Museu da Pessoa

A carta de despedida

autoria: Museu da Pessoa personagem: Octavio de Oliveira

Memória Oral do Idoso
Depoimento de Octavio de Oliveira
Entrevistado por Antônia
São Paulo, 15 de outubro de 1992
Realização Museu da Pessoa
Entrevista MOI_HV027
Transcrito por: Fernanda Regina

P/1 - Senhor Octavio, primeiro queria que você se apresentasse, falasse o seu nome, o nome dos seus pais, quando o senhor nasceu, onde nasceu...

R - Identificação completa.

P/1 - É.

R - Bem, eu sou Octavio de Oliveira, filho de Benedito de Oliveira e Roquélia Gonçalves. Nascido em Botucatu, em 1 de maio de 1914.

P/1 - Agora queria que o senhor começasse contando sobre a sua infância. Como é que foi? Onde você estudou?

R - Deixei Botucatu há uns 8 anos quando já me encontrava no segundo ano da escola primária. Segui meus pais até Santo Anastácio, região inóspita ainda naquela época, em 1922 pra 1923. E de lá voltamos, fixamos residência em Laranjal, também por um curto espaço de tempo. Tive oportunidade de cursar o terceiro ano em Laranjal. De Laranjal partimos para Sorocaba no ano seguinte, e de Sorocaba eu vim sozinho para casa dos meus tios no ano de 1926, onde entrei na escola completando 4 anos e após o 4º ano na mesma escola, onde funcionava a escola de comércio, eu fiz o ginásio e consequentemente mais três anos de escola e Comércio. Entrei na Estrada de Ferro Sorocabana em 27 de agosto de 1927. Aproveitava o tempo da noite estudando e de dia trabalhando. E aí fiquei na região da Estrada de Ferro Sorocabana até 1968, quando me aposentei. Porém, no espaço de 1927 a 1968 eu passei por diversos cargos. Primeiro nas oficinas de Sorocaba, aprendiz de torneiro e naturalmente outras máquinas operatrizes. Mas como meu pai já era maquinista, a minha aptidão mesmo era ser maquinista. E em 1930, eu passei para o serviço de máquina, onde fiquei até o ano de 1968, fazendo os cursos necessários, subindo de cargo até o ápice da carreira, que é inspetor de condução, onde me aposentei. Hoje, faz 24 anos [que sou] aposentado, naturalmente, não deixei também a minha Ferrovia, os meus ferroviários, porque quando em atividade, fui um dos líderes de movimentos para melhores condições de vida, continuei como aposentado a frente de mais duas entidades que é a Associação de Ferroviária do Estado de São Paulo e da Federação das Associações de Aposentados e Pensionistas da Estrada de Ferro do estado de São Paulo, onde estou até hoje.

P/1 - O seu pai era Ferroviário, né? Então, quando o senhor era pequeno devia existir todo um universo em relação ao trem...

R - Sim, é a razão pela qual eu também optei... Optei não, já era meu feeling esse.

P/1 - Você tem algumas lembranças de quando era pequeno?

R – Tenho algumas lembranças, porque o trecho que eu me referi que ainda era inóspito, que seria a chegada até Santo Anastácio, naquele tempo o depósito que fazia um intermediário era em Paraguaçu Paulista, são umas locomotivas pequenas que naquela época ficavam com 2 ou 3 carros de passageiro e alguns de carga, e que de Santo Anastácio até Porto Epitácio trazia muito muito peixe, né, gelado? Tudo... Então, esse trecho eu me recordo muito bem, porque se a terra era pobre e o serviço era árduo, a Campina era rica em alimentos, ou seja, em frutos, a começar de tomate e outras frutas que a gente comia no tempo de criança. Então, isso marcou muito a minha infância.

P/1 – E de brincadeiras cotidianas, o que o senhor lembra?
R - Não eram muitas brincadeiras cotidianas, porque naquela época não tinha carrinho, papai Noel ficava longe de Santo Anastácio, não tinha papai Noel lá (risos), era ruim de chegar.

P/1 - E do que o senhor brincava?

R - Não havia muita brincadeira. Brincadeira era cuidar da horta, cortar capim para os animais e o outro tempinho ia para escola.

P/1 - Tá bom... Aí o senhor podia contar um pouco de como você começou a decidir que ia trabalhar na ferrovia e como é que era realmente naquela época o trabalho.

R - Bem, de pronto, assim, quando eu vim para São Paulo, não era para ferrovia, mas sim para trabalhar e estudar, tanto que eu optei pela marcenaria, naquele tempo marcenaria fina chamava-se marchetaria e era o que eu mais gostava. E me dei muito bem porque [com] as ferramentas eu tive uma especialidade própria. Porque existe formões com corte quase como uma navalha e dentre todos que teve melhoras aptidão para dar essa forma a ferramenta fui eu. Então, eu tanto marcava tombo lá, fazia tombo, que hoje se chama (?), essa coisa toda. Tem uma maquininha que fica uma mão para passar graxa no tipo e com outro bota rapidamente aquela pedrinha para marcar. Um determinado momento, um dia, depois de estar muito prático nisso, eu em vez de tirar o dedo junto com a pedrinha, não tirei e está até hoje essa falange com a falta de pedaço. Tá vendo? Isto é a máquina de marcar tombo. Bem, mas aí a oficina mudou-se e eu entrei na Estrada de Ferro, e dali fui para Barra Funda. E quando deu certo, eu entrei no serviço de locomotiva, onde tive toda minha vida dedicada a esse serviço.

P/1 - O senhor pegou o auge da ferrovia, né? Em uma época em que o Brasil era servido por ferrovias...

R - Sem dúvidas.

P/1 - Como é que era?

R - Peguei o tempo auge da ferrovia, o percursor de todo desenvolvimento do Brasil foi a ferrovia. Infelizmente, hoje está abandonado porque o capital cuida mais da Rodovia, mas eu acredito que hoje com o movimento ecológico, não tardará muito até as ferrovias voltarem ao seu lugar, que foi sempre o percursor, o transporte mais barato e mais garantido.

P/1 - E como é que era a vida na ferrovia?

R - As vidas na ferrovia podiam se resumir quase como uma família porque tanto o trabalhador comum, o portador da estação, o faxineiro e, subindo toda a hierarquia, era uma família só. Hoje não há um entendimento, não há um pensamento, não há um consenso nem para reivindicar os seus direitos, essa que é a verdade. Foi tudo pulverizado. Não só a vida social, como a vida profissional, tudo pulverizada.

P/1 - E quando houve essa transformação?

R - Essa transformação aconteceu única e exclusivamente na época de 1950 para cá. Portanto, não é tão remoto.

P/1 - O que foi acontecendo?

R - Foi acontecendo a pavimentação, ora. Sabendo que a ferrovia tem o seu leito carroçável e um dispêndio de 33% da sua renda, enquanto que as rodovias eram modernas, com subidas e descidas, nunca superior a um, um e meio por cento, curva de 300, 400m de raio, enquanto que as ferrovias davam volta num cupim fazendo 70, 80m, nunca poderia competir com as rodovias. Essa era a dificuldade das ferrovias. Deixou-se de aplicar nas ferrovias, para aplicar nas rodovias. E porque não dizer [também] aerovias? Extinguindo também o transporte fluvial, que tanto serviu a esse grande Brasil.

P/1 - E na época que essas transformações estavam acontecendo, vocês que trabalhavam lá dentro das ferrovias, o que vocês sentiam? Você sentiu de imediato essas transformações?

R - Foi realmente sentido logo que havia uma competição até desonesta, por que não dizer? Porque enquanto o governo investia nas rodovias, deixava faltar para as ferrovias e ela foram se degradando, degradando... E hoje é do conhecimento de todos que a ferrovia não tem condições de viver. Mas com um movimento Ecológico, ambientalista e tal... Eu acredito que as ferrovias voltarão, porque é um meio que não polui, o transporte Ferroviário.

P/1 - Naquela época era a carvão?

R - Era, naquela época era o carvão. O carvão Cardiff, que vinha da Inglaterra. E na Segunda Grande Guerra Mundial, faltou esse carvão, então houve a devastação das Matas do Brasil, para poder fazer da lenha o combustível que foi usado nas locomotivas.

P/1 - E por que vinha da Inglaterra [o carvão]? Por que antes da guerra vinha da Inglaterra?

R - Porque a Inglaterra e a Polônia tinham as minas de carvão Cardiff. Tentou-se aproveitar o carvão brasileiro, mas é de uma pobreza de caloria, menor do que lenha molhada. É só poeira. Havia sim um pequeno reduto no Paraná chamado Cambuí, que ainda dava um carvão satisfatório, não bom, mas satisfatório para a queima. Então as Ferrovias foram se degradando, degradando... E hoje só se fala em caminhões, carros, aviões... Nos transportes mais rápidos, que não deixam de ser também bastante perigosos, consumidores de vida, né? E isso não entra lá no meio da discussão.
P/1 - Eu queria que o senhor falasse um pouco sobre a história do seu casamento. Como é que você conheceu sua esposa?

R – Ah, então vocês me trazem uma lembrança muito gostosa. A minha esposa eu conheci ligeiramente. Mas de repente vendo hoje, amanhã e depois, e nas festas juninas aqui na casa verde, como ela era muito católica, da igreja, tudo... Então ela também tinha uma barraca onde ela vendia aqueles documentozinhos que se tirar ganha, essa coisa toda... E eu fui me aproximando, ela não foi muito exigente não, eu não gastei muito, mas dali para frente, comecei persegui-la (risos). O duro era encontra-la, estava sempre rodeada de amigas e a mãe junto. Mas um dia eu estava disposto a conversar com ela, como ela trabalhava numa loja de ferragens, desci a Alameda Olga, onde eu também morava, cuja situação das ruas também não me permitia muita desenvoltura, mas eu a cerquei, mudei o caminho dela e conversei, e ela passou a gostar de mim. E, naturalmente, esse namoro durou mais ou menos uns quatro anos. Eu tenho uma carta aqui que guardo comigo [até hoje] para você ter uma ideia de quanto eu idolatro a minha mulher. Hoje ela está nos Estados Unidos.
E hoje ela está nos Estados Unidos, porque eu tenho uma filha, que está no Estados Unidos, uma neta que casou e que também está lá. Eu estive lá alguns meses e ela veio, mas voltou também, não se deu bem aqui com esse barulho, com essa poluição, com essa violência. Então, eu tenho um filho - que é vice-presidente da Renner e diretor do (?), ocupando dois cargos, com muito trabalho - ele ia a Tampa, a capital da Flórida. Então, como a mãe queria voltar logo no segundo, terceiro mês, ele a deixou na casa da filha, que deverá voltar ainda pouco. Mas esse namoro me custou uma vida de 52 anos casado. Eu falei, mas não mostrei [a carta] não fica bem, não é mesmo?.

P/1 - É uma carta que o senhor escreveu?

R - Ela escreveu para mim porque houve uma pequena desavença. Sabe, namorado, né? Mas véspera de casamento, já. Então para que você tenha uma ideia de como ela gostava de mim, só porque eu fui levar uma moça que era amiga da casa, quase que desmancha o casamento. Está aqui, esta carta tem 53 anos. Em véspera de casamento, ela mandou uma carta muito chorosa, que não esqueceria de mim, que sabia perfeitamente que eu também não esqueceria dela... Essas coisas de namorados, apenas 2 meses antes do casamento. E o que tem de extraordinário é que ela revoltada quando eu cheguei até a casa dela junto com os pais,

pediu que eu esperasse um pouco e foi lá dentro da casa dela, pegou anéis, uma correntinha com Santinho de ouro e voltou e disse “Então está terminado, você tem muitas moças que gostam de você e eu não quero atrapalhar o seu caminho” e quando ela me deu assim, eu passei a mão no documento, no rosarinho, aneis e tudo... Embolei, fiz um gesto de que atirei, porque de fronte tinha uma área com gramado, fiz que joguei e guardei no bolso. Ela correu para a casa dela, subiu no sobrado onde morava, chamou os pais e amanheceram ali procurando onde eu teria feito o gesto de jogar (risos). Mas, de qualquer maneira, isso tudo resultou no nascimento de quatro filhos e, hoje, sete netos e 2 bisnetos.

P/1 - Mas como é que fizeram as pazes?

R - Ah sim... Eu tinha sete irmãs. E no dia seguinte, de manhã, lá estava ela conversando com as minhas irmãs (risos). Foi fácil a aproximação. E ela gostava muito de minha mãe, então quando eu cheguei de tarde a primeira conversa foi essa “Como você faz assim, você deixa sua noiva aqui, vai acompanhar a moça...”, e eu falei “Mas foi porque pediram para mim, vocês mesmas me pediram para acompanha-la, não foi porque que eu quis”. E sempre é bom também uma conversinha, não vai tirar pedaço de ninguém e dali para a frente, eu não pude fugir. Ela soube me agarrar, traçou um planinho, cuidou muito bem das minhas irmãs e eles fecharam o cerco e eu não pude sair. Me casei no dia 25 de outubro de 1939 e ela está na minha cacunda até hoje, não larga não.

P/1 - Você podia convidá-la para vir aqui também, né?

R - Assim que ela regressar dos Estados Unidos, por que não? Um ambiente até bastante acolhedor, eu fico muito satisfeito.

P/1 - O senhor lia almanaques?

R - Como?

P/1 - Aqueles livros de farmácia, o senhor lia?

R - Lia.

P/1 - O que o senhor gostava mais, como que eram eles?

R - Eu gostava muito de almanaques que traziam questões mecânicas, nada mais sofisticado. Só mecânica, tanto assim que meu filho, o Antônio Carlos, ele viaja muito pela Europa, Alemanha, Bélgica, Holanda, mas quando ele passa na Inglaterra ele não deixa de trazer sempre livros de ferrovias para mim. Eu tenho uns álbuns muito bonitos, até se vocês quiserem conhecer eu trago aqui também.

P/1 - E hoje em dia como é que está essa situação concretamente? Qual é o estado das ferrovias no Brasil?

R – Degradada, não tem outra palavra. Simplesmente degradada. Porque as ferrovias são hoje estatais. É cabide de emprego. A produção é mínima e o Estado injetando dinheiro, injetando dinheiro e o estado tirando dinheiro do povão para investir nas estatais e as estatais comendo todo o dinheiro, então para a ferrovia não sobra nada, essa é a verdade. Que o nosso presidente em exercício Itamar consiga pelo menos nessa parte privatizar tudo, porque não tem outro caminho a seguir a não ser a privatização.

P/1 - Qual o seu maior, senhor Octavio?

R – O meu maior sonho já realizei. Hoje vivo entre amigos, um homem que chega a ter bisneto não pode pelo menos almejar mais alguma coisa. Eu estou chegando nos 80 anos, eu acho que a minha tarefa já está comprida. Tem aquela moça ali, a Sueli, que é o meu braço direito, porque eu tive um derrame então, ela é a minha cabeça.

P/1 - O senhor acha importante gravar sua vida em vídeo, a sua história de vida em vídeo?

R - Eu não sei se seria interessante para mim, porque isso ficaria para posteridade. Uma vez que o trabalho é de vocês, se vocês acharem que é conveniente, por que não? Porque eu estou até em falta com rapaz de Assis, porque eu viajo bastante e um rapaz de Assis, que também é estudioso como vocês, ficou de me esperar para que eu fizesse um relato sucinto do que foi as ferrovias e o que são hoje. Mas infelizmente ele só tem um dia de folga, porque ele vai na escola, e esse dia de folga não coincidiu com a minha chegada em Assis, tanto que eu não me neguei, mandei um telefonema a ele, um abraço, e falei para ele que assim que eu pudesse viajar, que coincidisse com o dia que ele tem de folga, ele terá a minha palavra para registrar, como vocês também.

P/1 - O que o senhor deixaria de mensagem gravada para gerações de crianças e adolescentes de hoje?

R - Minha filha, não tem muito a deixar. Mas o pouco que eu devo dizer [é que] não é fácil seguir. Porque manter a dignidade, manter a sociedade e a honestidade, esses três sentimentos hoje, torna-se difícil você ministrar aos que vem vindo agora.

P/1 -

Mas o que senhor diria a eles? De experiência...

R - A partir de que esta vida, assim desregrada, se a guerra traz os seus piores momentos, as piores aflições, também traz alguma outra coisa que o decorrer do tempo, vai deixando muito de convergir e congregar as famílias. É a desagregação da família. Porque cada guerra que tem, não só mata a pessoa fisicamente, como mata moralmente também. Como perder parte dos seus princípios. O homem passa a deixar de lado a família, a sua crença em Deus, a sua educação e o que vocês estão vendo aqui hoje nesse mundo, é isso, é essa violência, ninguém respeitando ninguém, ninguém achando que deve dar atenção a alguém e eu não acredito seja muito fácil de se erguer, de jeito nenhum. Espero que essa Mocidade, o que vem vindo ainda, possa seguir os bons exemplos, sem o qual eu não acredito que essa família continue por muito tempo.

P/1 - O senhor gostaria de falar alguma coisa que não falou ainda?

R - Sobre?

P/1 - Sobre o que você quiser, que o senhor, que queira deixar registrado? Ou sobre a ferrovia sobre a sua vida?

R - Bom, a minha vida já ficou indelével e marcada até a minha aposentadoria. Não foi um relato minucioso, foi sim um relato um pouquinho lacônico, mais rápido, que eu também não sei até quando vocês poderão me atender. E por uma questão de princípio, eu costumo ser rápido, em algumas pinceladas eu traço a minha vida ou qualquer perfil, pensando sempre que eu estou sendo aquele que toma semancol, mas eu tomo. (risos)

P/1 - Então, é muito interessante essas coisas cotidianas, né? De lembranças que ficam, se o senhor tiver algum caso, alguma lembrança para contar...

R - Eu acho que a gente deve só lembrar o que é bom. Porque aquilo que nos traz amargura não convém relembrar a todo instante. Mas a minha vida foi Talhada dentro disso que eu acabei de dizer para vocês. Realmente, acontecem alguns casos, eu não vou dizer aqui que eu não quero ser o pescador, o caçador, porque numa roda de amigos numa localidade meio deserta, então estou vindo contar uma história de caçador, enquanto a dona da casa fazia um café à noite fria, né? E os maridos contando as peripécias de caçador e que chegaram dia à tarde não tinha caçado nada. Restava uma bala na espingarda e isso é o que ocorreu comigo, ele contando e, de repente, ele ouviu os cachorros, quando estão rastreando o animal. Então ele se posicionou no Carreiro, Carreiro é o caminho que o animal faz para fugir no momento, de insegurança e ele se posicionou e quando o veadinho passou ele atirou. Ele fez uma pequena pausa e continuou, acertou bem na orelhinha do bichinho. Aí ele se enroscou eu acredito, né? Porque deveria ter lembrado que ele só tinha uma bala. acertou uma no pé e no ouvido, né? E a mulher que já está com a bandeja de café para nós tomar, falou “Ah, Chico, conta logo que o bichinho coçou a orelha quando você tirou.”. Moral: A mulher mentia mais do que o homem, né, e tomamos o café e ficou elas por elas. E essas coisas é bom a gente contar, porque se acreditarem, eu contei o que o outro estava contando. Não inventei nada. Eu sou que nem aquele jornalista, eu aumento, mas não invento.

P/1 - E aí você quer contar mais alguma coisa de cotidiano...

R - Bem, o que resta dizer aqui para vocês é que em todas as profissões, em todas as naturezas de trabalho, eu acredito que a locomotiva, assim como o navio a vapor, o trabalho mais árduo mesmo é aquela fornalha. Quando alguém trabalha numa locomotiva, ou em diversas locomotivas - porque sofrem escalas e cada um faz um trem, mas a natureza trabalho é o mesmo -, eu não senti um trabalho nenhum mais rápido do que o foguista. Aquele que tirar 8, 10 anos de foguista pode dizer que esse contribuiu com a sociedade, não tem trabalho mais árduo. No navio, então, é pior.

P/1 - Você já trabalhou de foguista?

R - Já trabalhei também. A carreira de maquinista começa por aí. Começa com você aprendendo serviço no depósito, as primeiras lubrificações, a limpeza, para depois então sair na linha com as locomotivas grandes, que levam 2 foguistas, porque um homem só não dá conta para abastecer a fornalha e dar pressão para a locomotiva. Então esse trabalho, mas tem que passar por ele 10, 12 anos para depois ocupar aquele lado direito, onde todo mundo aqui de fora vê o maquinista [e pensam] “Olha como ele vai bonitão lá”, mas para chegar lá é muito duro. De cada 100, 3 ou 4 chegam lá. A vida de ferroviário não é tão fácil assim não. Hoje até que está mais ou menos, não tanto quando necessário para fazer frente a essa carestia, né? Mas é uma profissão mais ou menos boa. Boa porque é estável, né? Então, não é aquelas coisas e ser ferroviário, não, mas eu não me lamento porque graças a Deus estou inteiro, né? E pude criar minha família, educar os meus filhos, então agradeço a Deus por tudo que me deu até agora.