembrando, poxa, onde eu nasci, de onde eu vim e ter conhecido tantos lugares assim, no mundo, tantos países, ter tido oportunidade de ver tantas coisas boas, culturas diferentes, sei lá, é uma bênção muito grande, mas de todos os lugares eu falo: nenhum se compara ao Brasil. O Brasil, apesar de todos os nossos defeitos e dificuldades, mas acho que não existe nenhum lugar do mundo igual o Brasil. Aqui a gente tem tudo, tudo, tudo, tudo. Coisas que em outros países... feijão, tem país que não tem. Carne, tem país que a gente vai, que eles pegam um pedaço de carne e cortam em três pedaços, pra dividir, de tão difícil que é a carne, tão caro. A nossa variedade de legumes que a gente tem é muito grande, frutas, nossa! Tem lugar que a gente vai que uma banana custa três euros, cinco euros. Uma banana. Eles vendem por unidade. E aqui a gente tem oportunidade de comprar. Dependendo da região, as pessoas dão banana. Então eu falo: o nosso país não tem igual, não.

P/1 – Edson, em todos esses anos no atletismo, no esporte, de modo geral, você teve algum aprendizado, com certeza vários, mas teve alguma pessoa que foi muito marcante pra você, que te passou algum ensinamento que te vale até hoje, alguma mensagem?

R – Tem. Porque eu já presenciei muito de pessoas que se acidentaram, ficaram deficientes e entraram pro esporte e o esporte transformou a vida dessas pessoas, de uma situação delas estarem depressivas, ou querendo se suicidar e terem conhecido o esporte, na maioria das vezes paralímpico, e ter transformado a vida delas. Então a maior lição que eu tenho, não só de um, mas de vários colegas, é que o esporte transforma vidas. E ele me transformou. Hoje tudo que eu tenho foi o esporte que me deu. Foi de quando a associação me apresentou o esporte e o esporte me deu. Tudo. Tudo que eu conheço, a maioria das coisas que eu já fiz foi através do esporte. Então são coisas que eu nem imaginaria ter ou fazer. E isso com vários outros colegas também. Tem colega que treina lá comigo, que está bem presente comigo, todos os dias e com dezoito anos um caminhão veio, levou a perna dele e ele militar, querendo dominar o mundo, que é a fase e foi pro hospital e lá o trouxeram pro esporte, aí ele veio pra junto da gente, a gente o viu começar do nada e agora ele foi pra essa paraolimpíada de Tóquio, foi vice-campeão paralímpico e hoje ele tira foto da prótese dele. Ele mostra mais a prótese do que ele, do tanto que ele se orgulha de ser deficiente, de ter aquela prótese, do que o esporte está fazendo por ele e isso a gente vê em tudo. O esporte - eu tenho colega que morava em zona de muito conflito, de drogas, essas coisas – o tirou de lá, pra ele não se tornar uma das pessoas que infelizmente a gente sabe que o percurso de vida é pequeno. Então, a gente vê muito isso, do esporte transformar a vida das pessoas, tirar muitas pessoas, dar oportunidade. Hoje tem vários colegas que fazem faculdade pelo esporte, que o esporte dá a oportunidade deles fazerem faculdade, ter bolsa. Então o esporte transforma. Esse é o maior aprendizado que eu tenho do esporte. Quer mudança na sua vida? Pratique esporte. Você aprende a ser educado, a respeitar, a cumprir horário. Eu, já teve vez... uma vez só, aconteceu uma vez: eu cheguei sete minutos atrasado pro treino, o meu treinador me mandou embora. Eu treinava no Centro Paralímpico. Atrasei sete minutos, cheguei lá, ele falou: “Pode ir embora”. O horário era oito e meia, eu cheguei oito e 37. Um cachorro entrou na minha frente, (risos) fui desviar e aí virou o trânsito e eu cheguei atrasado. Então o esporte faz isso: faz a gente ter compromisso, valorizar a família, as pessoas, respeitar o próximo, dividir, compartilhar. Tem colegas que no começo a gente via o cara soberbo, de nada dividir, tudo era dele e ferre-se todo mundo e hoje são pessoas que falta pouco pra tirar a roupa do corpo pra dar pro outro, de tanto que aprendeu, que o esporte ensina algo a mais do que só ganhar medalha. Eu falo muito pros colegas: “Cara, se você não for um campeão aqui na pista, se você não ganhar medalha na pista, mas você vai ganhar na sua vida, porque as portas que o esporte abre pra você, dificilmente você conseguiria em um outro ambiente”. É mais ou menos isso.

P/1 – Só queria passar rapidinho pela faculdade. Tem alguma história muito marcante nesse período, pra você?

R – Nossa! Tem, viu? Eu sou zoado até hoje! (risos) O tanto que eu dormia na faculdade. É que eu acordava cinco horas da manhã, treinava, trabalhava, treinava na hora de meio-dia, trabalhava à tarde, treinava de tarde, antes de ir pra faculdade e aí chegava na faculdade, o professor começava a falar, eu abaixava a cabeça e os meninos faziam bolinha de papel e ficavam. Quando eu acordava tinha várias assim, no chão, perto de mim. Então a metade da primeira aula os meninos já falavam: “Cara, o Edson...”. Só que eu estudava muito em casa, pra não me atrasar. No final de semana, quando eu tinha tempo, eu estudava, fazia grupo de estudo com os colegas, os chamava lá pra casa pra estudar, ensinar, aprender com eles, mas até hoje eles falam: “Cara, quem dormia mais, a pessoa ia pra sala pra dormir e tirava uma nota boa”. (risos) Eu dormia muito. Então, eu tenho muita lembrança disso e os meninos, onde eles me veem, os colegas, quando a gente vai lá pra Rondônia, zoam, porque eles falam: “Cara, tu dormia demais dentro da sala de aula”. (risos) E isso toda faculdade. Nossa, às vezes a gente ia pro laboratório, eu dormia em cima do teclado. Começava a embaçar, eu deitava no teclado. Mas eu não levava muito a sério, não, porque eu sabia que eles estavam de brincadeira comigo. Acho que, olha, foi uma época... faculdade foi uma prova de vida, viu? Eu falo pras pessoas: “Quem vai entrar na faculdade tem que já entrar consciente que é uma prova de vida”, porque a gente entra na faculdade com o pensamento que vai mudar o mundo, a gente vai transformar a rede, tudo, o mundo é nosso. Quando a gente sai, quando o mundo abre as portas, a gente fala: “Eita, cadê todo aquele ‘monstro’ que eu era?” E aí começa a levar muita porta na cara, muita pancada e você fala: “Cara, não é tudo isso, não”. Mas aí é a persistência que vem do estudo sobressair, não é só a faculdade. Mas acho que essa é a coisa que eu tenho mais lembrança, que eu dormia demais.

P/1 – E você foi o primeiro da família a se formar?

R – Fui o primeiro a ter o nível superior.

P/1 – Como é isso, pra você?

R – Nossa, minha mãe chorou! Todo mundo da minha família foi no dia da formatura. Foi todo mundo. Pensa numa alegria de poder dar essa satisfação pra minha mãe e pra mim e pros meus irmãos. E aí, depois, meus irmãos continuaram estudando e aí todo mundo seguiu o exemplo e foi bem bacana isso. Tenho um irmão, hoje, que fez faculdade, passou em concurso do Tribunal de Justiça, já fez duas pós-graduações, é advogado, habilitado, está estudando pra ser desembargador. Então você vê que ele já passou e foi embora, né? Isso é legal, a gente saber que a gente contribuiu, uma forma de incentivo pra ele, porque a gente vê isso como algo tão distante pra gente, algo que a gente nem imaginava. Sinceramente eu não imaginava o que era uma faculdade, fazer uma faculdade. Não. A ideia era terminar a quarta série, depois ir até a oitava, quem fosse até a oitava já era um nível bem acima e quem tinha o segundo grau, que agora acho que não é mais nem segundo grau, no meu tempo era, quem conseguia fazer o segundo grau era professor. Porque, na época, a minha irmã se formou pra ser professora. Então era o segundo grau, que era Magistério, que fazia. E aí quando terminava o segundo grau você já podia lecionar, dar aula. Pra você ver como era. E aí, puxa, entrar numa faculdade... quando a associação falou: “A gente conseguiu pra você meia bolsa, você quer?”, eu: “Quero”, mas aquela sensação: “Será?” E, nossa, quando eu tive oportunidade de concluir, que vi minha família lá, junta, foi bem marcante isso. Acho que é uma conquista conjunta, de todos. Então, valeu muito a pena.

P/1 – E você ‘levou muita porta na cara’?

R – A gente sempre leva, né? De tudo. Mas eu acho que essas portas que se fecham ensinam, dá ensinamento pra outras que a gente pode abrir, que possam se abrir. É normal você chegar numa empresa, se oferecer e a empresa, por algum motivo, por não ter, por não querer, dizer não, mas vale muito o aprendizado pra você. Eu sempre pensei assim: “O não eu já tenho”. Eu sempre fui muito assim, quando eu fui em busca de alguma coisa, sempre: “Cara, o não eu já tenho. Então eu não vou sofrer se eu ganhar um não”. A gente vê muito isso quando busca patrocínio. Então, se disser um não, ok. Eu vou pegar os detalhes ali e ver o que eu posso melhorar pra, na outra empresa, oferecer algo a mais. Então, as portas que se fecham nos ensinam, por mais que algum método doa, a gente não consiga entender, mas elas nos ensinam que outras portas vão se abrir e a gente tem que estar preparado pra essas outras que vão se abrir. E eu tiro isso não só pra mim, mas eu ensino muito, eu converso muito com os colegas: “Poxa, eu fui pra uma competição e não ganhei” “Mas aí, o que você fez?” “Não, eu treinei, fiz isso” “Muda alguma coisa? Você pode fazer alguma coisa?” “Posso” “Então melhora pra, na próxima, você corrigir essas falhas”. E isso vem desde a faculdade, então você vê que está ligado na vida da gente, independente de onde você está, no esporte, não tem nada a ver com o estudo, mas tudo é ligado, uma coisa vai ensinando a gente a aprender, a ouvir um não e a gente vai continuar vivendo e batalhando.

P/1 – Teve alguma porta fechada que foi bem significativa? Não?
R – Não. Eu acho que eu nunca guardei isso. Eu tenho muitas que foram significativas positivamente, que se abriram. Agora, que ficaram guardadas: “Poxa, eu fiquei muito triste, tenho uma mágoa”, acho que eu não tenho de nenhuma, porque eu sempre procurei tirar coisas positivas disso, mesmo das que não se abriram as portas, as vezes que eu corri atrás e, nossa, eu vou te falar: a região norte era muito difícil. Aqui, São Paulo, é muito privilegiado na parte de conseguir apoio, essas coisas. Estrutura. Quando a gente morava em Rondônia, 99% das empresas que eu ia atrás de patrocínio pra viajar era não. Então eu já ia sem sofrer. (risos) Quando falava sim, eu: “O quê?” Já até me espantava. Então não cheguei a guardar nenhum, assim.

P/1 – E, Edson, pensando na sua trajetória de vida, você já sofreu algum tipo de preconceito, discriminação?

R – Nossa, a gente sofre muito! Diversas vezes eu estou em fila e aí chega outro deficiente, que geralmente é da mesma classe... um tempo atrás eu estava numa fila e chegou uma senhorinha e começou a xingar atrás, que eu não tinha deficiência, não sei o quê. A gente tem que relevar, porque é normal as pessoas te olharem diferente. Às vezes as pessoas chegam: “Nossa, que tadinho! Você quebrou o braço!” E às vezes você está ‘de boa’: “Não, não quebrei, não”. Criança vem: “Nossa, tio, você quebrou o braço” “Não, eu desobedeci minha mãe e fiquei assim”. Aí os meninos... (risos) a gente leva na brincadeira. Mas tem muita gente que vem com ar de pena. Eu acho que não tem que ter pena de deficiência. A pessoa nasceu com uma dificuldade, ou adquiriu aquela dificuldade, não porque ela quis, mas ela tem e está vivendo. E aí tem muita gente que olha com ar de pena: “Nossa, que tadinho!” Aí às vezes você não está num momento legal, dá aquela respirada: “Caraca”. A gente procura ser educado, mas tem muito, muito. A todo momento a gente vê, acontece. O que eu acho é que nós não temos que nos minimizar, nos sentir pobre coitados nesse sentido, porque isso é a opinião da outra pessoa e eu não tenho que aceitar a opinião dela pra mim. Se ela quer pensar assim, o problema é dela. Eu não preciso deixar isso me machucar, me martirizar, me fazer sofrer, porque alguém zoou, zombou da minha deficiência ou teve algum preconceito comigo. Por isso muita gente sofre, porque elas se minimizam, ficam com aquela sensação de: “Ah, eu sou um pobre coitado”. Não. Nós somos iguais. Eu procuro sempre falar: “Independente da nossa deficiência, a gente é igual”. Tem um colega meu que é cego e o cara é um advogado que conhece de leis sem igual. O cara é inteligente ao extremo. E tem um monte de gente que tem a vista boa e tem 50% da capacidade e inteligência dele. Então cada um de nós temos as nossas limitações. Todos nós, eu falo, somos deficientes. Todos nós temos uma deficiência. Independente dela ser física, ser por algum problema psicológico, algum tipo de medo, mas nós temos alguma deficiência, todos nós, e a gente tem que se respeitar. Mas tem pessoas que, sei lá se elas sofrem, são tristes e tentam passar essa tristeza pra outros, discriminando e aí é onde algumas pessoas assimilam. Eu tenho vários colegas que são negros. A gente brinca. O cara me chama de ‘aleijado’, eu o chamo de ‘macaco’, ‘seu preto’, mas a gente não leva aquilo como uma discriminação. Agora, se alguém me chama de ‘aleijado’ e eu assimilo aquilo, recebo aquilo, aí eu vou sofrer. Então eu procuro fazer isso e ensino pros meus filhos, porque eles não têm deficiência física, mas eu ensino pra eles: “Filhos, vocês têm deficiências. Em algumas coisas vocês são falhos e tem outras pessoas que, talvez, fisicamente não têm a mesma perfeição física que vocês e sejam melhores do que vocês”. Então eu ensino isso pra eles: “Vai ter momentos que vocês vão ser discriminados. Todo mundo é, independente de ser deficiente ou não. Agora, você vai trazer isso pra você, vai querer receber esse sofrimento?” Então, eu procuro fazer muito isso, pra não... mas a gente, diariamente. Às vezes paro, eu tenho cartão, paro no cartão de deficiente, as pessoas chegam: “Ô, você e deficiente?” Eu falo: “Não, eu peguei o cartão emprestado”. (risos) Dá vontade. Já aconteceu de eu parar num lugar de deficiente e uma cara vir: “Eu queria ver se você era deficiente”. Eu: “Tudo bem, está aqui o cartão”. Então, ‘N’ motivos de preconceito, mas a vida é isso, a gente tem que vencer, viver e se superar. É isso.

P/1 – Você já enfrentou alguma dificuldade pra entrar no mercado de trabalho?



R – Já, bastante. Porque nem toda empresa vê as pessoas com os olhos de um colaborador, alguém que está lá em busca de emprego, independente da limitação ou não. E aí ela já faz a primeira interpretação, que é aquela de olhar e poxa, esse aí... então você entra já sabendo que... (risos) às vezes até chamam pra entrevista, conversa, mas você já vai sabendo que... eu acho que foi por isso que eu sempre fiquei próximo das associações de deficientes. Porque quando eles encaminham, a empresa já sabe que é portadora de necessidades, que é deficiente físico e aí você já chega, a empresa já está aberta pra receber uma pessoa com deficiência. Então ela está ciente. E, às vezes, quando a gente se candidata... às vezes eu me candidatava, chegava no lugar: “Você precisa de adaptação? Mas não pode fazer adaptação” “Não, mas eu não preciso de nada” “Não, mas...”. Então, as pessoas já começam a colocar os empecilhos que teriam pra empresa, que poderiam ter no futuro e aí já dificulta um pouco, mas isso, infelizmente, aconteceu e acontece, a gente vê acontecer até hoje.

P/1 – Como você acha que isso pode ser melhorado? O que pode ser feito pra que mais empresas melhorem essa questão de inserção de pessoas com deficiência?

R – Eu acho que isso é um passo… ainda uma coisa que vai acontecer muito no futuro, mas que está sendo trabalhado, hoje, com a inclusão das crianças no convívio das escolas. Então, hoje, onde os meus filhos estudam tem vários colegas deles que têm deficiência física, deficiência intelectual e eles têm esse convívio junto, que antes era pouco visto isso, há muito tempo. E hoje isso está inserido. As crianças com deficiência, independente delas, têm que ir pra escola, as escolas se adaptam pra aquelas crianças e as outras crianças que não têm nenhum tipo de deficiência física começam a observar as crianças como iguais. E essas crianças um dia vão ser líderes de empresa, gestores, ou donos de empresa e eles vão já ter esse entendimento, porque eles conviveram. O que acontece é que por muito tempo a pessoa com deficiência ficou muito reclusa, presa. Antes tinha muito isso, de ser deficiente, ficava em casa. No nosso clube direto apareciam pessoas que com quinze anos nem andava e começaram a praticar esporte, depois de dois, três anos já estavam se arrastando. Com cinco, seis anos estavam andando de ônibus sozinha. Com a deficiência, sim, mas aprendia a andar se segurando, ou com uma muleta e isso, hoje, os clubes têm trabalhado mais e mais, as associações de deficientes, as entidades, porque hoje a gente vive um momento de que eu até brinco: “Está faltando deficiente”. (risos) Então tem muitas empresas que têm vagas pra contratar pessoas com deficiência e não tem, porque a oferta está grande e a quantidade que tem não. Muitos por não quererem se inserir no mercado de trabalho e muitos porque já estão no mercado de trabalho. E no esporte, hoje, a gente fala, é claro, a gente vê a escassez de deficientes. Tem países igual a China que vão pros jogos com duzentos, trezentos atletas, com cem e a gente vai com cinquenta, sessenta. Então eles têm uma multidão de pessoas com deficiência lá, treinando, trabalhando e começam a trabalhar desde cedo. No Brasil, não, vai começar a trabalhar com quinze anos, dezoito anos. Então começa a perder a qualidade do movimento, um monte de coisa, mas o trabalho que está sendo feito, hoje, nos estados, dessa inclusão desde criança tem um futuro brilhante pela frente. E as crianças, hoje, é o que pode mudar o nosso país no futuro. Basta a gente educá-las, ensiná-las a respeitar. Meus filhos convivem todo dia com pessoas com deficiência, nossos amigos e eles não têm diferença, então eles já sabem. Tem um colega nosso que é cego. Eles já sabem: quando eles vão andar com ele, já dá o braço pra ele. Quando eles vão mostrar alguma coisa: “Tio, aqui, ó”. Aí ele já põe na mão, porque o olho dele é o tato. Cadeiras eles já sabem empurrar. Então eles entendem. E hoje muitas crianças estão tendo esse convívio. O Comitê Paralímpico, quando vão ter competições, levam as crianças das escolas para elas assistirem as competições, conviverem, participarem e aí eles vão tendo esse entendimento e com certeza a mudança vai partir daí.

P/1 – Como foi participar do Programa Transformação Profissional, da EY?


R – Ah, foi bem legal, viu? No começo eu fiquei muito perdido, porque foi uma coisa totalmente diferente pra mim, mas depois eu fui tendo um entendimento do quão era legal ter essa visão, porque eles conseguem levar a gente pra um mundo onde a gente começa a ver outras coisas. Ensina o pós, coisa que a gente não pensa. Pós-carreira, essa transição. Antes eu pensava simplesmente: o dia que eu for parar, amanhã. Agora não, tem tudo... e eu já comecei a trabalhar isso desde quando eu fiz, então quando eles vieram fazer a proposta pra mim, eu falei: “Mas eu não tenho a intenção de parar. Vocês já querem me aposentar?” Eles: “Não, a gente quer trabalhar com você pra que você comece a ter uma visão mais lá na frente, no pós-carreira”. E a gente fez esse trabalho e de lá pra cá eu tenho colocado muito isso em prática e eu tenho uma meta de continuar treinando até uma determinada data, mas tudo que eu podia fazer pra me organizar pra isso, já antecipei uns três anos. Então foi fenomenal, falei pra vários colegas: “Se tiver oportunidade, faça. No começo vocês ficam meio perdidos, mas...”. Aí eu peguei a Alessandra, uma profissional fora de série que, nossa, me abriu a visão de um jeito que... e foi daí que eu comecei a gostar mais de estudar, começar a ler. Então hoje eu procuro ler tudo um pouco, dentro de tudo que eles me passaram, ela me passou, eu procuro ler [sobre] economia, política. Então, todo ambiente, hoje, que eu estiver com determinadas pessoas e as pessoas começarem: “Vamos falar de política”, eu tenho um pouco de entendimento de política, sobre saúde do Brasil, educação do Brasil, economia do Brasil. Eu quase me formei em Economia, só por causa disso. (risos)

P/1 – Que ano foi isso?











R – Nossa! Aí, agora, você... acho que deve ter uns três anos, mais ou menos. Três, quatro anos. Acho que foi. Deve ter uns três, quatro anos que a gente fez esse trabalho.

P/1 – E o maior aprendizado?

R – É que a gente tem que se planejar pra tudo. Planejamento é a base de tudo e hoje eu uso esse aprendizado pro esporte também, que eu me planejo tudo que vai ter na competição, o que eu vou gastar, a privação de família, porque tem que treinar, planejo meu tempo de sono. Consigo fazer hoje, tudo, sem sofrer. Porque antes de eu fazer eu tentava me planejar e eu sofria com o planejamento. Agora, não. Agora eu consigo planejar as coisas fluindo normalmente. Então pra mim o planejamento foi o maior aprendizado.

P/1 – Edson, eu queria saber como você conheceu sua esposa.

R – A conheci através da associação de deficientes. (risos) Tudo envolve a associação de deficientes. Esse projeto lá na nossa cidade, em Porto Velho, de trabalhar com pessoas com deficiência na empresa de distribuição de energia, depois de um tempo que eu estava… começou e aí eu falo pra ela que até hoje eu lembro do dia que ela entrou lá na empresa, a vi passando na porta e eu já me encantei por ela, só que ela era muito fechada e a gente foi se conhecendo e depois de um tempo a gente começou a namorar e aí já tem 22 anos que a gente se conhece, 21 anos de casados. Tem bastante tempo já.

P/1 – Como foi o casamento?

R – Foi do nada, assim. A gente tinha brigado, aí eu fui na joalheria, comprei a aliança, (risos) cheguei lá na casa dela e a pedi em casamento, e aí ela falou: “Vai lá pedir pra minha mãe e pro meu irmão”. Eu falei: “Tá”. Mas aquele ‘tá’ sem coragem. (risos) E fui lá onde eles estavam, era no dia do aniversário do meu cunhado, irmão dela e aí cheguei lá pra eles e aí falei que queria minha esposa, a Cibele, em casamento e aí a mãe dela, na hora, olhou pra mim e falou: “Você tem certeza que você quer casar com ela?” Eu falei: “Tenho” e ela falou: “Essa mulher é uma ‘cobra’”. Aí meu cunhado: “Cara, se você fazê-la sofrer, eu vou cortar seus bagos e não sei o quê” e já começou a me ameaçar, e eu: “Não, tudo bem”, tal. E a gente está firme e forte. Passamos por muitas dificuldades, eu acho que todo casamento passa, mas a gente se ama muito, respeita muito um ao outro, quer muito bem um do outro e tanto ela me apoia muito, como eu a apoio em tudo que ela faz também e estamos aí, firmes.







P/1 – E vocês sempre pensaram em ter filhos?

R – Nossa, no começo eu não queria ter filho, não, porque eu sempre via as pessoas casarem e logo no começo do casamento ter filhos e começarem a ter dificuldades. Então eu sempre falava pra ela: “A gente tem que aproveitar tudo que a gente tem pra aproveitar, que a gente quer fazer, pra depois a gente pensar em casar”. E foi isso que a gente fez. A gente ficou muito tempo passeando, viajando, indo pros lugares. A gente fazia tudo... como a gente não tinha dinheiro, fazia muito passeio gratuito, então a gente viajava de graça, em ônibus de empresa a gente conseguia vaga pra ir, fazia turismo por todo canto, era aventureiro e aí depois de um tempo a gente resolveu que estava na hora da gente ter filhos e a gente teve, ela teve uma gestação que no início não deu certo, aí depois a gente trabalhou e aí foi quando nasceu nosso primeiro, que ele nasceu em 2009, a gente se casou em 2001 e aí o nosso primeiro veio em 2009, que é o Davi. E aí, quando foi em 2012 a gente teve o Samuel. A ideia era ter cinco, mas devido ao sofrimento da gestação, gravidez, eu sempre acompanhei de perto, a gente decidiu que dois estava bom. Aí operou, pra já não ter mais risco de ter.

P/1 – E como foi se tornar pai? O que a paternidade representa na sua vida?























R – É outra vida. Você deixa de ser a pessoa que você era e se torna outra. Porque ser pai é tudo diferente daquilo que você já fez. Tudo, tudo, tudo, tudo. Não existe cartilha pronta, ensinamento pronto. Você pode ler cinquenta livros, mas amanhã vai acontecer uma situação que não está em nenhum daqueles cinquenta livros, então é uma dedicação sem limites. Já fui pra hospital ficar com meu filho. Problema respiratório, de criança, que era comum, de ficar de oito horas da noite, até cinco horas da manhã, ele vomitando, eu segurando o saco e ele tomando medicação e ali do lado, sem dormir, diversas vezes já fiquei na beira de cama, cuidando, segurando aparelho de inalação. Então a gente faz coisas que a gente nem imagina, no sentido de cuidar, de tirar da boca o que você tem. Está comendo um chocolate, ele: “Pai, me dá um pedaço disso aí”. Você vê que só tem um pedaço, tira da sua boca e dá. Então, é algo que é bênção, porque ter oportunidade de ser pai é o maior presente, acho que vale mais do que as medalhas. Vale muito mais do que as medalhas, do que tudo, porque não imaginaria que era tão bom. É bom e trabalhoso. (risos) Mas tipo assim: vinte horas de trabalho e quatro de alegria. (risos) Mas essas quatro horas são... e eu mudei muito, depois, sendo pai, mudei com a minha mãe, com comportamento. A gente sempre foi muito seco em família. Hoje eu falo muito pra minha mãe que eu a amo, que eu sou grato a ela, por tudo. Então ser pai me ensinou também a ver mais a minha mãe com outros olhos, de uma forma geral. Mais humilde, mais alegre, mais mole.

P/1 – E sua relação com o Davi e o Samuel, é muito diferente?

R – Isso é uma coisa que a gente trabalha muito, pra tentar não ser. Mas, querendo ou não, o pequeno sempre chama mais atenção. O menor sempre é mais carinhoso, a gente tem que ter um cuidado maior com ele e a gente sempre coloca pro grande: “Cuida do teu irmão”. Parece que era igual antigamente (risos) comigo, e hoje eu falo: “Cuida do teu irmão. Você é o maior, então você tem que cuidar dele”. E às vezes ele se sente cobrado, nesse sentido, mas eu falo muito: “Filho, eu não amo seu irmão mais do que você, o tamanho do meu amor por ele é por você. Uma coisa que eu tiro da minha boca pra dar pra você, eu tiro pra dar pra ele e vice-versa”. Só que é uma criança fenomenal: está com treze anos, aí agora tem que começar com outras conversas, porque vai começar a entrar na adolescência e a gente tem que ter a preocupação de ensinar pra ele as coisas tudo certinho, mas os dois a gente tem uma relação bem igual, bem próxima, coisa que eu não tive com os meus pais, mas eu procuro… às vezes dá vontade de explodir, de bater. Não, não é assim. Vou conversar, dar um castigo, tirar alguma coisa pra que ele entenda que é autoridade, mas são meus amigos, eles. Eu falo pra eles: “Vocês são meus amigos”.

P/1 – E, Edson, como é o seu dia a dia, a rotina?







R – É corrido. Você viu como é pra gente conseguir marcar, pra estar aqui. Geralmente eu acordo seis horas e aí tomo café, me arrumo, dou café pro Davi, o levo pra escola e aí vou pro treino. Geralmente meu treino termina uma, uma e meia, aí volto pra casa, almoço, tem que ter um período de descanso pra recuperar a musculatura e aí, geralmente no final da tarde a gente faz algum trabalho de recuperação, de fisioterapia, alguma coisa que tem que fazer pra no outro dia estar apto a realizar o treino mais forte do que no dia anterior. É sempre assim. Então, é bem ‘puxado’, uma rotina bem corrida. Mas é gostoso.

P/1 – E aí você tem os filhos e a esposa…

R - Nossa, então, chego em casa, às vezes, cansado e os meninos estão naquela energia de criança. Aí quer jogar videogame, quer descer pra jogar basquete, quer jogar futebol, quer andar de bicicleta. Aí tem que achar energia pra fazer isso. Mas a gente sempre consegue. A gente não sabe de onde tira essa energia, não, mas sempre consegue e aí tem que dar atenção pra esposa também, falar sobre como foi o dia, que eu acho importante a gente compartilhar, ouvir dela e ela ouvir também. E quando deita, só cai. (risos) É muito assim: a gente deita e apaga. Tem dias que são bem difíceis. E também tem dias que eu chego e não aguento, falo: “Hoje não dá, eu tenho que deitar e dormir até amanhã” e a gente faz isso. E eles entendem quando dá, quando não dá… Às vezes, de finais de semana tem muitos que a gente consegue sair pra passear, ir pra algum lugar. Tem muitos finais de semana que não consegue, que eu preciso descansar o final de semana inteiro. E eles entendem que não tem problema e ok.

P/1 – O que você gosta de fazer, de lazer?

R – Ah, eu gosto de fazer churrasco, gosto de inventar comida. Meu negócio é (risos) sobre comida. Então eu gosto de fazer churrasco, às vezes eu gosto de ir pro parque, passear. Gosto de levá-los pra andar de bicicleta, pra piscina, eles amam piscina. E é gostoso fazer essas coisas, porque me remete muito assim: “Poxa, não tive isso e hoje eu estou tendo a oportunidade de ter e dar pros meus filhos”. Então eu sou muito grato por isso. Procuro agradecer muito, por tudo, porque eu acho que é importante a gente ter essa gratidão, então... mas eu me divirto bastante. Mas meu negócio é comer, eu amo comer. Acho que eu passei muita dificuldade quando era pequeno. (risos) Nossa, eu sou viciado em churrasco. Aí tem que fazer direto.

P/1 – E tem alguém que te inspira ou te inspirou muito?

R – Então, eu acho que eu procuro tirar um pouquinho de cada pessoa. Sempre tem uma pessoa que vai trazer uma inspiração, num sentido. Eu tenho um exemplo de um casal de colegas nossos, ele é cego e a esposa dele é cadeirante. Então a gente fala que ela é os olhos dele e ele é as pernas dela. E eles são aventureiros. Foram, pra você ter um exemplo, pra Europa, ficaram quinze dias subindo e descendo de ônibus, conhecendo a Europa inteira passeando e ele a empurrando de cadeira pra todo lado e ela guiando. Então essa parte eu falo: “Se eles conseguem fazer, por que eu não consigo? Eu ando”. Então eu me inspiro neles pra ter esse espírito aventureiro. E aí tem outros colegas que já são mais voltados pros estudos e conhecimento. O cara cheio de dificuldades físicas, que a gente vê e é uma baita pessoa, tem uma baita inteligência. Se ele consegue, também posso conseguir. Eu tenho que me dedicar. Então eu procuro tirar um pouquinho de cada um. Que às vezes a gente se apega em: “Eu tenho uma determinada pessoa como meu ídolo” e aí, por uma determinada situação, às vezes alheia a vontade da pessoa, acontece um imprevisto e a pessoa passa por uma situação negativa e é frustrante pra quem tem aquela pessoa como ídolo. Então eu procuro ter mais, ter vários ídolos, várias pessoas assim, que sejam sinônimos de algum exemplo, de educação. Tem várias pessoas que, quando eu penso em não ser educado, eu lembro da pessoa: “Aquela pessoa é mega power educada, então por que eu não vou ser? Eu quero ser igual aquela pessoa” e aí eu procuro ser o mais educado possível. Ajudar o próximo, tem pessoas que eu vejo que tiram a roupa do corpo pra ajudar a outra, eu falo: “Se ele faz, por que eu não posso fazer?” Então um pouquinho de cada, pra ter... seria um ídolo universal, assim. (risos)

P/1 – E quais são seus sonhos?

R – Ah, o meu sonho, hoje, é representar o Brasil nas Paraolimpíadas de Paris e sair de lá com a medalha. Hoje esse é o meu sonho.

P/1 – A gente está chegando ao fim. Queria te perguntar se você tem algum... quer falar alguma coisa, de algum momento da sua vida que eu não tenha te perguntado, de alguém, alguma história.

R – Acho que eu ia comentar e esqueci: quando a gente mudou pra São Paulo, que a gente chegou aqui, eu fui no mercado e vi um monte de coisa pra vender. Eu vi abacate. Coisas que até mesmo em Porto Velho a gente tem em todo lugar, na rua. Manga, ninguém compra, tem manga em todo canto. Mamão. E eu chegava nos mercados aqui em São Paulo e eu ficava: “Quem compra isso?” E eu via as pessoas pegando. (risos) Então são essas coisas engraçadas, de quando você sai de um determinado lugar, que vai pra outro e aqui em São Paulo eu tenho muitas dessas lembranças. Até hoje eu vou no mercado e vejo e falo: “Cara, eu sei que tem...”. Inclusive eu já comprei, (risos) porque aqui a gente não tem de onde tirar. Acho que seria mais ou menos isso que a gente... de tantas histórias engraçadas, essa aí ficou de lado. Mas acho que a gente já falou bastante coisa, eu já falei até coisas que nem lembrava mais. A gente foi conversando e veio na memória, então obrigado, viu, pelo convite.

P/1 – E seus filhos sabem, conhecem um pouco sua história, você divide com eles?

R – Sim. A gente procura sempre colocar, pra eles entenderem, valorizarem tudo: as coisas, as pessoas, as coisas materiais, a escola, as pessoas que estão lá na escola, desde todos: a diretora, o professor, o zelador. Eu lembro que quando eu fui levar meu filho pra escola, a primeira vez que eu o deixei, conversei com a professora, falei: “Aqui quem manda é a senhora. Se precisar corrigir, a senhora pode corrigir, corrige, só me avisa o porquê, que aí eu o corrijo em casa também” e a professora desse jeito assim: “Não, pai, aqui a gente não faz isso”. Eu falei: “Não, mas eu estou autorizando a senhora”. (risos) Porque eu vivi isso. Então, eu ensino isso pra eles e hoje eu falo pra eles: “Eu falei pra professora te dar um coro”. (risos) Ele fala: “Pai, eu só fiz isso”. Porque meus pais faziam isso, tipo: se a gente chegasse em casa com bilhete da escola, a gente levava uma surra. Aí a mãe ia na escola. Quando a gente voltava, levava outra surra. Então eram duas surras que a gente levava. E eu falo pra eles como que é e falo mesmo: “Filhos, quando vocês tiverem seus filhos, procurem conversar mais, entendê-los. Não é pra aceitar tudo, igual eu não aceito que vocês façam. Aqui tem autoridade do pai e da mãe, mas vocês podem colocar opinião. Se a gente vai dizer não, tudo bem. A maioria das vezes vai dizer não, mas é importante vocês falarem, a gente falar”. Eu falo muito pra eles como era nossa vida, lá atrás, pra não entrar na condição de: “Tenho tudo, nasci e não vou valorizar nada”. Eu os ensino a valorizar a água, a energia. Se gastou demais, vai perder um passeio. “Nós não vamos?” “Não. Vocês gastaram as coisas, então perderam”. Então os coloquei pra fazer trabalhos em casa pra poder ganhar a mesadinha deles. Então eu procuro transmitir pra eles de uma forma mais amena do que a gente viveu, mas transmitir esses valores pra eles, pra que eles possam crescer sendo cidadãos de bem. Ensino muito os deveres deles. Que hoje, infelizmente, nós temos a mania de ensinar e aprender só nossos direitos e quando eu fui pra Inglaterra, a primeira coisa que eu aprendi lá, com as pessoas, foi os deveres. As pessoas seguem ‘a ferro’ os deveres delas, independente da idade. Eles fazem o dever deles muito bem, só que o direito deles todo mundo já sabe quais são e cumprem certinho. Eu comecei a trabalhar isso comigo: “Cara, qual é o meu dever?” Comecei a trabalhar muito os meus deveres. Então eu procuro transferir isso para eles: “Aprendam seus deveres”, porque os direitos vão vir naturalmente.

P/1 – Você gostaria de deixar alguma mensagem?



















R – A mensagem que eu sempre gosto de passar pras pessoas é que a gente tem que lutar pelos nossos sonhos, objetivos e não aceitar que outras pessoas venham e limitem a nossa capacidade, que nós podemos, sempre, nos superar. Basta a gente ter força de vontade. Por mais que naquele momento a gente não veja muito o resultado, mas a longo prazo a gente sempre consegue. Basta a gente perseverar, lutar e não desanimar. E em relação ao esporte, esporte é vida, transforma, tem muito exemplo de pessoas que foram transformadas e quem tiver oportunidade de praticar esporte por simples saúde, simplesmente melhorar a qualidade de vida, de saúde, é importante, vale a pena e isso melhora muito, em todos os sentidos.

P/1 – Pra finalizar, rapidamente queria fazer uma viagem no túnel do tempo: sua primeira lembrança de vida. Você consegue resgatar?









R – (risos) Não. Eu acho que uma lembrança que eu tenho de vida, caramba! Acho que é dos barcos descendo e subindo o Rio Juruá. Acho que seria mais ou menos... você via muitos barcos descerem e subirem. (risos) Não todo dia, porque passava um a cada quatro, cinco, seis dias, mas a gente sempre via os barcos passando. A gente morava muito perto do rio, então existia muito essa proximidade e, querendo ou não, barco passando é uma viagem passando, remete a alguns sonhos. Acho que naquele momento devia passar: “Cara, eu ali dentro iria pra tal lugar, ia fazer tal coisa”. Agora a gente vê um avião passar e a gente fala: “Nossa, o cara está indo pra tal lugar, vai pra uma praia, férias, vai pra tal país”. Acho que remete muito a essa viagem.









P/1 – E hoje, como foi ver a sua viagem de vida aqui e compartilhar com a gente?

R – Nossa, foi emocionante, viu? Acho que eu ganhei muito com isso, de ter vindo aqui, de ter participado desse momento aqui, com vocês, de ter feito, ter relembrado coisas que acho que já tinham se perdido na memória e conseguir trazer. Eu acho que elas vão ficar aqui comigo por bastante tempo. Vou procurar conversar mais com a minha mãe, pra ela contar mais histórias pra mim. (risos) Foi muito emocionante, viu, teve momentos que achei que ia pingar uma lágrima.

P/1 – Eu não tenho palavras pra agradecer, mesmo, por você estar aqui, poder compartilhar tudo isso com a gente. Acho que isso não tem preço, pra mim. Muito, muito, muito obrigada, mesmo.

R – Eu acho que… eu tenho as mesmas palavras que eu vou usar também: eu não tenho palavras pra agradecer por esse momento do túnel do tempo, ter voltado, poder fazer esse registro, contar essas histórias. Você ter conduzido muito bem pra me fazer lembrar dessas coisas que já estavam perdidas na minha memória. Eu tenho certeza que vai ficar marcado esse dia de hoje pra mim. Obrigado, viu?































P/1 – Pra nós também. Eu que agradeço.