Museu da Pessoa

A palavra deles

autoria: Museu da Pessoa personagem: Seu Antonino (Antônio dos Santos)

Indígenas pela Terra e pela Vida
Entrevista de Antônio dos Santos
Entrevistado por Jonas Samaúma e Idjahure Kadiwel
Entrevista concedida via Zoom, em 15/07/2021
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista número ARMIND_HV006
Transcrição por Lidiane Ramos
00:00:10
P/1: Então senhor Antônio, muito agradecido por a gente começar essa entrevista no Museu da Pessoa. Eu queria começar essa entrevista, você dizendo o seu nome, o ano em que você nasceu e o lugar que você nasceu.
R/1: Meu nome é Antônio Santos, mas sou conhecido aqui na aldeia por Antonino, desde quando eu comecei a prestar sentido nas palavras, todos me chamam por Antonino, não me conhecem por Antônio. Eu estou com 85 anos, que estou vivendo dentro da Aldeia de Pau Brasil.

00:01:18
P/1: Você já nasceu na aldeia, Antônio?
R/1: Já nasci na aldeia.

00:01:27
P/1: E eu queria perguntar. O que você se lembra, e que você sabe da história dos seus pais?
R/1: Para falar a verdade, da história dos meus pais, eu quase não sei da história deles não, eles viveram pouco tempo com nós. Pra eu contar a história deles é um pouco difícil, mas o que a gente sabe é coisa que a gente vem ouvindo

junto, mais com a minha mãe. O meu pai largou nós, e deixou nós a sós, e a gente está vivendo.

00:02:33
P/1: Da sua mãe, quais lembranças você tem dela, quando você era pequeno? Você tem alguma memória da sua mãe?
R/1: A minha mãe, 88 anos, a idade dela, que ela viveu.

00:03:00
P/1: E tem alguma história que você viveu com ela, que você se lembra, alguma coisa marcante que você viveu com a sua mãe?
R/1:

Uma história que eu possa contar dela, é que ela viveu comigo, com nós, mais comigo mesmo pois as outras irmãs estavam afastadas. E, esses 88 anos, ela viveu comigo, trabalhou comigo, e eu posso dizer assim, uma mulher que me sustentou, e a gente foi vivendo até que ela morreu. E antes dela morrer, ela viveu bastante, ela andou junto com os familiares dela, que é muito grande aqui o nosso Pau Brasil. Quando ela estava viva, ela andava, andava por meio dos parentes, dos irmãos, das irmãs… E a gente ouviu e teve o conhecimento de muita coisa, que procedia aqui dentro da nossa aldeia, e assim que a gente teve o conhecimento. E a nossa aldeia indigena, realmente era uma aldeia que não era uma aldeia que tinha estrada de carro pra gente andar. Pra nós irmos na casa de algum amigo, de algum parente, às vezes de um irmão mesmo, a gente precisava entrar dentro da mata, andar, distância boa andando, e a gente ia ficando assim naquela caminhada. Quando eu cresci, estive com ela até a idade de 16 anos, depois eu sai pra trabalhar, pra ganhar o meu pão de cada dia, o meu dinheirinho, e assim a gente foi caminhando, até que eu saí da presença deles, que eu já estava mais saliente que os outros pra trabalhar, e eu fiquei meio afastado. Depois eu arranjei família, comecei a trabalhar para sustentar a minha família, trabalhar de roça, fazendo plantio e outros coisas mais, e a gente viveu e está vivendo, coisa que desde quando eu nasci até meus 18 anos, eu não fazia outra coisa que trabalhar pra eu fazer o meu serviço mesmo. Depois eu comecei a trabalhar na roça, plantar milho, plantar feijão, plantar mandioca e assim por diante, e a gente se acostumou, povo indígena que trabalha na roça, que trabalha assim. E assim, neste trabalho, eu acostumei, me acostumei a trabalhar na roça, e chegou a época que chegou a Aracruz Florestal e eu fui trabalhar na Aracruz, porque era difícil dinheiro pra gente ganhar, para fazer o que queria. Eu trabalhei nove anos e nove meses, daí deixei de trabalhar na Aracruz, que era uma coisa que não dava pra mim, ganhava pouco e sai da

Aracruz e fui trabalhar na roça de novo.

00:08:26
P/1:

O senhor Antônio, esse pedaço a gente vai querer que o senhor conte cada detalhe, dessas partes, da roça e tal, mas vamos voltar um pouco na sua infância. Achei interessante isso que o senhor falou, de que vocês tinham que andar muito na mata, não tinha esse negócio de carro. Como é que era o Povo Tupiniquim quando você era criança? Como é que era o lugar?
R/1: Na minha época em que eu vivia no Cantagalo, pra chegar aqui no Pau Brasil do Canto Galo, é mais ou menos uns dois ou três quilômetros, daí que eu vim para o Pau Brasil.

00:09:26
P/2: O senhor Antonino, a gente ficou curioso para escutar o senhor falando assim, você falou que não tinha estrada na época da sua infância, no território, vocês pescavam vocês caçavam, como que era um pouco desse território que se transformou. Como ele na sua infância? Você tem alguma lembrança que você pode contar pra gente?
R/1: Eu falei que não tinha estrada, aqui nos conhecíamos por caminho, e aí neste caminho por muito tempo não tinha estrada. Depois deste caminho que a gente andava, a gente ia para alguns lugares que precisava andar, a gente ia tratar de negócio, fazer negócio e era caminho. A gente também ia caçar, entrava na mata, passava o dia todo na mata caçando, e aí por diante. A gente matava caça, matava tatu, matava paca, matava tamanduá e outras coisas mais a gente matava, e assim a gente foi vivendo. E nesta convivência, a gente chegou até esta idade que eu estou, e a gente lembra muito dos parentes da gente, ia na casa do tio, casa da tia e ia pro meio da mata. às vezes, passava até duas horas dentro da mata, andando, caminhando, caminhando, e assim até chegar a hora em que a gente começava a andar nessas horas. E depois que passou um tempo, foi sendo desmatado a mata, e a gente foi ficando meio na descoberta. Aí realmente antes desse desmatamento, o caminho era de entrar na mata e ir caminhando para ir até a casa dos parentes, depois quando a gente tirava um tempo pra gente dar uma caçada, matar uma caça, aí não era caminho, era fazer o picadão, picando e cortando no facão, passando e levando o cachorro, o cachorro às vezes caçava e tirava uma caça, a gente matava e assim ia. Mas depois a gente também teve uma ideia de fazer outras coisas, o que eram essas outras coisas, era fazer armadilhas. Ia lá, saia da casa da gente e ir lá fazer armadilhas, fazer um orel , um arataca e assim… e foi continuando a nossa sobrevivência, e depois a gente se acostumou, andava na mata e conseguia alguma coisa. Era a caça, a gente matava, como eu já falei que era um tato e as vezes um viado, e outras coisas mais, e depois a gente ia fazendo coisas que eram necessarios pra gente.

00:14:38
P/2: Senhor Antonino, você falou que você nasceu na Aldeia Cantagalo, e vocês estão agora na Aldeia Pau Brasil. É isso? E isso tudo fazia parte do caminho, do território

Tupiniquins?
R/1: Sim, fazia parte. Porque?! Foi desmatado a mata, e eu fui trabalhar na área da Aracruz Florestal, trabalhei nove anos e nove meses, e depois não dava mais pra mim, e eu me mudei para o Pau Brasil, pois lá no Cantagalo já estava desmatado pela Aracruz Florestal, e eu vim para a Aldeia de Pau Brasil e ali eu fiquei e estou aqui. E a gente segue, como a gente pensou e como a gente pensa, as coisas são sempre como a gente pensa e fica pensando, o modo de viver e proceder, toda a minha família é da aldeia, toda a minha aldeia, e todos os meus parentes também. A gente fica impressionado com as pessoas, que ficam pensando, o porquê é assim, mas é assim mesmo. Porque a mata foi sendo desmatada, ficou sem mata para caçar, para trabalhar, vamos dizer assim, e a gente está vivendo neste tipo de sobrevivência.

00:16:59
P/1: O Antonino, como foi que começaram a desmatar a mata, o senhor lembra quando começou? Porque ouvindo o senhor contar, vocês viviam bastante da mata, caçavam… E como foi que vocês viram que tinham alguém desmatando a mata? Como é que isso aconteceu?
R/1: Como é que é?!

00:17:24
P/2: O senhor tem alguma lembrança, senhor Antonino, de quando o senhor começou a perceber, que estavam desmatando território?
R/2: Na verdade, o desmatamento aconteceu, vocês se lembram muito bem da segunda guerra mundial, né?! Eu no meu parecer, eu entendo isso que fizeram… Olha só, as terras eram devolutas, as terras eram nossas, eram do povo indígena Tupiniquim, na época era só os Tupiniquins que viviam aqui. Então o que o governo e os governantes fizeram na época, assim que termina a segunda guerra, eles formam o projeto de fazer uma siderúrgica em Vitória, capital do Espírito Santo, ali eles vão montar a siderúrgica ferro e aço, Companhia Siderúrgica de Vitória, aí chamava CONFAB, aí nesta época eles tinham que retirar matéria prima, matéria prima o que que era?!, o carvão vegetal, e onde eles se encontravam, o Município de Vera Cruz fica há uns 88 quilômetros de Vitória, Aracruz era uma região que tinha bastante mata, essas matas pertenciam a nós, povo Tupiniquins, o que que eles fizeram, montaram a companhia Ferro e Aço para fabricação de carvão vegetal, aí começou o desmatamento, na nossa área sem proibição de nada. Foram devastando algumas pessoas, desagrupando dos seus lugares, e formando um só lugar, vivendo mais junto. Aqui eles vivem naquele pedacinho ali, começaram a desmatar a mata, de onde eles tiravam a sustentabilidade deles, que era a caça, a pesca. Ali tirava as madeiras, com o artesanato que eram as gamelas, remo, peneira, daquela região que eles tiravam. Então, o sustento deles, eram aquelas matas que eles tinham, era dali que eles tiravam. Aí foi empobrecendo muito, a companhia chegou, trouxeram um monte de gente pra fazer carvão, praticamente uma invasão, foi a primeira invasão que a gente teve, na nossa história, até onde eu conheço. Essa foi uma das invasões que nós tivemos, eu perguntei pro meu pai quando ele chegou, ele disse que tinha de 10 para 11 anos, então era esse idade que ele tinha mesmo, ele chegou em meados de 1945, quando terminou a segunda guerra. Eu calculei assim, e ela ficou até o começo dos anos sessenta, de 45 aos anos 60, desmatando.
Nos sessenta, alguns colonos começaram a criar terras ali dentro, aí nós nos fortaleceu um pouquinho, melhoramos, a saída da Ferro e Aço enfraqueceu, porque tinha pouca mata, uns 80% da mata, eles destruíram, ficando bem pouca mata, acabou a Ferro e Aço. Olha só, o projeto já vinha para entrar a Aracruz, com a plantação de eucaliptos, em sessenta e quatro começa o regime militar, as terras continuam sendo nossas, devoluto do estado, da união, aí entra o regime militar em sessenta e quatro. Em sessenta e seis, a Aracruz Florestal Reflorestamento, chega em Aracruz, com a ordem do Governador do Estado, com

a ordem do Prefeito do Município, chamado Primo Bits, aí ela se instalou em Aracruz e invadiu as áreas. Antes disso, eu quero voltar um pouco atrás, em sessenta e dois ou sessenta e três, ela colocou um Agrimensor na área, já ideia deles, que a terra ninguém tinha terra demarcada, aqueles lotinhos de terra, aí quando esse Agrimensor chegou, foi marcando a terra de todo mundo que morava nesta região. foi marcando, fazendo os lotes, esse Agrimensor mediu as terras, eu era pequeno, eu tinha uns 10, 11 anos de idade, eu lembro muito bem. Aí ele marcou essas terras todinha, veio fazendo os lotes, dos colonos, e vieram dando essas terras para eles, dizendo; essas são de vocês!, olha só a malandragem deles hein, eu penso assim comigo. Aí já estava com um projeto, assim que demarcou tudo, as terras, eles vieram na aldeia de Pau Brasil e montaram uma torre, uma torre bem alta, construíram essa torre e essa torre ficou uns vinte dias, entre a fabricação e montar ela e tirar, ficou mais de um mês. Lá em cima eles colocavam os aparelhos, olhavam a extensão das terras, já pra fazer pesquisa essa torre, fizeram uma pesquisa na área e desmancharam a torre e foram embora. Em sessenta e seis, um ano e pouco depois, a companhia chega para desmatar as terras, o resto das matas que tinha, tinha muita mata ainda, e começaram a ameaçar. Antes ela chegou, já trouxe um comprador de terras, chamado Coronel Ageu, olha só, só militar, e um Capitão Orlando, que era de sobreiro, ele tirava as pessoas do lugar. As terras que o Ferro e Aço desmatou, ficaram muitos colonos, ali eles adquiriram as posses em terras, muitos eram mineiros, baianos que vieram pra cá, outros capixaba mesmo. Ali, alguns não quiseram ir embora mais, que faziam carvão e formaram família, começaram a ter as posses de terra, e essa terra ela tomou, expulsou os caras e colocou fogo nas casas deles, fizeram uma invasão muito grande. A nossa área no Canta Galo, que era próximo,

do outro lado do rio saí, eles não mexeram, não fizeram esse tipo de coisa. Os lotes eles respeitavam, e indenizavam as pessoas, ia lá e não era a pessoa que valorizava os lotes delas, e diziam que as pessoas precisam sair, que iam ficam ser estrada, vão ficar sem saída, vão ficar preso, eles forçavam a pessoa. Entregar naquela época, a quantidade de terras a eles, por mil e quinhentos cruzeiros. Mil e quinhentos, dois mil e quinhentos, quando valorizavam um pouco mais, pagavam três mil cruzeiros na época, aonde ele ia para Aracruz na cidade, lá em Aracruz, ele comprou um lote num lugar acidentado, era tudo morro, por oitocentos cruzeiros. Um lotinho, pra fazer uma casinha de tábua, pra ele viver. Ali, ela dava esse dinheiro para essa pessoa, pra aquela família dela, ele ia pra lá e ia trabalhar de escravo pra ela. Ela oferecia o emprego, pra trabalhar de bóia fria, roçando o mato, derrubando e plantando eucalipto, sol e chuva, que era uma escravidão total. Me lembro disso, eles não tinham proteção de nada. As marmitas que eles carregavam, onde que eles comiam, não tinha lona, não tinha nada, podia estar maior chuva e eles estavam comendo e a chuva caindo dentro da vasilha deles. Tá aqui meu pai que está de prova, ele que passou por isso. Aí foi desse jeito, nossa invasão aqui, o desrespeito com nós, foi como as autoridades maior, fizeram na época, aí aconteceu nossa invasão.

00:26:20
P/1: Muito obrigado pela sua contribuição, por explicar pra gente, deu pra entender legal. Aí você falou que seu pai está de prova disso, dessas coisas. Aí senhor Antonino, você lembra dessas coisas que ele falou? Da empresa ameaçando, colocando fogo na casa, se você chegou a passar por uma situação dessa?
R/2: Não, peraí! Com nós, os índios do lado de cá, eles não chegaram ameaçar de botar fogo, mas os colonos que estavam do outro lado. Os colonos que vieram de Minas, da Bahia, para a construção do carvoeiro, eu falei que ali eles tiveram as posses de terra e ficaram pra lá. O território era grande, era muita mata que existia, aquela região era grande, então ali ela botou um Capitão e um Coronel, na época, eles chegavam e mandavam os caras embora, mandava a família embora, tocava fogo, ameaçava de morte. Com nós, eles não chegaram a fazer isso, porque nós já morávamos do outro lado do rio, mas pertencendo ao mesmo território. Só que aí, eles respeitavam-nos um pouco mais, nós indígenas, se entendeu?!





00:27:41
P/2: Perfeito gente. Muito bom, complementando assim a história, e a memória. Mas eu queria insistir nisso, que estamos tentando evocar assim, nesta entrevista, que o Jonas estava falando também… Perguntando pro senhor Antonino, alguma lembrança que o senhor viveu, quando você começou a perceber esse desmatamento, essa mudança maior no território. Se o senhor tem algum episódio que o senhor consegue se lembrar, pra contar pra gente, a partir da sua vivência mesmo. Quando você viu que estava começando a desmatar mais, quando você teve que se deslocar da aldeia do Cantagalo para o Pau Brasil… Alguma lembrança de algum acontecimento, diante desse processo do desmatamento, da perda da mata antiga.
R/1: A diferença, a gente vê que, quando a gente vem do Cantagalo pra cá, a mata podemos dizer, já estava tudo devastado, porque a Florestal entrou já acabando com tudo, fazendo o desmatamento. E quando a gente chegou pra cá, já não tinha mais mata, pra gente observar o que podíamos fazer, a não ser pelas poucas matas que ficou pelas brotas né, então é que a gente sente muita falta de mata que tinha. E a gente vem aqui para Pau Brasil, que queriam acabar com tudo. E a Ferro e Aço foi embora, não tinha mais nada pra fazer. Que a Ferro e Aço foi a primeira que chegou, ela desmatou um pouco, e ficou um pouco ainda, e esse pouco que ficou, veio a Aracruz em sessenta e seis, e aí ali achou muita mata ainda, mas nessa muita mata, quase era pouco. Porque aí meteu o trator, arrebentou tudo, correntão, quebrou tudo, meteu o trator de esteira, e foi quebrar os capoeirão. Quebrou tudo, depois arou tudo, e fez um arraso, vamos dizer assim. E esse arraso, então acabou a mata, e o que aconteceu?!, nessa coisa que degolou a mata, a mata acabou e a terra ficou devastada, acabou a mata de trabalho. Nós ficamos sem trabalhar, a terra acabou, a terra enfraqueceu os trabalhos de plantio de roça, até que chegou a coisa que nós não pensávamos que ia acontecer, mas como aconteceu, o que nós poderíamos fazer, nada, a gente não tinha a possibilidade de trabalhar, e fazer coisas que davam a garantia à sobrevivência, tanto do ser humano, como nós indígenas, quanto também com os animais também. Eram duas coisas que aconteceram, aí acabou a terra, acabou o vegetal, e a gente ficou nessa possibilidade de não saber como é que a gente ia fazer, para dar uma coisa boa pra gente fazer um trabalho especial.
Antigamente, antes do desmatamento, o que acontecia com o trabalho pra nós aqui, plantio de mandioca, uma mandioca boa, dava o plantio de um feijão bom, não precisava de adubo, milho dava, criar as criações sem nenhum prejuízo, mas depois que a Aracruz chegou e começou a semear adubo, adubo vermelho, a terra enfraqueceu, e está até hoje desta maneira.

00:35:47
P/2: Senhor Antonino, muito bom o relato que vocês estão trazendo, complementando. Sr Zinho, depois se o senhor quiser transformar a minha pergunta, para o seu pai entender. Mas eu estava querendo saber, diante deste desmatamento, que primeiro a Ferro e Aço e depois a Aracruz, começou a promover nesse território tradicional do povo Tupiniquins, como que o povo e a comunidade reagiram? Se houve algum tipo de mobilização, algum tipo de reivindicação pelo direito, algum tipo de organização, frente essa ameaça que começou a existir ao longo do tempo? Se seu pai tem recordações desse tipo de mobilização.
R/2: Da Ferro e Aço, ele falou que não lembra, pois ele tinha 11 anos quando a Ferro e Aço chegou.
R/1: Naquela época eu era novo.
R/2:

Ele está falando que não. Ninguém se mobilizou não.

00:37:13
P/2: E quando a Aracruz chegou, teve alguma reação diferente?
R/2: Que eu lembro, também não. Porque, olha só… A gente estava ainda dentro do regime, nós não tínhamos voz de imprensa. Eu penso assim, o povo tinha medo, não tinha imprensa, em sessenta e seis, não acontecido o i5 ainda, mas estava quase começando o i5, não tinha pra divulgar, o povo com aquele tensão toda, ainda os militares no comando, a gente ia fazer o quê, o governo deposto, presidente do país, o país estava jogado às traças naquela época. Pensa assim comigo, o povo que era daqui da roça, que era um povo onde moravam todos dispersos, eles tinham um lote de terra, só o Pau Brasil que era mais junto um pouquinho, quando a Aracruz dispersou esse povo todo, o Pau Brasil ficou com 12 famílias, fora as aldeias que foram montadas em volta de Pau Brasil, que era a minha Aldeia Cantagalo, Ariribá, Guaxindiba, Amarelo, Braço Morto. Aí ficou na resistência, Pau Brasil, Cairá Velha e Comboios. Essas três aldeias continuaram, mas as outras foram desmembradas todas, Córrego do Ouro, Braço Morto, Amarelo, foram desmembradas todas essas aldeias, dentro do território. Então os povos se dispersaram, uns foram para o litoral, voltaram para o litoral, para Barra do Saí, outros foram para Barra do Riacho, outros foram para a Vila do Riacho, Aracruz sede, Santa Cruz, e foram para todos esses lugares, dispersaram o povo todo. Em Pau Brasil, ficaram só essas três comunidades resistindo, porque não tinha mais terra, eles iam voltar para o Pau Brasil para fazer o quê?!, se não tinha

terra, eles iam para Cara Velha fazer o quê?1, se não tinha terra, Comboios só areia, não tinha projeto de nada. Então ficou nesse embate, o que ela queria, era que todas as aldeias se desmembrassem, mas teve uma resistência, no Pau Brasil teve resistência. Antes dos anos oitenta, eles tentaram desmembrar o Pau Brasil, a igreja católica caiu, tinha uma igreja evangélica que também acabou, ficou só esse pouquinho de família, a Aracruz ainda veio e quis insistir para tirar. Minha avó teve que correr com alguns comprador de terra,

os medidor de terra, queriam compram o Pau Brasil todo, vender os lotes de casas, que só o lugar da casa, não tinha onde trabalhar, queriam comprar e minha avó teve que correr, outras pessoas se mobilizaram e tocaram eles, se não, Pau Brasil também não existiria não,

00:41:01
P/2: Entendi. Então o seu pai, o senhor Antonino, a Débora falou que ele foi Cacique durante muito tempo, da Aldeia Pau Brasil. Sim?
R/2: Foi sim!

00:41:22
P/2: Vocês podem, ou o senhor Antonino pode, contar um pouco de como foi isso? Se tornar cacique. Como se tornou uma liderança do povo Tupiniquins? Já nasceu as lideranças, alguém reconheceu, como levantou essa bandeira? Como o senhor se tornou cacique?
R/2: Posso falar?

00:41:43
P/2: Pode falar, mas a gente quer poder valorizar a lembrança do seu pai, pra ele poder recordar e trazer a lembrança. Pode complementar sim, com as informações, mas a gente gosta de trazer a memória e a emoção da experiência.

Mas pode contar sim, também.
R/2: Olha só, antes de setenta e oito, nós éramos índio e éramos felizes e não sabíamos, vamos dizer assim… nós éramos índios e não sabíamos. O povo falava que a gente era indígena, mas a gente vivia igual ao outro povo branco, nós éramos conhecidos nesta região toda aqui, como povo branco, como tudo igual eles. Aí quando foi em setenta e oito, com a chegada da anistia e o regime militar já enfraquecendo, já o direito de imprensa voltando, esse negócio todo, teve uns políticos que se interessaram em nós, viram a nossa história, a história dos povos Tupiniquins, se interessaram e começaram a buscar, aí aconteceu a luta pela terra, em setenta e oito. Ela ia inaugurar a fábrica dela, quando inaugurou em setenta e nove, a fábrica da Aracruz celulose, de papel, aqui encostadinho de Pau Brasil, que fica a quatro quilômetros de distância daqui da aldeia. Então teve uns políticos, do estado mesmo, que começaram a correr atrás. Ela ia inaugurar uma fábrica, em cima de uma Aldeia Macaco, esqueci de falar da Aldeia Macaco, que fica praticamente onde era situada a fábrica da Aracruz Celulose. Aí com a vinda do povo Guarani, que estava viajando, andando o país inteiro, quando eles pararam por aqui, deram uma força pra nós, Começaram a se mobilizar com nós, essa luta, aí buscando com políticos e alguns jornalistas, daqui do estado, aí começamos a nos mobilizar e sair na luta pela terra. Assim aconteceu.
Não sei se vocês já ouviram falar em Rogério Medeiros, ele foi quem deu o aval para nós entrarmos na luta pela terra, junto com políticos de esquerda. Começaram a nos mobilizar, juntar a gente pela luta por essa terra, porque essa terra era nossa. Eles começaram a futucar, a ir ao Instituto João dos Santos Melo, que fica em Vitória, foram ao Museu do Índio, no Rio de Janeiro, e conseguiram as histórias do povo Tupiniquins, a história e a terra e os documentos da terra. Conseguiram e aí viemos, nos mobilizamos e fizemos uma auto demarcação, na época. Em setenta e oito, começou em setenta e oito e terminou em setenta e nove.

00:45:21
P/2: Entendi, um pouco do processo.
R/2: Aí então surgiu o cacique.

00:4529
P/1: O seu pai?!
R/2: Não, não. O senhor Valdemar conhecido do João, João foi o primeiro cacique daqui. Como todas as aldeias, no começo teve um cacique. Lá em Caravelho foi o Benedito Joaquim, em Comboios o primeiro cacique foi o Alexandre,

00:46:26
P/2: E o seu pai pode relembrar e contar pra gente, como foi esse encontro com o povo Guarani. O povo Guarani chegou aí neste território e teve um encontro, teve diálogo. Ele lembra como foi encontrar com o povo Guarani, e conversar sobre a terra?
R/1: Aí nos encontramos com o povo Guarani, foi tomando intimidade com eles, mas a gente estava um pouco assustado, com o povo Guarani. Mas a gente foi conversando, conversando, dialogando e até que a gente se

achegou. E depois que a gente se achegou com eles, e nós conversamos,

eles concordaram com nós sobre a demarcação das terras. Eles disseram que iam se aliar a nós, eles como índios Guaranis iam também pertencer a demarcação. Aí concordamos, os Guaranis e nós, e começamos nesta concordância, o que que aconteceu?!, nós nos juntamos todos, na demarcação. Foi uma demarcação fracassada, um pouco, porque a gente estava com pouco de entendimento, coisas da demarcação, então primeiro a demarcação foi pouca, quase não se resolveu nada, aí depois, nós começamos a mobilizar novamente, e assim foi fortalecendo. Até chegar nessa força, nós fomos a terceira demarcação, já melhorou mais, e nesta melhora é que chegamos até aqui.
Está aí, demarcamos a terra, unificamos Pau Brasil com Caravela, mas no meu ponto de vista, essa mobilização, não deu pra deixar nós incentivados, pela nossa vivência, para produção da nossa terra. Porque não é só essa, tem mais ainda, e eu não sei porque que nossos parentes, estão observando o que vou fazer, que vou continuar, não sei. Eu, o Seu Zinho foi o segundo cacique, depois ele passou pra mim, eu passei 15 anos e as pessoas gostaram muito de mim, eu trabalhei muito bem. Depois passei para o Valdeir e assim por diante. Agora eu não sei, agora que o povo cresceu mais, se vai haver outra mobilização para passar para outro, e crescer mais a área de terra. Aí vai depender do povo de fora, que vai pensar e ver que nós estamos indo tão direito, ainda no terreno indígena.
R/2: Ele está falando que em setenta e oito, a gente ficou com pouca terra. Caravelas com um pedacinho de terra, Pau Brasil também com pedacinho de terra, Comboios também, Comboios só tinha areia, só lá a ilha, a ilha de Comboios, aí ficou essas três aldeias. Quando foi em noventa e três, por aí assim, a gente começou a politizar, articulando, já estava mais vivido um pouco, entendendo, a gente começou a se mobilizar melhor, achando que as terras estavam ficando pequenas. Porque

antigamente, as aldeias eram todas unificadas, Pau Brasil com Caravelas, Pau Brasil com Comboios, Cobre do Ouro… Então não tinha divisão neste meio, em setenta e oito eles demarcaram as terras, em setenta e nove quando foi demarcada a terra, e ficaram só aquelas ilhas pequenas, terra pequena, uma terra em Pau Brasil, uma terra em Caravelas e outra em Comboios. Então, o que nós pensamos, nós nos mobilizamos em noventa e noventa e três, para poder unificar as aldeias.



00:52:32
P/2: Eu queria poder escutar um pouco do testemunho do seu pai, o sr Antonino, sobre ter sido cacique. Alguma lembrança, pelo que eu vi, a terra foi demarcada em 1983, o senhor participou dessa demarcação como cacique?
R/1: Eu participei.

00:52:54
P/2: O senhor pode contar um pouquinho pra gente? Fazer um relato, como foi esse momento?
R/2: Em oitenta e três ela foi reconhecida, ela foi demarcada em setenta e nove, homologada.

00:52:27
P/2: E o Senhor Antonino era cacique, na época?
R/1: Era cacique.
R/2: Era cacique.

00:52:33
P/2: E como foi essa época? O senhor pode contar um pouco pra gente?
R/2: Não, não era não, o cacique era João Almeida.

00:53:49
P/1: Senhor Antonino, o que nós gostaríamos que o senhor contasse, era como foi pra você ser cacique, o que que você fez como cacique. Que você falasse um pouco pra gente, como foi ser cacique.
R/1: Como foi?!. Foi com parceria, com a ajuda da comunidade, com ajuda das parcerias de fora, ajudaram bastante a gente, com todo o cuidado, explicando como a gente deveria proceder, e a gente foi caminhando, até chegar nessa caminhada. A gente trabalhou, mas não foi fácil, mas na caminhada, muitos apoiaram a gente, gostaram da minha caminhada, das minhas conversas, da minha fala, até chegar nos quinze anos como cacique. Quando chegou nos quinze anos, eu também fiquei assim, um pouco desanimado, porque lutar e conversar com o ser humano, não é fácil. Às vezes, eu já estava meio cansado, e vai desanimando, até que chega uma hora que a gente fica querendo parar, e entrega pra outro.

Ninguém queria que eu entregasse o cargo de cacique, pois estavam se sentindo muito bem com as minhas conversas, com as minhas palestras, com as minhas saídas. Eu saí muito da aldeia, para dialogar com os outros índios, por aí, e pediram que eu não saísse, aí eu disse; não eu vou sair, porque eu estou muito cansado de conversar, de sair, de sair fora de casa. Até que eu resolvi sair, e entreguei para o Valdeir, que é o Engel. Eu nem sei quantos tempo ele trabalhou, mas trabalhou um pouco de anos também, aí quando acontece que ele resolve também sair, e entrega pra outro, que é o Romildo.

00:57:50
P?2:

Entendi. E quais trabalhos você fazia como cacique? Você se recorda, para poder contar pra gente, quando durante esses quinze anos, em que você trabalhou como cacique, o que você pode fazer pela sua comunidade? Porque a comunidade te apoiava tanto?




R/1: O que eu fazia pela comunidade, na aldeia, era reunir. A reunião principalmente, na àrea de cacique, representando eles, quando eu conversava com outra aldeia, eu fui para os índios Guarani, que era aqui perto, fui para outras aldeias, e quando eu chegava, eu passava tudo para eles, tudo que eu conversava, tudo que eu fazia e o que acontecia durante as conversas, eu falava tudo pra eles, e assim eles gostavam muito. Até que eu cheguei num ponto, de dialogar com o povo Tupiniquins, como cacique da aldeia. Eles gostavam muito de mim, não queriam que eu saísse, eles me chamavam tudo de Senhor Antonino, e eles falavam; nós estamos vendo uma coisa, não tem uma pessoa pra entrar

de cacique no seu lugar, porque vai ser o senhor mesmo. Aí eu conversei com eles, mas agora eu não quero mais não, agora vai ser outro cacique mesmo, para trabalhar com vocês, com nós, eu sou da aldeia também. Aí eu entreguei o cargo de cacique e estou aqui.

01:00:05
P/2: Senhor Antonino, você na sua vida, você conheceu pessoas que falavam a língua Tupiniquins? Porque é uma língua que hoje está sendo mais retomada, está voltando a ser falada, mas o senhor conheceu ancião, sua avó falava a língua Tupiniquins

também?
R/1: Não. A minha avó, os meus tios, dentro da aldeia, eles não chamavam você, eles chamavam vós. Todos os mais velhos, eram vós. Vós fosse, vós ide, era assim que eles falavam, agora depois que eu também fui crescendo, e estudei um pouco na escola, eu aprendi também, pois eu falava diferente. Minha mãe também, não chamava você, chamava vós ide, vós fosse, e a gente aprendeu.

01:02:30
P/2: O senhor estudou

a escola completa? Você se formou na escola?
R: Eu não me formei. Não me formei, porque eu fui pra Aracruz trabalhar, na florestal, lá eu fui estudando, mas achava difícil, estudar e trabalhar, aí eu deixei. Aqui, a professora, onde era a Aracruz, ela disse; senhor Antonino olha, o senhor já sabe ler, o senhor vai passar para a terceira série. Quando eu era criança, eu estudei aqui, antigamente não chamava séries, chamava primeiro ano, segundo ano, terceiro ano.

01:04:17
P/2: Essa escola era na cidade de Aracruz?
R/1: Dentro do Pau Brasil.
R/2: Era Municipal.

01:04:30
P/2: Ah, uma escola dentro da aldeia?
R/1: Era dentro da aldeia. Eu caminhava uns três quilômetros, lá do Cantagalo até o Pau Brasil, caminho de trilha de tato, e a gente não tinha preguiça de caminhar, estudar, tanto eu como meus colegas. Hoje não, os meninos estudam quase dentro da escola, perto da escola.

01:05:38
P/2: Eu entendi um pouquinho. Fico curioso pra saber mais, das suas memórias mesmo, me chamou a atenção, do que você estava contando, que vocês desconfiavam um pouco do povo Guarani, que o povo Guarani deu apoio, mas que vocês também olhavam como uma coisa diferente. O senhor se lembra, pode nos contar um pouco, como foi conversar com os povos Guarani, quais experiências foram trocadas?
R/1: A diferença, era que a língua deles era diferente, e quando a gente se juntava para uma reunião, a gente também prestava bastante atenção nas falas deles, e nessas conversas, a gente foi aprendendo alguma coisa, o idioma deles também. Aí a gente começou a entender a linguagem deles, o suficiente para entender o que eles falavam.

01:07:18
P/2:

Bom, eu queria poder trazer mais memórias mesmo, mais vivências do senhor como liderança. Por isso que eu estou perguntando da terra, do diálogo com os povos Guarani, tentando entender, pra deixar registrado a história. Você se lembra de algum episódio que o senhor destaca, nesta sua trajetória como cacique, senhor Antonino, alguma coisa importante Qual foi a coisa mais emocionante que o senhor pode fazer como cacique?




R/1: O que a gente pode falar, é que quando eu caminhava junto com eles, a gente ia falando sobre as coisas, sobre as necessidade de sobreviver. Mas a língua dos Guaranis era muito diferente, mas o que eu fiz foi, era coisa que dava pra fazer pontualmente, pensar na sobrevivência, das coisas que dava pra gente entender, sobre as coisas da sobrevivência.

01:09:21
P/2: Sim, eu imagino que não deva ser fácil, sobreviver com tanto empresa afetando a vida da comunidade, como vocês estão contando.
R/1: Pra você ver, quando o povo lá de fora, quando chega pra falar com a gente, faz muita coisa diferente. Fala uma coisa, vem outro e fala outra coisa, é difícil entender a sobrevivência na palavra deles para nós. É difícil, é como você está falando aí pra mim, palavra diferente, é difícil. Quando a gente tem a cabeça boa, entendendo bem, mas quando a gente tem já a idade, eu como tenho oitenta e cinco anos, a cabeça está fraca. Não dá pra dialogar coisas boas na cabeça da gente, mesmo na minha casa, quando eu estou falando uma coisa, daqui a pouco eu esqueço, não sei o que eu falo.
R/2: Pai, fala pra eles, que nós, os povos Tupiniquins, viemos todos da praia e permanecemos nessa região pra cá. Para eles, Pau Brasil existia, mas o resto do povo, que veio depois, no caso na formação de Cantagalo, de Araribá, e outras aldeias, foram formadas com povos que vieram lá da praia.


R/1:

Você vê, quando a gente está acostumado com os povos da gente, a gente tem facilidade pra entender, pra conversar, mas quando vieram os povos lá

de fora, chegaram muita gente pra cá, pra Pau Brasil, na verdade, vieram palavras diferentes. O povo lá de fora, não conversava e nem falava igual a nós, como nós conversamos e falamos dentro da nossa aldeia, então a palavra pode até ser uma palavra boa, decifrada para entender, mas não é igual a nossa. E a gente tem coisas que nós precisamos ter entendimentos.

01:13:20
P/1: É muito interessante escutar assim sobre as falas, como uma liderança.
R/1:

É diferente!

01:13:32
P/2: Vou pedir ajuda ao senhor Zinho. Senhor Zinho, você tem alguma história que acha que seu pai saiba? Porque eu não quero perguntar algo que seu pai não saiba. Eu não estou perguntando nada que ele não saiba, são coisas que ele sabe, pra ele contar que ele viveu mesmo. Se o senhor acha que tem alguma história legal, para nós aqui, para você perguntar pra ele, alguma história que você já ouviu e que gosta que ele conte, pra gente deixar registrado aqui?
R/2: Uma última, não é história, um caso verdade que ele falou? Vou falar pra vocês ouvirem também. Ele me falou há uns dias atrás que ele tinha dúvida, o nosso povo dessa região daqui, do Pau Brasil, Canta Galo, é uma região que não chega nem, a dez quilômetros da praia, Pau Brasil hoje, a aldeia tem cerca de seis quilômetros da praia. Então eu sempre tive essa dúvida, porque esse povo, que morava pra cá, inclusive minha avó, meus antepassados, eles tinham essa convivência com a praia, com a maré, com marisco. Essa coisa toda com a maré, e eles não perdiam a lua, toda a lua eles iam pra lá, faziam os piqueniques deles, faziam a mariscada, a pescaria, o nosso rio Saí, inclusive a localidade aqui da praia, é Barra do Rio Saí, lá onde sai a barra do rio, que corta essa aldeia toda, esse rio Saí. E esse povo nosso, vivia todos a margem desse rio. E eles pescavam, e mesmo aqui na região da parte de cima, eles pescavam lá no mar, saiam daqui das aldeias e iam pescar em alto mar, e tinham essa grande convivência com a praia. Aí o meu pai estava contando esses dias pra mim, que esse povo que veio pra cá, mais retirado da praia, eram todos da praia. Então praticamente eles foram expulsos de lá e subiram o rio, e vieram fazer aldeia aqui pra cima. Por isso que eles tinham, e nós temos ainda até hoje, esse contato com a praia até hoje. Os nossos antepassados, eram todos de lá, da praia, e nós perdemos o litoral.

01:16:06
P/2:

Nesse reconhecimento, da terra, muito do litoral se perdeu né?
R/2: Foi pego o nosso litoral, vivemos perto dele, mas no litoral mesmo, nós não temos uma aldeia. Inclusive, seria a aldeia Barra do Saí, lá era uma aldeia. Eu estava lendo a história do Imperador, quando ele visitou o Espírito Santo, ele tomou o Cauí, tomou a Cuiabá, nossa bebida típica de mandioca e do milho, ele tomou lá na Barra do Saí, na Aldeia Saí, está na história do livro. Ele visitou o Espírito Santo em 1860.

01:16:58
P/2: O imperador, você diz?
R/2: É. O Imperador II.

01:17:07
P/2: Muito legal, você saber da sua história. Eu vejo que você buscou muito da sua história. Você estuda a história, também do território, né? Você procura saber, né?
R/2: Eu gosto de ler, essas histórias é comigo mesmo.

01:17:24
P/2: Mas, nós tentamos evocar a lembrança do seu pai. Ele pode contar alguma história do mar? Alguma história de pesca, ela relação ele viveu também?
R/1: Eu pesquei, e vencia a água do mar, pesquei naquelas canoas pequenas, que chamava batelão, outros chamavam de canoa pequena. Não era como agora, que as pessoas pescam no barco onde uns chamam de bote, outros chamam de lancha, não. Era sempre na canoa, tirado lá na mata. Os canoeiros iam lá, cortavam a madeira, faziam as canoas, tiravam a madeira e limpavam de machado. Iam no meio da mata, com os bois, amarravam as correntes na canoa e puxavam, e viam para a beira do rio. Alí ele limpava a canoa, e daí levava para o mar. Não tinha esse negócio de barco de leme, era pano, colocava um pano, e ali armava o pano, e colocava o remo que puxava a canoa. Era muito difícil, é difícil mesmo, mas depois que foram passando os dias, os meses e os anos, aí já modificou, era mais projetado, fazia o que podia fazer, faziam bote, lancha, e botava o leme. Aí fazia coisas mais motorizadas.
R/2: Ele está dizendo que, na época dele, a pescaria era artesanal, era tudo na arte. Hoje não, é tudo fabricado, modernizado né!.
01:21:18
P/2: E outra intervenção de empresa, outro acontecimento. Quando teve aquele desastre de lama, em Mariana, lá em Minas Gerais, isso chegou a afetar os rios daí? O rio Saí?
P/2: Afetou sim.

01:21:42
P/2:

E como foi isso com vocês? Isso foi mais recente do que esses episódios do Ferro e Aço, Aracruz, essa lama da Vale é uma coisa mais recente. Como foi isso pra vocês?
R/2: Nós também estamos na região norte do estado, aconteceu através do Rio do Doce, o Rio Doce nasce em Minas, desagua aqui no Espírito Santo, no município de Linhares, próximo à divisa com Aracruz, no nosso município. E é questão de poucos quilômetros, afetou o nosso mar aqui. Então tem os rios Piraquê Aguaçú, tem o rio Saí, o rio Comboios, o rio Riacho, e esses rios todos cortam as aldeias, o nosso território. Onde que atingiu, a lama foi pro mar, a maré sobe, o rio enche, aí leva os dejetos todos pra cima, até onde ela chega. E foi afetando tudo, o manguezal, tudo que é setor de mariscagem alí, secou tudo. Na praia, onde a gente pescava os ouriços, o polvo, os frutos do mar, afetou tudo. Sem contar com as empresas que chegaram também, a Jurong, que tomou a maior parte do nosso litoral, bem próximo do Pau Brasil, aqui próximo , onde nós íamos demarcar essa terra, eles chegaram e tomaram, bem recente também, eles chegaram por volta de 2010, e tomaram toda essa área de nós. A área que nós estamos preservando, as áreas de preservação nossa, hoje virou indústria.

01:23:45
P/2: Essa é uma outra empresa? A Jurong?
R/2: A Jurong, uma empresa naval.

01:23:55
P/2: Então a história, tem sido, de empresa após empresa. Ferro e Aço, Aracruz, a Jurong, depois a Vale, todas elas afetando a vida e o território da comunidade aí?!
R/2: E tem outra agora também, que tem metano, que vai fazer um porto também. Fora que tem que falar dos portos, tem a Portocel, a Aracruz Celulose que hoje é Suzano, tem o projeto do Imetame, que irá fazer um porto também, dentro da região que já existe a Jurong. Acabaram com as áreas de recife tudo.

01:24:44
P/2: Eu queria perguntar pro seu pai, como ele enxerga essas transformações, neste território tão cheio de matas.
R/1: Para falar a verdade, é quase difícil a gente falar de porto que tem mata, porque as matas que tinham, eles desmataram tudo. As matas que tinham à beira da praia, de um lado que a gente chama agora de Porto Céu até Santa Cruz, era onde a gente caminhava e fazia mariscada, até a Barra do Riacho até Portotiriço e Santa Cruz, que era do povo da gente, mariscar.

A gente fala, fala, e vai falando, quando era do Cantagalo e não tinha outras coisas pra fazer, nós íamos, não eram todos, alguns, nós íamos lá para a Barra do Saí, a Barra do Piranema, Água Boa. Tudo era mata suficiente, era mata e praia, a gente ia na certeza de que faria uma coisa boa, porque tinha o que a gente fazer. A gente ia colher, e agora não tem mais, a coisa está toda tomada mesmo.
R/2: Esses pontos que ele falou, as pessoas praticamente não viviam definitivamente, eles iam pra lá só em época de mariscada, eles tinham os ranchos deles que eles ficavam, era Água Boa, Piranema e Saí Mirin, esses três lugares. Então esses povos, eles iam em grupos, acampavam ali e pescavam, faziam a mariscada e voltavam aqui pra cima de novo. Lá era areia, próximo de praia e não tinha moradia fixa deles lá, tinha o lugar deles ficar, quando eles iam lá pescar, pescavam uma semana e voltavam, retornavam pra cá, pora roça deles trabalhar, levavam os peixes, os mariscos, era assim que eles faziam. porque era perto, não era longe, Esses pontos, todos acabaram, as praias tomaram todas, não tem um nome hoje, Água Boa, Piranema, Saí Mirim.

01:28:41
P/2: É uma história de muita transformação né, no território, na paisagem. E eu queria também perguntar a vocês, o senhor Antonino chegou a falar que vocês não se viam como índio. E como você descreve essa retomada da identidade, da história dos Tupiniquins. Tentei entender um pouco disso, perguntando sobre o diálogo com os povos Guarani, que ajudaram a fortalecer a ideia de demarcação do território, mas eu queria saber como vocês veem essa retomada da identidade, como povos Tupiniquins, nem sempre estava presente nessa história, por ser uma história de muita intervenção, mas queria saber como vocês veem essa retomada como povos Tupiniquins, do senhor Antonino o que ele acha disso?
R/1: Agora eu acho um pouco mais difícil, se nós tivéssemos um desenvolvimento melhor, e as pessoas também, ajudassem a retomar alguma coisa de praia, é um pouco mais difícil, mas seria bom. Se as pessoas tivessem interesse, quisessem ajudar, quisessem conversar, tornar alguma possibilidade de fazer coisas boas para a gente, seria bom, porque aquele lugar ali, era coisa que deu e dá, pra fazermos coisas boas ali. É só a pessoa transformar numa coisa que pode ajudar a gente sobreviver, muitos dos antigos, que já morreram, já sentiram falta. Tanto os meus tios, os meus avós, já morreram todos também, minha mãe, meu sogro, todos sentirão muita falta do que eles viviam, e fez falta. Porque você veja, faltava o marisco, e eles viviam do marisco, nós sobrevivíamos aqui do marisco, era o siri, era uma lagosta, era um ouriço, e outros mais. Isso quando acabou, fez falta, e a gente ficou em falta daquilo ali, sentiu falta. Pra quem destrói, não faz falta, permanece a mesma coisa, mas como nós aqui da aldeia, e mesmo em outro lugar, faz falta, porque desde que nasceu e sobreviveu, como uns aqui agora, faz falta. Isso tudo aí fez falta, e principalmente a liberdade, porque eu falo na liberdade, a liberdade que nós tínhamos naquelas praias, e não poder mais andar na praia, não poder mais viver da praia, porque não tem mais. E assim a gente sentiu e sente falta.

01:34:00
P/1: Legal, senhor Antonino, a gente está caminhando pra fechar a entrevista, a gente já está quase duas horas com vocês, eu acho que vocês tem que almoçar daqui a pouco. Mas eu queria perguntar, se tem alguma história que você viveu, que você não contou, mas é uma história que você gostaria de contar.
R/1: Olha, é o seguinte, desde quando eu comecei a andar, com doze anos, até sessenta anos, eu andei bastante. E as vezes eu fico pensando, contando para as crianças, e eles ficam até pensando e imaginando, que eu tinha um filho e ele faleceu, ele até gostava de rir de mim, eu contava a história que eu andava muito, eu andava vários dias a pé, e outras terras e lugares mais longe. Essa praia que eu estou falando, a gente ia de Santa Cruz até a Barra do Riacho, e ia tranquilo, sem nada que viesse incomodar a gente, ia e voltava tranquilo, encontrava com as pessoas, e assim continuava. A gente ia mariscar, a gente gostava muito de mariscar, tirar caranguejo, tirar goiamum, pegar aratu, tudo a gente fazia, como sair daqui de Cantagalo e ir lá perto de Santa Cruz, pra pescar de fisga, fisgar aqueles baiacú, e pescar. É que a gente vivia, pescar tainha de fisga, a gente fazia tudo. Você conhece ouriço?

01:37:40
P/1: Sim, mas certamente não como você. Como é pegar ouriço?
R/1: Na praia mesmo, aqui na Barra do Saí. Agora eu não vou mais, por causa das minhas pernas, não dá mais para eu andar, mas já andei muito, já sai pra Aracruz a pé, já saí pra Linhares a pé, ia pro Fundão de bicicleta, e era assim que a gente fazia. Hoje, esses jovens, não andam mais a pé, não andam um quilômetro a pé, não andam de bicicleta, só andam de carro, de moto.
R/2: Só querendo voltar lá atrás, você perguntou como nós nos reconhecemos, o nosso encontro com os Guaranis, porque os nossos costumes e cultura não acabaram, continuam os costumes indígenas, e a cultura sempre esteve. Então nós continuamos com aqueles costumes

e aquelas culturas, como as bebidas, as comidas, as festas culturais, a festa do tambor sempre teve, é coisa toda indígena, por isso que sempre fomos indígenas. A gente não tinha aquela coisa indígena, aquele que anda lá no Amazônia, aquele negócio todo que eles mostravam em revistas, nós não, porque a região em que vivemos, aqui na Barra do Saí o Cantagalo, região aqui, esse território que era nossa, Santa cruz tem já quatrocentos anos, até mais de quatrocentos anos, era uma cidade histórica, então o desenvolvimento estava bem pouco, os índios que eram nossos antepassados, viviam praticamente isolados. Já os índios da praia, nunca foram isolados, desde o término da invasão, nunca foram isolados, a história dos Tupiniquins nunca foi de um índio isolado. Eles viveram sim, antes da invasão, antes da invasão dos Europeus, nós éramos livres, mas depois da invasão, piorou, pois aí sim não viviam isolados. Então teve as invasões e nós fomos todos para o litoral, onde os Tupiniquins viviam. Então é por isso, que nós temos essa característica nossa, do povo Tupiniquins não ser um povo isolado, ser um povo sempre aberto, como eu mesmo falo, os Tupiniquins sempre foram povos alegres, modo de dizer, bem receptivo, acolhedor, e assim é o povo Tupiniquim.

01:41:12
P/2: Maravilha gente, gostei muito de poder escutar vocês dois, complementando a história do senhor Antonino. Vocês gostariam de falar, deixar registrado alguma outra fala, algum outro comentário, sobre esse ciclo de histórias que a gente comentou hoje? Alguma coisa que ficou pra dizer e não comentou?
R/2: Não, acho que não, embora por mim tem muita pra comentar. Minha avó, passou muita coisa pra mim, eu esqueci né. Minha avó contava muita história, inclusive ela contava muita história onde ela não falava índio, ela falava bugre. Vou contar uma história de bugre pra vocês; tinham dois bugres, assim… assim... , ela quase não falava índio, ela falava bugre, ela contava muita história pra mim.

01:42:32
P/1: E como foi pra vocês, contar um pouco das suas histórias. O que vocês acharam, de fazer uma entrevista?
R/2: Ah, foi bom, inclusive pra mim não é a primeira vez, eu gosto de ser entrevistado, até na escola, na escola aqui, eles me chamam para falar para as crianças, na sala de aula, da história. E o que eu não sei, ou é coisa que me contaram, ou eu pesquiso, leio em livro e revista e outras coisas são os meus antepassados que falaram.

01:43:13
P/2: A gente viu que você é pesquisador mesmo, o nosso intuito é gravar, é esse registro mesmo, mas pensando em seu pai, como uma biblioteca mesmo, que ele é a história viva. E foi muito bom poder fazer esse registro hoje, com vocês. Eu acho que se nós pudéssemos fazer presencial, ao vivo, teria mais qualidade, mais tempo, mais histórias, mas esse é o jeito que nós estamos experimentando, via computador mesmo. Mas eu agradeço demais, esse tempo que vocês deram pra nós, contando um pouco da história, da família, do povo Tupiniquins, da resistência. Foi muito rico, muito bom.
R/2: E sobre a língua, a língua é pouco também, algumas palavras só em Tupi, que eu ouvia eles falar. Exemplo, peneira eles falavam arupemba, a ré todos falavam, a ré comadre, a ré yayá, eles falavam muito essas palavras. Minha avó então, falava com todos ele à ré, eu não o que era, admiração talvez,
R/1: A ré, era uma coisa que a pessoa falava, quando estava errado, ela dizia assim; à ré.
R/2: Lá na aldeia Cantagalo, eu estive pesquisando, sugerindo, lá tinha um rio que se chamava Piraim, quando os povos chegaram lá, o nome do lugar era Piraim, não era Cantagalo, Quando as outras pessoas foram chegando, se dispersando de um lugar para outro, começaram um monte de galos a cantar, aí eles mudaram de nome, ao invés de Piraim virou Cantagalo. A palavra Piraim, é rio de muito peixe, peixe estragado. Por isso o nome do córrego é Córrego Piraim. E tem até hoje o córrego lá, com o nome de Córrego Piraim, e ninguém esquece, até hoje fala o nome Piraim ainda. E o nome Piraim é indígena.