Museu da Pessoa

A vida como era e como pode ser pra frente

autoria: Museu da Pessoa personagem: Joaquim Gonçalves Mendes (Seu Belisca)

Depoimento de Joaquim Gonçalves Mendes, “Seu Belisca”
Entrevistada por Gustavo Ribeiro Sanchez
Mutum, 26/06/2010
Realização Museu da Pessoa
Entrevista MB_HV132
Transcrito por Karina Medici Barrella
Revisado por Sinei Sales


P/1 – Pra começar, vou pedir pro senhor falar o seu nome completo, o local e a data que o senhor nasceu.



R – O meu nome completo é Joaquim Gonçalves Mendes. Nasci em Guajará, mas me criei pro Amazonas. Nasci no dia 16 de janeiro de 1933.



P/1 – E, seu Joaquim, todo mundo chama o senhor de seu Joaquim ou tem algum apelido?



R – Alguns me chamam de Belisca. Aqui bem pouca gente sabia meu nome quando eu cheguei; era só Belisca. Se chegasse uma correspondência no meu nome mesmo, ninguém sabia quem era. Agora já sabem; um bocado deles aqui já sabe o meu nome.



P/1 – Seu Joaquim, o senhor nasceu em...?



R – Guajará.



P/1 – Lá em Guajará o senhor foi criado pela sua mãe e seu pai? Como é que foi?



R – Não, eu só nasci lá. Tem no registro, mas eu acho que vim de lá pequenininho. Eu me criei aqui pro Amazonas e, que eu me lembre mesmo, lembro das passagens no Amazonas.



P/1 – E do Amazonas, você se lembra de quem? Você foi criado com quem?



R – Eu fui criado com meu pai e minha mãe até um tempo. Depois, eles se deixaram e meu pai debandou. Eu fiquei com minha mãe o tempo todo, me criei com ela.



P/1 – E o que os seus pais faziam da vida?



R – Ele cortava seringa e ela trabalhava em lavoura.



P/1 – Cortava seringa onde?



R – Cortava seringa em Três Casas. Nesse tempo, Três Casas era dos Lobos. Depois cortou no Pariri, Pariri era do R.C. Santo. Foi lá no Pariri que eles se deixaram. Ele mudou pra outro canto e nós ficamos lá no Pariri. Do Pariri nós fomos pro Bom Futuro, nesse tempo era Valdemar Carvalho. Passamos uns anos no Bom Futuro, de lá nós entramos no Igarapé do Acará e fomos morar em um lugar lá perto do Igarapé do Jacaré, uma colocação chamada Cucuí. De lá nós saímos, varamos por terra, por Castanhal. Naquele tempo, Castanhal era do Bartolomeu Guerreiro. Passamos uns anos lá, de lá fomos pra Itapuru que era de Vladimir Brasil.



P/1 – Isso tudo o senhor era menino?



R – Ainda era pequeno. Quando saímos do Tapuru, eu tinha na base dos 14 anos. Eu já estava por conta da casa. O meu irmão maior já tinha debandado também, e eu fiquei por conta da casa desde os 14 anos.



P/1 – Quantos irmãos o senhor tinha?



R – Eu tinha... Nós éramos, me deixa ver... Irmãos homens eu tinha quatro.



P/1 – E todos trabalhavam na seringa desde pequeno?



R – Trabalhavam na seringa desde pequenos.



P/1 – Com seu pai e sua mãe?



R – Eles também. Tem um que é aposentado, ele é um pouco mais velho que eu, foi soldado da borracha também. Agora, só temos dois irmãos vivos, o resto já faleceu.



P/1 – Que lembranças o senhor tem do seu pai?



R – Eu me lembro que ele era um homem baixinho e barbudo. O que ele tinha de grande era a orelha, era orelhudo. Acho que é por isso que eu nasci orelhudo também. Dizem que a pessoa que tem a orelha graúda custa a morrer (risos), e eu acho que sim, porque ele era bem velhinho já... Uns anos depois deles estarem separados, quando nós moravámos na Ponta do Miriti, era do Rolando Beleza, ele morava junto com o meu irmão. Nós morávamos ali e ele morava perto. Depois de lá nós mudamos e depois de um tempo ele faleceu. Desse tempo que nós moramos lá, na Ponta, eu não vi mais ele.



P/1 – Ele era um pai bravo? Vocês só trabalhavam...



R – Eles dois não se entendiam bem, às vezes, marido e mulher não se entendem bem. Eu nem sei disso porque eles se deixaram, mas não era bravo, não.



P/1 – E a mãe do senhor? O que o senhor se lembra dela?



R – Ela me criou. Nós viemos pra cá e ela veio junto. Eu nunca deixei ela. No dia da gente ir, a gente ia tudo junto. Eu não podia largar ela. Ela adoeceu aqui, já desde os Três Irmãos. Eu cheguei aqui nessa região em maio de 59. Eu trabalhei o primeiro ano abaixo da linha do Palmiral, na Conceição, comprei lá. Deixei meu irmão lá e, em 60, eu comprei aqui nos Três Irmãos uma colocação de seringa. Nós viemos com minha mãe, eu fiquei trabalhando e ela adoeceu, um problema na língua dela. Eu fui a Porto Velho, a Bolívia, levei ela pra consultar lá. Fui a Porto Velho uma porção de vezes, mas não tinha jeito. Eu tinha uma irmã que morava em Manaus e acertou pra vir aqui, a coisa encaminhou que ela veio i e levou minha mãe pra Manaus. Ela foi até Belém, mas não teve jeito. Ela voltou pra Manaus e morreu lá. Eu fiquei por aqui mesmo.



P/1 – O senhor disse que estava sempre com ela. Então, vocês se davam bem?



R – Nos dávamos, vivíamos mais ou menos. Depois que ela morreu, eu fiquei sozinho por aqui.



P/1 – Sozinho, aqui, em Mutum?



R – É. Ali do outro lado do rio, eu morava lá mesmo, nos Três Irmãos, quando estourou o garimpo. No verão a gente trabalhava na seringa. No inverno, tinha que sair fora porque não tinha seringa. Foi aí que eu estive lavrando dormente, no tempo do trem ainda. Eu lavrei dormente ali, no 136, que era um contratista. Tive aqui no Mutum também. passamos dois verões lavrando dormente aqui, depois voltei pra lá de novo, pra trabalhar de seringa de novo.



P/1 – Até os 14 anos, o senhor trabalhou na seringa...



R – Depois de 14 anos, eu ainda trabalhei na seringa. Quando eu cheguei aqui, eu tinha uns 24 anos.



P/1 – E o que você se lembra de quando era criança trabalhando na seringa? Era difícil? O que você lembra?



R – Eu vim a começar a trabalhar na seringa já tinha de 15 pra 16 anos. Comecei trabalhando no Castanhal do Bartolomeu Guerreiro, depois que eu passei lá, morei no Tapuru, fui pra Ponta, da Ponta voltei pro Castanhal de novo. Lá morei uns anos e comecei a cortar seringa. Aquele pedacinho ali, do Humaitá pra baixo, eu conheço aquela beira de rio todinha. Eu morei muito nesse trecho aqui.



P/1 – O senhor falou de um monte de lugar que vocês passaram. Por que vocês mudavam tanto?



R – Porque quando você mora no lugar dos outros, às vezes não se dá bem, não dá certo, e se muda. Saíamos e procurávamos um lugar melhor. Quando cheguei aqui, onde eu achei melhor foi aqui, por isso, eu comprei o lugar e fiquei direto. Porque pra lá não tinha de quem comprar lugar. Quando aparecia era caro demais e não podia comprar.



P/1 – Quando você diz que vocês sempre moravam no lugar dos outros, como era? Eles emprestavam a casa e vocês trabalhavam na seringa? Como é que funcionava?



R – Eles davam a casa pra gente trabalhar e cortar na seringa,

seringueira deles. Comprava deles, vendia a borracha e comprava mercadoria. A gente fazia plantação pra comer e vender um pouco. Farinha a gente vendia. Era bom de fabricar tabaco nesse tempo, tinha muita saída. O tanto de tabaco que fizesse, vendia pra fábrica, pros comerciantes. Os regatões que passavam no Rio Madeira compravam a quantia de tabaco que fizesse, só não pegava dinheiro, não tinha dinheiro. Mas comprava mercadoria, negócio de roupa, essas coisas.



P/1 – O que é um regatão, seu Belisca?



R – São essas embarcações que andam na beira do rio, de Porto Velho pra Manaus. Ainda tem esse regatão que anda por aí, de Porto Velho a Manaus tem muito. Tem outros que não chegam a Porto Velho, vem até o meio e voltam. E onde negociamos é na beira do rio. Se a gente tem o que vender, faz sinal e eles param. Quando eles trazem a canoa, se eu encontrao com eles, faço o sinal, eles param, a gente passa pra dentro e vende o que tem.



P/1 – Seu Belisca, o senhor estava falando que fazia tabaco. Que outras coisas o senhor fazia? O senhor aprendeu tudo isso com os seus pais?



R – Foi. Fazer tabaco, a plantação que a gente fazia pra vender, era tabaco e farinhada. Plantava mandioca, fazia farinha e vendia.



P/1 – Isso que vocês plantavam era pra vender?



R – Pra vender e pra comer. No inverno a gente trabalhava só fazendo farinha pra passar o verão. No verão não fazia farinha porque secava tudo, ficava difícil. A gente plantava no começo do verão e colhia no inverno.



P/1 – E nos seis meses que vocês não trabalhavam na seringa e trabalhavam na farinha, como ficava no seringal pra pagar pro dono?



R – Parava tudo no seringal. No inverno não podia trabalhar porque alagava.



P/1 – E vocês não ficavam naquela casa?



R – Ficávamos. Passávamos o inverno lá trabalhando na roça, essas coisas todas pra colher.



P/1 – E vocês iam pra cidade com frequência?



R – Não.



P/1 – Você só ficava no mato?



R – Só ficava lá mesmo, não tinha pra onde sair, não.



P/1 – Não via carro, não tinha nada?



R – Não, lá era só embarcação, só esse motorzinho que passava lá. Se precisasse sair tinha que vir num motor desses que passava lá, essa embarcação.



P/1 – E tinha outras pessoas com quem vocês conversavam, pessoal da comunidade?



R – Não. Lá nesses barracões de seringal tinha muito morador. Era como aqui, tinha um bocado de morador, um seringueiro, outro trabalhava em plantação. A gente conversava uns com os outros.



P/1 – E vocês se ajudavam? Ou era cada um por si?



R – Era cada um por si. Ajudava no negócio de tabaco. Enquanto ia fazer o serão de noite, a gente arriava. A gente quebrava o tabaco, as folhas, enfiava na palha pra secar. Quando secava a gente arriava ele, fornava debaixo da palha de banana. O sol tá quente e ele tá esturricado. Então, arriava aquele monte de folha de tabaco, botava no canto e cobria com palha de banana, pra arrumar ele de noite, quando ele tava macio. Aí, o pessoal que tinha por perto vinha tudo pra ajudar a pastar, fazia as pastas pra formar o mole. Quando era dos outros a gente ia ajudar também e trocava dia por noite.



P/1 – E com a farinha, o que vocês faziam?



R – A gente guardava pra comer, pra passar o verão. E vendia a outra parte.



P/1 – E pra comer, comia farinha pura?



R – Não, a gente pegava peixe. No Amazonas a comida é só peixe. Naquele tempo a gente só comia carne quando matava caça na restinga. Quando alagava, ficava aquela restinga, a caça ficava em cima e a gente ia e matava pra comer. A gente só comia carne no inverno.



P/1 – Então, desde pequeno o senhor pesca também?



R – Também.



P/1 – E como que é pescar? É vara, é rede?



R – Já pesquei de caniço, de anzol, botei espinhel na beira do rio, nos igarapós. Botava espinhel pra pegar peixe. Foi só depois que eu comecei a pescar com malhadeira. Me ensinaram depois, porque eu não tinha fé. Mas na primeira vez que eu coloquei com um outro, eu comecei a criar fé de pegar com malhadeira, joga a malhadeira lá, se o peixe passar pega, se não passar não pega, mas a gente não se preocupa.



P/1 – Seu Belisca, de criança até os 14 anos era só trabalho ou vocês brincavam, tinha alguma diversão?



R – Só trabalho. Não tinha diversão.



P/1 – E tinha um dia livre na semana?



R – Tinha. Sábado, domingo.



P/1 – E o que vocês faziam no dia livre?



R – A gente ia passear, ia à festa. Aí pro Amazonas tinha festa demais. Todo sábado tinha festa.



P/1 – Conta pra gente algumas das festas daí.



R – À festa, a gente ia quando falavam: “Sábado tem festa em tal canto”. A gente de solteiro, não precisava convidar. Tinha um negócio dos convites. Aqueles que eram da família mandavam os convites. O pessoal que tinha filha moça, quem tinha filha moça e, quando tinha, era bastante convidado, e ficavam de olho na filha do cara. Convidavam ele, não era por causa dele, não. Convidava por causa das filhas, que era pra levar pra aumentar mais a festa. Porque quanto mais mulher aparecia na festa, melhor a festa. Se o peão não tinha família, eles não convidavam, o peão ia lá de apresentado. Mas eles convidavam quem tinha família, mais quem tinha filha mulher.



P/1 – E nessas festas tinha baile? O que tinha?



R – Só dança.



P/1 – Dança, vocês dançavam o quê?



R – O forró.



P/1 – Forró a noite toda?



R – Forró a noite toda. A festa de agora é comércio. Antigamente não tinha comércio, não tinha negócio de bebedeira. Agora não, quando tem uma festa é pra bebedeira. Fazem uma festa já contando com o dinheiro que vão ganhar, que vai vender bebidas.



P/1 – Naquela época, as festas já eram pra ganhar dinheiro?



R – Não, naquela época, era só pra diversão. O pessoal tinha um negócio de festa pra diversão, eu não. Eu não ia pra festa, “Eu não vou me divertir, não”. Eu ia atrás de namorar, não ia atrás de diversão, não.



P/1 – Arranjou muita namorada? (risos).



R – Arrumava. Nessas festas quem é novo tinha muita preferência.



P/1 – Tem uma história boa de festa pra contar pra gente?



R – Não, quase não (risos). Não tem tanto essas vantagens de festa. A gente ia pra namorar, pro peão ver uma mulher, mesmo mulher casada. Via a mulher de fulano de tal, o peão olhava aquela mulher, tão bacana e bonita, e se lembrava da festa logo: “Festa de fulano de tal ela vai pra lá”. E o peão já pensa no enxerimento. Na festa é um direito que o peão tem de poder agarrar a mulher do seu fulano, de quem quer que fosse. Bota as mãos nas costas dela e, às vezes, ela não se anima com todos, mas tem um que ela se anima, porque ao se encostar a uma mulher, às vezes ela tem vontade também, né?



P/1 – Tá certo (risos). Seu Belisca, o senhor falou que teve uma época em que festa era só pra ganhar dinheiro. Quando o senhor percebeu isso?



R – De uns anos pra cá, depois de eu chegar nessa região. Lá pro Amazonas, enquanto eu morava pra lá não existia bebedeira em festa. A gente fazia a festa pra dançar mesmo, um bocado ia pra se divertir. Eu, pelo menos, não ia em negócio de diversão. Quando eu ia na festa era atrás de namorar, ou de mulher solteira. No começo eu não dançava nem com mulher casada pra evitar. Mas depois, quando morava no Puruzinho, fizeram uma festa lá e foi um pessoal que eu não conhecia. Eu comecei a dançar com uma mulher casada sem saber. Depois minha irmã me chamou e disse: “Tu disse que não dançava com mulher casada?” “Eu não danço mesmo, não”. “Não, você dança. Você estava dançando com uma mulher casada, e o marido dela é aquele que está sentado perto dela”. Eu digo: “Então, agora quebrei a minha jura, agora não tem mais jeito. De agora em diante, tem que dançar com tudo, mulher casada, solteira, tudo”. Mas eu não dançava, não, pra evitar.



P/1 – Tá certo... Dava confusão?



R – Dava. Mulher casada sempre dá problema. E é o pior problema de mulher de casa, é perigoso.



P/1 – Seu Belisca, além das festas, o que vocês faziam de sábado e domingo?



R – Quando não era festa, a gente ia procurar comida. Às vezes não tinha o que comer e a gente saía, ia passear na casa dos outros. Quando estava bem folgado ia passear, quando não, saía pra procurar comida. Tinha a semana pra trabalhar e o dia de domingo pra sair, pra ir atrás de uma comida.



P/1 – Seu Belisca, vamos falar um pouquinho da seringa agora. Me conta como é o trabalho da seringa. Você já me falou que seis meses trabalha-se e seis meses não.



R – É, a gente não trabalha na seringa no inverno porque alaga tudo. A gente saía de madrugada, eu pelo menos dava um sono só, e a hora que acordava, saía pra estrada e ia cortar seringa.



P/1 – E chegava lá, como era que funcionava? Era um grupo? Cada um ia sozinho?



R – Às vezes, dois ou três parceiros trabalhavam e moravam juntos com mais dois parceiros na colocação. Eles tinham as estradas deles, a gente tinha a da gente e ficava bem animado. O peão que não fazia nada nesse inverno dizia, “nesse ano não fiz nada, mas para o ano eu vou me sair bem”. Todo tempo tinha aquele plano que no outro ano ia se sair bem, e era do mesmo jeito. Eu nunca ia pra frente porque por aqui, nas colocações, a seringa dava pouco leite mesmo. Aí, pro alto que faziam muita borracha, mas eu não podia ir porque a minha mãe era viva nesse tempo e eu não podia deixar ela. Só que o peão trabalhava no alto, ganhava um dinheiro bom, mas chegava na rua e gastava tudinho, não sabia nem em quê gastava. E eu ficava por aqui mesmo. Eu comprei esse lugar aí em 60, eu trabalhei um bocado de tempo, aí, na seringa. Depois saí e trabalhei aqui na rodagem, no dormente. Ganhei um bocado de dinheiro foi só. Começou em 77, o primeiro ano de garimpo, depois começou esse garimpo de ouro aqui. O negócio aqui era garimpo. Todo mundo aí só falava no garimpo. No primeiro ano era só manual. O garimpo começou em 77, no mês de agosto pra frente, peão que aparecia aqui, dizia que garimpeiro era tudo bravo, não conhecia nada. Esses caras que descobriram esse ouro, eles foram por São Simão e vararam a canoa pra Cachoeira do Paredão. Então, eles vararam no sarilho porque eles não podiam passar por água, passaram por pedral, jogaram a canoa pro lado de lá. Vieram uns seis homens que foram pra essa pesquisa lá.



P/1 – E em que rio que eles descobriram esse ouro?



R – Eles trabalharam e foram por São Simão, em um Igarapé que tinha em cima do paredão, eles foram fazer pesquisa lá. Só que no mês que eles foram pra lá, apareceu um maranhense aqui do outro lado, na maloca, que é colocação de seringa também. Era extremado com o meu que eu tinha lá, mais embaixo. Aí, eu tava morando lá, a gente já era vizinho e eu tava junto. Apareceram esses maranhenses atrás de garimpo também. Eu digo: “Rapaz, eu sei onde tem uma casseterita que os peões trabalharam. Eu passei lá, nós iamos varando, pra ir pegar castanha e vi lá um cascalho e tem uma casseterita lá. Não sei a quantia que dá, porque eles trabalharam lá e já saíram, eu não sei”. Ele disse: “Tu me leva lá?” “Levo”. Nós nos ajeitamos e subimos um dia, aí paramos lá no Machado, uma colocação de seringa. Lá, ainda tem um velhinho aleijado morando. Ele está até pra Porto Velho. Nesse tempo ele não morava lá, era limpo, não tinha ninguém. Nós fomos daqui, paramos lá, o cara chegou, chegou naquele pedral e disse: “Rapaz, esse pedral aqui é pra ter ouro”. Eles começaram a cuiar por lá, deram umas cuiadas e viram as fagulhas de ouro. Se animaram, foram quebrar cascalho. Quebraram um monte de cascalho e foram lavar. Lavaram aquele monte de cascalho, quando acabaram, passaram uma meia hora lavando cascalho. Quando acabaram de lavar e foram despescar a caixa, a caixa estava amarelinha de ouro. Eu olhei assim, vixi maria, mas muito mesmo. Aí foram despescar a caixa, o motor funcionando. Um mangueirinho, eles pescando a caixa, eles colocaram uma bateinha daquelas médias lá no rabo da caixa pra parar a água que descia lá com o esmeril, com o ouro. Só que o ouro fininho tem um problema, quando a água deixa de passar por cima dele e ele enxuga um pouco, quando a outra água bate ele já vai boiado, ele não afunda. Aí, descia assim, eu olhando de fora, eles desciam, chegava a amarelar em cima da batéia, e a batéia cheia de água só escorregando pra baixo. Aquele ouro tinha boiado e passava tudinho por debaixo da batéia. Eles acabaram de pescar a caixa e eu olhando, dizia: “Eles são mansos, mas são mansos bravos”. Era pra estar batendo lá pro ouro não boiar. Boiava, o rio batia e eles sentavam. Acabou, ele jogou o azogo dentro da batéia, acabou, espremeu a bolotinha de ouro. Eu digo: “Dá o quê isso?” “Dá uma base de cinco gramas”, só que eles trabalharam uma meia hora, eles lavaram uma meia hora. Eu digo: “Mas, seu Chico, agora dê uma cuiada aí onde tava a batéia”, ele disse: “Mas pra quê?”, eu digo: “Dê uma cuiada aí. Eu acho que tem ouro aí”. Ele meteu a cuia, deu uma cuiada, ela amarelou dentro da batéia, eu disse: “Tá vendo? Vocês dizem que são mansos, mas vocês não são mansos, não. Nesse caso eu sou mais manso que vocês porque eu tava vendo que esse ouro tava passando lá. Eu não falei nada porque vocês estão trabalhando lá e eu to fora, to só olhando vocês trabalharem”. Eles ficaram assim, e falaram: “Amanhã nós vamos lá ver essa casseterita”. Eles não acoçoaram não, aquele ouro. Naquele tempo ouro era a base de 20 cruzeiros a grama, não to bem lembrado, parece que era 20. No outro dia fomos lá dentro, olhar o cascalho da casseterita. Quando eles viram lá que deram umas cuiadas lá, eles disseram: “Rapaz, aqui nós vamos ganhar dinheiro nessa casseterita”. Cuiaram lá, tudo por lá. Era um cascalho fino, areia branca, o nome de lá é Areia Branca. O cascalho é branco, as pedras são todas branquinhas, era no tempo, eles se animaram e disseram: “Rapaz, se tu quiser trabalhar aqui, tira um pedaço pra tu que o resto eu vou mandar roçar tudinho, vou pra Porto Velho pra botar gente da minha praça. Vou ganhar dinheiro nessa casseterita aqui”. Como eles cuiaram em cima da terra, era um tanto assim o desmonte pro cascalho. Mas todo canto fagulhava casseterita. Aquela terra, aquele barro, tudo fagulhava, pouca casseterita, mas tinha. Ele disse: “Rapaz, isso vai dar resultado, é juntar toda. Pode juntar essa terra com cascalho e tudo”. Ele foi pra Porto Velho buscar gente, e rancho. Chegou aí, tava um montoeiro de cascalho que eles tinham deixado amontoado. “Rapaz, vamos logo lavar pra ver o que vai dar aí”. Aí, ajeitaram a caixa lá e foram lavar. Só lavaram um dia e desacorsoaram. Parece que fizeram uns quatro ou cinco litros em um dia, e acharam que não dava. Desacorsoaram e ficou todo mundo sem jeito. Era um bocado de gente. Foram debandando e debandaram. Não ficou ninguém. Quando esse pessoal que foi fazer a pesquisa no São Simão veio, aí encostaram lá. Chegaram e viram onde eles lavaram o cascalho, disseram: “Rapaz, já teve um garimpeiro aqui que trabalhou. Ele deve ter feito ouro”. Foram fazer pesquisa e acharam ouro lá. Viram fagulha de ouro e pesquisaram o pedral todo. Lá era um pedral grande, no verão secava e ficava um pedral grande lá. Foram pesquisar o pedral todinho pra ver onde dava deles trabalharem. Pela parte de baixo, tinha uma parte assim de areia, um desmonte assim de areia, e embaixo estava o cascalho. Eles começaram a trabalhar lá. Quando abaixou a notícia, “Rapaz, o pessoal está fazendo um ouro medonho no Machado”. Eles não fizeram mais dinheiro porque eles eram peão bravo, era um manso bravo? Eles colocaram a caixa na beira de uma lagoa e não tiraram a caixa de lá nunca e nem compraram um motor pra puxar a água pra lavar cascalho na beira da lagoa. Eles começaram a trabalhar, enquanto estava pertinho, eles quebravam o cascalho e lavavam lá, depois que ficaram distante, eles vinham aqui e pegava o peão pra ir trabalhar na diária lá. Levava os caras que trabalhavam na diária lá. Eles quebravam o cascalho já longe e carregavam naqueles baldinhos de zinco lá por perto da lagoa. Se eles carregavam 50 baldes de cascalho, era 50 gramas de ouro que eles faziam. Cada baldezinho de cascalho era um grama de ouro. Eu fui pra lá, cheguei lá, fui trabalhar pra um paraibano velho bandido. Aquele paraibano enganou muita gente, era bravo também naquele tempo. Você quebrava cascalho e ficava ali, ele lavava o cascalho, ele espremia e ninguém via. Ele ia vender sozinho e ninguém sabia, quando ele chegava: “O ouro deu tanto”. Ele logrou muita gente lá. Quando eu fui me sair desse negócio de garimpo fui já pro fim do mês de novembro em diante. Eu arrumei um parceiro aqui, um peão também que não tinha bem idéia, chegamos e fomos trabalhar lá, trabalhando separado, pra sair desse paraíba doido. Começamos a amontoar o cascalho, ele emperreou quando viu que aqui fora até tinha uma família. Nós viemos um dia de sábado e voltamos na segunda-feira. Quando chegamos lá, os caras tinham atalhado a nossa frente, onde estávamos trabalhando. Eu disse: “E agora? Vamos fazer o quê?”. Aí, era gente, tinha chegado muita gente aqui do morrinho, uns amazonenses. Quando saímos de lá já tava chegando muita gente. E esse pessoal que achou essa área de garimpo, eles tinham uma frente que ia ao rumo do Madeira, pra ponta do pedral. Era um pedaço assim, como daqui até lá naquelas casas, aquele rio trazendo. E tinha um espaço grande. Eu disse: “Rapaz, eu vou trabalhar ali na frente do cara ali, do Moacir”. Eu conhecia todos eles que estavam trabalhando lá, conhecia tudinho. Esses que foram lá pro São Simão, eu conhecia todos eles. Tinham dois que era irmão, Moacir Rodrigues com o finado Rubens Rodrigues. Todos eles já morreram. Eles já tinham se encrencado entre os parceiros mesmo, esses que foram pro São Simão se encrencaram lá porque eles começaram a trabalhar meio misturados e se encrencaram. Tinha o Pedro, Pedro Bamburrado, era um dos que tinham achado, então o Moacir levou a polícia lá e tirou ele fora, ele não podia ir. Ficaram os parceiros dele, que trabalhavam junto no pedral, mas ele não podia ir lá. Ele podia ir até o motor, daqui pra Porto Velho. E eu disse: “Vou entrar na frente do Moacir”. Não era o Moacir Rodrigues, era outro. Tinha muita gente querendo tomar a frente deles também, mas como eles eram novatos, eles estavam com cerimônia. Quando eu cheguei lá, uma tarde, eu disse: “Rapaz, agora eu vou trabalhar ali”. O pessoal que tinha chegado rodado encostou todinho: “Rapaz, tu vai trabalhar aí?”. Eu disse: “Eu vou entrar aqui”. Ele disse: “Pode meter a cara que levamos junto. Vai trabalhar aí e nós encostamos alí também. Se eles engrossarem, deixa com nós”. Porque eles viviam dando umas cacetadas no cara. Eu dei umas pazadas de terra, deixei ela, enfiei a pá, fui esperar o cara. O cara chegou, o Moacir. A gente chamava de Moacir preto. Ele chegou: “Quem aqui tá pensando de trabalhar aí”. Eu digo: “Quem tá pensando em trabalhar não, sou eu que vou trabalhar aí”. Ele disse: “Ah não, aí é a minha frente”. “Mas olha, de lá pra cá, o tempo de você chegar aqui, é o tempo do Madeira chegar também. De lá pra cá é muito extenso”. Dei umas teimadazinhas, ele ficou assim... “Eu sei que tu tá trabalhando aqui esse tempo todinho, mas tu ainda não fez nada de ouro porque tu tava trabalhando logo com quem? A sorte é tua”. Pegou uma vara que tinha lá e riscou assim: “Pode trabalhar, tira esse pedaço pra tu”. Chegaram os outros: “Daqui pra frente é meu”. Amontoou. Isso era uma tardezinha, quando amanheceu o dia tava feito aquele igarapé, reto, a largura que tava a minha aqui, tava tudo emendado, feito aquele igarapé no meio do pedral, deixando a parte dele e aquele canalzão. Nós estávamos trabalhando e tinha um pessoal, acho que eram quatro, eles tinham vindo do morrinho, um era conhecido desse peão que estava trabalhando mais eu, depois, já engressou esse, ele puxou mais um pra trabalhar com nós. Ele era manso também. E foi a valência. Já era um, eles ficaram com três, nós éramos três também. Nós começamos a trabalhar já pra fim de novembro, quebramos o cascalho, quando acabamos de quebrar o rio já estava enchendo, e foi a nossa valência porque essa turma tinha, da turma deles que eram parceiros deles, desse negão do Amazonas que foi trabalhar com nós, tinha um motor Yamaha de nove Hp, ele ajeitou logo pra colocar o nosso cascalho pra lavar. Aí, fomos lavar o cascalho e eles foram nos ajudar e nós ajudamos ele.



P/1 – Seu Joaquim, então, veio muita gente de fora?



R – Veio. Muita gente. Muita gente.



P/1 – Gente de que lugares?



R – Veio de todos os cantos. Depois que colocaram draga aí. No primeiro ano era só balsinha, só balsa com motor à gasolina. Até dois anos. Daí pra frente começou a draga, só draga de queixo duro e aquelas escariantes. Nos primeiros anos vinha gente de todo canto, do país todo. Até chinês vinha pra cá, trabalhar aqui no garimpo. Só que tinha muitos que chegavam aqui bravos, não sabiam nem o que era ouro e achavam que era chegar aqui, montar a draga, e pesar a grama do ouro e fazer quilos e quilos de ouro. Tinha muitos que trabalhavam um tempo e largavam a draga aí com tudo e ia embora, porque não fazia nada, eles são bravos, não sabiam nem por onde iam trabalhar em ouro. Muitos deixaram draga. Peões achavam draga com tudo aí, às vezes tiravam só o motor de cima, levavam só ele e o resto deixava aí. O peão desmanchava a draga, fazia casa de madeira, tinha madeira na beira desse rio.



P/1 – Seu Belisca, o senhor achou muita pepita grande?



R – Não, o ouro daqui é fininho, só no azougue. Esta casa que eu tenho em Porto Velho, comprei no primeiro ano de garimpo. No primeiro ano que eu trabalhei aí eu fui a Porto Velho e comprei uma casa.



P/1 – O senhor pegava esse dinheiro e investia?



R – Eu investia. Eu comprei essa casa e depois depositava no banco. Eu tinha esse dinheiro no banco, que acabou, como todo mundo, com o Fernando Henrique e aquela URV, ele inventou a URV e acabou com muita gente. Até hoje tá o choro de dinheiro no Brasil por causa disso. O ouro se acabou com aquela URV porque o dinheiro que eu tinha no banco naquele tempo, antes dele inventar aquela URV, ele era Ministro da Fazenda do Itamar Franco. No tempo do Itamar Franco a inflação estava em 50 por cento, antes de ele inventar aquela URV. O dinheiro que eu tinha no banco dava dois milhões livres, os juros, eu não precisava dele porque eu fazia dinheiro direto aqui, todo ano eu depositava mais dinheiro, eram dois milhões de cruzeiros que eu fazia por mês. E era só pra aumentar por cima. Quando ele inventou a URV e ele botou o real, os juros não davam cem reais, o dinheiro acabou tudo e aí não teve mais jeito. Então, comecei a pegar o dinheiro. Se tivesse pegado no começo e feito apartamento pra alugar, eu achei que...



P/1 – Só sobrou aquele apartamento desse dinheiro?



R – O dinheiro que ficou aí não adiantava mais, não tinha mais juros, não valia nada. Fiz uns apartamentos, fiz três apartamentos pra alugar.



P/1 – E o senhor ainda tem esses apartamentos, seu Belisca?



R – Tenho.



P/1 – Estão os três alugados?



R – Estão. Depois eu fiz mais dois, agora como o dinheiro que peguei da indenização daquela casa ali, dava pra pagar tudo, mas eles não me deram todo o dinheiro, me deram a metade. Como tinha um morador, eles disseram que só me dariam o resto do dinheiro depois de tirar o morador de dentro, o inquilino. Esse dinheiro que eu peguei, fiz mais dois apartamentos lá na rua.



P/1 – Esse dinheiro da indenização por causa da usina?



R – É, da usina daqui. Eu fiz mais dois apartamentos e esses dois apartamentos que fiz estão me rendendo 750 por mês.



P/1 – Cada um?



R – Não, os dois.



P/1 – Onde estão esses apartamentos?



R – Lá em Porto Velho, na Vespasiano Ramos com, antigamente era Rua Um, agora tem outro nome.



P/1 – Seu Belisca, o senhor estava me contando o que o senhor fez depois do garimpo, comprou esse apartamento, teve o problema do Fernando Henrique. E aí, o que você fez? Você ficou no garimpo até quando?



R – Eu trabalhei no garimpo até um certo tempo, quando arruinou mais, que o peão dizia: “Não, rapaz, bota um comércio pra tu”. Tem um conhecido no Vai quem quer que tinha uns comércios. Eu achava que arrumava dinheiro trabalhando mesmo. Comecei a pensar assim, tinha um morador na ponta da ilha, fui fazer uma casa na ponta da ilha também. Inventei, comprei mercadoria. Eu comprei 20 cruzeiros de mercadorias e trouxe pra ponta da ilha, pra negociar.



P/1 – Que mercadorias?



R – Todo tipo de mercadoria.



P/1 – Dá exemplos pra mim...



R – Era açúcar, café, sabão, leite. Uma mercadoria que eu comprei e foi uma luta para eu acabar foi a aveia. Aveia eu não vendi, só tomei mingau que enjoei, pra não estragar. Mas o resto, de cachaça, a todo tipo de bebida que eu comprava, vendia tudo. Com pouquinhos dias eu comprei 25 caixas de cachaça de 24 garrafas lá no Vai-quem-quer, uns dois ou três meses que eu comecei a negociar já comprei desse um.



P/1 – E o senhor vendia ali perto do garimpo?



R – Atrás, na testa do garimpo mesmo, na ponta da ilha tinha garimpo pra todo lado, pra cima, pra baixo, pra todo lado. Ali, chama o Suvaco da Velha. No verão é pedral pra todo lado, eu ficava no meio do garimpo, todo mundo ia comprar de mim lá. Mercadoria, bebida, eu vendia tudo quando era bebida. E corria ouro, naquele tempo era ouro. Eu chegava lá com aquele bolão de ouro, comprava a mercadoria e falava: “Tira aí”, e pagava. Esses peões que gostavam de meter a mão, mesmo, e não trazia o ouro pesado, não, trazia a boleta de ouro. O peão de draga ia lá comprar as coisas.



P/1 – Pagavam-se tudo com ouro?



R – Tudo no ouro. Eu inventei uma venda de galinha, ia no Vai quem quer e o carro que trazia galinha ia no Vai quem quer. Eu ia lá e enchia a canoa com galinha e levava. Era uma galinha por um grama de ouro. Chegava lá, tirava o grama de ouro.



P/1 – Tinha a balancinha lá?



R – Tinha a balança. Tinha uns compradores que diziam: “Cada pesada de ouro, o peão pode tirar um décimo. Se ele der dez pesadas ele tem um grama”. O peão nunca vai pesar o ouro pra pesar, naquele tempo o peão não ia pesar o ouro, sempre deixava passar um pouquinho, o ouro bem pesado, é a base de passar um décimo. Porque o ouro é pra ser pesado o ouro em cima, mas mesmo o peão que trazia o ouro e mandava pesar: “Não, pesa bem pesado”. Aí, saímos na vantagem.



P/1 – E seu Belisca, onde ficava esse comércio?



R – Era na ponta, no meio do rio aqui.



P/1 – Mas era uma loja, como é que era? Você construiu uma casinha de madeira?



R – Era uma casa de palha, eu cobri de palha, que nem essa aqui, cercada de palha mesmo. Parede de palha, mas eu tinha um vizinho encostado. Essa mulher que mora nessa casa foi minha vizinha nesse tempo. Eu tinha uma outra vizinha que me atrapalhava, quando eu comecei a comprar a galinha ela me atrapalhava. Ela era acostumada a vender galinha lá, quando eu comecei a colocar galinha, ela já vendia galinha lá. Eu botei placa, mas quando chegava lá e eu tava em casa, ela dizia que não tinha galinha pra vender. “Mas e essa placa aí?” “Não, já acabou”. Quando eu não tava ela vendia as minhas galinhas, mas vendia mais caro pra tirar o dela. Ela puxava um pouco em cima. Aí, um dia eu tava deitado lá e vi quando ela falou isso e eu disse: “Ah, essa velha está com bandidagem, é por isso que o peão quase não vem aqui”, porque eram acostumados a comprar galinha dela. Depois eles morreram, ela e o marido. Eles foram doentes pra Porto Velho e ficaram lá. O motor dele tava pregado e foi andar na minha canoa. Na minha canoa só eu andava, eu não botava ninguém junto porque ela rolava muito. Eu botava peão pra andar nela se fosse manso, mas bravo eu não colocava. E eles foram andar em três de noite, alagou a canoa e morreram os dois juntos.



P/1 – Afogados?



R – Afogados. A velha não sabia nadar, com certeza botou pra pegar a velha, e morreram os dois. Quando eu cheguei na rua, passei uns três dias na rua, quando cheguei, já não estavam mais, já tinham morrido. Aí foi essa mulher aí, era outro marido, não era esse aí. Foram pra lá, tinha ficado a mãe da velha lá e foram pra lá. Depois que esses daí chegaram melhorou. Eles começaram a plantar macaxeira, os peões iam comprar galinha e já compravam a macaxeira deles. Tanto fazia eu estar ou não, eu saía pra trabalhar no pedral. Eu tinha um comércio lá, mas eu deixava e ia trabalhar no pedral, no ouro. Quando eu não estava ela vendia a galinha e a macaxeira.



P/1 – Então, mesmo com o comércio o senhor continuou no ouro?



R – Continuei no ouro. Eu tinha o comércio lá mas eu trabalhava.



P/1 – E o comércio era só pra casinha, então? Pro garimpo.



R – Era, eu morava ali na casinha. De manhã eu saía de manhãzinha, chegava dez, onze horas e chegava de tardezinha, ia passar o resto do dia. O pessoal que ia comprar as coisas era mais de sábado e domingo.



P/1 – E tinha muito comerciante como o senhor?



R – Não, nesse tempo era só eu. Às vezes, tinha flutuante que vinha de fora, pro lado de cá do rio, mais lá pro lado do Vai quem quer tinha flutuante. Mas naquele trecho ali, encostado, era só eu mesmo. Quando era no inverno eu saía, às vezes não tinha comprador e eu ia pescar por aí. Saía por Castanhal, ia pescar, vendia os peixes nas dragas, quando chegava, trazia só o peixe pra minha despesa mesmo.



P/1 – No inverno também diminuía o número de pessoas no garimpo?



R – É, no inverno saíam, os garimpeiros manuais iam todos embora.



P/1 – Por que alagava?



R – É, alagava, cobria, ficava só com dragas e eu vendia bebidas pro pessoal de dragas, eles compravam sempre. Mas eu saía toda semana pra ir pescar. Eu pegava peixe, vendia tudo na draga, na descida eu já ia encostando nas dragas e ia vendendo. Quando não tinha dinheiro ficava pra outra viagem, eu vendia tudo. Sempre eu gostei de pescar. Quando o Carlos deixou essa flutuação lá, da draga, eu disse assim: “Você não vai precisar dessa draga?” “Não”. “Eu posso cobrir ela pra morar em cima?” “Pode ficar com ele pra tu”. Eu ajeite, cobri, pus lá do outro lado do rio, cortei palha, cobri com palha e passei pra cima. Passei o verão ainda lá no primeiro verão, na beira do pedral, na ponta da ilha.



P/1 – Morando na draga?



R – É, morava na flutuação. Quando foi no inverno ela ainda tava lá na ilha, quando foi no inverno ela veio embora pra cá e eu fui pro outro lado do rio, pro porto do vizinho, lá. Eu fiquei lá, passei uns três a quatro anos na beira de lá. Não saía porque a flutuação era muito grande. O pessoal das dragas ia embora. No verão é manual, quando é no inverno, o pessoal de draga. Quando não chegava de draga por aqui, o pessoal comprava por lá. Quando eles iam embora, eu ia pescar.



P/1 – Seu Joaquim, nessa flutuadora o senhor disse que pescava, mas também continuava com o comércio?



R – Era.



P/1 – E agora como flutuante?



R – Todo o tempo no flutuante; vendia e morava no flutuante. Pessoal chegava, comprava lá mesmo.



P/1 – Daí por três, quatro anos, você ficou do outro lado do rio...



R – Eu fiquei lá e foi o tempo que apareceu uma mulher por lá, bem rodada, e eu comecei a fazer uns vira voltas com ela lá e inventei um menino.



P/1 – Seu primeiro filho?



R – É o primeiro filho da derradeira remessa. Eu vivia sozinho, imaginava que depois de velho é bom um menino junto. Mas só que muitas mulheres não davam de arrumar menino. Porque menino, pra uma mulher que já tem um bocado de meninas, aí complica. A gente tem que criar o da gente e o dos outros. Apareceu essa que não tinha menino... Eu sempre dizia pra ela: “Se sair gestante não mata, não, que eu ajudo a criar”. Porque as mulheres tem negócio de abortar, mas eu sempre dizia pra ela: “Se tu sair gestante, pode ter o menino que eu ajudo a criar. Eu não vou te deixar, eu tenho vontade de criar um menino. Eu vivo sozinho”. Eu tinha um outro, adulto, mas não estava nem comigo. Eu disse, “Eu tenho vontade de ter um menino”. Até que ela saiu gestante. Ela foi embora pra Porto Velho, eu fiquei lá, mas nem sabia. Aí, no inverno eu digo, “vou embora”. Vim embora pra cá, falei com o rebocador e ele me trouxe pra cá. Depois de eu estar aqui, o rapaz que morava lá disse: “Rapaz, a mulher tá gestante. Eu vi ela lá, eu acho que ela tá gestante”. Eu disse: “Não é possível, se ela estiver gestante ela me procura”. Quando penso que não, ela veio aqui. Já estava bem avançada (risos). Eu disse: “Eu já te falei que eu ia criar esse menino. De qualquer maneira, tu não vai arrumar emprego, eu vou te ajudar de agora em diante. Já que tu me procurou eu vou te ajudar de hoje em diante. Todo mês pode vir pegar o ouro aqui”. Eu dava dez gramas de ouro pra ela todo mês, pra passar o mês. No dia que ela teve o menino, ela teve o menino em julho e com oito dias ela trouxe o menino aqui.



P/1 – Como foi ver o menino?



R – Ela trouxe o menino pra eu ver, eu tava com o flutuante bem ali. Eu olhei, assim. Não tinha outro homem mesmo. Ela foi embora, passou dois dias e voltou. Depois um dia eu tava aí, tava até meio doente. Naquele tempo eu sofria umas tonturas, amanhecia o dia e eu tonto que não podia nem levantar. Eu estava com esse problema de tontura que me atacava. Pensando assim, eu disse: “O que eu vou fazer agora? Essa mulher tem um menino pra eu sustentar esse menino com ela, acho que eu vou chamar ela pra morar junto logo pra criar o menino e ficar perto”. Eu tava pensando isso, eu pensei nela e ela tava descendo o barranco aí (risos). Ela esteve aí, passou o resto do dia. No outro dia eu já desci junto com ela, pra ela vir morar.



P/1 – Aí, ela veio pra cá?



R – Ela veio e ficou.



P/1 – Como foi a vida junto?



R – (risos). Ela e o meninozinho vieram morar junto comigo. Só que esse menino chorava, chorava, chorava. E ela cura, ajeitava, ele deixava de chorar. Mas depois fui acostumando com o menino e comecei a gostar dele. Quando ele já tava grandinho, ela ficou gestante de outro, uma menina. O menino estava com... Ele ia fazer 14 anos agora em julho, a menina está nos 13 anos. Mas essa menina, ela é apegada comigo de tal forma, eu estou aqui, mas não é porque ela quer, é pra eu morar junto com ela. E agora tem outra, eu tenho uma meninazinha com oito meses, inteirou oito meses ontem.



P/1 – Com a mesma mulher?



R – Com a mesma mulher.



P/1 – E por que o senhor não vive com eles?



R – Porque eu tenho essas casas aqui, né? Eu comecei a morar naquela casa ali e o menino jogava tudo na água, aí, eu comprei aquela casa ali pra viver em terra.



P/1 – Conta pra mim direito essa história. Eu quero entender como o senhor veio pra Mutum.



R – Eu vim no flutuante, pra morar no flutuante. Depois do flutuante, quando eu arrumei a mulher, estava com o menino. O menino estava com um ano e eu estava no flutuante ainda. Mas tudo o que ele pegava, ela jogava n´água (risos). Nessa casa, morava um coroa com uma mulher, só os dois. Ele veio me oferecer essa casa e eu disse: “Rapaz, eu não quero que tu saia daí, tu é um bom freguês, é um vizinho que eu tenho. Eu moro aqui em cima d´água, mas tu é o meu vizinho”. Ele sempre insistia, chegou um dia e ele disse: “Rapaz, eu quero vender a minha casa porque a mulher quer porque quer ir embora pra Cerejeira, ela é de lá. Eu deixo a casa por 200 cruzeiros, eu quero que tu compre” “Bom, então, já que tu quer ir embora mesmo eu vou comprar”. Comprei. Era só oito por quatro, eu peguei e aumentei cinco metros pra lá e na largura, deixei ela com sete metros de largura e fui morar lá. Depois que ela foi pra Porto Velho. Ela morava lá e eu fiz essa casa aqui. Nós morávamos tudo lá e eu fiz essa casa aqui porque o pessoal pegava bebia lá e vinha pra cá por causa da sombra.



P/1 – Aqui você continuou com o comércio?



R – O comércio era lá e eu botei pra cá. O pessoal pegava e vinha pra ponte, eu falei, “vou cobrir um pedaço da ponte”. Nesse tempo o Boca era o administrador e eu falei com ele. “Boca, se eu quiser cobrir um pedaço da ponte, tem problema?”. Ele disse: “Rapaz, eu não dou palpite. Se tu quer fazer, faz por sua conta”. “Eu vou fazer”. Peguei e cobri um pedaço. Foi quando veio esse repórter de São Paulo, eu tinha feito só um pedaço. Chegava até ali, era daquele poste pra trás, esse pedaço aqui eu aumentei depois. Não, era daquele poste pra trás, era coberto daquele pedaço que tá vazio, oco lá, era coberto, era só uma água. Quando eles vieram era só aquele pedaço ali. Eu disse: “Rapaz, se eu quiser cobrir mais um pedaço?” “Rapaz, você já tá meio famoso, não é bom você avançar, não” “Então, vou fazer do teu palpite”. Só que ele foi embora e não me deu nem o cartão, nem nada. Ele disse: “Vou lhe botar no jornal, você tá meio famoso”. Até uns tempos desses, eu tinha um pedaço do jornal, compraram por lá e trouxeram, mas era só uma parte, o resto ficou. Depois veio outro. Esse outro disse: “Rapaz, você já tá meio famoso, tá no jornal, eu vou lhe botar na capa de uma revista”. Conversamos um bocado, entrevistou tudo aqui. Ele disse: “Olha, o dia que vocês quiserem cobrir essa ponte todinha, você pode cobrir que aqui não vai ser reativado nunca. Essa ponte aqui é toda sua, você pode fazer o que você quiser fazer”. Mas aí, com pouco tempo inventaram o negócio dessa hidrelétrica, o Lula nos botou nesse imprensado dessa hidrelétrica. Começou que não quiseram que fizesse mais benfeitorias, ai eu disse: “Não adianta, vou deixar no que está”.



P/1 – O senhor queria cobrir tudo?



R – É, podia pelo menos aumentar mais um pouco aí. Se não fosse essa hidrelétrica, eu tinha ajeitado lá no meio, com ele lá no meio ficava melhor, mais arejado. Ajeitava bem o assoalho, e ficava melhor. Mas desde 2005 começaram a falar desse negócio dessa hidrelétrica, que não adiantava fazer muita benfeitoria.



P/1 – O senhor disse que, em 2005, começou a ser falado, como vocês ficaram sabendo?



R – Porque teve um velhinho que trabalhava na Furnas que inventou um negócio de uma régua aí e deixou pra eu vigiar essa água aí. Quem media essa água era eu. Ele falou a posição que a água ia ficar aqui no verão, que não adiantava fazer muita benfeitoria porque a pessoa teria de sair daqui de todo jeito. Aí, já deixei ficar como estava mesmo.



P/1 – E o que essa história toda mudou na sua vida?



R – É, mudou um pouco. Porque se eles, por exemplo, não castigassem ninguém com essa hidrelétrica, se eles pagassem certo, não complicassem, se a indenização pagasse, porque uns não sabem mexer com dinheiro, mas outros sabem. Essa convivência aqui, não acha outra igual nunca. É o direito da gente, eles deviam pagar. Eles tem um negócio de uma carta de crédito, essa casa aqui tem uma carta de crédito, dizem que pra comprar outra casa. Mas por que eles não dão dinheiro pra gente comprar? Eles querem comprar, agora, pra eles comprarem essa casa é o difícil porque não aprova. Tem que ser uma casa toda documentada, não pode ter atraso, eles não ajeitam nada. Tem muitos que já pelejaram e eles não aprovam nada. A indenização deles foi de 41 mil reais, mas tem direito na carta de crédito que é de 65 mil. O peão não vai dispensar esse dinheiro, mas é difícil eles aprovarem a casa.



P/1 – Esse dinheiro chegou a ser pago pro senhor?



R – Ainda não. Aquele dali que era indenização, eles me deram só metade, o resto está pra lá ainda. Porque pra dar o resto tem que desmanchar a casa.



P/1 – Pra receber o resto tem que desmanchar a casa?



R – Tem que desmanchar a casa. Eles sujeitam a gente a cada coisa. Se fossem ao menos brasileiros, mas esses caras não são nem brasileiros, são estrangeiros. No meu ver, uma parte, aqui em Rondônia, está por conta da França, ela que tá mandando na gente aqui. Essa Suez aí é França. Rondônia está por conta dessa firma aí. É do jeito que eles querem ou não é. O pessoal daqui tudo já se humilhou, aí não tem jeito. Tem que ser o que eles querem.



P/1 – Agora, seu Belisca, pras pessoas saberem, como que era Mutum quando o senhor chegou aqui? O que tinha aqui?



R – Ah, Mutum... Todo tempo aqui, esse Mutum aqui sobrevivia dos garimpos. No tempo que era seringal, era seringal. Sempre a seringa. O pessoal do seringal chegava e o dinheiro corria aqui. No tempo do trem, o pessoal do trem, os cassacos do trem, quando era dia de domingo, de dia santo, todo mundo vinha pra essas vilas e deixava dinheiro aqui. Os que trabalhavam na linha de ferro, do Jirau pra cá, todo mundo vinha pra cá. De domingo tinha jogo de bola e a gente vinha pra cá, faziam despesa aqui. Já tinha casseterita, então, o pessoal que saía do garimpo passava por aqui e deixava o dinheiro aqui. Quando começou o ouro, o pessoal do garimpo do ouro, todo mundo, o dinheiro corria aqui. O pessoal daqui sobrevivia desses garimpos.



P/1 – E além desse dinheiro que vinha de fora, as pessoas tinham suas plantações? Como as pessoas viviam?



R – É, o pessoal viviam da venda. Taziam as coisas pra vender por aqui. E vive do peixe. Um bocado de gente aqui vive do peixe. Pega o peixe, come um bocado e vende o outro pra sobreviver. Aqui era bom de peixe demais, arruinou de peixe agora já por causa dessa hidrelétrica, lá do Santo Antonio porque tamparam e modificaram o canal do peixe e aí arruinou.



P/1 – A pesca está menor aqui?



R – Nesse ano arruinou na base de cem por cento do que era.



P/1 – Desde quando vocês estão com essa diminuição na pesca?



R – Do ano passado pra cá que começou a arruinar. Até o ano passado ainda ia. Logo tem uns bravos aqui, uns que inventam de ser pescadores e são bravos. Se atraca ali na boca do Mutum e taca a malhadeira na boca do Mutum de noite, no dia, o peixe não passa, o peixe não entra. O peão pra ser pescador tem que ser manso, tem que entender o que é o peixe, eles pensam que o peixe é abestado. A Jatuarana é de tal forma que, se a gente colocar a malhadeira em um canto de noite, de manhã pode tirar e não coloca na outra noite porque não pega. É difícil pegar uma, tem que mudar o canto., se amarrou daquele pau pra cá, faz daquele pau pra lá, pode colocar naquele canto que já fica difícil. Mas eles deixam dia e noite. Depois que inventaram essa pescaria, que é dia e noite, com as malhadeiras dentro d´água, danou tudo.



P/1 – Seu Belisca, deixa-me perguntar outra coisa. A comunidade aqui, como é o convívio de vocês?



R – Rapaz, a gente aqui se dá bem com todo mundo. Tem uns ladrãozinhos, bandidos, que roubam algumas coisas, a gente sabe tudinho quem são os ladrões. Mas o direito de agora só protege os ladrões. Você já viu ladrão andar com uma testemunha? O dono vê o cara roubando, mas não pode fazer nada porque ele não tem uma testemunha, “não, só faz alguma coisa se tiver uma testemunha”. Quem quer ser testemunha de ladrão? O dono não pode servir de testemunha, se ele falar: “Não, o peão me roubou”, tem que ter uma testemunha. O direito do Brasil é só pros bandidos.



P/1 – Aqui em Mutum tem polícia, tem prefeitura?



R – Tem polícia, mas não faz nada. Se disser, “me roubou”, registram a ocorrência, mas não fazem nada porque não tem uma testemunha. O dono não pode servir de testemunha. A gente sabe quem são os ladrões aqui. Teve um que entrou aqui. Eu fui pra Porto Velho um ano aí, caí lá, me bati e passei uns tempos lá doente, sem poder voltar aqui. O ladrão veio aqui de dia, tinha uma porta e um cadeado, ele entrou de dia por cima, arrancou umas tábuas lá do quarto. A bebida estava toda lá dentro do quarto. Ele arrancou a tábua, passou pra lá e despregou a janela, essa janela é pregada. Já levou a escada, eu tinha deixado uma escada aqui de uma mulher que morava na casa ali, alugada. Já pegou a escada e levou pra lá, pra roubarem de noite. Quando era de noite, colocava a escada pela janela, entrava e tirava o que queria. Aqui estava trancado com cadeado. Às vezes tinha um peão que dormia aí, mas a porta está no cadeado. Eles entravam por lá.



P/1 – Fora esses assaltantezinhos, vocês se dão bem? Como é que é?



R – A gente se dá bem, não tem intriga. Às vezes, eu saio e o pessoal fica vigiando, vende as coisas pra mim, eu deixo a chave com ela lá. O pessoal chega, compra e ela vende.



P/1 – Aqui no seu bar enche bastante?



R – Tem ano que só canoa pequena passa embaixo da ponte. No inverno aqui, eu não sei, esse pessoal, acho que eles não têm idéia do que pode acontecer no inverno aqui. O pessoal dessa hidrelétrica aqui, já teve uns dois que falaram que essa água vai ficar no inverno e verão num nível só. Eu digo: “Eles não sabem nem o que eles dizem”. Porque dizem que é pra ficar 50 centímetros abaixo dessa ponte no verão. Daqui da ponte, lá pra água no verão dá pra onze metros. Se é pra ficar 50 centímetros no verão, essas águas que vem no inverno vão passar aqui, vai aumentar em cima dessa enchente que já está aqui. Vai aumentar uns dez metros. E essa rodagem não vai aguentar, mas eles não têm idéia.



P/1 – E o seu bar aqui, seu Belisca, é um bar muito visitado, vem muita gente aqui?



R – Antigamente até que dava bastante resultado, mas dá pra levar.



P/1 – Com a construção da usina, o que mais mudou? Tem muita gente morando por aqui? O que mudou mais?



R – Já mudou muito. Um bocado de gente está só se aguentando. Um bocado já mudou, já foi embora. Outros já foram, já tem gente pra estrada do Mutum, morando lá. Estou fechado pra ir pra lá. Não sei o porquê o pessoal se humilha, acho que eles veem a casa bonita... Só que eu não me animo com aquelas casas lá. Eles prometeram fazer muro, mas dizem que o muro que fizeram é um metro e vinte de altura. Um metro e vinte de muro é o mesmo que não ter.



P/1 – E que problemas e benefícios ela está trazendo?



R – Eu acho que pra cá, alguns talvez achem que vai ter benefício, mas pra mim, pelo menos, não. Se eles pagassem certo, não fizessem essa sujeição. Por exemplo, eles querem que compre uma casa, se o valor da carta de crédito é 65 mil reais, eles querem que compre uma casa na base de 70 por cento do valor. Não é o que a pessoa quer, eu pelo menos, não me interessa comprar uma casa de alvenaria. Uma casa de alvenaria não pode ser modificada, do jeito que ela está tem que ficar e não pode fazer nada. Então, me interessava comprar uma casa pequena para eu ajeitar e fazer apartamento pra alugar. Não me interessa morar em uma casa grande, eu tenho o meu pessoal, onde eles moram, eles estão numa casa que dá para eles viverem. Então, pra que eu vou comprar uma casa grande pra mim? Eu queria uma casa que desse para eu ajeitar e fazer apartamento. Se desse para eu comprar uma casa bem miudinha, por dez ou quinze mil reais e o resto eu ajeitava tudo apartamento pra alugar, era resultado pra mim. Mas não, eles querem que seja do jeito deles. Quer dizer, se é o direito da gente, por que a gente não tem esse direito?



P/1 – Seu Belisca, explica pra gente, pra quem não sabe, o que é essa Nova Mutum?



R – Eles falam que isso é o negócio de um pólo que vai ser muito bom. Mas pra mim não presta.



P/1 – Mas é uma cidade que eles estão construindo no lugar dessa?



R – É uma cidade que eles estão construindo lá;



P/1 – Onde fica?



R – É aqui, pra cá do Jaci, vai ser 16 quilômetros. Fica afastado, quem passa lá só vê as casas. Pra entrar lá tem que se identificar, não é todo mundo que pode entrar lá. Só tem uma entrada. O pessoal que vem no ônibus para na rodagem pra ir pra lá. Dizem que lá vão fazer rodoviária, mas não sei quando. Vão fazer posto, vão fazer tudo lá, mas pra mim não presta. A meu ver, lá não presta pela sujeição que vão botar o pessoal. Só que, primeiro, eles vão dar a documentação dessas casas de três anos em diante. Eles falaram que ninguém vai ter documento dessas casas, ninguém pode vender, de dar os documentos. Ouvi falar que teve gente que já vendeu, mas não sei, falam assim mas eu não tenho certeza. Eles falaram que ninguém pode fazer nada. E falaram na outra reunião que não pode fazer nada de madeira, tem que ser de alvenaria. Só que essas casas deles lá não é alvenaria, é de placa. Eles fazem três casas por dia, elas não têm essa segurança toda. Pra dentro da terra não chega a ter 20 centímetros, ela é só em cima.



P/1 – Seu Belisca, agora eu vou voltar pra sua família. Hoje a sua família está instalada lá em Porto Velho?



R – Está.



P/1 – E eles estudam, moram em apartamento, como é que é?



R – Eles moram em uma casa lá. Os dois estudam e estão bem avançados no estudo.



P/1 – O senhor falou que se dá muito bem com a sua filha, como é a sua relação com eles?



R – Só vendo mesmo pra ver como é com minha filha. Quando eu chego na rua, eu não saio sem ela. Ela quer que, pra onde eu saia, espere ela. Se eu sair só ela reclama. Ela vai pra aula, já estou acostumado com ela, tenho que sair junto, ela vai pra aula e eu espero chegar pra gente sair. Ela é espertinha, ela é esperta mesmo. Todo mundo que vê se admira. Ela é conversadeira, diz que vai estudar pra ser uma advogada. Onda ela chega, todo mundo gosta do jeito dela. Eu chego, tenho que passar no mínimo duas noites lá, mas ela não quer que eu saia. E o menino também é bonzinho. O menino tem um empregozinho desde que eles foram pra lá, em 2005. Logo ele arrumou um empregozinho, por ele, e não perde um dia. Ele vai estudar, a hora que ele chega ele passa lá, é bem pertinho o coroa que ele para lá. Ele fica muito animado com esse dinheirinho que ganha, e guarda o dinheirinho. Pega o dinheirinho dele e guarda pra comprar as coisas pra ele. Às vezes, ele me oferece dinheiro, ele já é esperto.



P/1 – E eles vêm de vez em quando pra cá com o senhor?



R – Não, só nas férias. Nas férias ela sempre vem pra cá, agora ele, não. Quando ele vem, é pra passar uma noite, às vezes duas: “Não, não quero perder o meu emprego”. Ele diz logo: “Eu quero trabalhar”. Ele não quer perder um dia de trabalho. Dizem que menor não pode trabalhar, mas é bom menino trabalhar.



P/1 – Ele faz o quê?



R – Ele trabalha lá em um negócio de fazer entrega de água, gás. Ele diz que toda entrega que faz, ele ganha um dinheirinho lá. E cada entrega que ele faz o cara dá um real pra ele. Ele vai entregar água, o morador dá um real pra ele. A quantia de entrega que ele faz por dia aumenta um real cada. Ele acha que tá bom pra ele. Teve gente que já ofereceu muito dinheiro pra ele, mas ele diz que não vai, porque vão querer que ele ande de moto e ele não quer andar de moto. Ele tem uma bicicleta cargueira, as entregas são todas pertinho. Ele mora bem pertinho, mora em uma quadra e trabalha na outra quadra. Aí, acho que ele acha que fica melhor lá porque é pertinho. O velho tem toda confiança nele. Negócio de cheque ele já manda ele pegar, tudo, ele confia muito nele.



P/1 – E a sua mulher?



R – Ela tá tocando os negócios lá.



P/1 – Ela trabalha e o senhor também ajuda pra criar eles? Como que é?



R – Ela quer arrumar emprego, mas agora ela tá com uma menina e eu digo: “Não, você não pode arrumar emprego, você tem uma menina pequena pra cuidar”. Ela agora está engatinhando. Eu digo: “A gente tem menino pequeno, não pode deixar com os outros. Não precisa você trabalhar empregada, não precisa”. O dinheiro que corre lá por mês dá pra se sair bem.



P/1 – Seu Belisca, eu vou fazer agora as duas últimas perguntas. A primeira, eu queria saber se o senhor tem algum sonho por realizar ainda?



R – Rapaz, se toca eu ir pra Porto Velho, eu não vou ficar parado porque eu vou inventar de vender um negócio lá. O velho, a gente depois de velho, se ficar parado adoece. Eu tenho que vender lá. Queria comprar uma casa lá que desse para eu vender qualquer coisa, bebidas, que eu estou bem acostumado a vender. Porque a bebida nunca dá prejuízo, mesmo que eu venda um pouco a fiado, mas tira em outra. Porque eu tenho uma prática de vender as coisas já. O peão compra só numa distribuidora, ele pode vender como os outros. O meu ponto aqui é porque eu moro distante. Eu escolhi a beira do rio. Mas seu eu morasse lá em cima, onde está aquele pessoal, eu vendia igual o cara, o Zezinho. O Zezinho vende muito ali, porque ele vende mais em conta que os outros. Mas se o peão compra da mesma distribuidora, ele sempre compra da Coimbra. Se o peão compra da mesma distribuidora ele pode vender igual. Em Porto Velho, tem coisa que a gente compra lá e que tem o mesmo preço daqui. Então, dá para o cara negociar em qualquer canto, depende de saber, já ter o modo de vender. Tem uns caras que vendem caro demais, mesmo em Porto Velho, lá pertinho de casa, tem uns que vendem caro, caro mesmo.



P/1 – Se o senhor pudesse escolher o senhor ficava mesmo? Você não ia embora?



R – Se fosse pra ficar, eu ficava. Mas não tem jeito. Todo mundo vai sair e isso daqui vai ficar isolado. Aqui o peão não pode fazer nada porque com o tempo, tem muita gente aqui que quer sair, quer ir embora. Eles não estão nem aí pro que eles vão passar. Porque aqui todo mundo paga energia bem baratinho, é difícil o peão que paga 50 reais de energia, é dez, é 20. E lá eles vão pagar caro. Aqui ninguém paga água, lá vai pagar energia, água, chega o IPTU, taxa de lixo. Lá o peão vai ter que pagar tudo isso. E o peão daqui, muito deles não é empregado, vão viver como? Têm muitos que não vão, outros vão. Mas o peão que pensa bem não vai, porque lá vai ser difícil.



P/1 – Seu Belisca, pra terminar, queria perguntar pro senhor, como é se lembrar de sua história toda? O que você sentiu? Você acha importante contar a sua história? Foi bom lembrar a sua história?



R – É, eu sempre me lembro do passado... A vida como era e como pode ser pra frente. Porque se continuar do jeito que vai indo, porque além do que eles estão fazendo do jeito errado, eles fazem a gente pra fazer do jeito que eles querem. Não é que a gente quer não, eles que querem. É uma firma estrangeira, eu me invoco mais por isso. Aqui, nós estamos no Brasil e quem está mandando é o estrangeiro, a gente não tem querer, a gente está na mão dele. E é o presidente Lula que colocou a gente nessa sujeição, porque ele é presidente, então, ele que tinha que ver isso aí. Tinha que ver como é que a pessoa está vivendo. Agora, ele não vai mais ser candidato, talvez ele não ganhe mais nada, mas ele tem uma candidata.

Ele não presta atenção em nada disso, não. Ele está ganhando do jeito que ele quer, por isso, ele não está se incomodando com quem está lascado aqui.



P/1 – Seu Belisca, queria te agradecer pela entrevista e a gente encerra aqui.



R – Tá bom.



P/1 – Obrigado.



R – Não há de quê.