Museu da Pessoa

A lavoura sombreada de cacau

autoria: Museu da Pessoa personagem: Ney Ralison Silva de Oliveira

Projeto: Mercado Livre - Biomas que Transformam
Entrevista de Ney Ralison Silva de Oliveira
Entrevistado por Grazielle Pellicel
São Paulo / Novo Repartimento, 27 de julho de 2022
Realização: Museu da Pessoa
Código da entrevista: PCSH_HV1209
Transcrita por Monica Alves
Revisada por Grazielle Pellicel


(00:19) P1 - Oi Ney, tudo bem com você?

R1 - Tudo joia!

(00:24) P1 – Ah, que bom! Para começar, eu gostaria que você disse seu nome completo, data e local de nascimento, por favor.

R1 - Me chamo Ney Ralison Silva de Oliveira, nasci em 26 de setembro de 1985, na cidade de Tucuruí (PA).

(00:44) P1 - E seus familiares, seus pais, eles te contaram como é que foi o dia do seu nascimento?

R1 - Os meus pais moravam no interior na época, e a minha mãe teve que se deslocar até a cidade vizinha, no caso, para poder fazer os procedimentos do parto. Então costuma ser assim, [era] até um pouco cansativo, às vezes, é, digamos assim, com algumas dificuldades. Então, na época, a Transamazônica estava recém aberta, com problemas de deslocamento, poucos veículos, condições de estrada bem ruins, que é uma característica, digamos, bem particular aqui da Amazônia, né?

(01:40) P1 - E qual é o nome da sua mãe? Você pode contar um pouco sobre a família dela?

R1 - A minha mãe se chamava Maria do Socorro Barbosa da Silva, nasceu no Estado do Ceará e migrou para o Pará, em busca, no caso, ela e a sua família, em busca de terras. No momento que o Governo anunciava que tinha terras para doar para famílias que quisessem vir para a Amazônia, né? E aí chegando na Amazônia, no caso, o meu avô, ele contraiu algumas doenças, e veio a óbito ainda com a família, a minha mãe muito jovem ainda, né?

(02:27) P1 - E você ainda tem alguma ligação com o Ceará?

R1 - É muito pouco, assim, alguns familiares ainda residem por lá, mas eu não conheço todos. Conheço uma parte só, a ligação é bem pequena. Então tanto a família da minha mãe quanto a família do meu pai vieram do Ceará, então sou Paraense, mas com sangue de cearense, e genuinamente cearense. Então, hoje uma parte da família reside aqui no Pará, em algumas cidades distintas, [e] uma parte da família ficou no estado do Ceará, tanto paterno quanto materno.

(03:10) P1 - E qual é o nome do seu pai, você pode também falar um pouco da família dele?

R1 - Raimundo, meu pai se chama Raimundo Pereira de Oliveira, e assim como a família da minha mãe, eles vieram ainda muito jovens do estado do Ceará. Na verdade, a história, assim, dessa migração do Ceará para o Pará, começou quando o meu avô paterno decidiu vender o pedaço de terra que tinha no Ceará onde criava caprinos e bovinos, e buscar comprar terras em outras regiões, e aí, no primeiro momento, ele queria comprar terras no estado do Goiás, que no caso [era] Araguaína, que hoje é Tocantins, e quando ele chegou lá, ele ficou sabendo que o governo estava dando, doando essas terras aqui no Pará. Aí ele não contou duas vezes: ele voltou no Ceará, vendeu a terra e convidou os vizinhos, que, no caso, é a minha família materna, aí juntaram tudo no caminhão e vieram para o Pará. Ficaram, no primeiro momento, no acampamento do Incra, na cidade de Marabá (PA), e logo em seguida eles foram, no caso, a minha família paterna foi assentada em alguns lotes no Município de Itupiranga, e aí nesse local do assentamento, quando foi fazer o enchimento do lago da hidrelétrica do Tucuruí, eles foram realocados, tiveram os lotes alagados pelo lago da hidrelétrica e receberam outros lotes, com promessa do governo [de] que iriam dar os títulos de lotes quitados, que iam dar casa, poço, energia elétrica. E que, na verdade, ficou mais na promessa, né? E aí, a família do meu pai e da minha mãe morando próximos, acabaram que boa parte dos filhos se juntaram, e constituíram novas famílias, né?

(05:16) P1 - E seus pais te contam exatamente como eles se conheceram? Dentro da viagem, no assentamento?

R1 - Esse detalhe, se contaram, eu não lembro. Mas, assim, como além da viagem permaneceram morando bem próximos, eles jovens ainda, aí na faixa, a maioria dos catorze, quinze anos, então estava nessa fase de adolescência, começando um olhar um para o outro e eu acredito que, assim, as opções também não eram tantas, então acabava morando com pessoas da vizinhança mesmo. Então acabou constituindo algumas famílias nesse formato, né? Então, há 36 anos atrás, 38, quarenta anos atrás, isso era bem mais complicada aqui na Amazônia, então as coisas eram tudo muito distantes, não tinha facilidade de comunicação, o principal meio de comunicação que as pessoas sabiam das notícias era o rádio, ou envios de cartas, mas até o envio de cartas eram muito difíceis, porque para [chegar], [era] cem quilômetros das comunidades rurais para as cidades vizinhas, era coisa que passavam três, quatro dias, às vezes na melhor das hipóteses, poder chegar até essas localidades.

(06:44) P1 - E você gostava de ouvir histórias quando era criança?

R1 - Sim, sim. Eu acho que as histórias vão dando, vão ressignificando as experiências de vida, e assim vai dando sentido para as situações que a gente está e dando norte para onde a gente quer ir, né? Então, a família da minha mãe, ela estava que… Quando eles moravam no Ceará, passavam fome, então é uma realidade que quando vieram para o Pará, mudou um pouco em função da fartura natural que a região oferece. Oferece alguns desafios, como, doenças tropicais, malárias, febre amarela e outras doenças, mas em compensação as terras [são] férteis, enquanto que no Ceará, pequenos pedaços de terra valiam muito, então poucas pessoas tinham oportunidades de serem proprietários, e aqui no Pará tinha essa facilidade, a facilidade de terra abundante, terras férteis; E a dificuldade era logística, de transporte, comunicação, doenças, digamos assim, nem tudo eram flores. Certo é que, os que vieram para o Pará não quiseram voltar mais para o Ceará para morar, apenas para passear, né?

(08:10) P1 - E qual era a principal atividade do seus pais?

R1 - Meu pai ainda é produtor rural, e a minha mãe já é falecida, mas boa parte da família continua com [a] atividade rural, né?

(08:27) P1 - E você tem irmãos?

R1 - Sim, sim. Lá em casa, nós somos em seis irmãos. No caso, são três rapazes e três moças. Desses, tem duas irmãs que estão na área de contabilidade, um é administrador de empresa, mas toca o seu próprio negócio e tenho o irmão caçula que é técnico em agropecuária, e apenas uma das irmãs que não quis seguir essa carreira mais acadêmica, mas toca o seu próprio negócio também.

(09:04) P1 - E como é a relação de vocês?

R1 - Ah, muito boa. Costumo dizer que são poucas famílias que tem, assim, essa união dos irmãos. A gente tem os momentos, assim, de divergências, mas no geral somos muito unidos, né?

(09:25) P1 - Tem algum parente, algum tio, assim, [que] você tem um carinho especial?

R1 - Sim, eu costumo dizer que eu tenho um tio, que é o tio Oscar e ele é como se fosse meu segundo pai. Então, o meu pai e a minha mãe separaram quando eu tinha doze anos de idade, e a partir daí eu tive que meio [que] assumir a responsabilidade pela minha manutenção. A minha mãe, na época, com seis filhos, e eu era o mais velho, tinha doze anos, então ela teve muita dificuldade de manter mesmo, pelo menos o básico dentro de casa, né? E como eu era o mais velho, queria… Estava terminando o ensino fundamental, para iniciar o ensino médio, e aí eu tive que começar a trabalhar bem cedo, e teve esse tio, é um tio paterno. Que ele na verdade era um dos tios, mas tem um que é mais presente, o tio Oscar e o tio Zé Pedro, todos os dois paternos. E esse tio Oscar, ele meio que, mesmo um pouco distante, mas desempenhando um papel, como se fosse um papel de um pai ali, nos momentos mais difíceis, ele estava ali para poder dar a mão, né? Então, por exemplo, quando eu fui cursar o curso técnico, basicamente, ele e esse tio Zé Pedro foram os que realmente me ajudaram a ficar na escola, cobrindo as despesas básicas ali, para poder finalizar a formação. E essa relação, ela perdura até hoje.

(11:09) P1 - E como é que foi esse processo de separação dos seus pais?

R1 - Ah, muito complicado. Meu pai, ele até hoje é alcoólatra, então ele, até os [meus] doze anos, quando o meu pai e a minha mãe moravam juntos, ele dava conta de manter as coisas em casa, mas em função do alcoolismo, a minha [mãe] acabou que não aguentou o rojão e se separaram. E aí, nesse momento, meu pai, ele entendeu: "Ah, se a Socorro não me quer”. Ele esqueceu também os filhos de lado, então ficou muito tempo sem dar notícia, coisa assim de dezesseis anos, ele… A gente sabia onde ele mais ou menos estava, porque como a gente era muito conhecido na cidade, a cidade era pequena, as pessoas falavam: “Ah, eu encontrei o seu pai na cidade, Fulano”. Mas quando a gente sabia onde ele estava, ele mudava de cidade, que era para ninguém ir atrás dele. E aí, depois de dezesseis anos, ele… Foi o momento em que a minha mãe faleceu, ele se aproximou novamente. Para mim foi difícil, porque eu era o filho mais velho, mas o meu irmão caçula, praticamente, os dois mais novos, cresceram sem a presença do pai por perto, e esses dois têm mais dificuldades em lidar com o pai mesmo, nesse retorno, né? E aí hoje o meu pai, eu costumo dizer que ele tenta compensar essa ausência no crescimento dos filhos, agora com o crescimento dos netos, então ele tenta meio que compensar um pouco, mas a separação sempre é ruim.

(12:54) P1 - Existe algum costume especial na sua família, alguma coisa que vocês gostam de comemorar?

R1 - Ah, eu acho que assim, como a rotina é meio puxada sempre, a gente costuma se reunir [no] final do ano, então a gente faz um esforço para se reunir, passar alguns dias ali juntos, colocando as conversas em dia. É um momento que a gente realmente se junta, para ficar mais juntos, no mais são os aniversários mesmo de cada um, quando a gente tenta fazer um momento ali para não passar em branco.

(13:35) P1 - Na comunidade onde você mora, na região, assim, tem alguma comemoração também anual, alguma coisa do tipo?

R1 - Não, não tem. É uma… É um pouco diferente da maioria das comunidades, mas não é costume, eu estou em uma região que essa miscigenação, ela é muito grande, então é muito maranhense, pouco cearense, mineiro e aí acaba que essa miscigenação de costume, faz com que não tenha uma cultura local, de comemorações. Então, na cidade próxima, o evento cultural mais comum é a festa junina, mas na comunidade onde eu resido, não tem muita essa tradição.

(14:29) P1 - E indo agora um pouco para a sua infância, você lembra da casa onde você passou ela? Você consegue descrever ela?

R1 - Olha, a minha infância eu posso dizer que tive dois espaços, assim, um é um espaço rural no primeiro momento onde meus pais moravam, nos meus primeiros cinco anos de vida, que era uma casa bem simples, e do lado tinha um corregozinho onde a gente costumava pescar, e [tinha] bastante lavoura de arroz, a gente falava “lavouras” no sentido do costume amazônico, que é aquela lavoura no ‘tuco’, que [é] sem mecanização, é tudo no manual. E uma outra, dos cinco até os, digamos, que os quinze anos, é uma casa da cidade, uma casa de madeira, coberta de cavaco, que é um tipo de madeira também, a casa com o piso, no caso, era chão batido, bem simples, um poço, também, boca larga que a gente puxava água numa gangorra. E assim, tudo bem simples, né? Nas férias, eu costumava ir para as roças dos meus tios, esses dois tios que eu lhe falei que são os meus apoios, e aí, tipo assim, eu fico de férias em um dia, no outro dia, eu ia para roça mesmo, e lá a gente aproveitava esse período, então, andava a cavalo, lidava com gado, foi onde eu comecei a entender um pouco desse… da agricultura. E eu acho que foi aí, nesse momento, que peguei gosto pelo negócio, né?

(16:29) P1 - Você tinha alguma brincadeira favorita?

R1 - Ah, a gente brincava, na época, [de] pique esconde, então brincava muito na rua, com os vizinhos. Não tinha muito essa questão da violência, então a gente ficava até dez da noite aí brincando com os vizinhos. Eu gostava muito de construir brinquedos, principalmente carros, carros de madeira. Meu pai, ele é pedreiro, carpinteiro, além de agricultor, em casa tinha muitas ferramentas, então eu costumava fazer carrinhos, assim, tanto de latas quanto de madeira, e aí eram as brincadeiras prediletas. A gente também brincava de pião, você joga… Assim, brincava de peteca, mas era muito pouco, mais eram essas brincadeiras mesmo. E quando a gente ia para roça, brincava simulando como se estivesse montando no touro; às vezes, eram os próprios primos, que eram os bois da vez e outros momentos eram os bezerros ali que estavam no curral. A gente aproveitava [para] brincar, montava, caía e acho que Deus acaba colocando a mão para que não acontecesse nada de pior. Então, a gente exagerava até um pouco nas brincadeiras.

(18:01) P1 - E vocês não incomodavam? Assim, os adultos não reclamavam?

R1 - Ah, eu, assim, como na roça, eram mais os meus tios, então tinha um tio que reclamava um pouco mais, para a gente ter mais cuidado, para não acontecer nada de grave. E tinha um outro tio que se ele percebesse que não estivesse exagerando muito, [era] tranquilo, porém, que se você se machucasse ia ter que… Não podia estar reclamando e também estar chorando. Então era bem isso.

(18:33) P1 - E tem alguma comida, assim, da sua infância que você sempre lembra com carinho?

R1 - Ah, tem uma comida que acho que até hoje, assim, costumo até dizer que é a marca da nossa família, que é o cuscuz, cuscuz de milho. Então, a gente até brinca em momentos que é a Família Cuscuz. Então, eu e os meus irmãos a gente gosta, lá em casa a minha esposa aprendeu a gostar, meus filhos também gostam, então é a comida que praticamente todo dia tem que ter. Pode ter outros tipos de comida, mas sempre tem que ter um cuscuzinho. E, assim, como a gente está no Pará, não pode faltar também o açaí, mas confesso que o cuscuz é mais importante que o açaí hoje.

(19:23) P1 - Você ainda quando criança, tinha algum sonho de ser alguma coisa quando crescesse?

R1 - Ah, eu acho que como a gente era assim, bem pobre, então os pais falavam: “Ah, você tem quer ser doutor, né?". Então por um tempo eu fiquei focado, queria ser… Encarar a medicina humana. Como eu também tinha bastante relação com essa parte de campo, eu tinha vontade de ser veterinário, então, cuidar dos animais, fiquei por um tempo com esse objetivo. Quando eu fui cursar o curso técnico, eu me inscrevi para fazer Zootecnia, que era o mais próximo de veterinário que tinha na época. E aí, no meio do caminho, a Escola Agrotécnica Federal de Castanhal (EAFC-PA) falou: “Olha, a gente não vai mais ofertar Zootecnia, só vai ter Agropecuária e Técnico Agrícola com habilitação em Agroindústria". Eu falei: “Ah, beleza. Não tem Zootecnia, [então] vou para essa Agroindústria”. E aí, no primeiro momento, eu achei que não me identificava muito, então, [era] a parte mais teórica, e aí até que chegou na fase que tinha muita prática de laboratório, eu falei: “Não, é aqui!”. Então, microbiologia, bromatologia, física química, e aí eu me identifiquei bem. Em um primeiro momento, [eu] não tinha muitas pretensões de voltar para cultivar a terra, falava: “Ah, vou seguir aqui como técnico, de repente fazer uma graduação, uma outra coisa”, mas aí comecei a trabalhar em uma cooperativa. No caso, é uma outra cooperativa. E esse momento conflui muito com a minha entrada na Coopercau. Então eu entrei como prestador de serviço, lá em 2007, na Coopercau. A Coopercau foi fundada em 2002. E no meio do caminho, essa outra cooperativa seguiu um outro caminho, e eu mais um outro grupo falamos: “Não, vamos ficar na Coopercau”, que era uma cooperativa de produtores, que focava bastante nessa questão do departamento de assistência técnica para fortalecer os outros segmentos da cooperativa, até hoje é mais ou menos esse… Essa é a ideia, né? E aí tem uma pessoa, Keila, é agrônoma da Coopercau, cooperada também, e ela começou meio que [a] capacitar os técnicos, aí eu falei: “Pô, eu acho que esse segmento da agricultura é muito bom”. Então, quando foi em 2009, a gente juntou um grupo de amigos e falamos: “Não, vamos experimentar ser agricultores também”, então, resgatar um pouco disso da vivência de infância. E aí nos últimos dois anos eu me mudei para a roça, convidei a mulher: "Vamos fazer um teste". E eu acho que se eu tentasse voltar para a cidade, acho que ela não queria mais. (risos) Eu acho que no meio do caminho a gente vai se encontrando. Então, eu tenho pretensão ainda de fazer um mestrado, de repente se der tempo, até um doutorado, porque como eu já tenho dois filhos e também tenho um sobrinho-filho de treze anos, então as prioridades já passam agora a ser um pouco os filhos, mas eu quero continuar. Então acho que essa parte de agricultura, no meio do caminho a gente foi se encontrando.

(23:09) P1 - Indo para a parte escolar, assim, você lembra como é que foi pisar em uma escola pela primeira vez?

R1 - Ah, eu fui para a escola, digamos, comecei a estudar com sete anos. O meu pai, ele era um pouco, digamos assim, rigoroso, então ele falou: “Olha, quando for para a escola, já tem que saber o alfabeto, escrever o nome e saber contar pelo menos até uns cinquenta”. E aí, acho que no primeiro momento causou uma estranheza, essa mudança de hábito, ter que destinar o tempo para ir à escola. E aí começa naquela fase interessante, mas depois começa as cobranças: "Ah, tem que fazer isso, tem a atividade tal”. Mas eu acho que estudar é uma coisa que, pelo menos para mim, que sou bastante curioso, é interessante que vai chamando a atenção, então aí um tema acaba chamando a atenção para outro, né? Tem algumas disciplinas que, às vezes, a gente não se identifica muito, mas que é necessário, né? Eu tenho muita dificuldade, assim, com a parte de língua portuguesa, tive um tempo também com história, mas sempre gostei de matemática, química, física, coisas do ensino fundamental e médio. Mas eu acho que é bom, é um exercício (risos) que a gente deve levar para a vida.

(24:44)) P1 - Quem que te ensinou a contar para o seu pai o seu pai mesmo?

R1 - O meu pai e minha mãe… Então, meu pai, assim, ele cursou o primário, [da] primeira à quarta série, minha mãe tinha dificuldade de leitura, mas ele aproveitava para poder ensinar a mim e de tabela ir reforçando um pouco na minha mãe, essa questão da leitura e da escrita. Mas não era muito fácil. Acho que lá em casa, eu acho que dos seis irmãos, acho que o único que foi para escola já sabendo o pontapé inicial, foi eu. Tem mais duas irmãs que são bem próximas de idade comigo, mas que elas não tinham muito esse gosto por estudar. Então, por um determinado momento, isso até era um problema.

(25:46) P1 - Essa parte do estudo era importante para o seu pai?

R1 - Eu acho que era prioridade, ele sempre falava: “Olha, eu não consegui estudar, mas você vai ter que estudar”. Então era, digamos assim, prioridade, né?

(26:01) P1 - E tem algum professor que foi marcante para você?

R1 - Eu acho que professores do primário, tenho um casal de professores, o professor Nascimento e a professora Maria José, que são professores do primário. Eu acho que assim, recordo bem deles. E um professor na graduação, então, professor Rodrigo. Rodrigo Muniz foi uma pessoa que assim, tem outros professores bons, mas esse me chamou atenção, até mesmo pelo pouco, pela história de vida dele e pelo que ele tentava repassar para seus alunos.

(26:47) P1 - Tem alguma história, algum momento da época da escola que você nunca esquece?

R1 - Ah, eu, assim, eu acho que uma fase assim, que foi complicada para mim, [que] foi quando eu comecei a fazer o que hoje é o fundamental II. Na época, quinta série, eu nas primeiras aulas de educação física, teve um incidente que foi jogar futsal, e eu era muito raquítico… Eu não sou muito grande, mas era bem raquítico na época. E aí, no meio do jogo lá, eu levei uma bolada na cara e acabei desmaiando, sangrando o nariz, e isso meio que, acabou acho que traumatizando o meu professor de Educação Física, no caso, o professor Mário, ele falou: “Olha, a partir de hoje, você não vem mais para quadra, viu?”. Eu falei: “Professor, mas eu gosto!”, “Não, não! Tu vai fazer outras atividades, porque não pode acontecer algo de mais grave, eu não quero isso.

(28:00) P1 - Você comentou que você mudou da roça pra cidade, foi nesse período escolar?

R1 - Foi antes um pouquinho. Então, a gente mudou para a cidade, eu tinha… Estava na fase, completando os cinco anos. Meu pai vendeu a terra, em busca de melhores condições de vida na cidade, que nessa mudança confesso que eu não gostei muito, porque por mais que…, na cidade não tinha certas liberdades, que é um pouco diferente de hoje, mas tirava um pouco dessa liberdade que a gente tinha no campo. Aí, com o tempo, a gente acaba se acostumando. Então já era meio que sagrado, eu ficava esperando o momento de férias para poder voltar pra roça.

(28:55) P1 - Entendi, e o técnico que você falou que você fez, foi depois que você terminou a escola?

R1 - Isso, eu fiz o ensino médio e confesso que, assim, tinha vontade de fazer, uma formação posterior, mas não tinha muita perspectiva, que era… Estava bem recente da separação do meu pai com a minha mãe, então estava muito difícil [de] se manter, e aí eu pensava: "Ah não, vou terminar esse ensino médio e vou ficar por aqui mesmo, vou procurar um emprego qualquer na cidade”. Na época, eu já fazia algumas atividades de venda em algumas lojinhas, e aí apareceu essa questão da pré-matrícula, para esse curso técnico, no caso, que é no nordeste do estado. E aí a prefeitura fez um… [A] prefeitura local fez um esforço de trazer esse processo de inscrição para a cidade, porque do local onde eu moro para o local de formação é mais ou menos seiscentos quilômetros, e eu falei: “Ah, eu vou fazer essa inscrição, pelo menos para eu testar, né?”. E aí quando saiu o resultado, eu nem fui lá olhar, e aí alguns colegas falaram: “Ah, eu vi teu nome lá. Por que [é] que tu não vai lá para saber?”. Eu falei: “Ah, como é que eu vou? Eu não tenho como me manter né?”. Então, as dificuldades financeiras eram um pouco grandes. E aí já no… Assim, um dia antes de ir, aí esse tio meu foi comigo e falou: “Ah, tu não vai para Castanhal, não?”. Falei: “Ah, não tem como ir!”. Ele: "Não, só não vai se não quiser, mas se quiser, eu vou dar uma ajuda aqui. Depois que você estiver lá, a gente vê como é que faz”. E assim a gente foi, uns dois anos assim, de alguns perrengues. Mas eu acho que na vida tudo é assim, não tem nada muito fácil. Essa formação técnica acabou mudando até a perspectiva de vida, e aí meio que no meio do caminho, outros irmãos se sentiram incentivados a voltar para a escola, e aí as duas irmãs mais novas, teve uma que se graduou há uns trinta dias atrás, então, foi a formatura dela em contabilidade. A caçula já atua na área, acho que não concluiu, mas está nos finalmentes. Então acaba que, meio que um vai puxando o outro, né? E na parte da minha família materna, acho que só tem um ou dois primos que ainda seguem essa formação, assim, buscam formação, mas, assim, no histórico da família, a maioria eram analfabetos e semianalfabetos, né?

(33:52) P1 - E como que era esse negócio de estudar em Castanhal? Você ia direto para lá ou se mudou para lá?

R1 - A gente teve que se mudar. Então, na época, a gente contou com apoio da secretaria de agricultura e da prefeitura, eles locaram uma casa que a gente fez uma república, e nesse movimento, como no município não tinha ou tinha muitos poucos técnicos, principalmente os filhos do município, então vinham de outros municípios para atuar aqui. Era um município que estava se consolidando, iniciando a produção de cacau, [que tinha] bastante dificuldade nessa questão da pecuária e de outras culturas, então o município falou: “Não, a gente vai investir um pouco aqui na formação de alguns profissionais, para ver se alguns desses retornam para atuar na região, né?”. Então, eu, por exemplo, fui no primeiro ano e voltei no final do primeiro ano, porque a dificuldade e o custo desse deslocamento eram grandes. Era comum chegar o período de férias e eu continuar por lá, pela dificuldade financeira de retornar para cidade e depois ter que voltar para a escola, então, às vezes, era melhor ficar por lá. E logo que eu cheguei da escola, tratei de logo de fazer os processos seletivos para ser bolsista, e isso acabou me ajudando também na minha formação. Então, enquanto outros estavam no final de semana, no lazer, descansando, eu estava lá nas atividades da bolsa. Para alguns era ruim, mas eu gostava, porque era um momento de aprender as coisas, que ali a parte do ensino normal não tinha. Isso foi muito bom.

(33:44) P1 - Ah, legal! E a sua juventude, assim, adolescência, como é que você passou, assim, o que você fazia para se divertir?

R1 - Ah, eu acho que eu gostava muito de ir para praça, juntar com alguns amigos e ficar ali conversando até meia-noite, uma da manhã, hoje já não se faz mais isso, então ir para praça, para um local, se juntava com os amigos e ficava ali conversando, nunca fui muito bom de bola, então não tenho muito aquela paixão por bola, porque tem para alguns a diversão é o futebol, então com eu era perna de pau, eu me contentava em ficar jogando conversa fora ali com os meus amigos.

(34:31) P1 - E por que vocês não ficam hoje em dia, não ficam conversando na praça?

R1 - Acho que a maior dificuldade é essa questão da violência. Então, mesmo em cidade pequena, a escala da violência mudou, costuma mudar o perfil. Hoje, por exemplo, esse filho, sobrinho de treze anos que eu tenho, ele gosta mais dessas questões digitais, e até tem hora que eu falo: “Oh, meu filho você tem que ser mais sociável, tem que estar no meio do povo”. Então, essa nova geração já tem mais dificuldade, desse contato pessoal. Era coisa que eu gostava, né?

(35:14) P1 - Sim! Você cuida do seu sobrinho, é isso?

R1 - Isso! Esse meu sobrinho, assim, ele é filho da minha irmã caçula. Ela engravidou muito nova, ainda com catorze anos, e quando a minha mãe era viva, ela falou: “Não, eu vou cuidar”. Porque a minha irmã chegou a morar com o pai do rapaz, e aí os dois [eram] muito jovens [e] acabaram se separando, e nessa separação, a minha mãe falou: “Não, eu vou cuidar do meu neto”. Era o primeiro neto. E aí, logo depois, a minha mãe contraiu uma pneumonia e acabou vindo a óbito, né? E aí, nesse momento, a minha irmã tinha dificuldades, de trabalhar e de cuidar do menino. Eu era solteiro ainda, e aí a minha esposa, que é a Odaline, ela meio que era a cuidadora desse sobrinho, ela começou a cuidar dele com um ano aproximadamente; e de lá pra cá, ele não largou da gente. Então, hoje ele mora com a mãe dele na cidade, mas alterna, fica um tempo com a mãe dele e um tempo comigo, tanto que os pais da minha esposa são os avós que ele tem maior contato. Então, até falo: “Que ele tem dificuldade de ter uma boa convivência com o avô verdadeiro, e acaba sendo mais atencioso com os avós de consideração, de criação”. E aí ele acaba me chamando de pai, minha esposa de mãe. Quando ele está na casa da mãe dele, [a] biológica, a regra é da mãe dele, quando ele vai lá para a casa [dela], a gente não interfere no modo de lidar de um com o outro, né?

(37:04) P1 - E você conheceu a sua esposa quando ela era cuidadora?

R1 - Na verdade, eu a conheci em um acampamento da igreja, e eu tinha algumas amigas que também eram amigas delas, aí a gente acabou se conhecendo, falei: “Ah, isso não vai dar [em] nada, não”, mas aí foi indo, foi indo e ela é, meio que conquistou o espaço, né? E a gente se casou, acho que vai fazer sete anos agora, temos dois filhos biológicos, a gente fala dois, mas a gente fala que são três, porque o sobrinho também é nosso filho. Então, no nosso planejamento, ele está incluído, tanto de viagens quanto de compromissos, ele… Eu falo para ele: "Que bom que ele tem três pais”, porque tem um outro irmão meu que ele chama de pai, mas acaba que a convivência é menor e o pai biológico, que ele tem pouca relação; tem duas mães, tem a mãe biológica dele e a mãe de criação. É um bom menino!

(38:12) P1 - E para você como é que foi ser pai pela primeira vez? Você se lembra da sensação?

R1 - Eu acho que assim, pra mim foi um pouco, assim, essa experiência com o meu sobrinho, que eu comecei a ter essa responsabilidade como pai, tem momentos que a minha esposa fala: “Ah, tu vai se preocupar com Caíque - que é esse filho-sobrinho - e você nem precisava”. Eu falei: “Não, ele pode dizer depois que eu pequei por orientá-lo demais, e não pela falta de orientação”. E aí quando a gente teve nosso primeiro filho biológico, meio que o caminho já estava feito. Então, a gente tem diferenças de personalidades, o mais velho ele é muito calmo, assim, muito tranquilo, e já o nosso… Tem o intermediário, que é de cinco anos, esse já é espoletado, assim, é muito invocado e ciumento. Aceita bem essa questão do irmão, mas é só esse também. Se vier outro, não esse aqui já é primo, mas esse lá o irmão dele, [o] mais velho, a referência, também é o que costuma ali ter aquelas brigas de irmãos, né? E aí eu acho que a paternidade, para mim, é uma coisa que eu gosto, então eu gosto de criança, gosto também dessa responsabilidade até, acho que nos motiva a buscar ser melhor no dia seguinte. Então, pra mim, é o que me motiva a buscar esses novos desafios é essa questão da paternidade, que acaba sendo uma responsabilidade, de mantê-los mais uma responsabilidade de sermos melhores, porque a gente acaba sendo espelho.


(40:07) P1 - Você comentou que conheceu a sua esposa na igreja. A religião faz parte da sua vida?

R1 - Sim, acho que é uma coisa que nos ajuda, até [para] se tornar mais humano. Então tem momentos que a gente precisa da…, dessa parada, essa refletida, e buscar ser mais humano, ser mais amoroso com o próximo, ter um pouco dessa preocupação também com a conservação e preservação do ambiente que a gente está. Eu acho que a religião para nós é um ponto importante para isso, e a acaba também sendo um balizador nessa construção da moral, da ética, dos filhos, né? Acho que ele é importante, independente de qual religião que seja, acho que tem um papel fundamental na sociedade, de nos colocar no ambiente em que vai conviver com outras pessoas, que vai ter momentos que a gente vai agradar ou desagradar, e que a gente precisa usar essa reflexão.

(41:24) P1 - Sobre o trabalho e a faculdade, qual que você fez primeiro?

R1 - Na verdade, quando eu terminei o curso técnico, eu já terminei o curso técnico com duas propostas de emprego. Então, o meu primeiro trabalho como técnico, eu trabalhei no laticínio, em que eu fiz um estágio. O responsável técnico desse laticínio teve um problema com a família e precisou deixar o curso, e aí ele falou: “Oh, tem o Ney lá que fez estágio aqui, eu acho que ele vai dar conta”. E aí a proprietária na época, entrou em contato comigo e falou: “Oh, eu queria que você viesse trabalhar aqui”. Ela falou: “Ah, mas eu não informei ele ainda”. Faltava uns quatro meses, ela falou: “Ah não, eu espero”. E aí saí do curso técnico, terminei, fiz a formação e comecei a trabalhar. Aí, no meio do caminho, assim, era bom, mas eu me sentia muito preso e conhecia muito pouco a zona rural. Repartimento é um município bem grande, bem extenso. E aí teve um concurso, digamos, do Ibge, que foi para o censo agropecuário de 2006, e aí eu falei: “Ah, eu vou fazer esse negócio aí, vai que eu passo, eu vou conhecer um pouco a zona rural”, isso ainda trabalhando no laticínio. E aí eu saí do laticínio, já engrenei nesse Censo. Na época, eu assumi o posto supervisor, não foi um momento em que eu aprendi bastante, então, principalmente, tive o primeiro contato, assim, com essas práticas culturais, meio da agropecuária, parâmetros. E no meio do caminho, ainda durante o Censo, o presidente da época da Coopercau convidou a cooperativa que eu fazia parte para poder tocar um projeto que a cooperativa tocava na época, né? Então, meio que assim, quando eu terminei o compromisso com o Ibge, do Censo, eu já estava com as atividades como prestador de serviço para Coopercau e já assim, já era gula, então não tive muito tempo. E aí entre o ensino médio, na verdade, entre a finalização do curso técnico para faculdade, isso foram dez anos, eu fiquei dez anos, e aí surgiu um processo seletivo na [Universidade] Federal do Pará (UFPA), que depois virou a [Universidade] Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa), e eu fiz, para a educação do campo, e como lá [se] forma em quatro habilitações, eu escolhi em ciências agrárias e naturais, que é uma área que eu gosto. Eu gosto, assim, de fazer capacitações, porque é uma via de mão dupla. A gente ensina alguma coisa, mas também aprende muito, então eu gosto muito dessa interação. Então não consegui atuar como como professor exclusivamente, mas, de vez em quando, a gente (risos) se aventura. Tem até esse professor que eu falei da faculdade, teve um dia que ele falou: “Ah, tu vai ter coragem de largar essa tua rotina de sancionista rural para ser professor e ficar parado na sala de aula?”. Eu falei: “Eu acho que sim", mas eu não consegui parar ainda. Talvez um dia eu consiga me afastar um pouco da extensão rural, e me dedicar mais à licenciatura, né?

(45:08) P1 - Como é que era assim o seu dia a dia do trabalho?

R1 - Durante a faculdade ou no início?

(45:20) P1 - No início mesmo.

R1 - No início, assim, como eu era um técnico recém formado até, e como a minha especialidade é agroindústria, eu estava mais acostumado com laboratórios, microrganismos, parâmetros 'x' por quintos. E esse projeto que a gente tocava com a Coopercau na época, era um projeto mais agrícola, então para mim era um aprendizado duplo. Daí eu tinha que entender de alguns parâmetros agrícolas e agropecuários que eu não compreendia, por ser novo de formação, atuar em um projeto específico, e no decorrer, assim, dos trabalhos, eu sentia a necessidade de falar: “Não, eu tenho que estudar mais”. O que a escola me ensinou lá é apenas a base, então, isso eu levo até hoje. Por exemplo, hoje, eu estou no último dia do curso de piloto de drone para mapeamento. Estou [fazendo] desde a semana passada, por isso que eu acabei pedindo para prorrogar um pouco. E são coisas que a gente tem que se aperfeiçoar. Então, quando eu tenho um tema que eu não domino muito bem, eu falo: “Não, esse tema aqui eu tenho que estudar mais”. Então eu busco, gosto muito de ler, gosto de buscar novos conhecimentos, que eu acho que isso vai abrindo a nossa visão de mundo, vai nos trazendo outras perspectivas. Eu acho que em qualquer área a gente precisa ter esse senso de sempre, não se contentar com aquilo que a gente tem: "Ah, beleza, eu sou bom em alguma coisa, então eu posso me tornar melhor”. “Ah, eu gosto disso!” Então tem momentos que a gente precisa buscar conhecimento de alguma coisa que às vezes a gente não gosta tanto, mas que é importante, principalmente para a gente ter uma visão mais aberta de mundo, de vida. Eu acho que isso é muito importante. Então, saí do curso técnico, comecei a trabalhar no laticínio, em seguida fui para o Ibge, que eu aprendi bastante, engrenei como prestador de serviços na cooperativa e acabei me tornando cooperado. Hoje, eu sou um dos diretores, e nesse meio de campo, eu entrei para a faculdade, estava fazendo o modelo de alternância. Então nos períodos que seria o período de férias, ficava dois meses me dedicando quase que exclusivamente ao estudo, depois retornava e aí tinha mais as pesquisas que a gente tentava conciliar. Então hoje eu concilio a atividade como agricultor e produtor, e a atividade de extensionista. Então, há sete anos atrás, eu tinha que fazer isso com a faculdade, então acaba que você fica com pouco tempo, às vezes, até para se dedicar um pouco mais para a família, né? Hoje, como eu tenho dois filhos pequenos, eles demandam muito mais tempo de mim, então eles falam: “Oh pai, você vai ficar muito tempo longe de casa? Que dia você vem? Você vai passar mais tempo aqui?”. E aí a gente tem que ir tendo um jogo de cintura para poder lidar com essa situação.

(48:40) P1 - Falando da faculdade, como é que foi para você e para a sua família ser uma das primeiras pessoas a ter uma faculdade?

R1 - Ah, eu acho que assim, às vezes as pessoas falam: “É motivo de orgulho, né?”. Eu acho que a gente tem que buscar novos horizontes, então eu penso que para os meus filhos, eles não podem se contentar só com a graduação, tem que chegar pelo menos no doutorado. Eu pretendo chegar também. Mas, assim, se no meio do caminho não acontecer, mas se eu ver que eles conseguem buscar também nos segmentos que eles gostarem, assim, buscar essa formação é importante. Então meu pai acaba não falando muito, mas tem esses tios que são meio que os apoios, eles falam: “Não… “. Ficam super, digamos assim, alegres. Por exemplo, teve a graduação da minha irmã, e esse meu tio também foi o paraninfo dela, então lá no momento de receber o canudo simbólico lá, ele vibrou como se ele estivesse sendo o graduado. Então é meio que essa sensação de que assim, as gerações novas vão alçando outros passos que a geração anterior não conseguiu, né? Então, os meus pais falavam que na época o acesso à educação era muito difícil, o meu avô paterno ainda conseguiu colocar os filhos para estudar contratando uma professora para ir lá na propriedade ensinar o básico, já o meu avô materno não conseguiu fazer isso com os filhos. Então é tanto que na minha família paterna já tem outros primos que já estão, digamos assim, bem encaminhados. Mas na família materna, só tenho um primo a mais que se graduou recentemente em engenheiro elétrico. Então acaba que, eu acho que são conquistas para a família toda, não só para o indivíduo em si que está conseguindo avançar nos estudos.

(50:55) P1 - Nesse período da faculdade, teve algum momento marcante, assim, que você lembra?

R1 - Eu acho que o momento mais marcante para mim foi o momento do TCC, então eu consegui fazer todos os módulos da faculdade, sem muitos percalços, até porque eu me identifico bem com a área, mas quando chegou no TCC, meu filho nasceu na última semana, meu filho biológico nasceu na última semana do curso, e a ideia, assim que terminou o curso o TCC já está bem adiantado para conseguir fazer ali a defesa, e aí quando o meu filho nasceu eu fiquei um ano sem conseguir estudar, assim, por demanda da própria criança, e como eu falei, a personalidade é diferente, enquanto o filho sobrinho não dava tanto trabalho, não demandava tanto, já o primogênito demandava mais isso, e nesse um para poder voltar de novo para estudar foi uma dificuldade grande, aqui que entra o papel desse professor, é um professor até mais novo que eu, doutorado na área de Ciências do Solo, e aí chegou um momento em que eu estava muito atrasado e ele falou: “Olha cara, eu sei que a sua rotina é pesada aí, mas você vai ter que fazer um esforço, né?”. Então houve um momento que eu tive que me mudar lá para dentro da casa dele, no caso, morar 180 quilômetros daqui do município que eu moro, para a gente conseguir avançar em algumas coisas, aí nesse momento o papel da minha esposa como me dando apoio foi muito importante e também o papel da cooperativa, então se eu estivesse em uma empresa convencional não conseguiria essa liberação, de alguns pedidos para poder me dedicar aos estudos. E eu acho que o desafio é grande, mas a sensação de dever cumprido pelo menos dessa etapa é maior, né?

(53:17) P1 - Você comentou que quando você foi o técnico lá em Castanhal, você já tinha alguma relação com o cacau, você conhecia, já, sobre.

R1 - Foi logo em seguida. Então, o município acabou investindo nessa formação, pensando nessa perspectiva, de ter uma quantidade de técnicos disponíveis para poder atuar na região. Então como a região é, digamos assim, um pouco difícil ainda a parte de logística, a cidade não tem uma infraestrutura, digamos assim, social interessante, então era comum os profissionais virem para atuar na região e não se adaptar, então abandonavam o posto e iam embora. Pensando nisso, o município: "Não! Vamos investir em formação, para que os filhos da região atuem, né?”. Eu comecei, assim, a entender um pouco dessa dinâmica do cacau, quando eu comecei a atuar na cooperativa; Então, antes de vir para a cooperativa, que foi no Censo Agropecuário, eu comecei a entender que além da pecuária e da lavoura de ciclo curto que eram o arroz, a mandioca, o milho, existia essa questão do potencial de lavouras perenes, que no caso do município, [era] o cacau, que hoje Repartimento é destaque na produção de amêndoas de cacau de qualidade. E aí, eu comecei, assim, a gostar dessa questão do cacau. Hoje é a área de atuação que eu falo que é mais tranquila para mim, porque foi a área que eu me dediquei mais, estudei mais sobre a cultura de forma bem geral, e é a cultura que eu trabalho na minha propriedade. Então foi esse contato que fez com que eu me dedicasse bastante para a cultura, e acabei gostando muito. Acho que tem outras culturas, outra atividades agropecuárias que são super importantes, mas o cacau é uma das que eu me identifico, e tem se mostrado no município e na região como uma das atividades que têm potencial de gerar emprego, renda, ao mesmo tempo que conserva a floresta em pé. Então é uma cultura que ela é amigável para o meio ambiente, até pelo modelo de lavoura que se trabalha na região, que é o sistema agroflorestais, então vai estar o cacau, mas também tem a questão das essências do florestamento que servem como sombreamento para a cultura do cacau. Acaba sendo mais amigável para o meio ambiente, isso acaba que me chamou um pouco da atenção, acho que por isso que eu acabei me dedicando um pouco mais para essa cultura.


(56:19) P1 - E como é que é esse sombreamento?


R1 - O cacau, ele é uma planta, que ela tolera o sol, tolera a sombra, mas quando você tem uma outra árvore que a sombreia, diminui o, ataca de… Principalmente de pragas, então diminui o ataque de insetos na planta. Digamos que a planta ali, digamos que o produtor vai tirar algum tipo de lucro com ela, né? E aí quando você faz isso, essas árvores vão ficando que muitas das vezes não necessário plantar, porque a regeneração natural na região é bem forte, essas árvores são árvores que vão oferecer frutos para biodiversidade de animais da região, e também vai fazer esse papel de sequestro de carbono, reciclagem de nutrientes e faz esse papel de minimizar os efeitos, e o ataque de pragas, pragas e doenças, mas o ataque de pragas diminui consideravelmente quando você tem uma área, uma lavoura de cacau sombreada, que não é a pleno sol como tem alguns modelos. Porque o cacau ele dá para ser cultivado nos dois modelos, tanto a pleno sol, que é um cultivo só de cacau, quanto nesse modelo com sombreamento que é um sistema agroflorestal. Então, no modelo agroflorestal com sombreamento, você vai diminuir consideravelmente a aplicação de defensivos, que diminui o desembolso do produtor ali para poder comprar esses insumos, fazer essa aplicação, ao passo que é mais amigável também para pessoa que vai estar conduzindo a lavoura, e o meio ambiente, né? Então se eu preciso fazer menos intervenções com produtos químicos, isso é bom para todos os lados e até para quem vai consumir o produto final.


(58:23) P1 - Em 2005, a Coopercau passou por uma reformulação no estatuto social, como é que foi isso?


R1 - Na verdade a Coopercau, ela passou por algumas reformulações. Ela foi criada em 2002, os fundadores, o objetivo deles era ter uma cooperativa que pudesse congregar os produtores que estavam pleiteando plantar cacau. Então como era muito difícil a assistência técnica, acesso a crédito, tudo era complicado, então se criou a cooperativa pensando nisso, [para] poder acessar a crédito e também poder ter a possibilidade de uma assistência técnica. Só que no primeiro momento, até 2007, a Coopercau, ela não [era] forte nessa parte de assistência técnica dela. Tinha-se a ideia, mas não era bem forte. Então, em 2007, o João Lima, que era o presidente da cooperativa na época, ele escreveu um projeto que foi, digamos que teve aprovação por alguns órgãos até de caráter internacional, através da Agência Brasileira de Cooperação (ABC), e aí teve um projeto que foi aprovado por alguns órgãos, e chamou a atenção de um grupo espanhol, que financiou um projeto para plantios de pinhão-mansa, é uma oleaginosa, e nessa época estava bem quente essa questão do Programa Nacional de Produção e Uso do Biodiesel (PNPB), de primeiro momento a programação do Biodiesel era focada na Mamona, e o projeto da Coopercau era focada no pinhão-mansa, e aí esse projeto demandava assistência técnica, foi quando a Coopercau contratou essa outra cooperativa na qual eu era fundador, para a cooperativa, que fazia parte, tinha os técnicos de agrícola, ou seja, o pessoal da parte de assistência técnica para fazer o serviço, e a Coopercau precisava desse serviço. Então, de primeiro momento, a Coopercau adotou essa estratégia de contratar a mão de obra, de uma outra cooperativa, isso perdurou até mais ou menos 2010, e mais ou menos em 2010 o projeto Oleaginosa veio a derrocar com a crise de 2008, os investidores espanhóis deixaram de financiar o projeto, e a cooperativa e os técnicos que trabalhavam ficaram meio que sem norte, e aí nesse momento de confusão a gente ficou sabendo que tinha edital do Ministério do Desenvolvimento Agrário, o MDA, e aí essa nossa agrônoma que é a Keila que era responsável técnica na época, falou: “Ah vamos escrever uma proposta?”. Aí o presidente falou: “Ah, escreve, isso não vai dar em nada mesmo”. Aí essa proposta de prestação de serviço foi aceita, e foi nesse momento que criou-se o departamento de assistência técnica e assistência rural, dentro da cooperativa, com a cooperativa de produção, mas ela tinha esse departamento de assistência técnica, e esse departamento de assistência técnica foi o que manteve a cooperativa viva nesses, digamos seis anos depois, do ano de 2010 a 2016. A Coopercau era uma cooperativa de produção, mas que estava focada basicamente nessa prestação de serviço de assistência técnica, e aí nesse serviço de assistência técnica a gente entendeu que só fazer assistência técnica, e não fazer a comercialização desses produtos era um prejuízo, porque a gente ia lá e falava para o produtor: "Olha, tem que fazer isso, tem que melhorar a qualidade do produto, para conseguir o melhor preço”. E aí acabavam vendendo para o atravessador e o atravessador falava: “Não, isso aí é besteira". E aí Coopercau começou a fazer um estudo, começar a experimentar essa parte de comercialização, as primeiras experiências de comercialização do cacau foi frustrante, então acaba que teve alguns prejuízos para cooperativa em função de enquadramento fiscal, e até que: "Não, vamos preparar a cooperativa para realmente entrar forte nessa parte comercial". Foi quando a gente começou a buscar reestruturar novamente essa parte do Estatuto Social, a gente está em um momento que, digamos assim, que a gente continua fazendo algumas alterações. E aí nessas mudanças, quando foi o ano passado 2021, a gente conseguiu uma parceria com uma ONG, que no caso é a Solidaridad, e essa ONG contratou uma consultoria que é o pessoal da Conexsus, e aí o pessoal da Conexsus focou no trabalho de melhoria da governança da cooperativa. E nesse trabalho de melhoria da governança da cooperativa, a gente enxergou que o nosso estatuto estava defasado, estava muito fechado para entrada de novos produtores, e aí foi feita essa alteração estatutária. Agora a gente está em uma outra fase que é de melhoria da governança social, a participação social, a tomada de decisão através desses vários grupos sociais dentro da cooperativa, para aperfeiçoar ainda mais. Então hoje a gente atua na parte comercial, comercialização de cacau, tanto cacau commodity, quanto cacau fino, e um cacau que a gente chama de intermediário, alguns chamam de cacau especial, a gente entende que esses outros nichos de mercado que a cooperativa trabalha é, digamos assim, a chave de sucesso da cooperativa e também para ela não vir a derrocada, né? A gente está pleiteando alguns investimentos em termo de verticalização da produção de cacau, e dentro dessa questão de comercialização do cacau, sempre vem a importância da assistência técnica. Hoje a Coopercau, ela toca dois projetos de assistência técnica, um é próprio dela onde os próprios cooperados, alguns produtores que pretendem ser cooperados no futuro, eles pagam a assistência técnica própria, isso visando ter um cacau de melhor qualidade, e ao mesmo tempo que a cooperativa possa fazer essa atuação no mercado, para poder conseguir colocar esses produtos de melhor qualidade no mercado diferenciado, né? Então nesse cacau de melhor qualidade, às vezes ele chega a três, até quase quatro vezes o valor do cacau commodity. É claro que isso não vai para todo o cacau, é um nicho, mas a gente entende que esse segmento é o que melhor remunera o produtor, e ele estando vinculado à cooperativa, ele consegue adquirir insumos de forma mais em conta, mais barato. A gente tem uma dificuldade na região, que até para conseguir adquirir esses insumos, seja para agricultura convencional, ou agricultura orgânica, a gente está longe, distante dos centros de produtores desses insumos, e aí de forma coletiva acaba se tornando mais, digamos, mais fácil, né?

(1:06:11) P1 - Esse auxílio técnico, ele também envolve a recuperação de áreas degradadas, florestal, assim?

R1 - Hoje, todos os projetos de assistência técnica que a cooperativa toca, ela tem esse viés da sustentabilidade, então a gente atua no viés ambiental, ou seja, da sustentabilidade ambiental mais a sustentabilidade social e econômica, então nos projetos que a gente toca a gente tem essa preocupação para conter o desmatamento ilegal, nas propriedades não ter trabalho escravo ou análogo a escravidão e também a questão do trabalho infantil. Então são os três pilares que a cooperativa tem feito adequações para poder tocar os seus projetos, né? Quando a gente fala de cacau fino, os nossos produtores hoje são produtores a nível de Brasil, com as maiores premiações de qualidade de cacau do mundo, então, tem o seu João Evangelista, cooperado, ele está entre os cinquenta melhores do mundo. Então hoje não é só um produtor, são vários produtores com prêmios em diversas escalas, prêmio em Paris, prêmio na Bélgica, prêmios no Brasil, alguns com prêmio na qualidade da amêndoa e outros receberam prêmios pelo chocolate que foram feitos com suas amêndoas, né? E para poder se manter nesse patamar de qualidade, é avaliada a qualidade sensorial, a qualidade, digamos, visual das amêndoas, mas também é avaliada a qualidade da sustentabilidade, que está pautada nesses três pilares: ambiental, social e econômico.

(1:08:02) P1 - Como a produção do cacau auxilia o bioma da Amazônia?

R1 - Hoje a gente tem uma distinção bem, assim, clara. Então, por exemplo, na minha propriedade, eu priorizo trabalhar com o cacau, eu não estou em uma região, assim, a minha propriedade não está em uma região que é uma região cultural de se plantar cacau, então como o município é bem extenso… hoje eu estou na sede do município, então, da sede do município para a minha propriedade, são trinta quilômetros, só que para a região, digamos assim, que é predominante a lavoura de cacau, está a partir de cem quilômetros daqui da sede, e a gente consegue ver essa diferença, por exemplo, meus vizinhos tocam basicamente atividade de pecuária, então quase que cem por cento das propriedades já foram todas desmatadas para poder implantar a pastagem, né? Na minha propriedade, por exemplo, é a única propriedade que ainda tem reserva legal, eu preservo as nascentes, então planto o cacau, que ele é nativo do bioma amazônico, mas também tem essas outras árvores que vão se recuperando e algumas a gente vai implantando para enriquecer o sistema, e faz com o que preserve a floresta em pé, seja a floresta original ou a floresta em recuperação. Então no meio da lavoura de cacau, a gente vai ter a castanha, vai ter o cumaru, vai ter várias outras espécies, que elas conseguem conviver muito bem com o cacau, né? E aí o produtor que começa a trabalhar essa questão do cacau, ele começa a perceber [que o sistema] agroflorestal é muito mais humano, você vai, não vai estar trabalhando no sol e ai começa alguns produtores, até que tem pecuária também, no mesmo imóvel, a começar a adotar um sistema de deixar mais árvores no meio da pastagem, pensando nesse bem estar animal. Sem contar que, quando o foco da região era a questão da pecuária, as pessoas às vezes desmatavam um lote inteiro, jogavam capim e só iam produzir aquilo. Na implantação do sistema agroflorestal de cacau, as pessoas têm ali, as famílias têm pelo menos três anos em que dá para cultivar outras culturas no meio, dá para cultivar o arroz, o feijão o milho, a mandioca, o abacaxi, o amendoim e outras culturas conforme o interesse do produtor, né? E uma cultura que é comum cultivar junto, é a banana ou o mamão. Então o cultivo do cacau… e aqui predomina o modelo de cultivo por agriculturas familiares, então o cacau também tem esse outro viés, que faz com que a família fique fixada no campo. Então o modelo de produção, onde a prioridade, a produção é a pecuária, com o passar dos anos, o comum é ficar às vezes só o titular e sua esposa na propriedade, certo? Então vamos lá, próxima pergunta.

(1:11:46) P1 - Então o cacau ele não é uma monocultura, né?

R1 - Isso, ele é uma cultura, que ele é amigável para a família, porque como ele precisa… demanda mão de obra, então quase todas as atividades são manuais, aqui da região. A gente tem uma… a superfície do solo, ela não é plana, é bem ondulada, então dificulta a mecanização, e como também as famílias que tocam as lavouras são da agricultura familiar, também não dispõem de muitos maquinários, então isso vai demandar mais mão de obra, e essa mão de obra basicamente [são] os filhos. Às vezes os parentes começam a enxergar que o cacau é uma atividade que vai lhe oferecer um trabalho que remunera, senão melhor mas igual as outras atividades, mas a pessoa vai trabalhar na sombra, você tem renda o ano inteiro, você tem uma maior segurança, porque um saco de cacau é quase mil reais, e aí as pessoas começam a falar: "Não, o cacau é uma atividade que remunera bem". Então ele tem esse aspecto ambiental de que ele é mais amigável do que a pecuária. Eu acho que para as famílias, o bom seria ter três, quatro atividades diferentes para que no momento de crise de um, o outro se sair bem, mas o cacau ele tem esses benefícios, então é mais amigável para o meio ambiente, é mais amigável para família, porque evita o êxodo rural. Então, como eu convivo com aproximadamente trezentos produtores de cacau, alguns que eu atendo, outros que a gente já se conhece a muito tempo, então o comum é assim, quando as pessoas tocavam só a pecuária, os filhos saíram da propriedade para buscar emprego na cidade, quando chega na cidade, consegue um emprego ali, às vezes sem carteira assinada, por um salário mínimo, para trabalhar quase que de domingo a domingo, então, sem ter tanta liberdade. E aí, com o passar dos anos, os pais começaram a implantar o cacau, os filhos começam a enxergar uma oportunidade de negócio na propriedade, melhor do que na cidade, isso faz com que fixe a família, a família começa a ter uma união maior e aí é comum na região, por exemplo, as propriedades serem divididas. Então ao invés de ser só o casal, que são ali os titulares principais, começa a dividir os pedaços, então, pedaço é do fulano, é do filho fulano, o pedaço fulano é do genro para poder ele tocar, e aí ele vai ter autonomia, de tocar os negócios para… o cacau é assim, se você dedica um tempo para ele, ele responde com produção, então se você dá um certo carinho para ele, é quase como um Mercado Livre, tem que tá alimentando ele direito para poder se manter ativo, e ele responde com essa produção e a qualidade de vida, e até mesmo a estrutura patrimonial das famílias que tocam o cacau na propriedade é superior aos das famílias que são agricultores familiares que tocam só a pecuária. Então com o passar dos anos, essas famílias que tocam basicamente só a pecuária, costumam ter um padrão de vida inferior das famílias que tocam às vezes as duas atividades, ou que se dedicaram ao cacau, né? Então têm famílias que têm as duas atividades na propriedade, mas tem família que falou: "Não, o cacau é a atividade que me remunera melhor, então eu vou me especializar no cacau".

(1:15:43) P1 - Você conhece a história de alguém, assim, que mudou de vida com essa introdução da econômica do cacau?

R1 - Olha, tem um produtor, ele assim, quando a gente começou a atuar na cooperativa, isso há mais de dez anos, ele atuava basicamente com o modelo de pecuária, então ele tinha um lote de dez alqueires, que é cinquenta hectares, e focava na pecuária, e com foco na pecuária leiteira que é a que representava uma melhor alternativa na época, ele acabou, digamos, adquirindo algumas dívidas por financiamentos que foram mal conduzidos na época, ele acabou assumindo a dívida e não conseguiu implantar o sistema para a melhoria da produção local, e aí a gente começava a falar na época que ele precisava buscar diversificação da produção na propriedade, e assim, esse é um caso, porque assim, é um caso que foi passo a passo, e ele começou a mudar, então experimentou fazer as primeiras roças mecanizadas, recuperando a área degradada de pastagem para fazer um teste, e isso com a assistência da cooperativa, muitas vezes em parceria com a secretaria de agricultura, ele começou a experimentar, a trazer essa roça que estava lá no final da terra para perto da casa, que a gente até chamava de roça no quintal na época. E esse produtor, ele tem dois filhos, os filhos já não estavam mais na propriedade, ele já [estava] chegando na idade de se aposentar, e ele ficava: "Ah, como é que eu vou tocar a atividade, se eu não tenho mão de obra. Vai chegar o momento que eu não vou dar conta". E com o passar dos anos ele percebeu que quando ele cultivava essas culturas de ciclo curto e colocava alguma cultura permanente ali na área, ele conseguia gerar mais renda do que quando ele estava cuidando de uma grande área com pecuária, que ele não estava conseguindo pagar as contas. E aí chega um momento que ele vendeu metade da propriedade para liquidar as contas que ele havia adquirido, e hoje ele toca, acho que menos de dez hectares em torno da casa com lavouras, e aí ele implanta no primeiro ano macaxeira, abacaxi, batata doce, feijão, cana, e essas culturas, ele meio que, na cidade não tinha feira do agricultor, ele começou a botar uma barraquinha em frente ao mercado que a gente tinha, e essa persistência desse produtor, levou a prefeitura a normatizar um espaço de feira da agricultura familiar. Inclusive é o feirante mais bem sucedido, como ele já tem seus clientes, no dia da feira, às vezes tem um produtor que está do lado e ele acaba vendendo o dobro, quase o triplo dos outros produtores. E esse produtor, ele nos últimos dois anos, os filhos voltaram para a propriedade, os filhos, as noras, e hoje basicamente todos da família sobrevivem dessa renda da atividade, então quando vai para a feira, vai ele, a esposa, os filhos, as noras, os netos, tô mundo ali para ajudar a conduzir o espaço da feira. E essa é uma das famílias, assim, que eu pude presenciar essa mudança, de paradigma, então quando as pessoas foram assentadas das propriedades, o governo acabou prometendo muitas coisas que não aconteceram, então, como era [pra] fazer a lavoura lá, desmatava a área para fazer roça de arroz, milho, mandioca, feijão e logo em seguida já plantava o capim, e com o passar dos anos as pessoas falavam: "Ah, não compensa plantar arroz, que é mais barato comprar do que plantar" e as pessoas foram perdendo esse hábito de fazer lavoura. E esse produtor que é o Seu Domingos, inclusive ele mora na mesma região [em] que esses meus tios moram, ele e o irmão dele, que é o Seu Felipe, eles mudaram o jeito de trabalhar na propriedade a partir dessa mudança de conceito, de que a diversificação das atividades oferece melhores condições. E aí, como passou-se alguns anos, o laticínio local teve uma crise, mudou de proprietário e quem estava só focado na pecuária, teve produtores que não aguentaram e acabaram vendendo a propriedade e vindo para a cidade, e esses que já estavam, assim, meio caminho andado com essa diversificação, acabaram se reencontrando. Então o irmão dele, por exemplo, continua com a atividade da pecuária leiteira, mas sempre busca otimizar outras áreas, ele tem outra área maior, os filhos também já voltaram para propriedade, então teve um caminho de distanciamento dos filhos e agora é um momento que os filhos, e outros parentes que estão próximos ali, retornando para a propriedade, porque começam a enxergar um setor que oferece mais potencial, de emprego e renda muitas vezes.

(01:21:07) P1 - Você falou que a cooperativa auxilia na comercialização, tem algum lugar que o cacau chegou que vocês nunca imaginaram que chegaria antes?

R1 - Eu acho que hoje, assim… em termos de locais dentro do município? Ou em patamares, assim, de destaque?

(01:21:26) P1 - Em locais mesmo, locais que vocês nunca imaginaram que iriam comercializar e hoje comercializam.

R1 - Olha, quando, nessa caminhada aqui dentro da cooperativa, que é um pouco essa caminhada minha como técnico, como extensionista há dez anos atrás, doze anos que foi no ano de 2010, os produtores de cacau da região não vendiam cacau para indústria, e quem comprava esse cacau não emitia nota fiscal, então tinha um histórico de plantio que era feito pela Ceplac quando ela distribuía sementes, mas não tinha um registro que Repartimento produzia cacau, era algo que não tinha nenhum dado fiscal que comprovasse isso. Então, naquele momento, quando a gente chegava, o produtor falava: “Não”. Quando a gente cobrava alguma coisa do governo, principalmente do estado, ele falava: “Ah, não, beleza, vocês estão dizendo que produzem cacau, mas cadê a comprovação que vocês vendem cacau?”. Então, naquele momento, o que parecia ser urgente era começar a ter esse contato com a indústria que comprasse, ou seja, tirar o atravessador desse meio, para poder agregar mais valor para produção que fica com o que o produtor vai vender. A gente conseguiu fazer isso, acho que 2016, com a Coopercau. Depois que a Coopercau começou a fazer essa comercialização, esse contato com a indústria, outros compradores começaram a fazer cadastro. Aí para vender na indústria, precisa emitir nota fiscal, ou seja, já começa a ter registro, começa a ter ali as retenções de fiscal que precisa para ajudar até o próprio município. E como a produção foi, digamos assim, se tornando… aparecendo esses volumes, uma das moageiras se instalou no município, porém essa estratégia do cacau commodity, é uma estratégia que, assim, ela é o que comercializa o maior volume de cacau do produtor, mas não é a que melhor remunera, e aí a gente pensava: “Não, temos que melhorar a qualidade do cacau”. E as moageiras falavam: “Ah, não, a gente não paga, porque o cacau do Pará não tem qualidade para fazer chocolate". E aí por muito tempo, até nós técnicos ficávamos pensando nisso, aí um outro profissional que é técnico também, que foi secretário de agricultura, ele começou: "Não, rapaz, a gente tem que experimentar”. E aí, ele fez o contato com um chef chocolateiro, que é Bruno Lasevitch de São Paulo, ele topou de receber algumas amostras desse cacau, para ver se dava chocolate. Porque a moageira falava: "Ah, não, o cacau de vocês não é bom”. Porque é interessante para ela transmitir essa mensagem de que não é bom, então por isso justifica pagar mais barato. E aí, nessas primeiras amostras, teve, assim, dificuldade de encontrar algum produtor que quisesse fazer esse primeiro teste, porque precisava melhorar a estrutura, fazer as coxas, ter um pouco mais de trabalho ali no cacau e teve um produtor que fez isso e testou, e a amêndoa deu muito boa, assim, deu um chocolate que foi destaque, né? E aí a partir desse momento, desse primeiro que teve coragem, vários outros produtores falaram: “Ah, se fulano fez, eu também quero fazer”. E aí, quando foi no ano passado, teve as amostras de cacau do Seu João Evangelista, um produtor que está a 150 quilômetros da sede do município, um produtor bem pacato, bem simples, ele teve as suas amêndoas classificadas como segundo lugar entre as cinquenta melhores do mundo, então é um destaque que, assim, a gente acreditava que era bom, mas que não era tão bom. Então hoje, assim, alguns chocolateiros que começaram a visitar a região, falaram: “Olha, tem muito cacau bom no Brasil, mas os melhores hoje estão em Novo Repartimento”. Que a gente está trabalhando no nome, que é Terruá Tuerê. Tuerê é o um assentamento da reforma agrária que contempla aproximadamente três mil famílias e nesse Tuerê, digamos assim, a gente tem um perfil de solo que é bom para o cacau, os agricultores familiares, assim, foram orientados ao longo desses anos pela Ceplac, da necessidade de plantar material que tenha uma origem, que tenha um conhecimento genético e Novo Repartimento se diferenciou de alguns municípios, que a gente sempre… tanto a Ceplac, quanto todos os técnicos do município falando: “Olha, o melhor cacau para plantar é o cacau híbrido, né?”, que é um cacau sem muitas alterações, e a gente acredita que essa qualidade genética do cacau, atrelado ao clima, a questão do solo, digamos, que tem feito essa diferença na qualidade das amêndoas, qualidade de cacau fino. E quando tem um destaque desse, aparecem outros tipos de compradores, que não só as moageiras, e aí isso que é, acho um ponto importante e de conversão, para esses produtores na cooperativa. Então no último ano, a gente tem uma procura maior de produtores querendo se cooperar, produtores querem entender um pouco mais sobre cooperativismo, porque quando eles vão se comercializar também individualizado, é muito complicado, além de adquirir insumos ser um problema para quem está sozinho, para quem também quer comercializar um produto de qualidade, os compradores falavam: “Ah, beleza, você vai vender, mas você está sendo organizado por quem? Quem é o seu ponto de apoio?”, porque é muito difícil fazer essa logística, contato com o possível comprador, depois fazer essa parte fiscal, despachar esse cacau via transportadora. Então acaba que a cooperativa ela atua nesse seguimento, o produtor fica com essa parte de produção de cacau de qualidade, a cooperativa se responsabiliza para fazer esse contato com o possível comprador, articular essa parte fiscal, que é a emissão de nota, recolhimento de tributos e faz o preparo do produto, que a gente faz o peneiramento, adequação da sacaria, conforme a necessidade do cliente.

(01:28:13) P1 - E você pessoalmente, você utiliza o cacau no seu dia a dia?

R1 - Sim, sim. A gente ficou muito tempo, como produtor de cacau, mas a gente não experimentava e não tinha o hábito de consumi-lo diariamente, e aí esse contato com os chocolateiros, como assim, a gente melhorou a qualidade do cacau, ele deixou de ser adstringente, deixou de ter uma trava com o sabor ruim, para ter um sabor bem próximo do chocolate cem por cento, né? Então lá na minha casa mesmo, o meu filho gosta do cacau torrado, do cacau caramelizado, ele gosta do chocolate artesanal, só gosta dos chocolates caros. Esses chocolates de prateleira de supermercado, ele já não gosta mais. E as pessoas tanto na cidade, quanto os próprios produtores começam a experimentar o cacau, o natural, que no primeiro momento é um pouco estranho. A gente cresceu acostumado com as coisas açucaradas, então quando a gente consome alguma coisa mais amarga, acha um pouco estranho, mas a partir do momento que a gente faz esse exercício de experimentar o cacau, a gente começa a gostar dele e faz esse consumo, então, em forma de amêndoas puras ou caramelizadas, forma de nibs, assim, para poder misturar com o açaí. Nós estamos em uma região do Pará que as pessoas gostam do açaí com misturas, porque tem uma parte do estado que é o açaí puro, aqui já é o açaí com mistura, invés de colocar uma farinha, uma granola, coloca um nibs de cacau e isso tem, assim, aumentado a procura, e mais pessoas experimentando, e como assim, é amêndoas de muita qualidade acaba facilitando, essa criação desse novo hábito, de consumir as amêndoas, então como ela é termogênica, digamos assim, fonte de energia, funciona como se fosse um guaraná em forma de amêndoa, um enérgico assim natural que é muito bom, isso serve também para poder amenizar aquela ansiedade, quando você está muito tenso, então vai lá e consome umas cinco amêndoas de cacau e já melhora isso.


(01:30:34) P1 - E por que o açaí é dividido assim no estado?

R1 - É questão cultural mesmo. Por exemplo, eu estou no Sul, Sudeste do estado do Pará, e o Sudeste e o Sul do estado do Pará ele foi colonizado, ou seja, os moradores são dessa mistura de costumes, então é maranhense, mineiro, goiano, e aí esse pessoal não tinha o hábito de consumir açaí. O açaí ele tem esse gosto de terra para quem para quem não tem esse hábito, e o pessoal do Nordeste paraense é o pessoal que são, digamos, os mais nativos da região, que é essa mistura do caboclo com indígena e que assim, já são várias gerações com esse hábito de consumir o açaí, e como o açúcar é um produto elaborado industrializado, que às vezes tem dificuldade de chegar nessas comunidades, as pessoas criaram o hábito de consumir o açaí sem mistura, então é o açaí puro, às vezes com peixe, ou com a farinha, o pessoal do Nordeste do estado tem o hábito de consumir arroz, ou em pequenas quantidades, e já nós do Sul e Sudeste do estado já gostamos mais de arroz, feijão, também de carne, e o açaí também, só que o açaí a gente gosta dele com essa mistura, a mistura que eu falo é, às vezes com açúcar, um ou outro gosta do açaí com sal, mas também gosta do açaí com farinha, com granola, eu particularmente gosto com todas as misturas possíveis, de frutas, eu gosto bastante de misturar esses sabores, de apreciar vários sabores ao mesmo tempo, mas assim, o estado do Pará por ser muito grande, a gente costuma dizer que, são três estados com costumes diferentes, então se a gente vai para o oeste do estado, já muda um pouco esse cenário, e só vivendo mesmo para poder entender. Eu tenho alguns colegas que são paraenses da baixada, e eles achavam que todo estado era o mesmo costume, a gente passou um tempo junto, falou: “Oh, mas vocês… o peixe de vocês é diferente, o sabor é diferente”, até o açaí por estar em regiões diferentes muda também um pouco o sabor, para quem é mais exigente consegue detectar essa diferença de sabor e textura.


(01:32:58) P1 - E o cacau caramelizado, né?

R1- Isso.

(1:33:00) P1 - Vocês fazem em casa?

R1 - A maior parte faz em casa mesmo, é bem simples. Então, a gente torra o cacau, eu na minha casa torro o cacau no forno a lenha, e aí coloca ali um tempo, e eu só faço isso com o cacau bom, com cacau realmente de qualidade, o cacau, esse cacau commodity, ele não é muito bom para fazer isso. A gente torra, mas, pode torrar no forno elétrico, no forno a gás, no forno a lenha, até em uma frigideira em casa, e torrou ali, você coloca… aí pode colocar açúcar mascavo, açúcar demerara, açúcar refinado, e faz aquela calda, você coloca as amêndoas, ela fica com essa coberturazinha, e aí dá uma mistura do sabor amargo do cacau com o doce do açúcar, e isso, essa mistura de sabores é o que faz com que agrade mais o paladar de mais pessoas, né? Eu gosto dele puro, mas ele caramelizado é muito bom também. Meu filho de cinco anos adora o cacau caramelizado, então ele fala: “Ah pai, coloca aquela coberturazinha”.


(01:34:15) P1 - Desde que você chegou em Novo Repartimento, a cidade mudou bastante assim?

R1 - Ah, mudou bastante. E aí, assim, só mudando um pouco, o cacau, além dessa parte de amêndoas a gente consome ele não… a polpa, então vai lá no pé, tira o fruto, ele é muito saboroso, dá para consumir in natura, assim, a gente não engole o caroço, só chupa a polpazinha, mas também dá para extrair a polpa e fazer um suco, uma vitamina, que é muito gostoso. Então são coisas do cacau, né? E aí falando um pouco dessa mudança, da cidade, o próprio cacau, ele é um uma das culturas responsáveis pela mudança da infraestrutura do município, então Repartimento foi criado a partir de um acampamento de uma empresa que veio para poder construir, digamos, o trecho da Transamazônica, que a gente chama de Repartimento Velho que era uma vila, e esta vila, ela teve que ser mudada em função do alagamento para o lago da hidrelétrica de Tucuruí, e essa vila foi, digamos, que a gente chama de realocado, é um termo que às vezes você não vai achar aí na escrita padrão, né? E aí nesse “realocamento” da cidade, a empresa do governo na época a Eletronorte, ela construiu três bairros, onde é a saída da cooperativa é onde fica próximo de um desses bairros, que foram construídas as casas padrão, casa de madeira, com banheiro interno, coberto de telha Brasilit, e que ainda na época era Vila Novo Repartimento, e aí, acho que 24, 25 anos mais ou menos, a cidade foi emancipada, então muito pequena, não contava ainda com estruturas básicas de cartório, bancos, e aos poucos foi se implantando, então a economia da região começou a se fortalecer, hoje a predominância pecuária é o gado, cacau e a terceira é [a] cultura, digamos assim, mais expressiva, é o cultivo do açaí. Nem tanto o cultivo, mas a extração do açaí extrativista. Então a gente tem uma parte do município, que é onde eu moro, que a produção natural de açaí, ela é bem significativa, então acaba que na época do açaí, é o tempo das pessoas, é o tempo de vaca gorda, então um pouco de açaí dá uma renda boa. E aí a soma dessas culturas vem melhorando o comércio local e fazendo com que a própria prefeitura busque melhorar a infraestrutura do município. Então a gente tinha uma cidade que a entrada da cidade era muito feia, assim, bem apertada, com muitos comércios bem improvisados na beira da estrada, e nos últimos cinco anos os gestores da Passo 3 Gestão vem mudando, e assim deu uma repaginada na cara da cidade. Então tinham muitas ruas sem asfalto, e a gente está na Amazônia, solo vermelho, bastante poeira, então hoje a cidade, a maior parte já é contemplada com essa parte de asfalto. [Tem] parte da Transamazônica que corta a cidade e ainda não é asfaltada, então é um poeirão danado, um poeirão vermelho, que é complicado. Então tem mudado bastante, eu acho que a infraestrutura médica, da Medicina não é… precisa melhorar muita coisa, mas que o básico a gente já tem, então ainda falta algumas questões da parte cultural, a gente não tem cinema, não tem estádio de futebol, mas assim, dá para ir levando.

(01:38:20) P1 - Você comentou, da polpa do cacau, o sabor é parecido com a amêndoa ou tem alguma diferença?

R1 - Não, totalmente diferente. O sabor da polpa de cacau lembra um pouco a polpa de graviola, mas assim, é uma comparação, a cor é bem parecida, a textura é bem parecida, muda um pouco o sabor. Então o cacau ele é da mesma família do cupuaçu, só que o cupuaçu ele tem um sabor, digamos assim, que é único dele, então o cacau ele tem um sabor mais suave, lembra muito pouco, assim, é parecido com a graviola, mas assim, puxando um pouco com esse sabor mais tropical mesmo da Amazônia, é muito gostosa. E da polpa do cacau, tem um processo que a gente faz para extrair o mel do cacau, que é um processo em que eu não vou tirar polpa em si, mas eu vou tirar só um líquido que escorre quando eu deixo essas amêndoas de cacau ainda frescas em algum local, que é esse mel do cacau que no processo natural ia fermentar a amêndoa, e aí se extrai esse mel, dá para consumir ele gelado, ele parece o mel de abelha, só que sem o processamento da abelha, e o pessoal usa muito para fazer o licor de cacau, então pega esse mel faz o cozimento, adiciona ali uma bebida e fica muito gostoso! Então são várias alternativas aí que dá para fazer esse consumo de cacau. Algumas famílias aqui no município tem buscado fazer essa verticalização, da própria propriedade ao invés de produzir amêndoa e vender para alguém, eles pegam essa amêndoa de qualidade, que já pegaram o jeito de fazer e começam a fazer ali vários subprodutos, então de forma bem artesanal, o licor de cacau, o próprio Mel do cacau para vender, faz umas barrinhas como se fosse uma… uns docinhos, só que bem crocante, do cacau misturado com castanha, que é a castanha do Pará, aqui também tem abundância, faz o chocolate em pó, faz um ou o outro que é intermediário, que a gente fala como se fosse um Nescau, um achocolatado, e assim, são muitas opções que dá para fazer. E aí esse consumo do cacau ele é interessante, porque agrega muito valor para a produção da família e é mais uma atividade, que congrega todos os gêneros da família, então envolve muitas… porque a gente está em uma comunidade muito machista, então geralmente é o homem e os filhos homens que tocam as lavouras, e tem pouca participação feminina nessa questão da lavoura, quando vai é mais para ajudar, né? Mas quando chega nessa parte de verticalização da produção, aí vem o destaque feminino, que as mulheres são mais cuidadosas, assim, são mais atenciosas para fazer e mais pacientes, para fazer esses produtos, e geralmente é a parte que remunera melhor, essa parte do beneficiamento na propriedade e tem assim um consumo já interessante no próprio município, e de pessoas que passam e: "Ah, não. Eu quero levar uma lembrancinha daqui eu quero levar um produto desse para o pessoal que está lá em São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília". E isso acaba sendo interessante do ponto de vista econômico, das famílias. Eu costumo falar: “Olha, daqui mais uns dez anos, Repartimento [e o] projeto do assentamento Tuerê vai ser um ponto turístico por causa dessa cultura do cacau”. O cacau está se destacando, o cacau de qualidade, a gente já vê produtoras de outros municípios chega para gente e fala assim: “Ei, qual é o segredo de vocês para poder ter essas amêndoas de qualidade? Vocês fazem alguma coisa diferente? Conta aí para gente!”. A gente fala: “Não, a gente não faz nada assim de diferente”. Só que as pessoas acreditam, e aí vira e mexe as pessoas desembarcam na minha propriedade e começam a especular para ver se tem alguma coisa, um Segredo Industrial aí para poder ter essa qualidade, né?

(01:42:49) P1 - E além do trabalho, você tem alguma coisa que gosta de fazer no seu tempo livre?

R1 - Ah, eu gosto muito de pescar. Confesso que ultimamente não tenho tirado o tempo para isso, mas eu acho que é uma coisa que eu gosto. A gente tem bastante rios aqui na região, gosto de acampar também, agora como eu já moro na roça, eu já estou acampando aqui permanentemente. Mas eu acho muito bom acampar, principalmente próximo ao local que tem bastante contato com a natureza, acampar, eu acho bom!

(01:43:30) P1 - Aí você acampa sozinho ou com a sua família?

R1 - Antigamente, eu acampava só, agora eu tô tentando convencer os filhos a acampar comigo, tem um que fala: “Ah pai, eu quero ir”. Mas quando começa a vir o escuro da noite, aí ele: “Oh pai, vamos voltar para casa que eu tenho medo”. Na minha propriedade é comum aparecer onça, onça pintada, onça vermelha, mas aí acaba não mexendo com a gente não, elas estão ali só dando uma ‘passadazinha’ de leve.

(01:44:04) E é comum onça assim na Amazônia?

R1 - É assim na minha propriedade, porque eu moro em frente uma reserva indígena, e tem bastante mata ainda da floresta nativa na propriedade, então eu moro, digamos assim, próximo de um 'corregozinho', então é só atravessar a estrada, já é a reserva indígena, e aí como tem esse córrego, as caças da onça, que a vaca, a cotia, o tatu vem para beber água, nesse 'corregozinho' e a onça vem atrás deles, e aí ela aproveita, às vezes, para explorar o ambiente que tá no entorno, mas assim, na minha região não é comum as onças estarem atacando as criações não, tem regiões dentro do município que tem muita essa questão de predar o gado, mas aí o pessoal vai lá e acaba dando um final na bichinha. Na minha propriedade é comum, por exemplo, a gente ver cotia, tatu, vaca, tem veado, anta, dentro da propriedade, alguns até vão no terreiro de casa, então os cachorros lá são meio que amigos desses bichinhos, então quando a gente não está por perto, eles vão lá e são bem amigos, aí quando a gente sai perto, eles dizem que estão vigiando a casa, aí dá um latido, bota os bichinhos para correr ali, só para dar uma enrolada na gente.

(01:45:32) P1 - E a pesca? Você sempre gostou de pescar?

R1 - Sim, sim. Como eu falei lá no início, onde é a propriedade que eu morei os cinco primeiros anos da minha vida, tinha um corregozinho do lado, então minha mãe costumava pescar. E aí na minha infância quando eu ia para casa dos tios, também gostava de pescar nas grutinhas, e acabou, acho que a gente depois que pesca vai gostar, eu acho que para vida inteira, né? Apesar de que não tenho tirado, assim, muito tempo para isso, mas é uma atividade boa, porque é pesca, dentro do rio, envolve ali você andar de canoa, rabetas ou pequenas embarcações, né?

(01:46:21) P1 - Aproveitando que você falou da sua mãe, faz muito tempo que ela faleceu?

R1 - Aproximadamente uns dez anos.

(01:46:31) P1 - E como é que foi quando ela faleceu, assim, você sentiu muito impacto?

R1 - Ah, difícil para toda a família. Então como, assim, a figura da família principal tinha sido assumida por ela, então perder ela muito nova é um choque muito grande, e aí às vezes a gente sente assim, meio que uma impotência de não conseguir fazer nada para mudar esse cenário.

(01:47:03) P1 - A gente tá caminhando agora para as perguntas finais, aí eu gostaria de saber quais são as coisas mais importantes para você hoje?

R1 - Acho que hoje, a família acho que está numa escala de importância muito grande, a gente conseguir responder esses anseios da família, dar uma boa, uma educação de qualidade para os filhos, conseguir oportunizar para eles o melhor que a gente puder para que eles possam fazer as melhores escolhas, para que sigam o caminho dali que eles tenham vontade, com a melhor das condições possíveis, é claro que a gente tá longe de dar tudo que a gente gostaria de dar para os filhos, mas esse é um dos anseios. E uma outra coisa que eu levo para mim, que um dos motivos de eu continuar insistindo em ser extensionista, é que assim, aquilo que eu aprendi, poder compartilhar com outras pessoas. Então, na minha propriedade é um local onde eu atuo muito pouco como extensionista rural, em função que atuo mais no cacau e o cacau está para outra região do município. Mas eu gosto de compartilhar com os meus vizinhos, eu gosto de produzir mudas de essências florestais, de frutíferas e os vizinhos quando sabem que eu estou por ali, eles costumam aparecer para muitas vezes trocar uma ideia, às vezes para saber se tem alguma novidade, e eu gosto muito disso, eu acho que o mundo precisa de mais pessoas que gostem dessa causa de desenvolver a parte econômica da região, mas também pensando nessa questão ambiental, social, principalmente para agricultura familiar, eu sei que os outros tipos de modelos de agricultura também é importante, mas o modelo de agricultura que tem menos acesso à assistência, à informação, e até infraestrutura é o modelo de agricultura familiar, que é o, digamos assim, que tem mais demandas, e não tem assim, poder aquisitivo para falar: “Não, eu vou contratar um agrônomo, vou contratar um técnico para fazer o trabalho que eu preciso e a orientação que eu preciso no meu imóvel”. Então acho que são as duas coisas que são importantes, né? Aí quando eu falo em família, envolve essa questão religiosa, que é o que muitas vezes a gente precisa para poder fazer com que a gente coloque os pés no chão e que no momento que a gente acha que não tem solução para o problema, que também vem aquela mensagem ali: "Isso vai passar, se tá bom, pode não vai ficar bom para sempre, mas se está ruim, também não vai ficar ruim para sempre”. Acho que são esses os objetivos de vida, até.

(01:50:06) P1 - E qual é o seu maior sonho?

R1 - Hoje é ver a cooperativa em que eu tenho trabalhado, e que eu faço parte dela, se destacando. Então eu costumo falar que o Ney hoje é o extensionista, mas também é vice-presidente. Vai chegar um momento que eu não vou ter pique para tocar essas atividades, mas eu como produtor e como cooperado, eu quero ver essa cooperativa crescer e sendo forte! Nós estamos em uma região em que é muito difícil essa compreensão do cooperativismo, para você ter ideia, Repartimento já são mais de cinco mil propriedades rurais, e já teve para mais de cinquenta cooperativas, para mais de duzentas associações no município, e hoje só tem uma cooperativa que reúne aí. Hoje a gente tem 28 cooperados, tem mais 35 que estão em fase de, digamos, de preparo para poder se tornar cooperados. Então são cinco mil famílias de agricultores familiares, e a gente hoje não contempla um por cento desses agricultores do município, em função de que eles tiveram algumas experiências negativas com outras cooperativas, com associações e isso faz com que eles tenham receios, desse modelo de organização, então tem muitas dúvidas, muitos medos de entrar, então acho que é um dos desafios meus como extensionista, de conseguir persistir, e digamos, melhorar aquilo que precisa ser melhorado para que o modelo de cooperativismo na região se torne mais atrativos para as famílias, eu falo: “Olha, eu sou extensionista, mas eu como um produtor, eu não quero ter a minha produção sendo comercializada pelo atravessador, eu não quero estar como produtor na mão de uma moageira só”. Aí eu quero buscar um meio que seja melhor para outras famílias também e que a gente junto consiga unir forças, então esse é um dos objetivos até de vida, até falo para minha esposa. Minha esposa está finalizando a faculdade, primeiro foi eu agora ela está finalizando, da família dela é uma das primeiras, também que tá conseguindo ter graduação, e é um desafio, né? Ela, assim, talvez ela vai entender um pouco melhor do que eu, porque ela está fazendo serviço social, então acho que são desafios que acabam nos movendo a querer fazer o melhor dia após dia, e esse é o legado eu quero deixar para os meus filhos.

(01:52:59) P1 - Eu ia até te perguntar agora qual o legado que você acha que vai deixar para as próximas gerações.

R1 - Eu acho que é essa de… assim, a gente tem visitado outros cooperativos que começaram muito pequenos, e que hoje estão no patamar de que servem de inspiração para outras, tipo para nós, e às vezes a gente enxerga grandes cooperativas e acha que foi grande desde o início, e no início foi muito desafio. Então tem momentos que a gente trabalha, faz um esforço em prol de um objetivo, às vezes acontece da forma que a gente gostaria, às vezes faz parte do processo, que às vezes o modo que a gente enxerga não é o melhor, e precisa ter um refino, a gente tem que aprender outros métodos de abordagens, outros métodos de trabalho, melhorar a transparência, aperfeiçoar a gestão, e isso é o que me faz cada dia melhorar como produtor, melhorar a gestão da minha propriedade, juntamente com a minha família e tentar buscar essa melhoria dentro da cooperativa, para que essa cooperativa que hoje não é tão grande, não… assim, é bem pequena em relação às outras, assim tem muitos desafios, mas que esses desafios eles não sejam o motivo de desistência, seja o motivo da persistência até, então precisa melhorar e isso tem que nos mover à buscar essa melhoria continuamente.

(01:54:50) P1 - Tem alguma coisa que eu não perguntei e você gostaria de acrescentar?

R1 - Não, eu acho que está bem completo. Acho que eu até falei demais.

(01:55:00) P1 - Por fim, o que você achou de contar um pouco da sua história pra gente?

R1 - Acho que no primeiro momento, você fez o convite lá, aí eu tive a curiosidade de fazer uma busca rápida, para entender o que era. Então as pessoas têm muito receio às vezes de falar um pouco de si, que não é fácil, mas assim, esse exercício de a gente falar, às vezes serve de inspiração para outras pessoas, que às vezes a gente nem imagina, e isso também nos faz aumentar os nossos contatos, nosso network, e isso nos faz também ter contato com outros tipos de visão, visão diferente do que aquelas que a gente costuma ter, e isso faz bem para a gente.

(01:55:54) P1 - Tenho certeza que a sua história vai inspirar outras pessoas também! Então Ney, muito obrigada! Agradeço em meu nome e do Museu da Pessoa.