Museu da Pessoa

A liderança do povo Nukini

autoria: Museu da Pessoa personagem: Urukã Nukini Hinuvakivu (Paulo Francisco de Almeida Cardoso)

Memória Nawa
Depoimento de Entrevista de Urukã Nukini Hinuvakivu
Entrevistado por Jonas Samaúma
Aldeia Recanto Verde - Mâncio Lima, 05/10/2021
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista número ARMIND_HV
Revisado por Genivaldo Cavalcanti Filho



(00:00:37) P/1 - Queria abrir a entrevista. Primeiro você fala seu nome.

R - Boa tarde. Eu sou Urukã Nukini Hinuvakivu. Meu nome no português é Paulo Francisco de Almeida Cardoso, e estou aqui há um ano e seis meses como liderança geral do meu povo. Resido dentro dessa terra indígena Nukini, com 27 mil hectares de terra. Temos aproximadamente quatrocentas famílias nesse território, aproximadamente com 1.800 parentes.
Tenho apenas 39 anos de idade. Sou filho de descendente Nukini, sou filho de descendente não-indígena, e estou aqui fazendo essa parte da minha história na liderança do povo com a memória e o sangue de índio mesmo, de minhas avós, dos meus avôs e de minha mãe.

(00:02:17) P/1 - Paulo, muito agradecido. Antes de pedir para você contar dos seus avós, queria que você contasse um pouco a história do seu povo até você nascer. O que foi a história Nukini?

R - De onde eu nasci para trás?

P/1 - Isso, para trás.

R - Eu não tenho muita lembrança de como surgiu. Um pouco da história que eu tenho da lembrança de como era, de onde eu nasci, de 82 para trás, tenho uma lembrança da história da ayahuasca, da medicina. Alguém já idoso, como a minha mãe, contou essa história uma vez. E não só ela, outros já contaram também a história do mesmo jeito que ela, mas eu ouvi dela a história que isso existia, ayahuasca, medicina, mais ou menos na década de 50, acho que mais ou menos por aí, que foi o tempo que ela conheceu, ainda alcançou, e que nós tínhamos um líder espiritual.
Hoje a gente sabe que eram líderes espirituais. O nome dele é Evaristo, ele trabalhava com a medicina com ayahuasca, fazendo um ritual de cura. Só bebia para curar mesmo. Não fazia rodada de grupos. Só ele como o pajé ali, cantando mesmo, trabalhava.
A partir daí ele se foi e a gente não ficou parado por esse tempo. Em 2005 foi revitalizado esse conhecimento através de intercâmbio, então nós vimos que essa história que minha mãe contou… A gente hoje tem certeza que nós éramos ayahuasqueiros, era lá um só. Hoje não, hoje estamos modificados e achamos que já está evoluído. Achamos melhor fazer em grupo, cada grupo como se fosse líder de família [para] tomar a responsabilidade da família e estar naquele segmento espiritual para proteger, para fortalecer a cultura, para ter harmonia no coração, para ter humildade, para defender, para proteger a floresta, para proteger o próprio rio.

(00:05:10) P/1 - Queria que você contasse o que você lembra da convivência com seus avós.

R - Eu tinha não sei que idade, mas eu ainda me lembro bem da minha avó.

Ela era muito trabalhadeira, muito guerreira, e era casada com um índio daqui - o nome dele era Martim. O nome da minha avó era Marina de Nazaré de Almeida - pegou Almeida porque os bisavós dela foram criados pelo patrão e esse patrão era português, então pegou o nome e sobrenome. Foi criada, batizada e registrada com o nome do patrão. A gente, nesse tempo… Na realidade, hoje ninguém sabe mesmo como era nosso nome tradicional, por isso que pegou o Almeida.
O que eu me lembro da minha avó é que ela era muito trabalhadora e gostava muito de plantar melancia e banana, ela plantava muito café. O café dela toda vida não foi comprado, porque até onde eu me lembro era feito mesmo, natural, torrado no caco em casa. Ela gostava de criar, tinha muitos animais, muitas galinhas, criava dois ou três porcos só para comer, engordar para comer. E a casa dela era grande, de palha, de madeira roliça, hoje como é a minha.
Muita gente andava na casa dela, inclusive alguns dos parentes daqui mesmo, e a reconheciam como uma grande mulher mesmo, grande liderança.
Chegou um tempo que ela contava algumas história pra gente. Alguém contou as histórias que ela contava também, de quando foi a demarcação dessa terra, mais ou menos em 78, por aí, 79. Até 82 ela ficou morando aqui.
Tinha o meu tio, tinha o Leopoldo, tinha tia Cecília, que é dos mais velhos, tinha o tio Eliseu e tinha a mãe, tinha a tia Maria e tinha a tia Edna. Tinha outros filhos que moravam para outro rio no Juruá, que era o tio Mandu.
Ela ficou convivendo aqui na época da demarcação, ajudava o seu cacique, nosso ex-cacique que se foi - que Deus o tenha em um bom lugar - que era Humberto Jorge, ajudava ele a cuidar das crianças, pois hoje as pessoas me ajudam a cuidar dos meus. Saio para uma viagem, saio para ir em um canto, as pessoas dão um alimento, dão uma atenção, brigam com o menino… Elas faziam isso e davam banana, davam macaxeira; eles iam lá ajudar a esposa dele em algumas coisas, eles trabalhavam assim. Não só ela, mas todos os outros idosos que também se encontram aqui, que estiveram acompanhando esse momento.
O marido dela que me deu rapé pela primeira vez. Ele tinha um rapé no vasinho dele, botava o dedo assim. A gente estava espiando, ele passava assim: “Cheira rapé, ô cabra ruim.” Passava na cara, na venta da gente. Achava ruim que só. E quando a gente era pequeno, mais ou menos na faixa etária de uns seis, oito anos.
Chegou um tempo que ela faleceu, a minha avó, nós ficamos por aqui. Meu tio também morou um tempo ainda na casa e deixou, deu para um filho dele. Por fim ele foi embora também e até hoje ele não voltou mais.

(00:10:11) P/1 - E nesse tempo como era na aldeia? Você cresceu na aldeia?

R - Eu cresci aqui a maior parte da minha vida.

P/1 - Era diferente de hoje? Como era naquele período que você vivia?

R - Eu me lembro do que eu presenciava naquele tempo. Hoje, trazendo aquele tempo para recordar, eu sinto que aquele tempo era muito calmo, um tempo muito atencioso. Tinha vários antigos ainda que contavam a história, que como eu ainda presenciaram a minha mais velha, que é avó dele. É muito tradicional, sabe, muito pajé, curandeiro; era parteiro, ela que me pegou.
A sobrevivência de alguns jovens do meu tempo, que eu me lembro, eram muito espertos. Hoje a coisa evoluiu, mas uma coisa não aumentou, que é a esperteza do jovem de caçar. Hoje o jovem não gosta tanto de caçar, o jovem não gosta tanto de pescar, e naquele tempo não usavam tradicionalmente a pintura, a medicina, mas os jovens eram espertos. Eles caçavam, muitos deles tinham tudo. Quando casavam, tinham seu próprio roçadozinho ali. Às vezes não tinha casa, mas tinha alguma coisa para já ir se segurando.
Já existia nesse tempo a bebida, e os jovens desse tempo eram muito comportados. Hoje o jovem não consegue mais entrar nesse clima, e lá eles eram tranquilos. Muitas vezes ninguém nem sabia o boato de alguém; hoje não, se acontecer uma bebedeira hoje, no outro dia todo mundo já fica sabendo. Era uma coisa mais concentrada, você olhava [e] não via assim [o campo] aberto; eu me lembro como se fosse hoje, eu não via esse [campo] aberto. A gente tinha aberto onde era seu roçado, era mais fechado. Era muito bom.

(00:12:41) P/1 - Você quando criança já caçava?

R - A primeira vez que eu dei um tiro foi em uma cobra. Eu era pequeno, meu pai tinha adoecido a poucos dias. Ele, quando era sadio, tinha uma espingarda 16 bem grossa. Ele adoeceu e nós ficamos morando [lá].
Nesse tempo eu já não morava mais aqui. Quando eu comecei a me entender que eu atirei. A minha avó já tinha falecido -

não,

a minha avó ainda não tinha falecido não, ela faleceu tem pouco tempo. A gente morava aqui para baixo, na outra localidade lá na aldeia, que hoje é Meia-dúzia. Morava lá, nesse igarapé. Quem fez o nosso transporte para lá foi o seu Odeil, seu Quirino que fez o transporte pra gente morar lá. Eu me lembro, nós faziamos essa viagem, o meu pai, a minha mãe e meus três irmãos, que é mais um nascido. Só faltava uma que é a Fátima, nesse tempo ainda não era nascida.
Nós vínhamos de remo lá do Meia-dúzia, lá onde o Vicente mora, para a República, para a casa da minha avó aqui embaixo no Abacateiral, a aldeia que tem aqui próxima. Lá era muito bom de peixe, nós trazíamos muito peixe seco para ela, e quando chegava aquele período que o meu pai e minha mãe pegavam aquele tanto ali, de deixar para minha mãe, meu pai vinha atrás de tabaco, minha mãe vinha para ver minha avó e trazer peixe para ela. Nesse tempo meu pai adoeceu, morando lá.
Bem de manhãzinha cedo ele tinha matado uma paca, tinha pelado. Ele tinha armadilha, tinha ajeitado, tinha deixado tudo e ia para o roçado às sete horas. Na beira da casa estava um vaso com café; ele bebeu o café, botou o chapéu na cabeça, botou a faca na cintura e saiu, a distância como daqui ali naquele pau. Ele tropeçou em um toco, deu um chute no toco, disse um nome que sempre ele dizia, arrastou a faca da cintura e fez menção de cortar o toco. Ele parou aqui em viagem, foi ficando torto, foi caindo, eu corri para lá com minha mãe, trouxemos para dentro de casa, ele agarrou no esteio da casa e não queria soltar, e só nós, eu e minha mãe - era longe dos parentes, dá mais de vinte minutos para chegar na casa de um parente se fosse correndo. Ficamos com ele lá até que ele melhorou. Vinha um parente que morava no igarapé mais embaixo; tinha ido pescar, vinha passando e nós chamamos ele, avisamos para ele e ele nos ajudou a levar nosso pai.
Meu pai passou um tempo medonho para se recuperar. Nós voltamos para lá de novo, foi no tempo que eu vi essa cobra. Fui com minha mãe lá. Eu estava tratando o peixe, muito pato, a cobra pegou um pato e afundou. Corri para pegar a espingarda. Perguntou se eu tinha coragem de atirar e eu disse sim. Meti uma vara; a cobra grande arrimou assim, eu dei com o 16, caí lá dentro d'água. A cobra soltou o pato e se foi. Não sei se morreu ou se não morreu. Sei que eu atirei nela.

(00:17:08) P/1 - Aproveitando que você está falando de cobra, conte uma história de picada de cobra que você já passou. Se tiver outra de cobra, o que tem de história de cobra já conta também.

R - O segundo tiro que eu dei foi na outra cobra. Minha irmã que mora comigo, a Elida, era pequena, eu acho que eu era como o João. Nós íamos para o roçado buscar macaxeira e banana. O parente sempre diz que o índio gosta de levar, muitos falam carregar, roubar. Nós não tínhamos banana, lá na roçada do vizinho às vezes tinha. Nós íamos lá e carregávamos uma banana do vizinho. Tinha que trepar no pé mesmo, chegava lá e tirava o cacho lá em cima. O vizinho só ia ver quando a banana já estava cortada de vez.
Dessa vez eu fui com ela. Chegamos no caminho da mata bruta, metade da viagem do caminho. Acho que dava mais ou menos uns vinte minutos a pé também para ir pro roçado. Tinha um apito de jaca, eu pensei que era qualquer outra cobra, não conhecia mesmo. Fui e bati prensado assim no rabo dela, estava estirado; ela se enfezou mesmo, me deu aquele medo, aí me lembrei que o vizinho falava que lá tinha muito pique de jaca, lembrei que uma vez ele tinha falado. Estava com uma espingarda e não tinha coragem de atirar, até que eu meti assim mesmo e baleei a cobra. Só baleou mesmo, não matou, ela ficou doida lá. Eu tirei uma vara, mesmo porque nós tínhamos uma vara tão grande que nem nós dois conseguíamos bater com essa vara na cobra que era pesada, e a cobra lá, tirado e quebrado o espinhaço,

até que eu me aporrinhei, perdi o medo, soltei a vara. Corri com um terçado dentro, meti um terçado na cobra e acabei de matar.
Quando nós chegamos falamos pra mãe. Viemos lá olhar, era pique de jaca.

(00:19:33) P/1 - Paulo, você começou a tomar medicina quando?

R - Eu comecei a tomar medicina em 2007.

(00:19:53) P/1 - Você já ia para o roçado?

R - Eu já trabalhava. Com 10 anos eu acho que eu coloquei o primeiro roçado para plantar macaxeira, milho e banana. Morou com a gente um tempo um parente que é daqui também, chamado Zeca Batista. Eu broquei um roçado e eu era pequeno, tão pequeno que eu não sabia derrubar. Sabia brocar, mas derrubar eu não sabia, não podia com machado para cortar, e ele que derrubou pra mim esse roçado. Depois que meu pai adoeceu, nesse tempo que eu falei, foi pouco tempo [depois]… Eu me lembro que eu botei roçado, eu botava armadilha, pequeno, eu caçava.
Uma vez eu fui caçar, olhar um barreiro que tinha e quando eu fui para cima de um pau apuí. Quando eu olhei para a ponta do pau veio uma onça. Eu marquei depressa, peguei a espingarda, abarquei tiro para lá. Quando o tiro bateu lá eu desbanquei e corri até em casa, não fui mais lá ver se tinha pegado ou se não tinha, mas eu acho que eu não matei ela, não. Com o tempo passei lá e não vi nada, mas eu fazia uma coisa que eu acho que era o que o meu pai fazia quando ele era bom para nós também. Tinha vez que eu já fui me entendendo mais, eu passava a semana fazendo farinha com um vizinho para levar um punhado de farinha para comer em casa com a minha mãe e os outros três meninos, que tinha maior.

(00:21:57) P/1 - Paulo, eu queria te perguntar que elementos da cultura Nukini você já via quando era criança, elementos culturais?

R - A primeira vez que eu me deparei com objetos culturais foi aqui. Morava uma senhora, uma índia chamada Alzira, e nesse tempo que nós morávamos lá no Meia-dúzia, na outra aldeia, a gente estava lá e ela foi morar um período conosco,

passar um tempo conosco. Ela falava muita coisa, contava umas histórias e ela comia [uma comida] muito tradicional. Lá ela achava bom porque quando eu contei, lá a gente comia com macaxeira, comia com a banana cozida. Dificilmente nós comíamos com farinha, vim comer com farinha mais para frente, mas nesse tempo, logo quando o meu pai era bom ainda que ela foi morar, eu conheci ela fazendo alimento mais tradicional mesmo. Ela cozinhava o peixe, banana, fazia o [massamori?] comia o peixe moqueado com casca - não é com escama. Uma bananazinha ali, quando ela cozinhava, moqueava na palha de banana. Foi uma das coisas que eu vi primeiro, que eu me lembro até hoje, parte da cultura do povo como era.

(00:24:09) P/1 - Você falou quando seu pai era bom ainda. O que aconteceu com o seu pai?
R - O meu pai adoeceu nesse tempo. Ele tropeçou e pegou uma doença que chama derrame, que fica paralítico de um braço e uma perna.

(00:24:33) P/1 - O que mudou na sua vida depois que seu pai teve essa doença?

R - Depois que meu pai teve essa doença eu acho que tive que mudar, mudou até hoje. Aprendi a trabalhar, cuidar de mim, ter cuidado comigo, ser uma pessoa que sempre… Fazer o que ele não podia fazer, a gente estava ali. Hoje eu quero ser essa pessoa que naquela memória trabalhava, sustentei meus irmãos porque meu pai não podia e hoje trabalho para sustentar meus filhos, da mesma forma que eu via que ele poderia fazer conosco quando era bom.

(00:25:14) P/1 - Você tinha mais ou menos quantos anos quando você começou a trabalhar assim?

R - Quando eu comecei a trabalhar saindo de casa, como se diz, do roçadinho de casa para ir para fora, ganhar uma farinha, ou comprar alguma coisa para mim, uma sandália, eu tinha mais ou menos doze anos de idade.

(00:25:35) P/1 - Que tipo de trabalho você fazia?

R - O trabalho às vezes era pescar na época de peixe com alguns dos meus parentes que tinha lá, vizinhos, e fazer farinha. Tinha um vizinho que morava até outro lado do rio, ele fazia muita farinha. Eu ia sempre com ele, ele gostava de mim porque eu era trabalhador, eu era esperto. Ele via que nós tínhamos necessidade e sempre me chamava para trabalhar para ele, me dar farinha. Quando eu trabalhava ganhava farinha, ele também me dava um relógio, comprava uma sandália para mim. Eu trabalhava, comprava rede para mim, nessa idade aí.

(00:26:27) P/1 - Quantos irmãos você criava?

R - Quando meu pai ficou doente éramos eu, a Hélida, o Madison e o José Francisco; depois veio a Maria de Fátima. Antes nós tínhamos outro irmão, que falei pra você que faleceu, que a cobra matou. Era o Evandro, ele morava conosco, mas ele era só filho da nossa mãe, não era filho do nosso pai.

(00:27:03) P/1 - Você conheceu sua esposa como?

R - Passou o tempo, nesse tempo eu estava aqui na República e conheci a minha esposa, e lá nos Puyanawa eles articularam uma viagem

para vir em uma formação de estudo que eles tinham lá. Não sei se era o magistério indígena, eu sei que era um estudo que se formou vários professores de lá. Era tipo uma comemoração que eles iam e ela morava lá, era uma das pessoas. Eles vieram também com um time de bola de futebol e ela era uma das jogadoras. Eu a conheci ali na República; primeiro eu a vi no Barão, da primeira vez que eu fui lá. Fiquei com aquela admiração, a mulher no meio de vários diferentes ali e a gente sempre se lembrava. Quando ela chegou eu a conheci, a gente conversou, se entendeu. Ela foi e eu fiquei aqui.
Em uma das vezes ela mandou um recado para mim, [que] se eu quisesse ir para lá para casar com ela eu fosse. Eu não tinha muito a pensar também, já tinha tentado casar por aqui várias vezes, não tinha dado certo. Fui daqui para lá e fiquei lá vivendo com ela. Tive a primeira filha lá.

(00:29:00) P/1 - Como você via a família? Era mais comportado? O que foi que mudou?

R - Quando eu tinha mais ou menos meus quinze, dezesseis anos, eu entrei no outro sistema, como se diz no mundo, esse mundo que nós estamos que a gente vê de curtir, de andar, de conhecer, de ver confusão e não ter medo e reagir mesmo, bater e apanhar também. Eu era um cara muito assim, não gostava de ver alguém insultar alguém. Achava que aquilo ali… No momento que eu via qualquer coisa assim, eu já pensava: “Se fosse comigo não era assim, não.” Eu já partia mesmo para resolver, mas eu nunca fui pessoa de chegar e insultar as pessoas. Mas eu já fui pessoa de estar no meu cantinho quieto também ali e as pessoas chegarem para me dar aquela surra, para me insultar, porque eu sempre reagia, nunca deixei… Muitas vezes eu ganhava, mas muita vezes eu pegava peia.
O que me [fez ficar] comportado hoje… Acho que [foi] uma das coisas que aconteceu comigo na minha própria aldeia aqui, [na] última vez que eu tive essa profundidade na curtição da vida, essa vida mundana que chamam, o mundo perdido. Eu tive uma confusão com meu parente aqui na aldeia e essa confusão durou muito tempo. No começo da história eu era meio ligeiro, combati todos; eles sempre ficavam pensando em me pegar para vingar o que eu tinha feito. Uma vez eu bebi muito e eles me deram mesmo. Eu bebi muito e quando eu estava bêbado eles me deram uma pisa, isso aqui meu [toca o maxilar] não quebrou, mas ficou muito assim. De lá para cá acho que aprendi a viver.
Hoje essas pessoas, meus parentes que fizeram isso são todos meus amigos, não tem nenhuma desavença mais na vida. De lá para cá eu aprendi a viver e pouco tempo depois disso eu fui para o Tubarão morar lá. Foi o tempo que eu me casei, eu passei lá um período, a primeira filha nossa foi lá. Lá também eu ainda continuava um pouco dessa coisa, não era tanto, e quando eu tinha mais ou menos meus 25 anos, em 2005, 2006 por aí, bebi ayahuasca pela primeira vez através do incentivo dele, na realidade eu era o mais velho que ele seguia ali, mas quando eu estava no outro movimento ele ia também, que a pessoa jovem sabe como é. Quando ele me incentivou mesmo eu fui, incentivou o irmão dele também, a minha ida que foi o Raí que ele baixou.
Nós vivemos lá um tempo, uns sete a oito anos eu acho, e nesse período que eu fui morar lá foi minha mãe que morava aqui, foi o pai dele que morava aqui foi para lá com eles que eram pequenos, foi o irmão dele que já era casado que é o Cleumar, o Rai, eles também foram para lá, e nós ficamos lá, onde nós moramos ficou ali como se fosse uma aldeia, quatro famílias: minha mãe, eu, meu tio, o filho dele, e ele ficou em contato que eles eram todos um pouco jovens. Foi nesse tempo que eu conhecia a medicina e fomos praticando, fomos deixando, desfazendo daquela curtição; a gente foi fazendo uma crença que a gente não queria mais aquilo. Fomos aos poucos, eu deixei mesmo. A força tirou de mim aquilo, eu cheguei na força e assim eu estou hoje.

(00:35:10) P/1 - E como eram os Puyanawas? O que tinha de diferente aqui dessa aldeia?

R - Quando nós fomos morar lá, o que era muito diferente o negócio tanto na parte da vida, da curtição do branco, a bebedeira, vários tipos de coisa assim, como é diferente a criação deles. Lá eles criavam muito porco, boi, tudo solto mesmo no meio da aldeia. Quando desce uma chuva dessa, só ia de pé mesmo aquele que não tinha nojo porque era de porco, de boi nos caminhos.
O que eu achei diferente lá também era que a gente não conseguia plantar banana para colher em dois, três anos. Plantava banana, às vezes dava um cacho grande, outra vez já não dava mais cacho e o pé morria. Feijão também, a gente plantava, dava uma quantidade ali, mas não dava aquela quantidade. Hoje a gente planta aqui um canequinho [e] a gente colhe um tambor, e lá a gente plantava de quilo para poder dar dois, três quilos. Milho a gente plantava, às vezes só nascia, mas o pé não crescia. A gente achou diferente daqui, que tudo que a gente planta dá.

(00:36:47) P/1 - A gente estava conversando, você falou que teve uma história de cura muito comprida. Chegou o momento de contar o que você viu realmente acontecer ali.

R - Em 2012, por aí, nós já vínhamos fortalecendo a bebida da medicina. Eu, ele, nós éramos mais, como se diz… Para nós, nesse período, ele principalmente era considerado um grande soldado dentro desse conhecimento da força. Ele trabalhou com medicina, com o cipó. Ele era como se fosse um encarregado, a folha também, foi quando eu estava junto e chegou um período que os Puyanawa… Desceu uma força porque todos os trabalhos que ele fazia com os parentes, o cacique, a liderança, que é o Puê, que ele iniciou, todo trabalho que fazia a gente pedia força, pedia cultura, pedia aquilo ali.
Até que chegou um tempo… Não sei se foi em 2013, ou foi um período por aí… Eu não tenho muita lembrança da data, não. Foi feito um trabalho lá e uma hora ‘se atuou’ uma menina, um espírito nela dizendo que aquilo ali tinha que ter muita responsabilidade e que se alguém não assumisse aquela responsabilidade ela ia levar. Neste caso, essa menina era filha do cacique mesmo. Eu sei que saiu muita gente, saiu contaminando, esse espírito saiu pegando lá e massacrando mesmo. Cada um falava uma coisa. Nós ficamos lá, eu, ele, o irmão dele, que é o Rai. Nós nos dedicamos, botaram a gente para trabalhar, o irmão dele ficou trabalhando na cozinha.
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(00:39:34) P/1 - Quem colocou vocês pra trabalhar?

R - Quem nos colocou para trabalhar nesse trabalho de cura, para buscar medicina, foi o próprio pajé Ashaninka que estava lá. Ele pediu pra gente fazer esse trabalho. Nós fizemos, ficamos acompanhando eles fazerem esse trabalho. Passamos dezenove dias trabalhando nesse processo e o grupo, o cacique com o pessoal dele, dentro de uma casa, como se fosse ali guardado aos olhos e o cuidado no trabalho dos pajés que estavam ali, que era o Ashaninka.

(00:40:20)

P/1 - Como foi que os ashaninka chegaram lá?
R - Eu acho que os Ashaninkas chegaram lá através do Benki [Piyãko, líder espiritual dos Ashaninka]. Nesse tempo foi o Benki

quem fez esse intercâmbio para trazer os Ashaninkas do Peru e fazer esse trabalho para o povo. Ele ajudou o povo Puyanawa em todo esse processo.

(00:40:42) P/1 - Mas o que estava acontecendo? Era evangélico? Eu não entendi o que estava acontecendo com o povo, por que você precisava fazer um grande trabalho.

R - Na realidade, o que começou a acontecer aqui era uma tomada de liderança. Por exemplo, o Puê. Nesse período, se o Joel não entrasse para ser a liderança, ele tinha tomado a liderança geral, fosse da espiritualidade e cultura nesse tempo. Mas aí ficava isso, quando o espírito dele se aproximava para o sentimento de falar para tomar a liderança porque o cacique não estava assumindo, o espírito chegava, pegava uma pessoa. Ele botava uma que era quatro ou cinco homens bons para segurar.

(00:41:45) P/1 - Como é que aconteceu a cura mesmo?

R - Os pajés fizeram a cura. A gente não sabe realmente como foi, mas o que eu presenciei foi o compromisso da liderança. O cacique chegou lá e disse que a partir dali ia assumir o povo dele, seja onde fosse, fosse vivo ou morto. Daí pra frente ele ia assumir.
A gente ficou esse tempo lá, quando ele falou isso ele ficou para assumir mesmo, e teve um período que foi tomado banho de medicina para afastar esse mal que estava nas mulheres. Eles ficaram esse período tomando a medicina, que era ayahuasca. Dezenove ou mais dias para fazer a dieta da medicina, do que os pajés aplicaram, dos banhos que elas tomaram, várias coisas.

(00:42:52) P/1 - E depois dessa cura você continua lá, você saiu?

R - Depois da cura nós estivemos mais um período lá, não sei quanto tempo a gente esteve lá, morando ainda. [Depois de] um tempo a gente retornou para cá. Primeiro eles vieram, eu fiquei só lá e vim também.

(00:43:32) P/1 - Eu ia aproveitar que você falou dessa cura lá e perguntar também da sua história de cura, que você tenha passado.

R - Eu passei um momento muito forte. Eu acho que foi mais ou menos 2014, ou foi 2015; foi um ano próximo, não tenho muito na memória. Veio um rapaz de Mâncio Lima, lá dos Arara. Ele veio com um parente nosso que é casado com a tia nossa aqui pra Serra e me levou com ele. Passamos dois dias lá e esses dois dias eu [fiquei] bebendo ayahuasca. Fomos para Formosa, para o Mirante, bebendo ayahuasca, e lá eu senti… Na força eu presenciei uma coisa, mas, eu muito novo na força, não consegui decifrar o que era. Eu sei que em três dias que eu voltei para minha casa eu estava doente, frio, com febre. Furei o dedo, deu uma laia, eu fui e tomei a primeira dose do remédio, as pílulas, e quando eu tomei a primeira dose eu já fiquei todo travado, não esticava mais minhas pernas nem meus braços, aí eu não tomei mais o remédio. Minha mulher se aperreou, o parente foi chegando lá e eu já comecei também a me lembrar muito pouco do momento.
Eu sei que eu fui para Mâncio Lima, me levaram para o hospital. Não, primeiro eu fui para casa da minha mãe, ela esteve um tempo comigo. Ela fez um trabalho lá com outra mulher, eu melhorei mais do trabalho que minha mãe levou para uma mulher fazer em mim, trabalho de reza. Eu estava lá na casa da minha mãe.
Um dia eu estava deitado e ela foi fazer uma comida para mim, e nesse intervalo que ela veio lá e disse: “Filho, vou fazer uma comida pra ti aqui. Tu quer comer?”

E eu: “Agora eu quero.” Eu estava me sentindo melhor, ela foi fazer uma comida para mim. Nesse intervalo que ela fazer a comida eu dormi - eu não dormia, enfezava e não dormia. Quando eu acordei eu encontrei… Eu acordei com a minha sobrinha me chamando, dizendo: “Tio, acorda que a vó está caída ali”.
Eu, muito fraco - nessa hora eu quase nem andava… Eu estava muito fraco já fazia uns dias. Eu saí ali trôpego, parece que eu

tinha tido uma melhora mesmo. Desci pela cozinha, cheguei na porta da frente da casa; [quando] olhei ela estava assim no chão, minha mãe caída no chão. Eu peguei ela. Assim que arribei ela, que me ajoelhei com ela na perna eu vi que ela já estava morta no chão. Eu fiquei tranquilo, só o que veio dentro de mim foi um silêncio pedindo para eu falar no meu sentimento, pedir a Deus muita firmeza para viver e foi o que eu fiz. Fiquei lá, já estava doente, encontrei minha mãe morta e fiquei um pouco mais doente.
Eu sei que enterraram ela. Eu não fui porque não conseguia, e com poucos dias eu fui para o hospital. Passei dezenove dias no hospital. Nesses dezenove dias todo dia alguém ia lá tirar sangue de mim, o enfermeiro, um grupo de jovens estagiar em mim para dar soro, para dar injeção e eu tendo febre. Não passava, essa febre. No hospital o médico botava aquele medidor de temperatura; todo tempo com febre. Ele se aperreava, ia lá buscar remédio, passava remédio.
Com dezenove dias a última médica que trabalhou para mim chegou e disse: “Seu Paulo, eu vou lhe dizer uma coisa: eu não sei o que fazer mais com o senhor. Todo medicamento que a gente tem para febre o senhor já tomou e essa febre não passa. O senhor agora vai ser atendido pela mão de outro médico e eu não sei o que esse médico pode fazer com o senhor porque nós não sabemos mais. Se vir outro a gente não sabe se ele sabe mais do que a gente para poder lhe ajudar”. Eu disse: “Está bem, mas então eu quero ir embora, quero me curar ou morrer em casa.”
Quando a febre baixava e eu dormia eu sonhava, eu via onde me curava. Eu via meu povo, via minha família, via minha casa, via isso hoje que está sendo construído. Eu via tudo, mas quando eu acordava, que a febre pegava…
Saí do hospital e fui bater em Puyanawa, me levaram de carro. Quando eu cheguei lá eu já me senti bem, senti que eu tinha melhorado. Senti vontade de comer. Eu não comia, eu tinha 63 quilos e fiquei com 45 [porque] eu não comia, não conseguia andar. Aí um pastor de lá, [dos] Puyanawa orou em mim. Quando ele orou eu suei e comi muito. E o pai dele, que era o cacique geral antigo, o Mário Puyanawa, ele também orou em mim. Minha cabeça doeu uma vez, ele botou a mão na cabeça e a minha cabeça parou de doer.
Quando foi a noite, o parente, que era o Puê, veio me ver e perguntou se eu tinha coragem de ir beber, [me] unir com eles. Eu disse que eu tinha, podia ir. Ele disse que não, que me levava, e assim eles fizeram. Às sete horas eles vieram e me levaram, me sentaram perto da roda e eu fiquei . Quando foi para beber a primeira vez ele veio e me serviu a medicina, veio onde eu estava e serviu, e quando foi para beber a segunda vez eu me levantei, fui lá para receber dele, já andando. Fizeram um trabalho em mim, usaram algumas medicinas e me serviram ayahuasca.

(00:52:30) P/1 - Demorou quanto tempo para você ficar bom?

R - Eu fui recuperar a fraqueza do que eu tinha passado. Passou mais ou menos uns dois anos pra me sentir como estou me sentindo, com a matéria completa, forte como eu era.

(00:53:00) P/1 - Você comentou nesse meio que sua mãe fez a passagem. Antes dela fazer a passagem ela chegou a falar alguma coisa importante uns dias antes nesse período?

R - Chegou. Uma vez, em um trabalho, tomamos ayahuasca e ela recebeu a força e aí ela disse assim: “Meu filho, eu só posso lhe dizer uma coisa para que você deixe de… Não beba cachaça, não beba álcool porque você tem um futuro muito brilhante pela frente. Se você beber você não vai alcançar.” Ela contou algumas histórias, alguma coisa de como ela vivia lá.
A gente sentia que eles não gostavam da gente muito, mesmo. Hoje a gente gosta de cada um aqui, e ela sempre dizia que nós não éramos de lá, porque ela não se sentia… Ela não era de lá, ela não se sentia bem. Foi dito que a gente não era do povo de lá, que a gente era daqui porque lá eles não gostavam da gente, e nesse momento ela, com a força, dizia que não era, que um líder - o Evaristo, que era o Pajé antigamente

- que falava para ela o que ela me falou.

(00:55:05) P/1 - Eu queria voltar um pouco assim para a luta Nukini. O que você vivenciou dentro da luta dos direitos Nukini, o que você viu sendo conquistado?

R - O que eu vi, até onde eu venho… Uma das coisas que eu vivenciei sobre a luta deles é que o cacique, o Humberto, ele foi uma das lideranças. No início ele trabalhava em coletivo, tudo que ele fazia ele fazia com com o sentimento do pessoal, da comunidade, desses idosos; hoje ele fala muito como era esse trabalho dele. Tinha uma organização que não era 100%, também porque eram pessoas quase sós, não tinha quem orientasse ele para fazer uma coisa melhor. Sobre a demarcação da terra eu não alcancei, mas alguns contam a história que foi muito parente trabalhando, juntando todo mundo. Acho que se teve pessoas de fora que reabriu foram só os técnicos, mas quem cortou mesmo a terra foi o próprio parente.

(00:57:02) Indígena da plateia - Sobre as conquistas das nossas terras, como é que você se lembra? Tinha comemoração de toda nossa terra, comemoravam? Não sei se era o povo todo, se tinha uma quantidade do grupo que ia fazer esse trabalho…

R - Eu me lembro um pouco que tinha… Hoje nós fazemos aniversário também, fazemos bolo. Outros matam boi, comem, fazem uma comemoração com a comida, um evento ali, um encontro de família, um jantar, um almoço. Eu me lembro que minha avó fazia isso, eu presenciei. Se alguém fez eu não me lembro, mas a única pessoa que fazia era ela, uma homenagem sobre essa luta de conquista, ela sempre fazia.
Eu me lembro que a última vez que foi feito depois que ela morreu foi pelo nosso tio, que era o marido dela, tio Martim. Ele tinha um boi e matou para fazer esse almoço, uma homenagem a ela. [Foi] o último que eu me lembro. Mas sempre ela fazia, ela criava um porco de um ano para o outro para chegar aquela data e fazer.



(00:58:48) P/1 - Eu ia perguntar se hoje você é uma pessoa que serve medicina. Não sei se é a palavra pajé, mas como foi essa sua preparação espiritual?

R - Hoje eu acho que essa preparação espiritual para cá, para viver aqui mesmo, nós tivemos aqui, nessa aldeia. Foi onde teve também esse processo que a gente acompanhou nos Puyanawa. Foi como se nós tivéssemos entrado dentro da escola pra aprender. De lá para cá viemos [nos] responsabilizar aqui.
Eu contei na história que nós passamos dezoito dias nesse processo aqui dentro da terra com ele, até na casa do irmão dele, o filho do seu Quirino, que estava aqui com a gente. Lá nós trabalhamos, acho que a gente era pelo ser mesmo. Ele indicava o que tinha que ser feito pra gente fazer e dava certo, [com] nosso sentimento, nossa fé mesmo.

(01:00:15) P/1 - Você chegou a fazer dieta?

R - Lá?

P/1 - Na vida.



R - Eu cheguei a fazer uma dieta, já mencionei um pouco. Fiz uma dieta de nove meses, já fiz três dietas de três meses, por exemplo, no período que minha mulher engravidava - acho que ela não engravida mais. Quando faltava uns três meses para ganhar neném eu fazia uma dieta.
Muitas vezes eu fiz o rapé, a ‘injeta’ do rapé; não consegui passar todinho pelo processo, mas eu fiquei bastante satisfeito. Eu sentia um problema na mente, tinha dias que eu não conseguia ouvir nada, só zoado na minha mente, e eu fiz uma dieta do rapé. Sonhei com alguém me incentivando. Eu fiz essa dieta, não terminei, mas fiquei bom.
Fiz uma dieta da ayahuasca, passei mais ou menos seis dias de dieta, uns doze dias nesses três meses que a mulher estava grávida para ganhar neném, já no final da gravidez. Passei um período de seis dias, mas foi o mais forte dos três meses que eu passei na dieta. Fiz a dieta de não comer certo tipo de comida, de não beber qualquer tipo de… Comer limão, suco, beber guaraná, um bocado de coisa. Nesses seis dias [fui] eu e minha casa só, ver a natureza mesmo, comendo macaxeira e o chá de cumaru.

(01:02:35) P/1 - Você teve algum sonho, alguma mensagem?

R - Eu fiz essa dieta porque antes eu tive uma miração, espiritualmente mesmo. Acho que [foi] a minha tataravó me ensinando como fazer medicina, ensinando o ritual e para alcançar isso eu tinha que fazer essa dieta para fazer essa medicina, tanto que eu fiz a medicina nessa dieta e ela ficou forte. Bebi e que pensei que não ia mais voltar ao normal. Acabei botando água dentro, aumentei e ficou fraco.

(01:03:36) P/1 - Essa é da ayahuasca, que você falou agora. O que é essa dieta do rapé? Você teve também mensagens assim durante essa dieta?

R - A dieta do rapé… Primeiro eu passei o período sem tomar ele, eu passei um período bem grande sem tomar ele. Nesse período eu tomei algum banho, uma medicina da floresta, é mais de casa.

(01:04:14) P/1 - O povo Nukini falou que tem muita ligação com a onça. Queria que você contasse um pouco da ligação do povo com a onça, de onde vem essa história, e se você já teve também alguma história com onça.

R - O povo Nukini… Pelo o que a gente tem na história é o povo da onça. No contexto de clãs espirituais ele é o tronco-tronco da floresta mesmo, por todos, porque a onça como espírito é o seu ser curandeiro, como se fosse a mestre mesmo, a pajé, porque ela domina a floresta. Tudo o que tem na floresta ela domina e ela se torna um ser muito sagrado na espiritualidade. Independente da onça material, ela é espiritualmente.

(01:05:39) P/1 -

E você já teve alguma história também com onça mesmo, viva, de encontrar?

R - A história que eu tive com onça foi a que eu contei um pouco atrás. que foi quando eu era pequeno. Estava fazendo o trabalho, quando eu me deparei ela estava em cima do pau. Eu atirei, ela correu para lá e eu corri para cá, mas eu vi na mata. Botei a espingarda ali e disse: “Só vou atirar se ela vier me ver, se virar e correr.”

P/1 - A Dina quer fazer uma pergunta também.

(01:06:30) P/2 - Eu fiquei aqui curiosa, pensando que não ouvi nenhuma história de barco, de pesca, alguma coisa do tipo. Provavelmente você tem alguma história das águas aqui do Acre e do rio para contar pra gente.

R - Eu tenho uma história de pesca. Quando eu comecei pisar profundo e pedir para mim, para o povo, às vezes no sentimento até, a preservação para uma família… Não faz muito tempo, não, eu saí daqui com alguns dos parentes, dos jovens; eu não tenho lembrança tanto de quem era, mas fomos para um lago aqui próximo pescar. Eles caíram dentro. Eu vi, aquilo estava meio ruim de rancho mesmo.
Eu observei o lago; tinha um canto que tinha muito peixe e fui armar uma manga. Quando eu armei a manga e vinha voltando por cima de um pau, eu pulei em cima do outro pau que era suspenso e abaixou; no que ele abaixou tinha dois poraquês chocos. Quando eu caí na água me atolei de bota, faca na cintura e a manga beirando assim, a água dava no peito. Eles me arrocharam, me deram choque e eu afundei debaixo d'água. Minha vista era só fogo, e eles dando choque. Eu tentava puxar a faca, mas a manga enganchou na faca e eu esturrei debaixo d'água. Foi [aí] que eles deixaram de me dar choque; subi para cima do pau e fiquei lá, tremendo mais do que tudo.
Outra foi que uma vez um parente vinha de Mâncio Lima, a partir acho que de umas oito horas da noite. Aquele senhor, o Quirino, tinha um barco grande, e ele tinha deixado na minha responsabilidade cuidar do barco dele. Estava chovendo e o rio estava enchendo, quando dá corredeira podia fugir.
Nesse dia eu estava fazendo ayahuasca com eles lá em cima, no morro. Quando eu cheguei ela disse: “Rapaz, o baleiro do Quirino não está aí, não.” O menino disse: “Pai, o João deixou a baleira solta”. [Eu disse:] “Minha Nossa Senhora, eu vou lá amarrar!”
Peguei a lanterna na força e fui batendo na beira. Quando eu cheguei lá na beira vi um barco zoando, subindo. No porto tinha uns tocos de pau, o parente veio e meteu o barco lá em cima do toco e enganchou o barco dele. Eu, acostumado com o porto… Já era meio tarde da noite, já na boca da noite. Caí dentro da água, desci e empurrei o barco dele. Quando eu ia voltando senti uma grudada no pé, uma arraia, aí o pau bateu mesmo, tinha arrancado tudo quanto era de estrela. Eu marquei depressa, enchi a mão de rapé, botei em cima e aguentei vindo até em casa. Eu cheguei em casa e o remédio que eu tomei para aliviar dizia que eu não chorei não, mas eu senti uma dor até boa, eu bebi só ayahuasca mesmo.

(01:10:37) P/1 - E você aprendeu a fazer remédio como?

R - As pessoas fazem remédio e às vezes contam para o outro o que é bom, o que não é. Muitas vezes, se eu faço um remédio e vejo do que eu estou precisando, eu me lembro de alguma história que alguém contou, como era um remédio com medicina tal, com uma quantidade, e eu faço alguma da medicina que a gente conhece também. A gente consegue ver; dorme e sonha com alguns [remédios] da medicina. Não é à toa, mas tem alguns que a gente já presenciou em sonho, né?

(01:11:30) P/2 - Teve algum sonho então específico, uma medicina, um sonho específico que você se lembra para contar que você recebeu no sonho ou do aprendizado através do sonho?
R - Um aprendizado através do sonho? Não me lembro se realmente eu já sonhei e pratiquei, mas uma das coisas que eu sonho muito, que eu vejo… Por exemplo, ontem mesmo eu sonhei com um jabuti e hoje eu soube que um parente lá morreu, então é um sonho que a gente já tem baseado nessa visão; [é uma] das vezes que a gente viu tudo, já aconteceu baseado nisso.
Fartura também, doença, tem gente [que] sonha. Hoje, por exemplo, a gente sonha com muito dinheiro, muito dinheiro é bom, mas sonhar com uma quantidade média é ruim, pode ser muita doença.

(01:13:02) P/1 - Tem mais alguma história de sonho que você queira contar?

R - Sim. Se eu sonhar arrastando um barco com mais alguém ou mesmo só, acontece que alguém morre, conhecido da família.



(01:13:40) P/1 - Como foi que você virou cacique?

R - Quase todo mundo sabe como é que eu estou sendo cacique hoje, eu acho - acho não, eu tenho certeza que o que trouxe a mim a liderança foi primeiro de tudo a medicina. Ela me deu, abriu essa… É ayahuasca, rapé e mais medicinas que temos. Essa pessoa, como eu estou sendo hoje… Realmente eu nunca tive competição, nunca tive dentro de mim aquela esperança de ser o que o outro era, de querer ser aquilo. Toda vida eu fui por ali; às vezes a gente queria comer, incorporar aquela ganância de tomar logo, de querer ser aquela pessoa porque o outro às vezes não fazia nada. Eu nunca tive isso dentro de mim, e quando eu estava no processo dentro do trabalho espiritual, a voz e o espírito me dizia muito que eu tinha que segurar mesmo, porque ele chegava para mim como se ele estivesse sendo um avaliador, e no meio de todos que estavam ali, ele chegava para mim e dizia que tinha que segurar porque tinha que ser eu mesmo, e eu nunca entendi isso que ele me falava.
Eu também tive [um sinal] através de um sonho. Alguém dizia para mim que tinha que ser, eu ia ser uma liderança, e naquele momento eu tinha que ser um vice, e eu não tinha nem expectativa de nada disso. Eu só bebia ayahuasca, bebi pela primeira vez e disse que queria beber para me curar, aprender e um dia ajudar meu povo no que Deus ordenasse, no que ele precisasse. Eu estava me recuperando desse tempo que eu contei atrás da história da minha doença.
A nossa liderança saiu, já estava com cinco anos que ele tinha saído daqui. É o parente Zenaldo, ele foi morar em Rio Branco. Teve um processo nesse tempo, ele ficou por lá e o Paulo se manifestou a fazer uma reunião com algumas pessoas da comunidade para fazer essa retomada de liderança, porque o povo já estava esse tempo todo sem liderança.
Chegou no ponto que não sei se eram quarenta, se eram cinquenta pessoas que tinha. Eles me visualizaram, me apontaram para eu ser a pessoa. No momento eu fiquei como chefe, mas eu, muito fraco, no mesmo instante me lembrei dos sonhos, da voz dizendo para mim que eu ia ser vice. No mesmo instante eu disse que não, mas aquele pensamento dizia que sim, e fiquei como vice. Falei para ele - até acho que ainda hoje a gente tem esse documento para rever… Eu ganhei dele na hora dessa votação, mas ele como era mais velho eu falei que ele assumisse, levasse e eu ficaria como vice. Passou-se seis anos. Ficou previsto a três meses fazer uma avaliação minha e dele pelo pessoal e ele não fez isso.
Eu venho acompanhando, nunca presenciei também através de chamado dele, de parceria dele… Nunca saí da aldeia para ir para nenhum lugar, como para uma reunião em Rio Branco, uma conferência no Puyanawa. Eu nunca saí na campanha dele como vice, sempre quem me colocava para ir nesse lugar era o Tchai, que hoje é o cacique aqui da aldeia. Ele sempre me colocou para eu ir em Rio Branco, para ir em algum festival, conhecer algum canto.
[Ele] foi vindo como liderança e agora, em 2020, ele chegou a um ponto que deixou a desejar a liderança do povo, porque só trabalhava materialmente; espiritualmente ele nunca teve essa força. Nossa comunidade chegou a um ponto que passou por um balanço, de entrar pessoas de qualquer jeito, pessoas de vários setores, e amedrontou a comunidade, inclusive ele, como era liderança. A coisa apertou e ele entregou, se demitiu em vários órgãos, como FUNAI, vários cantos e passou para mim.
Nesse momento o meu questionamento foi que eu não ia aceitar, porque ali não estava o pessoal todo da comunidade, e eu tinha em mim que para ser uma liderança precisava estar a comunidade [ali] e dar a voz, para poder dali eu desencantar conhecimento para eles, tanto que hoje ainda estou preso por conta disso. Ele entregou, disse que não dava mais conta, que hoje ele não tinha mais domínio nem do próprio filho, foi contar uma história lá. Estava acontecendo isso e mais isso para cá, mais para acolá. Eram vinte e poucas pessoas que estavam lá, [ele] foi e disse ‘porque é que eu não ficava’.
Eu perdi vários tempos, várias noites de sono, vários dias de dificuldade. Naquele momento eu senti uma oportunidade de ficar ali, mas a gente desde já tinha sentado, acordado que dali pra diante eu já [seria] a liderança geral, [na] presença dele e dos demais.
Eu já tinha confirmado que a gente ia fazer uma reunião para chamar a comunidade, para [saber] realmente se eles iam me querer mesmo, me apoiar novamente. Se não não tinha problema nenhum também, eu não tinha nenhum receio com nada disso. Hoje em dia, se a comunidade se manifestar, eu [fico] tranquilo também, vou só cuidar da minha família porque já sei como é que conduz. Mas aconteceu de agora, em 2021, a gente fazer uma atualização. Foi onde eu visualizei o tamanho da comunidade, o tanto de famílias. Visualizei cada comunidade tendo uma liderança, ficou tratado isso. A gente atualizou a liderança, eu botei a comunidade que estava presente nesse momento e colocaram o Leonardo. As comunidades ficaram cada uma com a sua liderança de base, seus caciques, e eu continuo ainda como vice.
Lá no momento eu disse para os parentes: “Eu estou aqui como congresso para vocês, mas daqui, desse momento vocês decidem se eu não fico, se tem alguém que queira. Estou aqui, não tem problema.” Eles calados estavam, calados ficaram e alguns ainda disseram que sou eu mesmo, e estou hoje aqui.



(01:22:55) P/1 - E como é que você está vendo? Fale também sobre ser cacique e

um pouco sobre o povo Nukini hoje.

Índigena da plateia - Eu pergunto como ele é cacique real do povo Nukini, como ele pensa em trabalhar mais em forma de organização de povo, para também receber as visitas dos irmãos que estão vindo até aqui também.

R - Então é assim, parente. Eu, como cacique, como liderança do povo independente, como um pai de família e liderança da família que eu visualizo no meu povo hoje na terra indígena, desde já expandindo esse lugar que nós estamos aqui como um espelho para as outras lideranças, para outras aldeias… O que eu imagino é que as comunidades, as aldeias indígenas da terra Nukini, que cada uma dessas lideranças possam fazer as suas organizações, as suas aldeias, a organização de trabalho, trabalhar em fortalecimentos por meio da cultura, se encorajar de levar essa cultura juntamente com a força da espiritualidade, e começar a trabalhar em coletivo para que os projetos possam ser bem investidos na comunidade, que tenha uma prestação de conta, que cada liderança dessa tenha a oportunidade de fazer esses projetos.
Na realidade, não é a gente que vai ver, correr atrás de um projeto, ver cada um, mas a gente como liderança em geral. As instituições, o governo, o parlamento, o próprio banco, eles que vão procurar essa pessoa de cada povo quando se trabalha nesse nível de visão, de organização e de projeto. Eu quero ver o povo novamente, o povo Nukini… Como liderança, minha expectativa de alcançar e ver é que cada um tenha uma recepção para receber o trabalhador, igual vocês estão aqui trabalhando, fazendo esse trabalho, receber o visitante que vem só mesmo para visitar, receber algum mestre, como se diz, um ayahuasqueiro, um pajé de qualquer outro lugar. Ter uma força para sempre ser acolhedor, para receber essas pessoas, todo mundo que vier.
Outra coisa que a gente vê muito, pensa muito que aconteça dentro dessa gestão de liderança é que o nosso próprio povo tenha a compreensão de preservar a nossa floresta, a cada dia; preservar o nosso rio e, fundamentalmente, a gente. O mais profundo da gente hoje… A gente diz que os povos indígenas do mundo hoje estão na luta pela vida, mas uma coisa que a gente fala muito [é que] tem a vontade de ver um dia o povo liberto da bebida alcoólica, para a gente ver se realmente nossa cultura chega, como o ancestral falou. Hoje nós não temos a cultura do jeito que nós pedimos porque ainda tem essa coisa que se alastra no nosso meio para dentro da terra, é isso.
Acho que ver também cada um criar para comer, criar para se beneficiar [de] um recurso, que possa plantar o que é preciso ser plantado para ter, para oferecer para quem for chegar. Acho que isso [é] uma das coisas que eu tenho muito dentro de mim, e penso que futuramente pode não chegar para mim, mas pode meu filho alcançar, o meu sobrinho, os demais que temos aqui.

(01:27:44) P/1 - Antes de encerrar eu queria que você contasse um pouco também da aliança com os outros povos. Por exemplo, você tinha dito que tinha um conhecido, um mestre Jaminawa. Queria que contasse um pouquinho desse encontro também.

R - Eu conheci ele, mesmo,

É um velhinho. Eu não estou lembrado do nome dele agora. Sim, me lembrei em boa hora: o nome dele é Seu Benedito. Ele me contou uma história de medicina, [de] como trabalhar medicina. Ele também disse para mim que hoje o parente diz assim: “Passa rapé.” Ele disse que a gente não passa rapé, a gente cheira rapé, passar é coisa que passa.
Outra coisa também que ele disse é que quando a gente é curador aparece muita gente atrás de se curar. Às vezes vem para se curar e se sente bem, depois não vem mais para você curar. Então naquele período o parente que pediu ajuda lá ele já me enfraqueceu porque ele não veio terminar a cura, e muitos deles divulgam que a gente não é nada, que a gente não sabe, [que] ele ficou bom porque ficou bom mesmo, dizendo que isso acontece muito na vida de quem trabalha com isso. A gente tem que ter muito cuidado mesmo, a gente nunca se cura à primeira vista; a gente sempre consulta para ver se realmente é aquilo mesmo que a pessoa está pedindo para que a gente ajude.
Como você mesmo presenciou no [povo] Nawa há pouco tempo, tinha um monte de gente. Ali a gente [dizia:] “Tu fica para depois”, “tu vem depois”, “tu é o quê?”, “tu está como?” Aqueles que não estavam sentindo nada queriam só mesmo ver, nem vieram mais. No outro dia ficou agendado para todo mundo, não apareceu mais ninguém, então é dessa forma que a gente trabalha, orientando.

(01:30:12) P/1 - Como é essa conexão com o povo Nawa?

R - Eu acho que hoje eu vivi muito aqui, vivi também muito tempo por lá. No tempo que eu era jovem também trabalhei muito, convivi com eles, curti muito também um pouco da vida com aquele ritual lá do brega, por isso que hoje eu vou lá, como vocês presenciaram. Eu tenho muito respeito, consideração, cada um gosta e a gente tem essa relação. De lá para cá, depois que a gente voltou para o conhecimento natural, sempre tivemos essa relação.
Quando eu passei a ser liderança o cacique se aproximou. Ele me orienta muito. Às vezes as coisas estão acontecendo, ele está sendo informado, ele está passando para mim como é que está sendo conduzido. Como ele já tem uma experiência de 21 anos de liderança, muita coisa eu pergunto para ele, como é que a gente pode melhorar. Ele sempre passa. A gente criou essa relação e agora só aumentou com esse trabalho que a gente fez lá, [de] consagrar, [se] unir com aquele tanto de pessoas que tinha. Nunca imaginei que os Nawa chegassem naquele ponto.

(01:31:45) P/1 - Teve alguma coisa que eu não perguntei? Alguma história da sua vida que você acha que quer partilhar?

R - Uma história que eu gostaria de compartilhar? Não sei nem qual seria, porque acho que tem umas importantes. Tem muita coisa que a gente já falou quase tudo, mas uma história que eu vou deixar para esse momento de registro é uma história baseada na minha vida. [Vou] contar aqui uma história de como eu sobrevivi para estar hoje aqui como liderança e para estar visando o futuro, sempre carregado de boas energias para ensinar essa nova geração que vem aí, porque futuramente eles que vão conduzir a história.
Quando eu comecei, faz pouco tempo, essa pouca experiência aí, de um ano e nove meses como liderança, a história que eu posso deixar é que não é fácil trabalhar, ser uma liderança, ter uma família grande. Essa oportunidade só tem o conhecimento e a harmonia quando é colocada para uma pessoa que tem bastante dificuldade e trabalho, que tem uma família ali que [se] dedica muito. A gente tem essa conexão do ser para transmitir conhecimento da natureza para que a gente trabalhe. Acredito, não sei [se] só eu, que cada jovem desses que temos aqui na comunidade se dedicarem a essa obediência eles vão alcançar também, ou futuramente ser uma liderança como eu sou, como eles têm que ser também.
Acho que dizendo também que a medicina que a gente usa, que a gente consagra, a gente tem a experiência que ela nunca tem que ser uma quantidade que a gente não possa administrar - coisa que aconteceu comigo, com a parte que passei dificuldade, que o grande mestre pajé disse que eu [tive] envenenamento de medicina. Que cada jovem utilize a medicina, faça de tudo para cumprir a dieta dela, porque eu não cumpri e passei por um momento muito difícil.
Hoje acredito que eles que vão conduzir, e cada tempo que vai passando o clima vai mudando, a coisa vai ficando mais difícil de conduzir. Mas desde já a gente deixa esse recado, essa história, essa mensagem, para que cada um que chegar sempre tenha atenção, a consideração, que é a humildade de receber a medicina para que também seja recebido por nós.

(01:35:50) P/1 - Cacique, queria te perguntar então…. Vai ser a penúltima pergunta. Como foi para você contar aqui essa história hoje? Todos os jovens assistiram aqui, foi primeira vez na vida que eu vejo isso, na verdade, só compartilhando. No geral não falo nada, mas em geral só eu entrevisto no máximo um, então, pela primeira vez, estou muito feliz com isso. Queria que você contasse como foi contar a história não só para mim, mas aqui para o seu povo, e qual você acha que é a importância de fazer um projeto desse no povo?

R - Pois sim. Primeiro de tudo, tão importante e gratificante é o Deus, por ter dado esse momento. É um momento único. Nós estamos pela primeira vez assim, perante essa câmara, perante esses conhecedores da tecnologia. Agradeço a cada um desses que estão aí, que têm esse comportamento, viram o que eu estou falando. Um pouco da história da minha vida, um pouco do que eu ouvi dos ancestrais… Desde já, acho que tudo isso que eu falei… A gente agradece mesmo por ser indígena dessa terra e por ser a liderança. Também por ter a oportunidade de estar aqui falando e dizendo para todos uma história. Também [por] incentivar o jovem para que não só eu possa estar aqui perante essa câmara, mas que tenha desenvolvimento, futuramente, esse sentimento de cada um fazer também a sua história, ser um projeto.
Agradeço a oportunidade que eu tive, porque também não foi uma coisa que a gente fez. Vocês já estão fazendo por nós, eu estou fazendo com vocês, para vocês fazerem mais para nós. Acredito que esse pessoal que está aqui está de parabéns pelo silêncio, todos eles, pelo comportamento. Acredito que eles estão entendendo e estão refletindo dentro de si [sobre] qual seria uma história que eles vão botar na memória, vão refletir para contar futuramente - a história do avô, a história da avó, a história da pesca dele, a história do inseto, a história da caçada. Então, o meu trabalho eu agradeço muito porque sinto que seria um incentivo para minha comunidade, para os meus filhos próprios que estão aqui, meus parentes todinhos.



(01:39:04) P/1 - Pra gente fechar, eu queria que você contasse a história de como você fez a música do índio encantado.

R - Quando nós começamos a trabalhar ali, eu fui fazer minha casa, aquela grande, eu fui lá, meu cunhado, meu genro e não sei se o outro era o Capapista. Sei que nós éramos quatro pessoas, não sei se era meu irmão… Nós saímos do nosso porto aqui, chegamos lá para chegar na boca do Paranã, que hoje lá eles consideraram o Acave Sul, que é a outra aldeia lá. O Acave Sul mesmo é o Igarapé, mas eles acham que é a aldeia.
Eu quando saí, passei da República e lá em cima tem a casa de uma parente antiga, que também é Nawa, também tem parte com Puyanawa. Ela é professora dos nossos parentes. Toda a vida, a gente aqui… Muitas vezes, quando nós já aprofundamos, fortalecemos a cultura, nós encontramos nossos próprios parentes com preconceito conosco porque estávamos pintados, porque consagrávamos medicina, tomávamos rapé.
Nesse dia a parente ia no motorzinho, no barcozinho mesmo, cheirosa, bonita, material de aula na frente. Ia lá para cima da Boca do Paranã, mais ou menos umas duas voltas; ela ia para casa de uma parente que tem lá, que é a mãe do Gleison, dar aula para uma filha que ela tem que é deficiente, tem um problema. Quando ela passou por nós eu fiquei olhando para ela assim e ela de lado, agarrada no timão aqui, nós para esse lado. Eu fiquei para as costas dela, nem olhou para ver quem ia naquele barco. Nós chegamos para entrar no Igarapé, olhamos para cima; lá vinha ela baixando, puxando a correia no motor. Eu disse: “Olha ali quem está no prego, nem olhou para nós. Agora vamos lá ajudar ela ou não vamos?” Aí ele disse: “Vamos”.
Quando eu fui avistando ela, fui tendo um sentimento, aquele momento comigo. Naquele momento ela passou, um óculozão bonito… Passou e nem olhou para nós,

agora está chamando para gente ajudar. Tive aquele sentimento, olhei para ela assim e disse:

“Eu estou todo pintado, sou um índio encantado
Encantado de paz, encantado de amor.
A pintura do meu corpo é do passado que restou.
Por isso que hoje aqui eu tenho um imenso valor!”